Ativismo histriônico.
Naturalmente que qualquer pessoa que entrar em contato com a petição escrita por graduandos de Yale (você pode lê-la aqui) torcerá o nariz e com muita razão. Os soluços servem de argumentos cabais: mas e Shxpr? E Dante? E Cervantes? E ― ? ― ? ― Pra ser bem sincero, acho que nós vamos é desempoeirar todos os livros de história da literatura, que guardamos com tanto amor e carinho em algum recanto aconchegante de nossas prateleiras, só nessa brincadeira de achar quem escapole da ideia. É como eu sempre digo: trata-se de um momento em que o ativismo se transforma numa atividade no mínimo lúdica e terapêutica para quem o contempla, haja vista que refutá-lo acaba sendo um passatempo dos mais saborosos.
Lógico que isso é terrível. Onde é que esse pessoal está com a cabeça, ora essa? Será mesmo que eles resolveram tirar os pés da realidade simples do fenômeno literário? Mire e veja: a possibilidade de pensarmos aquilo que chamamos de "contra-cânones" está aí, interessantíssima e saudável. Se coloco A escrava, de Gonçalves Dias, ao lado dos poemas de Luís Gama, do Sapateiro Silva e de uma peça tão poderosa quanto O Emparedado de Cruz e Sousa, eu estou criando uma maneira totalmente distinta de olhar para esse mesmo período histórico do que se recaísse na sequência de sempre: indianismo, ultrarromantismo, condoreirismo, parnasianismo e, voilà!, simbolismo.
Pois não custa lembrar que nada nos impede de pensarmos cânones alternativos àqueles que são tidos como os cânones oficiais; na verdade, trata-se de um exercício que revela desafios próprios e que pode chegar a categorias de análise do fenômeno literário que, se fôssemos usar as ferramentas no geral disponíveis graças aos modelos oficiais, digamos assim, redundariam em análises eu não digo nem tanto pobres, mas, no mínimo, análises insuficientes, análises que provavelmente não chegariam aos mesmos resultados e às mesmas leituras que, graças aos instrumentos propiciados pelo contra-cânone, conseguimos chegar.
Pois o contra-cânone é isso: não se trata de estabelecer um novo cânone. É muito mais um raciocínio em torno do que faz com que estabeleçamos cânones, de que modo esses cânones estabelecidos se perpetuam no tempo e, claro, de que modo a ideia central de um cânone literário (entenda-se: um punhado representativo de obras representativas) pode servir como uma categoria, eu disse, privilegiada de análise para, por exemplo, o caso da literatura feminina, onde, com base num contra-cânone, eu posso chegar a estudos distintos, porventura esclarecedores a respeito, pelo menos, das autoras ali dentro envolvidas. Ou, num outro exemplo, nada me impede de pensar a literatura negra como um contra-cânone onde artistas negros influenciam uns aos outros e onde retraram, em suas obras, temas próprios da etnia negra, como o arcabouço de saberes africanos ou a bruta realidade racista, mas isto sem que se pretenda, com um contra-cânone assim, matar todos os outros (na verdade sua razão de existir é mais no sentido de "se não prestam atenção direito, eu vou lá e faço") ou sem que se pretenda ler a obra do artista negro de forma marcada, de modo que a dor de cotovelo de uma paixão não correspondida se torna numa necessária dialética entre senhor e escravo segundo Hegel.
Afinal de contas, o contra-cânone costuma ter mecanismos que regulam o escopo de obras colocadas dentro das comportas, o que implica dizer que ele por definição é mais limitado que o Cânone com C maiúsculo. Não quer dizer que ele simplesmente se recolha; o contra-cânone é um instrumento crítico que permite novas leituras, muitas vezes menos bitoladas, dos escritores em questão, e o simples fato de permiti-lo faz com que o próprio Cânone com C maiúsculo se renove. Afinal de contas, se digo que este último é mais amplo que aquele, é porque ele considera a literatura como um todo, ou, até pra ser mais exato, pelo menos é assim que consta na embalagem e no manual de instruções (pois, na prática, ele passa vista grossa sem nenhum remorso, e o que impede que essa falta de remorso passe batida e que essas vistas grossas sejam lançadas e fique por isso mesmo são, justamente, os bons e velhos contra-cânones).
