Fresquinhos.



Do livro de estreia de Jeanne Callegari eu não chego a disparar rojões. Mas também não chego a declamar impropérios. Acho que ao contrário do que já expressei em outras ocasiões no bloguinho, não sei se sou muito a favor dessa coisa de amolecermos diante de um livro de estreia. Nada garante que o quinto livro de um poeta seja necessariamente melhor que o primeiro, ou que haja, por alguma proporção cabalística, uma melhora. É razoável pensarmo-la, mas isso não se sustenta muito. Se vier a ser o caso de realmente considerarmos a posição de estreante, eu concordarei se ela for sustentada quando aquelas comparações somáticas com poetas canonizados surgirem (algo como entrar na creche da Poesia Contemporânea e perguntar pro sr. Diretor quem será o próximo Carlos Drummond: isto é, temos de nos lembrar que Drummond é uma obra completa em estado de antologia e que, portanto, se essa comparação quiser ser levada a sério, então é necessário que se tenha em mente quem Drummond foi quando estreara) ou quando lidamos com concursos poéticos (ou seja: é comum que um poeta com uma obra mais desenvolvida implique, num plano crítico, alguém com uma aceitação mais estabilizada que a do efebo, de modo que separar o joio do trigo, nesse sentido, não me parece um bicho de sete cabeças e, dentro da sistemática da premiação literária, é desejável até num sentido de incentivo mesmo).

Mas, trilhando uma ou outra senda, é bom que se diga: o rigor não pode abaixar a crista, e, a bem da verdade, mensurar a qualidade de um livro de estreia passando vistas grossas a momentos ruins parece ser uma coisa que só conflui no vaticínio de ser ou não este poeta diante de nós um poeta promissor. Aquela espécie de aposta em cavalos que mais cedo ou mais tarde a crítica acaba fazendo: muitos acreditam que num futuro isso possa servir de consolo ("fui o primeiro a reconhecer Fulaninho!"), o que não deixa de ser verdade embora possua seus ares de ridículo (não é trabalho da crítica "acertar" ou "errar"; o trabalho da crítica é outro, é outro...). De minha parte eu simplesmente parto do princípio que todo poeta é sempre um poeta promissor e que nada impede que uma estreia catastrófica não se converta num segundo livro muito mais interessante. Não fico consultando uma segunda tabelinha de porcentagens poéticas para que afague as madeixas do camarada à minha frente. É preciso ser franco: a atividade poética, já dizia Harold Bloom, é repressora. Gente boa demais já publicou coisa boa demais. Ou o poeta chega chegando ou se escora nesse tipo de subterfúgio.

É, portanto, um livro surpreendente o livro de estreia de Jeanne Callegari? Não, não é. O saldo é razoável mas não é dos melhores. É melhor do que a média dos livros que você vai encontrar hoje, mas isso simplesmente não é um elogio. Aliás, esse tipo de argumento nem muito sentido faz, pois, como eu sempre digo depois que acordo e passo manteiga no pão, estar alguns degraus acima do Érebo onde perpetuamente dormem os escritores ruins não quer dizer muito se você ainda assim continua chafurdado num atoleiro de merda. Por isso "razoável", por isso "não dos melhores".

O livro coloca algumas partes do corpo pra fora, em específico dois dedos ornados com anéis de esmeralda e ágata. Instante simplesmente brilhantes, eu digo, e sim, sim, este, por si só, já é um enorme elogio, o maior dos elogios que posso fazer a seu livro. Não implico nem tanto com o fato de possuírem poemas ruins, pois, a bem da verdade, às vezes acho que um bom livro de poemas pode demandar alguns poemas ruins para que ele consiga, graças a um exercício de contraste, realçar os bons. No fim das contas só nos resta resmungar do nível médio dos poemas quando em contraste com o dos de qualquer época. Estamos diante de um livro competente na medida do possível, de uma estreia razoável onde existe uma espécie de clareza, uma espécie de franqueza capaz de fazer do livro aquilo que o título diz ser: fresco. E sem nada daquela pretensão de criar uma espécie de unidade ainda que pensada de última hora. Convém repetir: franqueza.

