"A morte de Virgílio", Hermann Broch.



Paragens estranhas essas da literatura, onde, entre os vitrais da igreja de Combray e o vilarejo de Little Gidding conforme visto por T. S. Eliot "Numa hora incerta antes da manhã", assomam as quatro abóbadas de A morte de Virgílio, romance a que apenas as anteninhas de leitores como Otto Maria Carpeaux, Augusto Meyer ou, mais recentemente, Rodrigo Gurgel e Martim Vasques da Cunha lograram captar. O resto dos mortais que se contente com o clamor das listas irrecicláveis de clássicos modernos.

Mas para quê tanto sofrimento, se na nota de cinquenta ainda cabe o soberbo romance de Hermann Broch? (Editora Benvirá, 2013, tradução de Herbert Caro.) Sem que um mergulho profundo nas águas virgilianas se faça necessário (o que, na prática, implicaria um mergulho na própria literatura ocidental, visto que, como lembra E. R. Curtius, a tara por Virgílio só passou a dar uma quietada de Goethe pra frente), basta ao leitor uma mente arejada o suficiente para que, à maneira daquele símile inigualável da bacia de água a que um raio de sol incide e faz com que as gravuras no teto do aposento sejam feridas de ondas de luz (isso no início do Livro VIII da Eneida, parafraseado por Camões na estrofe 87, Canto VIII de Os Lusíadas), se povoe frase a frase de um livro inteiro.

Pois muito bem, A morte de Virgílio. 1945, compreendem? Esse cheiro de pólvora, esse cheiro de gás. A humanidade nunca se esqueceu. Os olhos de Hermann Broch pairando sobre a enfermidade fatal de Virgílio não diferem muito, ainda que metaforicamente, dos olhos de Dante encurralado por três feras. A força de Virgílio é muito mais que uma força literária. É a força de quem, à beira do colapso de uma civilização, inventou, como diz a música, a contra-mola que resiste, segurou, nos dentes, a primavera.

Não é simples retratar o que significaria um momento de óbvia e reveladora importância. Óbvia: os instantes finais de um dos maiores poetas do ocidente. Reveladora: a força epifânica e a profunda dimensão humana lenta e esplendidamente soerguidas. Sim, não é simples, nunca é simples retratar. E no entanto, que maravilha. No sulco deixado pela passagem de qualquer frase do livro, caudalosa, é notória a semente de grandiosidade que dá vida ao conjunto. Um pouco de atenção e pronto: bem ali, miúdos e maciços, o alcance lírico, o fôlego épico da obra.

Pois não é necessário me deter muito a respeito do enredo (posso deixar escapulir um spoiler dizendo que alguém no livro morre, mas não vou dizer quem...): o livro cobre as últimas dezoito horas de vida de Virgílio, iniciando com sua viagem, sob ordens do Imperador, rumo a Brundísio, passando pela conversa que teve com amigos sobre os planos de queimar a Eneida e terminando com uma espécie de sinfonia cósmica. Sinfonia cósmica, entenda-se: Virgílio ao morrer parece que se dissolve e entra em comunhão com o universo. Como naquelas cenas em que um personagem secundário se espatifa em pontinhos de luz que compõem uma constelação aleatória no espaço. Só que uma cena feita por alguém que consegue escrever coisas assim:

Escurecia ainda mais; os rostos tornavam-se menos nítidos, as beiras desbotavam, restava apenas a voz, que ficava mais clara, mais predominante, como se quisesse dirigir o navio e o ritmo de seus remos; esquecia-se a origem da voz e todavia fazia-se dirigente a voz de um garoto escravo; a canção indicava o caminho, repousando em si mesma e justamente por isso indicadora da rota, justamente por isso aberta à eternidade; pois somente o que repousa é capaz de servir de norte, somente o que é único, o que foi retirado, ou melhor, redimido do fluxo das coisas, somente o que se segurou com firmeza ― ai dele, será que ele em algum momento realizara tal ato de segurar, suscetível de indicar um caminho? ―, sim, somente o que se segurou com absoluta firmeza, nem que fosse apenas por um único instante no mar de milhões de anos, torna-se canto orientador, torna-se liderança; oh, um só momento de vida, ampliado rumo à totalidade, ampliado até formar o círculo do conhecimento total, aberto em direção ao infinito; alto acima da fulgurante canção, alto acima do fulgurante crepúsculo respirava o céu, cuja doçura outonal, clara, acre repetira-se, inalterável, no curso de milênios e ainda se repetirá, inalterável, milênios a fio, única apesar disso no seu aqui e agora, e o luminoso, sedoso esplendor de sua cúpula estava embaciado pelo silêncio da incipiente noite.