Mais amplo, também, no sentido de que gente demais mete o bedelho na coisa. Assim: querermos adicionar novos autores no cânone é algo que na prática nós, enquanto leitores, fazemos o tempo todo, uma vez que um cânone é feito de um cerne duro e de zonas que gradativamente restam como sendo debatíveis. É dizer: nomes como Shxpr ou Cervantes fazem parte sem dúvidas do cânone; é quase que inconcebível que eu pense num cânone sem a obra desses caras. E todavia, não me parece ser exatamente o mesmo com Rabelais. Não que Rabelais seja um autor menor; mas, apenas, me parece que posso pensar num modelo de cânone sem que eu inclua Rabelais, necessariamente, ali no meio, ainda mais se este for um cânone de extensão reduzida. Harold Bloom (que costuma ser, embora muitas vezes de forma irrefletida, sinônimo de cânone), nem no seu cânone ocidental e nem na sua listagem de 100 gênios da literatura incluiu Rabelais. E no entanto, se Rabelais é assim, ele, pelo menos, é um autor mais canônico do que Malherbe, pelo menos no sentido de que Rabelais conta com uma interpretação tão sólida quanto a de Bakhtin.
Mas será que acabou? É aí que começamos a pensar caminhos alternativos. Pois, de fato, quando falamos de um cânone, nós costumamos falar muitas vezes de forma impensada, ou seja, nós temos uma vaga noção de quem são esses autores que compõem o cânone graças ao ensino escolar que tivemos e graças ao que, grosso modo, ouvimos a crítica dizer. Mas, dum ponto de vista crítico e mesmo do ponto de vista de uma análise mais detida, nós começamos a perceber os pontos fracos de todo e qualquer cânone, especialmente quando ele começa a sair de sua zona de conforto e passa, por conseguinte, a incluir nomes mais cedo ou mais tarde debatíveis. Por exemplo: por que incluo Thomas Mann e me esqueço de Hermann Broch? Ou então passamos a questionar o âmbito e as molas críticas de um cânone. Pois cânones precisam ser estruturas inteligentes. Eles precisam aguentar a porrada de duas coisas evidentemente óbvias (pleonasmo necessário): o advento da literatura contemporânea e o fato de que um ser humano não é capaz de ler tudo, nem mesmo tudo o que está a seu alcance. Logo, cânones precisam possuir uma abertura fundamental mas de tal modo que ainda assim consigam manter uma lógica que seja, caso não queiram padecer de uma espécie de arbitrariedade medonha.
Costumamos sempre citar Harold Bloom quando o assunto é cânone em grande medida porque, quando a discussão a respeito do cânone literário, em específico na segunda metade do século XX pra cá, começou a surgir de forma acalorada, Bloom se postou como uma espécie de defensor da ideia de um cânone, e, coisa importantíssima, ele tinha uma ideia para dar a ignição ao cânone que pensara: a mola mestra da angústia da influência. Portanto, não é que Bloom tenha incluído Shxpr no centro do cânone por capricho ou porque ele apenas acha que ele é o melhor autor e pronto, ou, pior ainda, porque ele é Harold Bloom, leitor inteligente, um cara que já leu muitos livros (até Machado de Assis, veja só) e, portanto, ele tem autoridade pra dizer isso. Ele colocou Shxpr no centro porque, graças ao raciocínio, ao fundamento, princípio teórico da angústia da influência ele enxerga Shxpr como estando ali no centro. É possível que você considere algo contrário a Bloom, ou que resolva expandir seu cânone ― mas ambas as coisas, e tantas e tantas outras, serão possíveis de modo a que a ideia original, a que o cânone pensado por Bloom não se desfigure. E por isso ele é inteligente.
