Palavras, palavras, palavras.



Tô vendo aqui na Revista Bula as 50 palavras mais belas da literatura em língua portuguesa: aqui. É uma seleção excelente. Não sei se conseguiria sequer esboçar uma. E veja que não vou incensar demais aquela lorota de que discordo disso e daquilo e que colocaria não sei o quê lá mais diferente, e digo que não o faria pelo mesmo motivo porque, no meio de uma discussão, eu não bateria a mão na mesa e proclamaria a água molhada. É, eu colocaria pelo menos "lusco-fusco" e qualquer verbo conjugado na primeira pessoa do plural do pretérito mais-que-perfeito. Mas eu não ficaria nisso a vida inteira, né. A única coisa aí nessa lista que eu realmente implico com veemência é quanto a "pentâmetro jâmbico", que não é uma só palavra e portanto não devia constar. Se fosse o caso de substituir por uma terminologia versificatória igualmente interessante, poderíamos ficar com "suarabácti", que é quando nós intercalamos uma vogal no meio de consoantes mudas: ao invés de advogado, adEvogado, por exemplo (Gonçalves Dias usava muito o suarabácti em seus versos).

Naturalmente que lendo uma seleção dessas algumas coisas me vêm à mente. Como assim as mais belas da literatura em língua portuguesa? Note: não são exatamente as mais belas da língua portuguesa. São da literatura. Mas, problematização quase que automática, nós sabemos desde o pontapé romântico e a carreata modernista que toda e qualquer palavra pode ser enfiada no meio do seu poema sem problema nenhum. Como diz Oswald de Andrade na Balada do esplanada:

          Há poesia
          Na dor
          Na flor
          No beija-flor
          No elevador

Bem, sim, é isso mesmo, mas veja você que não dá pra, partindo daí, chegarmos à conclusão de que algumas palavras não são caracterizadamente literárias. A conquista moderna foi a de te dizer que você pode usar que palavra bem entender em seu conjuntinho de versos. Ponto. Existem palavras, e é este o xis da questão, que parecem ter uma existência que nós podemos dizer como praticamente poética, no sentido de que parecem ter sido cunhadas para que a poesia se esbaldasse. Por exemplo "paul", que é sinônimo de pântano e, óbvio, existe pra facilitar a rima (quem rimaria com "pântano"? Com "paul" nós podemos, por exemplo, rimar com "sul" ou "azul", o que é uma mão na roda), ou então "imo", "arrebol" (de novo nós enxergamos a rima saltitando de alegria: "sol"), ou mesmo "cã", que é a mesma coisa que cabelos brancos. São palavras úteis que cabem com perfeição num contexto poético onde necessidades formais podem vir a se impor.

Do mesmo modo, é preciso nos lembrarmos que, embora hoje o artista finalmente se encontre diante do único ditame que realmente interessa à literatura (o ditame da excelência artística), ao contrário de ditames secundários que apenas faziam com que o assunto escapasse pela tangente; é preciso nos lembrarmos que se hoje é assim, ontem não foi, e veja só os poetas árcades falando da lua como "lâmpada febéia". Isso cria um lastro de expressões e palavras que se tornam famosas num contexto literário, de modo que se esse substrato é amplo o suficiente ou, ao menos, poderoso o suficiente, então ótimo: isso basta para nossos propósitos. Na lista publicada na Bula, o leitor consegue praticamente enxergar Tolstói numa palavra como "arquiduquesa", ou então Olavo Bilac em "panóplia", Guimarães Rosa em "nonada" ou Manuel Bandeira em "pneumotórax". E isso cria um alcance total muito interessante à lista formulada por Marcelo Franco, fazendo com que ela se torne uma lista realmente inteligente.

Pois não se trata apenas de escolher aquelas palavras que possuem uma sonoridade bonitinha (por exemplo "plenilúnio"). Existem muitos outros aí nesta simples lista. Além dos já citados casos de palavras que se tornaram extremamente célebres graças ao uso de um escritor ("nonada", por exemplo, já surgia em Gregório de Matos, mas foi só graças a Rosa que hoje a usamos em textões de facebook), nós temos palavras que são termos técnicos em literatura (por exemplo "ditirambo"), temos palavras com um sabor antigo que costumamos relacionar à literatura (por exemplo "antolhos"), temos palavras que são, como também expus, comumente usadas em contextos poéticos (por exemplo "melífluo"), temos palavras de um sabor exótico (por exemplo "samovar"), palavras que vamos ter que consultar o dicionário querendo ou não (por exemplo "seljúcida") e, em alguns casos, palavras que parecem nos encantar pela beleza que são capazes de irradiar pela simples inclusão numa lista dessas (por exemplo "lugar-tenente" ou "treliça").

Reconheço que o que enxergo como sendo amplitude da lista pode ser visto por alguns como inconsistência. Isso dá uma treta daquelas. Pois como seria? Digo: seria o caso de reivindicarmos, quem sabe, a criação de uma lista dessas apenas com termos genuinamente da língua? Ah não, isso não. De pronto, povo brasileiro, eu vos digo que não é uma boa ideia pois estrangeirismos podem ser trabalhados com eminência literária do mesmíssimo jeito que qualquer outra palavra portuguesa. Agora, caso fôssemos formular uma acusação mais séria, que tal nos perguntarmos se a inclusão de uma palavra com um sabor mais provecto (aliás, "provecto" é uma boa palavra pra entrar na lista, não?), por exemplo "beligerante", não entraria em contradição com um termo tão rasteiro como "maninho"? Isso sim. Mire e veja: com base na ideia que de forma corrente se tem de literatura, como um espaço para adornos aqui e acolá (de modo que me parece mais difícil alguém escrever um poema nu e cru do que um poema sem pelo menos uma pluma que seja na aba do chapéu), nós não aceitaríamos "maninho" na lista, pois, fosse o caso de aceitar, então deveríamos colocar nessa lista mais termos corriqueiros. Ou aquelas famosas palavras indígenas que a crítica do século XIX dizia possuírem um sabor brasileiro, muitas belíssimas, como "murmuré" ou "arazoia" ― sem nem contar o caso das frutas, por exemplo "ananás", "mangaba" ou "uruçu", todas eternizadas, por assim dizer, no Caramuru.

De minha parte, estou de acordo com tal questionamento, embora reconheça que ele sequer arranhe a lista uma vez que ela não tem pretensões maiores que não a de mostrar um mínimo de inteligência (e minha opinião é de que ela o mostra de forma mais do que suficiente) e de mostrar que estamos diante de um leitor atento e que tem as manhas de saborear até o bagaço de uma obra literária. Tá passando de bom.