Primeiro capítulo, final do quinto parágrafo, páginas 22 e 23. Entardecer. Virgílio escuta um escravo cantor. O que essa passagem nos revela?

O primeiro pedaço da frase diz apenas que escurecia ainda mais. É tarde, então faz sentido. Mas não se esqueça disso: escurecia. Esse verbo não é gratuito. Não é nem um pouco simples para qualquer escritor começar uma frase incutindo uma noção temporal e não deixá-la de lado, mas, ao contrário, à medida que seu texto avança, demonstrar como essa noção temporal se desenvolve ao longo do texto. Ou seja: começamos de tarde, e essa tarde vai se tornando noite. É isso mesmo: ela vai se tornando, e Hermann Broch não deixa de lado sua descrição inicial do movimento do anoitecer. O tempo corre junto com a frase. A frase está se movendo, ela está viva.

Logo após, um ponto e vírgula demarcando terreno. Os rostos se tornando menos nítidos é interessante pois embora Virgílio consiga esmiuçar bem a tripulação que estava a bordo, por exemplo quando pensa a respeito dos escravos trabalhando para que a embarcação se movesse, esse ato de que os rostos se tornem menos nítidos faz com que nos forcemos a nos concentrar no movimento anímico do poeta. As beiras desbotavam: é uma forma magnífica de continuar a ideia, bastando que você imagine o que representa o desbotamento das beiras. Oras: significa que perdemos os limites, as demarcações entre uma coisa e outra, fazendo de tudo o que se encontra a nosso redor um único tecido, uma única massa que nos afeta. Ou, como o autor nos diz logo depois: "restava apenas a voz, que ficava mais clara, mais predominante". Sim, claro. É uma consequência lógica.

Mas observe: começamos com um movimento exterior. E então falamos de como esse exterior se dissolve e passa a ser guiado pela voz. A questão é que agora, mudando o estado e a ênfase mental, nós já caímos nos reinos da voz. O narrador não possui um controle no sentido de falar da voz e depois voltar ao que interessa, ao fio da meada. O narrador se deixa levar pelo fluxo de consciência. Lemos:

esquecia-se a origem da voz e todavia fazia-se dirigente a voz de um garoto escravo; a canção indicava o caminho, repousando em si mesma e justamente por isso indicadora da rota, justamente por isso aberta à eternidade

Há um vaivém na maneira com que Hermann Broch constrói suas orações. Isso ajuda a imitar não só o marulho das águas mas também a própria ideia de um fluxo de consciência. A maneira com que a voz é descrita nestas idas e vindas, em orações separadas por pontos e vírgulas, faz com que o leitor reproduza esse movimento de ida e vinda e, por conseguinte, também sinta, de forma mais intensa e graças à simples construção sintática da frase como um todo, o que o poeta romano sente. Um poderoso exercício de contemporaneidade, de fazer com que a voz da personagem se imiscua na nossa. Após descrever (ou sugerir, se se quiser um termo mais neutro) o apagar-se das coisas numa noite maior, a frase é descrita como se tornando mais clara e mais predominante e como dirigindo o ritmo dos remos do navio; depois, porém, graças ao advento de um ponto e vírgula, nós caímos direto no sentimento do poeta, aqui apresentado de forma impessoalizada: ao invés de "eu esqueci a origem da voz", temos "esquecia-se"; e, após este instante, voltamos para a voz que indica o caminho, só que agora para mais longe: "justamente por isso aberta à eternidade".