Mas aqui já falamos de cânones como estruturas pensadas. O cânone que geralmente nos é ensinado é um misto de narrativa histórica com apreciação sedimentada ao longo das décadas. Pois não se pode olhar para o cânone e enxergar apenas opressão, conveniência, arbitrariedade. Cânones se agarram a instituições que, querendo ou não, lhe dão uma importante sobrevida. Uma das principais instituições nesse sentido é a escola, que faz com que aluninhos girem em torno de um cânone literário e, dentre a miríade de coisas que daí pode surgir, faz com que essa manada de aluninhos, sempre renovada, consuma os livros desses caras. Mas não podemos pensar apenas nesse sentido, de algo empurrado pela goela. Pois o cânone é também formado de autores que, apesar da distância temporal e geográfica, sem nem contar a distância máxima que existe entre o gosto de um leitor e de outro, ainda assim conseguiram se firmar como autores de excelência. E isso é importantíssimo. Não é algo feito de qualquer jeito. Existe um subsídio que nós julgamos capaz de vencer o tempo: o subsídio da qualidade artística.
Claro que não é só isso pois sabemos que esse cânone nem sempre se faz só de excelências. O processo de institucionalização de um cânone traz consigo, eu disse, suas narrativas, de modo que acabamos tendo de suportar a poesia de um Casimiro de Abreu mesmo sabendo que ele é um poeta de terceira ou quarta cepa. Porque a discussão a respeito do cânone ela realmente precisa de um polo de respeito e um polo de transgressão. Cânones pedem para que sejam questionados. Mas, e aqui voltamos ao assunto do dia após este longuíssimo périplo, será que esse questionamento pode ser tão literal quanto o proposto pelos alunos de Yale?
Eu não digo exatamente que esses alunos estejam pressupondo que o cânone ensinado seja ensinado apenas porque os autores são brancos heterossexuais. Eles estão pensando mais no impacto que o ensino deste cânone estranhamente homogêneo incute. O que revela pontos cegos no raciocínio, claro. Pois não se pode querer propor um contra-cânone se não se conhece de maneira suficientemente ótima o próprio cânone ― e de modo que, se fôssemos realmente pensar num contra-cânone de base tão radical quanto esta, não seria algo a ser feito para os undergraduates, mas, sim, para estudante de pós-graduação. Esse é um ponto. O segundo é o de que, embora a literatura não exista no éter, ela é basicamente a criação de obras de invenção que possuem uma vida estética particular no seio de uma sociedade. Quando eu analiso as influências por exemplo da cultura e de outros artistas negros na formação daquele artista negro sob o enfoque de minha análise, eu posso fazer isso sem considerar, pelo menos a priori ou dentro do escopo que delimito, as influências de artistas brancos. Mas isso não quer dizer que tal artista não tenha sido influenciado por artistas brancos e heterossexuais. Fatalmente elas serão influências em sua obra, em grande medida pois, como a literatura não existe no éter e nem nunca existiu, ela querendo ou não refrata características sociais, de modo que, se a estrutura social ao longo dos séculos era brutalmente excludente, então o saldo literário reflete algo assim: a alfabetização e a formação literária eram coisas restritas a uma pequena casta, o que faz com que esse saldo esmagador que vemos, ao contemplar os séculos passados, de escritores brancos e heterossexuais, é um saldo decorrente dessas estruturas de opressão social maiores.
É uma droga? Sim, é uma droga. Aquele clássico ensaio de Virginia Woolf continua nos apresentando a uma realidade terrível: quantos e quantos escritores de talento nós não perdemos no meio de todo esse machismo, de todo esse racismo, de toda essa exclusão social nefastas? Não dá pra calcular. E no entanto, também não dá pra querermos apagar isso. Pois o fato de que Dante tenha sido branco e heterossexual, e mesmo que ele tenha comungado de opiniões sociais e políticas odiosas para nós contemporâneos (eu realmente não quero entrar nesse mérito, pois acho que sim pra umas coisas, não pra outras ― enfim), não retira o fato de que ele, um belo dia, escreveu: "Tanto gentile e tanto onesta pare". Precisamos olhar também para essa realidade autônoma das obras de arte. Grandes artistas do passado existiram e produziram obras de excelência. Em sua maioria foram brancos e heterossexuais. Mas o foram por que brancos e heterossexuais são artistas melhores que negros homossexuais, por exemplo? Óbvio que não. Não interessa se a pessoa é isso, aquilo ou aquiloutro. A excelência artística não faz distinção de nada disso. Foram brancos e heterossexuais, esses heróis de antanho, porque a estrutura social excluía da escrita e da literatura uma vasta parcela da sociedade. Eu repito: é uma droga saber que um dia foi assim. Mas devemos lidar com isso ― sem nos esquecermos que, apesar disso, apesar de tanto talento que nós potencialmente desperdiçamos, alguém algum dia disse "When I compare thee to a summer day" e esse alguém lançou seu nome no futuro, iluminando a senda de artistas de que gênero, etnia, nacionalidade ou sexualidade for.