Então vamos dizer que no livro achamos poemas classificáveis como: 1) nem chegou perto; 2) a caminho; 3) quase-lá; 4) lá. (Daqui a duzentos anos essa classificação ou vai ser apagada junto com o banco de dados do site de hospedagem ou vai ser adotada nos vestibulares.) Do primeiro tipo eu conseguiria citar algo como o lógica:

          de tantas impossibilidades
          que cabem num círculo

          e tantos infinitos
          que se juntam num passo

          se penso é porque
          não existo

          a vida
          não é coisa razoável

Paradoxo pelo paradoxo, não chega nem mesmo a arranhar o cogito cartesiano. Um exercício apenas, do qual nós só podemos destacar a ideia dos infinitos se juntando num passo (é uma ideia que possui lá sua beleza) e um apontamento, infelizmente muito mal trabalhado (houvesse mais consciência por parte da poetisa e então nós teríamos um poema muito melhor), a respeito da raiz do cogito cartesiano como localizada numa dúvida sistemática e implacável. Isto é: negações, o que demandaria um trabalho mais apurado a respeito das deixas que o estrato negativo em todas as estrofes (com exceção da segunda) permite-nos ler.

Não são muitos, porém, os que ficam apenas nisso. Eu diria que a maior parte do livro possui poemas a caminho, poemas que apresentam instantes felizes mas sem nada que seja de uma engenhosidade digna de nota (ou de uma felicidade que abarque o poema do início ao fim). Por exemplo o caso de obsolescência programada:

          em 1923 william
          carlos williams disse que a rosa
          estava obsoleta

          esqueceram de avisar as floriculturas
          e os publicitários

          guardiã de formas arcaicas
          sinto certa ternura
          por rosas selvagens
          e café
          e haicais
          riscados às pressas
          em guardanapos

Dirceu Villa, no posfácio à obra, tem razão quando elogia o timing de uma passagem assim. O problema é que não consigo deixar de enxergar a última estrofe como uma espécie de excrescência, em que a única coisa que me parece se salvar no todo seja a menção às rosas selvagens, o que dá um clima de liberdade muito mais interessante ao poema e não aquele tipo de nostalgia chique de sentir falta de rosas gourmet ou qualquer coisa do tipo. Mas que me entendam: você lê uma estrofe como a terceira e parece que não sente mais nada. O jogo entre a primeira e a segunda é de uma fricção irônica, um apontamento sagaz, mas, quando chega na terceira, a única coisa que lhe ocorre é um enorme "e daí?".

Claro que ao longo do livro nós possuiremos outros repiques saudosistas, como em nostalgia ou corpo nostálgico. Deste último, veja por exemplo a primeira estrofe:

          as ideias pegam metrô comigo
          enquanto escrevo fotografias de infância

Quando comecei meu texto elogiando o fato dos miolos da autora serem, como prometido, frescos, estou me referindo a detalhes como esse de que o eu lírico escreva fotografias de infância. Não é nem tanto de que as ideias peguem metrô com ela, pois esse tipo de mescla de sentimentos e coisas íntimas saindo conosco para onde quer que formos, e de forma literal, me parece algo um tanto quanto batido (personificar o que tendemos a abstrair pra que, assim, finjamos convivermos). É o que observamos por exemplo no poema e agora para algo completamente diferente, onde o momento de frescor se concentra no título. Cito apenas as duas estrofes:

          havia rumores
          de que eu não tinha coração

          é verdade.
          meu coração dividiu em 10 x
          uma passagem em promoção
          nesse exato momento está molhando os pés no mar
          e colocando as fotos
          nas redes sociais

É um dos maiores poemas do livro, o que só deixa a coisa ainda pior. Se vier a ser o caso de anuirmos que estamos diante de um poema cômico, será melhor anuirmos também que estamos diante de um tipo de poema cômico bem bobinho, semelhante àquelas esquetes que povoam o domingo de cabo a rabo. Qualquer detrator de meia tigela dos poemas-piada modernistas já sabe em que nota tocar: a da falta quase que total de graça de poemas assim, que se sustentam apenas num desvio e numa surpresinha qualquer. Não estão errados. É uma exigência válida a de que o humor do poema seja mais incisivo e mais inteligente, ou, pelo menos, mais intenso.