pois somente o que repousa é capaz de servir de norte, somente o que é único, o que foi retirado, ou melhor, redimido do fluxo das coisas, somente o que se segurou com firmeza ― ai dele, será que ele em algum momento realizara tal ato de segurar, suscetível de indicar um caminho? ―

Se a frase operou uma abertura destas, então podemos elucubrar e voltar para o íntimo do narrador. Herman Broch medeia sua narrativa entre um infinito exterior e um infinito interior. Ele não barateia. É uma poderosa qualidade de sua narrativa, essa de explorar os dois lados da moeda e mostrar a maneira como podem se complementar graças a uma espécie de ponto misterioso de abertura, uma passagem secreta que surge quando exercemos uma meditação profunda.

Somente o que repousa é capaz de servir de norte. Como se o que repousa fosse uma espécie de estrela guia. Mas não me refiro nem tanto a isso. O movimento aqui não é mais de descrição exterior ou de descrição interior, o movimento aqui não se concentra mais no que aquela voz representa do lado de fora ou do como nós a captamos ―; o movimento agora é essencialmente explicativo, mas, o que é importante de ser notado, ele vai até determinado ponto e então volta. Ele diz, de início, que somente uma coisa que repousa é capaz de servir de norte, mas, logo depois, ele reinicia a frase: "somente o que é único". E, dentro dessa mesma oração, que, ao menos, não chegou a todo desenvolvimento da anterior, nós de novo reiniciamos e esmiuçamos: "o que é único, o que foi retirado", e, de dentro desse "retirado": "ou melhor, redimido do fluxo das coisas". E o que vem depois? Oh sim: o poeta reinicia tudo isso: "somente o que se segurou com firmeza", no que, pontuando o trecho destacado, o autor inclui travessões que perpassam a frase e quebram a dinâmica de tentar definir ou explicar o que serve de noite. Estamos de volta para Virgílio. A frase foi longe, recuou, foi de volta... Bateu no narrador e então:

sim, somente o que se segurou com absoluta firmeza, nem que fosse apenas por um único instante no mar de milhões de anos, torna-se canto orientador, torna-se liderança

Já não se trata de um trecho que se despedaça e depois se reconstrói. Não. Ele vai longe, até o ponto em que chega ao contraste extremo de "um único instante no mar de milhões de anos", ele junta seus trapos e só no final é que se desembaraça: "torna-se canto orientador, torna-se liderança". Nós estamos praticamente num reino de sinônimos. É como se o narrador estivesse dizendo a mesma coisa. O xis da questão, porém, é que o movimento sintático especifica o sentimento, ele dá concretude àquilo que passa no espírito do poeta romano. É algo que ocorrerá na maior parte do romance, mas, tendo em vista que o poeta escuta uma música, esse movimento de idas e vindas, de coincidências, de girar em torno de um mesmo tema fundamental, isso tudo contribui para que a frase ganhe um ritmo próprio, para que ela própria se faça um único verso, se entendermos por verso o sentido etimológico de retorno.

oh, um só momento de vida, ampliado rumo à totalidade, ampliado até formar o círculo do conhecimento total, aberto em direção ao infinito; alto acima da fulgurante canção, alto acima do fulgurante crepúsculo respirava o céu, cuja doçura outonal, clara, acre repetira-se, inalterável, no curso de milênios e ainda se repetirá, inalterável, milênios a fio, única apesar disso no seu aqui e agora, e o luminoso, sedoso esplendor de sua cúpula estava embaciado pelo silêncio da incipiente noite.

Isso tudo está muito explícito no final da frase. É como se chegássemos ao clímax. A tonalidade épica desse trecho da frase não reside apenas no fato de que o momento de vida, por exemplo, se amplia rumo à totalidade, mas também, e principalmente, pelo embate que sintaticamente a frase representa. Veja-se por exemplo o caso de:

alto acima do fulgurante crepúsculo respirava o céu, cuja doçura outonal, clara, acre repetira-se, inalterável, no curso de milênios e ainda se repetirá, inalterável, milênios a fio