Lógico que isso é terrível. Onde é que esse pessoal está com a cabeça, ora essa? Será mesmo que eles resolveram tirar os pés da realidade simples do fenômeno literário? Mire e veja: a possibilidade de pensarmos aquilo que chamamos de "contra-cânones" está aí, interessantíssima e saudável. Se coloco A escrava, de Gonçalves Dias, ao lado dos poemas de Luís Gama, do Sapateiro Silva e de uma peça tão poderosa quanto O Emparedado de Cruz e Sousa, eu estou criando uma maneira totalmente distinta de olhar para esse mesmo período histórico do que se recaísse na sequência de sempre: indianismo, ultrarromantismo, condoreirismo, parnasianismo e, voilà!, simbolismo.
Pois não custa lembrar que nada nos impede de pensarmos cânones alternativos àqueles que são tidos como os cânones oficiais; na verdade, trata-se de um exercício que revela desafios próprios e que pode chegar a categorias de análise do fenômeno literário que, se fôssemos usar as ferramentas no geral disponíveis graças aos modelos oficiais, digamos assim, redundariam em análises eu não digo nem tanto pobres, mas, no mínimo, análises insuficientes, análises que provavelmente não chegariam aos mesmos resultados e às mesmas leituras que, graças aos instrumentos propiciados pelo contra-cânone, conseguimos chegar.
Pois o contra-cânone é isso: não se trata de estabelecer um novo cânone. É muito mais um raciocínio em torno do que faz com que estabeleçamos cânones, de que modo esses cânones estabelecidos se perpetuam no tempo e, claro, de que modo a ideia central de um cânone literário (entenda-se: um punhado representativo de obras representativas) pode servir como uma categoria, eu disse, privilegiada de análise para, por exemplo, o caso da literatura feminina, onde, com base num contra-cânone, eu posso chegar a estudos distintos, porventura esclarecedores a respeito, pelo menos, das autoras ali dentro envolvidas. Ou, num outro exemplo, nada me impede de pensar a literatura negra como um contra-cânone onde artistas negros influenciam uns aos outros e onde retraram, em suas obras, temas próprios da etnia negra, como o arcabouço de saberes africanos ou a bruta realidade racista, mas isto sem que se pretenda, com um contra-cânone assim, matar todos os outros (na verdade sua razão de existir é mais no sentido de "se não prestam atenção direito, eu vou lá e faço") ou sem que se pretenda ler a obra do artista negro de forma marcada, de modo que a dor de cotovelo de uma paixão não correspondida se torna numa necessária dialética entre senhor e escravo segundo Hegel.
Afinal de contas, o contra-cânone costuma ter mecanismos que regulam o escopo de obras colocadas dentro das comportas, o que implica dizer que ele por definição é mais limitado que o Cânone com C maiúsculo. Não quer dizer que ele simplesmente se recolha; o contra-cânone é um instrumento crítico que permite novas leituras, muitas vezes menos bitoladas, dos escritores em questão, e o simples fato de permiti-lo faz com que o próprio Cânone com C maiúsculo se renove. Afinal de contas, se digo que este último é mais amplo que aquele, é porque ele considera a literatura como um todo, ou, até pra ser mais exato, pelo menos é assim que consta na embalagem e no manual de instruções (pois, na prática, ele passa vista grossa sem nenhum remorso, e o que impede que essa falta de remorso passe batida e que essas vistas grossas sejam lançadas e fique por isso mesmo são, justamente, os bons e velhos contra-cânones).
