No elevador.

 


No elevador não tem só música clássica não. Oswald de Andrade, última estrofe de Balada do esplanada:

          Há poesia
          Na dor
          Na flor
          No beija-flor
          No elevador

Me sinto no dever de avisar que você, jovem com mais de dezoito anos, que desmembra "elevador" em "eleva dor", você não está num caminho ruim, ainda mais se considerarmos o tema do poeta que se transforma num menestrel do hotel e que se vê, para tanto, diante de convenções poéticas: vide a comparação esplêndida de "Pra m'inspirar / Abro a janela / Como um jornal". Isto é: o eu lírico parece querer superar essas convenções para que se torne o menestrel do hotel ― o que a simples ideia de ser um menestrel do hotel, evidentemente satírica, o atesta ―, mas, para tanto, ele acaba num jogo entre a negação e a afirmação dessas mesmas convenções, de modo que, embora o sentido mais imediato da inclusão da palavra "elevador" seja a de quebrar a sequência de objetos comumente tidos como poéticos ― e quebrar valendo-se de um recurso também tido como poético: a rima ―, é possível que graças à leitura de "elevador" como também "eleva dor" ― nada absurda para um poema de Oswald, ainda mais se você perceber o jogo entre dois substantivos no feminino e dois no masculino, sendo que os dois últimos englobam os dois primeiros: beija-flor, elevador ― nós tenhamos uma guinada irônica final no verso.

Um bom poema, não acham? Eu acho. Balada do esplanada: não só a sonoridade do título, mas, também, de se lembrar que esplanada é uma espécie de terreno plano, baldio quem sabe, na frente de um edifício. Se o poeta quer ascender, subir de elevador para se tornar menestrel do hotel, mas, no fim das contas, graças a procedimentos propriamente satíricos, acaba se vendo diante dessa esplanada (a escolha da balada é possível que tenha um significado a mais nesse duplo movimento do poema se lembrarmos uma certa posição nobre que ela ocupa entre as formas poéticas malgrado sua origem certo modo plebeia, por assim dizer: vide as baladas arcaicas inglesas e francesas); bem, nós temos aqui um caso de poema que consegue se utilizar com muita felicidade da construção da balada como uma fonte semântica importante e não um estandarte a ser derrubado num chute. Escolher a balada mas escrever uma boa balada que se valha de tudo o que a balada tem pra nós.

Não falo deste poema em vão. Em todos esses anos nessa indústria vital, recebi livros de alguns poetas que gentilmente entraram em contato comigo e mos ofereceram. Tenho-os meio que empilhados aqui em casa, de modo que, tentando pelo menos fazer jus à pretensão de crítico mirim, deles resolvo falar um pouquinho. E o primeiro que, um tanto quanto ao acaso, decido falar sobre é o de Gabriel Resende: Elevador, publicado pela Patuá em 2014 (aqui). Numa antiga postagem sobre os poetas contemporâneos publicados no ano de 2014 no escamandro pude falar um pouco da poesia de Gabriel Resende, mas confesso que nem me lembro direito o que diabos eu disse. Lembro, só, daqueles versos de poema de amor:

          valem samurais cuspindo beijos
          e fuzileiros as balas carinhosas.

Versos que gostei muitíssimo na época e ainda hoje gosto bastante.

Então, o que temos aqui? Bem. O livro parece partir de uma construção bem simples: refestelar-se no prosaico, o que a ideia de um elevador que vai descendo, conforme a estrutura do livro (terraço, realidade, fantasia, play, térreo, poço), o atesta de maneira bem clara. Não que seja uma estrutura lá muito uau, rapazes, parem as máquinas. É uma coisa óbvia e sem nada de mais. Às vezes eu até sinto uma certa saudade de quando os livros de poesia eram apenas depósitos de versos saídos do coração, sem qualquer pretensão que fosse de unidade. Porque de unidade, entendida como uma fonte semântica, o livro de Gabriel Resende tá bem fraquinho. O máximo do máximo que você vai encontrar será no fato de que a primeira parte do livro, chamada "terraço", possui apenas um poema: guia completo do homicídio prático, poema que recebeu de Adriano Scandolara (que prefacia a obra) a alcunha de perturbador.

Sim, perturbador ele é mesmo, e apresenta, ainda, o adicional de ser o único em que as primeiras letras dos versos são grafadas em maiúscula: no restante do livro nós só teremos minúsculas (exceções aqui e acolá, é certo, mas todo em maiúsculas, à maneira de poemas old school, é só esse mesmo). Mas não perturba tanto assim, é bom que se diga. Grosso modo, ele é mais um daqueles poemas que versam a respeito de um topos da poesia moderna: o cotidiano, nossa vidinha de merda que nos mata página após página do calendário. Não preciso nem dizer que encontraremos às pencas poemas que versam a respeito do mesmo assunto, e não preciso nem dizer que encontraremos poemas com muito mais competência que esse de Gabriel Resende. Ele até possui momentos especialmente comoventes, como "É preciso matar a memória / Dos amigos mais queridos." ou "Usurpar os restos vivos / E lançar nos abismos." Nada além disso. A estrutura das frases entre um "Não basta" e um "É preciso" não chega a surpreender nem um pouquinho, assim como o final mencionando o futuro e uma folha e branco... Oh céus.