"alto acima" é um recomeço. O entardecer está nas últimas. O crepúsculo fulgura e o céu respira. A natureza está inegavelmente viva. Mas esse céu possui uma doçura que é caracterizada como outonal, clara e acre. Estamos indo para longe, muito longe, a ponto de reconhecermos a repetição inalterável, "no curso de milênios", da doçura do céu. Entenda-se: mais uma vez nos vemos diante de algo muito maior, de um instante de grandeza absoluto, mas, como dito, o que impressiona não é a simples contemplação: é algo além: é a maneira como a forma da frase nos põe de frente a este embate, de tal modo que o adjetivo "inalterável" surja entre vírgulas sempre que o verbo "repetir-se" vier à tona, e de tal modo que o curso dos milênios em que o céu respira com doçura outonal vá de encontro à repetição perpétua desse mesmo céu "milênios a fio". É, portanto, mais do que nos encontrarmos diante do infinito: é lançar o infinito sobre o próprio infinito, incutindo, muito mais do que algo duplamente inconcebível, um movimento de grandeza incalculável e esmagador.

Só que de tal jeito que, após este choque entre ondas, cheguemos à informação de que essa doçura é "única apesar disso no seu aqui e agora", e, diante do infinito puro e simples (em sua forma absoluta de crescimento e atemporalidade), nós como que encontramos guarida, fazendo com que a engrenagem que movimenta a máquina por um instante arrefeça e ceda lugar a uma belíssima e apaziguadora aliteração em S (é uma aliteração mais intensa do que o original: "und seiner Kuppel heller Seidenglanz war von der Stille der anbrechenden Nacht überhaucht"). Não é uma forma de esmigalhar a condição humana quando diante de algo muito maior. A música (que logo se apagaria no "azáfema geral") sugere ao poeta um instante de reconciliação cósmica. Lembra que o poeta começa a frase dizendo que escurecia? Aqui termina de escurecer. E a longa cadeia de forças, os entrechoques brutais que a frase empreende entre coisas que se expandem e alcançam uma escala milenar e objetos miúdos que se defendem em sua especificidade; tudo isso parece metaforizar a condição do sol crepuscular que cede lugar para uma paz maior: a noite: a morte. O fim? Difícil dizer. Que o esplendor seja sedoso, isso por si só já é um detalhe maravilhoso; mas que esse esplendor esteja embaciado pelo silêncio da cúpula da noite... "Embaciado". Isso mesmo. É bem provável que a imagem suscitada pela tradução esteja mais bela que a do próprio original, e falo não só tendo em vista o ditame aliterativo: falo também do fato de que a ideia do embaciamento, remetendo ao orvalho, dá um caráter úmido e faz com que três fases do dia se unam neste final de frase: o dia (anbrechenden), a noite (Nacht) e o entardecer. A noite, especificamente, vai de encontro ao raiar do dia e embacia o entardecer, de tal modo que neste término nós temos uma reconciliação de fato que pode representar, metaforicamente, a reconciliação total. É muito mais, sendo assim, do que a simples ideia da noite que sobrevém e apazigua a alma do poeta, que se deixara levar pela música de forma sensível e intensa. É mais do que isso: devemos nos lembrar que, como dito no início da frase, o advento da noite imiscuíra tudo num conjunto maior. Sendo assim, o início da frase nos diz que existe uma união e um rompimento de fronteiras contínuo com o advento da noite (movimento que será visto de forma específica e detida na quarta parte da obra). Que a noite venha e, consigo, una as três fases do dia; isso apenas explicita a maneira com que essa paz é uma paz absoluta, uma paz inaugural.

Uma frase, eu não disse? Uma frase. Não o tipo de frase caudalosa que se preocupa apenas em não se perder nos meandros da concordância, mas também não o tipo proustiano, que também vão longe mas empreendem uma elegante viagem no tempo, como se corrêssemos os aposentos de uma mansão mobiliada e nos detivéssemos no aroma das flores; estamos mais próximos de um avanço épico permeado da pugna entre blocos sintáticos que avançam, recuam, contrastam e arremetem. Estamos diante do domínio de quem coloca os termos da frase (todos, todos) a serviço de uma construção artística inteligente e eficiente.