Mais amplo, também, no sentido de que gente demais mete o bedelho na coisa. Assim: querermos adicionar novos autores no cânone é algo que na prática nós, enquanto leitores, fazemos o tempo todo, uma vez que um cânone é feito de um cerne duro e de zonas que gradativamente restam como sendo debatíveis. É dizer: nomes como Shxpr ou Cervantes fazem parte sem dúvidas do cânone; é quase que inconcebível que eu pense num cânone sem a obra desses caras. E todavia, não me parece ser exatamente o mesmo com Rabelais. Não que Rabelais seja um autor menor; mas, apenas, me parece que posso pensar num modelo de cânone sem que eu inclua Rabelais, necessariamente, ali no meio, ainda mais se este for um cânone de extensão reduzida. Harold Bloom (que costuma ser, embora muitas vezes de forma irrefletida, sinônimo de cânone), nem no seu cânone ocidental e nem na sua listagem de 100 gênios da literatura incluiu Rabelais. E no entanto, se Rabelais é assim, ele, pelo menos, é um autor mais canônico do que Malherbe, pelo menos no sentido de que Rabelais conta com uma interpretação tão sólida quanto a de Bakhtin.
Mas será que acabou? É aí que começamos a pensar caminhos alternativos. Pois, de fato, quando falamos de um cânone, nós costumamos falar muitas vezes de forma impensada, ou seja, nós temos uma vaga noção de quem são esses autores que compõem o cânone graças ao ensino escolar que tivemos e graças ao que, grosso modo, ouvimos a crítica dizer. Mas, dum ponto de vista crítico e mesmo do ponto de vista de uma análise mais detida, nós começamos a perceber os pontos fracos de todo e qualquer cânone, especialmente quando ele começa a sair de sua zona de conforto e passa, por conseguinte, a incluir nomes mais cedo ou mais tarde debatíveis. Por exemplo: por que incluo Thomas Mann e me esqueço de Hermann Broch? Ou então passamos a questionar o âmbito e as molas críticas de um cânone. Pois cânones precisam ser estruturas inteligentes. Eles precisam aguentar a porrada de duas coisas evidentemente óbvias (pleonasmo necessário): o advento da literatura contemporânea e o fato de que um ser humano não é capaz de ler tudo, nem mesmo tudo o que está a seu alcance. Logo, cânones precisam possuir uma abertura fundamental mas de tal modo que ainda assim consigam manter uma lógica que seja, caso não queiram padecer de uma espécie de arbitrariedade medonha.
Costumamos sempre citar Harold Bloom quando o assunto é cânone em grande medida porque, quando a discussão a respeito do cânone literário, em específico na segunda metade do século XX pra cá, começou a surgir de forma acalorada, Bloom se postou como uma espécie de defensor da ideia de um cânone, e, coisa importantíssima, ele tinha uma ideia para dar a ignição ao cânone que pensara: a mola mestra da angústia da influência. Portanto, não é que Bloom tenha incluído Shxpr no centro do cânone por capricho ou porque ele apenas acha que ele é o melhor autor e pronto, ou, pior ainda, porque ele é Harold Bloom, leitor inteligente, um cara que já leu muitos livros (até Machado de Assis, veja só) e, portanto, ele tem autoridade pra dizer isso. Ele colocou Shxpr no centro porque, graças ao raciocínio, ao fundamento, princípio teórico da angústia da influência ele enxerga Shxpr como estando ali no centro. É possível que você considere algo contrário a Bloom, ou que resolva expandir seu cânone ― mas ambas as coisas, e tantas e tantas outras, serão possíveis de modo a que a ideia original, a que o cânone pensado por Bloom não se desfigure. E por isso ele é inteligente.
Mas aqui já falamos de cânones como estruturas pensadas. O cânone que geralmente nos é ensinado é um misto de narrativa histórica com apreciação sedimentada ao longo das décadas. Pois não se pode olhar para o cânone e enxergar apenas opressão, conveniência, arbitrariedade. Cânones se agarram a instituições que, querendo ou não, lhe dão uma importante sobrevida. Uma das principais instituições nesse sentido é a escola, que faz com que aluninhos girem em torno de um cânone literário e, dentre a miríade de coisas que daí pode surgir, faz com que essa manada de aluninhos, sempre renovada, consuma os livros desses caras. Mas não podemos pensar apenas nesse sentido, de algo empurrado pela goela. Pois o cânone é também formado de autores que, apesar da distância temporal e geográfica, sem nem contar a distância máxima que existe entre o gosto de um leitor e de outro, ainda assim conseguiram se firmar como autores de excelência. E isso é importantíssimo. Não é algo feito de qualquer jeito. Existe um subsídio que nós julgamos capaz de vencer o tempo: o subsídio da qualidade artística.