Trato momentos ruins assim como momentos em que um poeta estreante errou a mão e não soube lidar direito com a tesoura ou, então, como a falta de um certo senso de ridículo, se fosse usar um termo certamente mais forte do que tenho em mente. Então é melhor que simplesmente não reparemos demais em coisas assim e, ao invés, observemos o que um poema como para bashô tem a nos dizer:

          em silêncio, o pulgão destrói a flor.
          ele é natureza, tanto quanto ela.
          o giz que desenhou a lua também fez
          as bestas e os corvos
          bashô, é preciso abraçar o escuro

Os dois primeiros versos estão quase lá, ou seja, quase próximos do espírito de um bom haikai. O que me parece especialmente incômodo aí é esse termo de abertura, "em silêncio", que, muito provavelmente, um bom haikaísta da estirpe de Bashô não usaria. Nós ou pressupomos ou deduzimos isso de um bom haikai. O que atrapalha, todavia, é que no restante temos imagens todas retiradas de haikais de Bashô, o que é uma maneira muito cômoda de homenagear o mestre, ao invés de, por exemplo, haurir seus ensinamentos e chegar a uma expressão que consiga traduzir um olhar análogo ao que Bashô lançava à natureza. Pois Bashô de fato parece ser um grande mestre para a autora, em especial quando em muitos de seus haikais ele consegue um frescor de observação praticamente insuperáveis. (Podemos pensar na rã pulando no açude, mas estou, a bem da verdade, lembrando de coisas como o cavalo urinando perto do travesseiro do poeta.) Jeanne Callegari tenta chegar lá, e acho que de modo geral ela chega quase-lá, visto que os equívocos (é um termo ruim mas não me ocorre nenhum outro melhor) são mais simples e menos traumáticos de serem corrigidos (de novo um termo ruim) do que no resto dos poemas. Fosse o caso de citarmos um poema que possui a concisão e a nobreza simples de um haikai, e seria o caso de ficarmos com silêncio:

          o momento
          em que a água
          se prepara para a gota

Mas, é claro, eu ainda assim aponto que um bom haikai não precisaria de um verso como "o momento". Bashô não precisou disso para gravar em mármore o instante da rã saltando no açude. Ele só falou do salto, oxente. Ao poema bastaria sustentar-se na boa escolha do verbo "preparar-se" que estaria tudo certo.

Um outro exemplo, só que dessa vez bom do início ao fim, está em verlaine:

          os cachorros abanam
          os rabos e lambem
          as canelas do dono

          em silêncio, o jovem
          se levanta e cede
          o lugar à senhora

          por um minuto o sol
          sai de trás das nuvens
          e aquece as pimenteiras na janela

          sonhemos:
          é hora

É como se tivéssemos uma sequência de três haikais. E, por estranho que possa parecer (e se você quiser enxergar nisso uma inconsistência, eu vou reclamar só no início), não enxergo o início da segunda estrofe, "em silêncio", como exatamente um início ruim, visto que, ao contrário dos dois casos antes apontados, estamos diante de um elemento humano em que a notação do silêncio se faz importante. De todo modo, instantes de concisão belíssimos, de uma concretude quase que palpável. Isso faz a coisa andar, se querem saber. Dirceu Villa chama o poema de um poema de atmosfera, mas, pelo fato de que estamos diante de cenas tão bem observadas, cenas que conseguem competir com os olhares mais afiados dos melhores prosadores, eu ouso dizer que é muito mais do que uma atmosfera. A poetisa nos dá subsídios para realmente sonharmos com aquilo. Na verdade, é como se ela concretizasse o sonho à nossa frente e nos instigasse a que fizéssemos o mesmo.

Poema de atmosfera, com um efeito poético distinto mas igualmente admirável, está no original de Verlaine a que o título alude: o poema O luar grisalho, cuja terceira e quarta estrofe dizem, na tradução de Guilherme de Almeida:

          Reflete o lago,
          Espelho puro,
          O vulto vago
          Do choupo escuro
          Que ao vento chora...

          Sonhemos: é hora. 

Adjetivos como "puro" ou "vago" (na verdade, a simples ideia de um "vulto vago"), ou mesmo "escuro" para "choupo" e a ideia de que o vento chore, ou, ainda, a simples presença do lago, tudo isso faz com que a cena se impeça de concretizar em seus mínimos detalhes à nossa frente, fazendo, antes, com que tenhamos de nos postar diante do poema do mesmo modo como nos postamos diante de um quadro impressionista: à distância a fim de que vejamos a cena retratada. Mas o efeito poético é preciso, ele nos acerta e nos encanta com igual perícia. Verlaine não precisou falar de cachorros que lambem as canelas do dono (é importantíssimo que você note: as canelas); ele, por outras vias, disparou a flecha direto no alvo. E é nesse sentido que o poema da autora se sustenta como um poema inteligente, haja vista que consegue se comunicar com o original de Verlaine e, ao mesmo tempo, irradiar vida, não se baratear um mínimo que seja.

Um segundo exemplo de inteligência está em valsinha. Se me for dado recauchutar o termo "poema de atmosfera", esse aqui se encaixa bem, mas muito bem mesmo. Talvez ele funcione, até, como uma espécie de atualização do clima poético simbolista com um elevado grau de argúcia. Vejamos:

          de um cansaço quase
          doce de uma doçura quase
          nobre de uma nobreza quase
          hoje de um hoje quase
          pagão

          de um desejo quase
          sonho de um sonho quase
          romã da romã quase um
          agosto da luz de agosto
          manhã

          da cama cadafalso
          dos braços armistício
          no olhar brilhante
          um compasso
          preciso

Isso é realmente muito bom. A maneira mais esquizofrênica que tenho de tentar te convencer é dizendo:

Nas duas primeiras estrofes começamos com uma preposição (de) seguida de um artigo indefinido (um). Na terceira (na verdade, essa mudança começa a ocorrer na metade da segunda estrofe), uma preposição (de) seguida de um artigo definido (a): no caso, os dois contraídos apenas em "da". Isso é o básico, ao lado da sonoridade, da falta de vírgulas, do paralelismo, dos cavalgamentos e de uma indeterminação sintática (decorrência de tudo isso junto). E tudo parece existir no poema num movimento de especificação, só que insuficiente, um movimento de especificação que se faz acompanhar sempre de um mistério: ficamos sem saber direito qual é o ponto de partida e o que é que liga, exatamente, os elos da cadeia. Por isso "de atmosfera", por isso atualização inteligente: cria o mistério, mas um mistério com bases firmes. Entenda-se: nas duas primeiras estrofes a ordem é direta, e estamos falando, por exemplo, "de um cansaço quase / doce". É um modelo de frase que especifica a coisa tratada, mas, ao mesmo tempo, a apresenta de maneira incompleta: o que é "de um cansaço quase / doce"? Digo: está faltando alguma coisa, não está?

Então nos sentimos como que à deriva, num processo de especificação que ganha o compasso de uma valsinha à medida que parte de um ponto interno para outro. Ou seja: começamos de um cansaço. De um cansaço em relação ao quê nós não temos como precisar. Mas é de um cansaço, que, especificamente, é "quase / doce". A construção do poema, pondo, nas duas primeiras estrofes, o "quase" no final do verso, dá uma ênfase para esse "quase" ao mesmo tempo em que faz com que, assim que cheguemos ao final da estrofe, nós tenhamos de pular para o próximo verso para que consigamos captar o sentido, como se chegar ao final do verso fosse quase chegar àquilo que o eu lírico quer nos informar. Ou, até, se pensarmos que o poema todo se movimenta em torno de uma especificação que começa de forma incompleta e que nos impede de visualizar de forma nítida o que descreve, então nós sempre giramos em torno de um quase também (podemos chegar longe e especificar tudo: por exemplo de que nobreza estamos tratando, mas, se não temos a peça inicial, o ponto de partida, ficamos com uma estrutura altamente especializada análoga a uma árvore de vasta fronde mas sem raiz).

Mas, eu dizia, estamos à roda de um cansaço quase doce. Só que não é qualquer doçura. Esse doce é de uma doçura quase nobre. E é esse tipo de trabalho que toda estrofe desenvolve. No caso da primeira estrofe, imaginar a ideia de um cansaço que seja quase doce é... ah, sei lá... uma espécie de milagre, se imaginarmos como seria voltar pra casa e achar aquela exaustão toda, de algum modo, doce. Não me parece tão fácil equacionar. Só que aqui se trata de uma doçura que é quase nobre, o que já é uma ideia, me parece, mais simples. O problema retorna quando pensamos no que seria essa nobreza quase hoje. Como assim? Uma nobreza que seria praticamente contemporânea a nós? E, o que apenas turva nossa compreensão, esse hoje é um hoje quase pagão. Partimos, sendo assim, de um extrato de sentido corpóreo para um extrato de sentido sensorial, um extrato de sentido tipicamente qualitativo, um de ordem temporal e um de ordem religiosa (um caminho rumo à abstração, digamos). Um caminho e tanto, esse que percorremos, e que não deixa muito a desejar se considerarmos o que a segunda estrofe faz: começa com um extrato de sentido corpóreo e mental (desejo), passa por um extrato de ordem mental, onírica (até aqui, o caminho rumo à abstração até que vai seguindo)...