Claro que não é só isso pois sabemos que esse cânone nem sempre se faz só de excelências. O processo de institucionalização de um cânone traz consigo, eu disse, suas narrativas, de modo que acabamos tendo de suportar a poesia de um Casimiro de Abreu mesmo sabendo que ele é um poeta de terceira ou quarta cepa. Porque a discussão a respeito do cânone ela realmente precisa de um polo de respeito e um polo de transgressão. Cânones pedem para que sejam questionados. Mas, e aqui voltamos ao assunto do dia após este longuíssimo périplo, será que esse questionamento pode ser tão literal quanto o proposto pelos alunos de Yale?
Eu não digo exatamente que esses alunos estejam pressupondo que o cânone ensinado seja ensinado apenas porque os autores são brancos heterossexuais. Eles estão pensando mais no impacto que o ensino deste cânone estranhamente homogêneo incute. O que revela pontos cegos no raciocínio, claro. Pois não se pode querer propor um contra-cânone se não se conhece de maneira suficientemente ótima o próprio cânone ― e de modo que, se fôssemos realmente pensar num contra-cânone de base tão radical quanto esta, não seria algo a ser feito para os undergraduates, mas, sim, para estudante de pós-graduação. Esse é um ponto. O segundo é o de que, embora a literatura não exista no éter, ela é basicamente a criação de obras de invenção que possuem uma vida estética particular no seio de uma sociedade. Quando eu analiso as influências por exemplo da cultura e de outros artistas negros na formação daquele artista negro sob o enfoque de minha análise, eu posso fazer isso sem considerar, pelo menos a priori ou dentro do escopo que delimito, as influências de artistas brancos. Mas isso não quer dizer que tal artista não tenha sido influenciado por artistas brancos e heterossexuais. Fatalmente elas serão influências em sua obra, em grande medida pois, como a literatura não existe no éter e nem nunca existiu, ela querendo ou não refrata características sociais, de modo que, se a estrutura social ao longo dos séculos era brutalmente excludente, então o saldo literário reflete algo assim: a alfabetização e a formação literária eram coisas restritas a uma pequena casta, o que faz com que esse saldo esmagador que vemos, ao contemplar os séculos passados, de escritores brancos e heterossexuais, é um saldo decorrente dessas estruturas de opressão social maiores.
É uma droga? Sim, é uma droga. Aquele clássico ensaio de Virginia Woolf continua nos apresentando a uma realidade terrível: quantos e quantos escritores de talento nós não perdemos no meio de todo esse machismo, de todo esse racismo, de toda essa exclusão social nefastas? Não dá pra calcular. E no entanto, também não dá pra querermos apagar isso. Pois o fato de que Dante tenha sido branco e heterossexual, e mesmo que ele tenha comungado de opiniões sociais e políticas odiosas para nós contemporâneos (eu realmente não quero entrar nesse mérito, pois acho que sim pra umas coisas, não pra outras ― enfim), não retira o fato de que ele, um belo dia, escreveu: "Tanto gentile e tanto onesta pare". Precisamos olhar também para essa realidade autônoma das obras de arte. Grandes artistas do passado existiram e produziram obras de excelência. Em sua maioria foram brancos e heterossexuais. Mas o foram por que brancos e heterossexuais são artistas melhores que negros homossexuais, por exemplo? Óbvio que não. Não interessa se a pessoa é isso, aquilo ou aquiloutro. A excelência artística não faz distinção de nada disso. Foram brancos e heterossexuais, esses heróis de antanho, porque a estrutura social excluía da escrita e da literatura uma vasta parcela da sociedade. Eu repito: é uma droga saber que um dia foi assim. Mas devemos lidar com isso ― sem nos esquecermos que, apesar disso, apesar de tanto talento que nós potencialmente desperdiçamos, alguém algum dia disse "When I compare thee to a summer day" e esse alguém lançou seu nome no futuro, iluminando a senda de artistas de que gênero, etnia, nacionalidade ou sexualidade for.