Mas se rompe. Esse sonho é "quase / romã". Ou seja, ele é quase um objeto, uma fruta. E essa romã já não é mais "de" alguma coisa, não é mais "de uma doçura", por exemplo. Essa romã é "quase um / agosto". Especificamente:

          romã da romã quase um
          agosto da luz de agosto
          manhã

Ou seja, esse agosto que estamos tratando é um agosto da luz de agosto. Não é um agosto qualquer, mas, antes, um agosto que podemos inferir da luz de agosto, o que é uma imagem um tanto quanto bela. E uma vez que esse romã é isso, eis que, no fim da estrofe, num verso que rompe um encadeamento sintático, nós nos deparamos, apenas, com: "manhã". Não avançamos muito, mas, até aqui, sabemos que esse verso, "manhã", isolado, opera uma ruptura sintática e, na metade da segunda estrofe, temos um processo distinto do processo de esmiuçamento dos versos anteriores; aqui temos um processo que vai se avizinhando da metáfora, ou seja, a romã seria quase um agosto, ou, até, se quisermos nos aproximar ainda mais da condição sintática que o verso nos oferece, estamos falando, se fôssemos dispor em ordem comum: "quase um agosto [da luz de agosto] da romã" (o colchetes representa uma propriedade, uma procedência desse agosto mencionado). A romã possui tudo isso, e o movimento mental que passamos a estabelecer é um movimento óptico como que reverso, pois partimos do final, a romã, e então vamos esmiuçando tudo aquilo que a romã possui. Já não estamos diante daquela incompletude sintática dos versos anteriores, que iam especificando aquilo que o início dava partida: ou seja, começamos de alguma coisa incógnita que é de um cansaço quase doce, e aí começamos a falar do que é essa doçura etc etc, ao passo que, na segunda estrofe, quando chegamos no sonho, nós descobrimos que esse sonho é de um sonho quase romã, e que essa romã possui, como propriedade, quase um agosto da luz de agosto.

E então a manhã. Se lermos os extratos de sentido que possuímos até aqui, nós observaremos que estamos inicialmente num estado de sonolência (o cansaço combinado ao fato de ser doce) que parece pouco a pouco nos aclimatar a um tom onírico, referido não só graças a "sonho" mas também aos extratos de sentido que um termo como "pagão" pode nos remeter. Especificamente, o fato de que esse "pagão" advém de um hoje que é quase pagão: o processo do sono, sendo assim, atualiza este universo mítico e onírico. Na segunda estrofe, graças à mudança sintática que o aparecimento da romã representa (um objeto que é uma fruta de sabor agradável e que, portanto, contribui em concretude e suavidade ao texto), é como se imergíssemos nesse mesmo sonho até o instante em que a manhã chega e muda os rumos do poema. Por isso, creio, a posição sintaticamente deslocada de "manhã".

Pois, já na terceira estrofe, temos um movimento sintático que se assemelha ao da segunda metade da estrofe anterior, com a diferença de que, agora, os versos passam a ter uma autonomia sintática maior (com exceção, em grau maior, dos dois últimos): são versos, por exemplo, que não terminam com um cavalgamento de incômodas sensações como o que o poema até então apresentava, terminando em "quase". É o caso de "da cama cadafalso". Em ordem direta: "cadafalso da cama". Que a autora tenha incorrido num cacofáton desses pode ser desculpado se ela, assim, consegue manter a estrutura geral do poema de iniciar com a preposição. Aqui nós continuamos com um forte extrato de sentido relacionado ao sono: a cama. O cadafalso da cama pode ser o sono, se relacionarmos o sono à morte, ou então aquilo que aniquila a cama, e que seria, quem sabe, a rotina ou qualquer outra coisa que origine o cansaço. O armistício dos braços pressupõe um pé de guerra entre esses mesmos braços, e creio que quem quiser enxergar nisso uma nova menção à rotina (haja vista que parecemos usar mais os braços durante o dia do que durante a noite) não creio que estará equivocado, mas, ao mesmo tempo, creio ser possível dizermos que o armistício dos braços se refere ao descanso de um casal.

Mas claro que podemos ler também os versos como possuindo, mesmo assim, cavalgamentos, se pularmos um objeto incógnito no início do primeiro verso e lermos, por exemplo, que esse cadafalso não se refere à cama, mas, antes, é "cadafalso / dos braços". É uma opção, do ponto de vista paralelístico, aceitável e creio que com igual força à leitura que propus (no próximo parágrafo ousarei dizer que com mais força, quiçá). Ainda mais tendo em vista que a estrutura sintática do poema se favorece da ausência de pontuação e de um conjunto de blocos frásicos que nos permite (ouso dizer nos instiga), à revelia do que está ali escrito, ir pontuando o poema, por exemplo no segundo verso, colocando uma vírgula entre "doce" e "de uma doçura": "doce, de uma doçura quase". Mas, se formos brincar uma vez mais com as possibilidades que a indeterminação sintática nos permite, tendo em vista que estamos falando de um poema que busca imitar uma valsa e que, como eu disse, possui uma estrutura paralelística forte, além do fato de que possui uma tessitura sonora notável que faz com que os termos e os estratos de sentido tendam a se amontoar todos num ponto apenas; se assim considerarmos, então creio que podemos olhar mais uma vez para a posição certo modo central e deslocada do verso "manhã" e, quem sabe, enxergá-lo como ponto de início do poema, no sentido de que o elemento incógnito que aponto no início da primeira estrofe e no início da terceira poderia muito bem ser este verso, "manhã": "[manhã] de um cansaço quase / doce[,]" e "[manhã] da cama[,] cadafalso". Naturalmente que já estaríamos incorrendo numa leitura um tanto quanto ousada, pois dependeria de uma forma de leitura muito inconvencional (começar do meio do poema), mas a qual, eu repito, sinceramente creio ser subsidiada na carga sonora e nas cadeias sintáticas oferecidas pelo poema.

De todo modo, a opção de leitura da terceira estrofe que a enxerga como dona de versos autossuficientes, mas com hipérbatos dentro de si, é uma opção de leitura que perde diante do ganho paralelístico da segunda leitura que desenvolvi, o que, dentro da tal da valsinha do título, quem sabe seja o mais correto de enxergarmos. Pois a indeterminação sintática do poema faz com que possamos brincar com opções de leitura, e tudo aquilo que disse a respeito da romã, por exemplo, ganha outros matizes se digo que esse sonho é, na verdade, quase "romã da romã", ou seja, ele é quase a romã que existe na romã, o próximo "quase" sendo apenas um segundo "quase" que ainda adjetiva sonho, que, nesse caso, seria também quase um agosto da luz de agosto. Isto é: o sonho seria quase uma essência dentro de um objeto, por exemplo o agosto dentro da luz de agosto (pois é o agosto que faz daquela luz ser uma luz de agosto). É como se déssemos, nesta segunda parte da segunda estrofe, um passo fundamental e ainda mais profundo nas especificações que o poema faz, até o momento em que chegássemos no sumo, rompido, no caso, com o advento isolado do verso "manhã".

E por fim (pois aqui creio ter deixado claro que o poema nos permite brincar com veredas sugeridas, a dificuldade estando justamente na hora de precisar as fronteiras e domínios de cada um dos elos da cadeia, embora, de um modo geral, eu defenda que as opções de leitura se encaminham numa estrutura sonora desenvolvida, num paralelismo latente e numa cadeia de frases que esmiúçam um algo qualquer):

          no olhar brilhante
          um compasso
          preciso

A preposição seguida do artigo definido traz consigo uma relação de conteúdo: um compasso preciso se localiza dentro do olhar brilhante. Enfim um instante de claridade, suspiramos. Como se fosse o último passo de uma valsa, haja vista que, é sempre bom lembrar, não devemos nos esquecer que estamos diante de um poema que imita o movimento de uma, seja pelos movimentos ópticos que as estruturas sintáticas nos incutem (um passo depois do outro enquanto esmiuçamos a doçura ser de uma doçura quase nobre, ou a romã, numa estrada inversa, possuir quase um agosto etc etc), seja pela cadeia sonora que estabelece (na primeira estrofe, por exemplo, além do final em "quase" dos quatro versos, temos a rima interna entre "doce", "nobre" e "hoje" iniciando os versos 2 a 4). Um compasso preciso. O poema se encaminha à precisão, mas, dada a falta de liames explícitos entre um extrato de sentido e outro, e dado o fato de que algumas frases surgem incompletas, ficamos com a impressão de que não há nada de preciso nisso. Só que não é bem por aí. O compasso em si é preciso: a forma como ele nos põe em movimento, e a forma como ele usa, para tanto, de recursos os mais variados: rimas, precisões (de um) e imprecisões (quase), cavalgamentos, paralelismos, sintaxe... O poema nos embala de forma completa, e brinca com nosso olhar, que necessita ser, por isso mesmo, dono de um compasso preciso. Admirável.

(E antes que eu me esqueça, a única razão plausível para a imagem de abertura desta resenha é que não tem razão plausível: apenas sinta... contemple... transcenda, ó pequenina borboleta...)