Isso quanto ao primeiro poema do livro. O que vem depois são poemas que até se arriscam num número grande de formas poéticas, o que Amador Ribeiro, numa resenha bastante cáustica (mas que incorre na mesma avaliação que faço do livro), chegou a destacar com o exclusivo intento de, depois, repreender. É um esforço? De certo modo, sim. Mas sejamos econômicos nas alvíssaras. Pois não basta que o poeta compareça com um simulacro em quatorze versos divididos em dois quartetos e dois tercetos para que ele consiga se comunicar de forma decente com a tradição poética do soneto. Se você realmente quer fazer algo do tipo, então precisa escrever um bom soneto. Bater ponto não adianta. Ainda mais se o seu soneto tem tercetos assim:

          pois mesmo que a liberdade lhe mostre
          o atalho (usurpar a rima tirana)
          e ajude a queda trágica do trema

          ainda não te desvias do mote:
          sem ter sorte com rebuscadas damas
          és verso discreto como nas camas.

Metalinguagem é moeda de troca nos poemas do autor. O problema é que já estamos totalmente cansados de metalinguagem após, pelo menos, um século inteiro usando e abusando desse tipo de recurso. Chama-se soneteiro, o poema. Entre tudo o que a nobreza via de regra antevista na instigante criatura chamada soneto (e que na verdade nem é tão nobre assim, se tivermos em mente que Verlaine e Rimbaud escreveram um soneto do olho do cu) e o térreo, o prosaico, temos uma espécie de tensão que vai se esfregando entre o irônico e o erótico. Só pelo título já éramos capazes de retirar um estrato de sentido erótico, ligando, graças à simples terminação "-eiro", a ideia a um punheteiro. Incrível que o façamos, não? Pelo menos pra mim, é. Mas, posto que o poeta não consegue corresponder a essa criatividade da língua, nós nos refestelamos no lado bobagento das palavras e só ― com o problema claro de que não precisamos de um poema no meio, irrelevante, pra ficar atrapalhando.

Mas voltemos. O ourives, tentando pegar o espírito da coisa, que é um fracasso no mundo carnal. Só que tem um problema flagrante aí, e não está nem tanto na ideia: é o fato de que o resultado é um soneto inepto, cheio de versos de pé quebrado, rimas ruins e um andamento poético artificial. Talvez esse andamento poético artificial não chegue a ser exatamente um problema pois me parece bem claro que foi objetivo do poeta criar um soneto de sabor propositadamente arcaico para que o choque entre o mundo carnal e o mundo cristalino das expressões poéticas consagradas fosse maior. Mas, eu repito, o soneto é inepto, e não só ele poderia incutir esse sabor arcaico com muito mais felicidade se a estrutura arcaica fosse mais apurada (tomando como base, quem sabe, os momentos camonianos mais óbvios ou metendo a mão a esmo na cumbuca do século XVII), como também é inepto pelo fato de que formalmente não convence. O poeta pode, é claro que pode, escrever um soneto sem rimas e permeado de versos quebrados; mas se ele precisa de uma base essencialmente rígida para conseguir sustentar a retórica do ourives e do rigor formal (no caso, para contrapô-la a camadas eróticas), então ele simplesmente não pode se valer de um soneto molenga, por assim dizer. O resultado, ao contrário do pretendido, é que só mesmo se você for um leitor deslumbrado com a forma soneto para perceber que está diante de um e de algum modo aplaudir o poeta por tê-lo escrito, ainda que de qualquer jeito. O máximo que o soneto de Gabriel Resende apresenta de interesse está no primeiro verso, um belo decassílabo sáfico: "era teu lápis esfregando as trevas" (o jogo entre "fr" e "tr" indica uma espécie de fricção). Mas que o soneto comece assim e termine da forma como termina... Falando sério: que raios de frase é essa? Eu até entendi o que ela quer dizer ("você, na cama, é como se fosse um verso discreto"), mas a escolha de "como nas" deixou o negócio ambíguo, solto, tosco demais. Sem nem contar o plural, forçando uma rima sem razão nenhuma (se o poeta sequer rimou os versos 10 e 11, pra quê forçar na reta final?).

Assim sendo, concordo com Amador Ribeiro no sentido de que, apesar da suposta variedade de formas poéticas que surgem no livro de Gabriel Resende, nós não estamos, a rigor, diante de um poeta que coloque essa liberdade e essa variedade para funcionarem. Nada disso. Primeiro porque essa variedade é pequena, e, na prática, ela recende muito mais à ideia de exercício do que qualquer outra coisa. Além do mais, o que já comentei, ela é apenas uma variedade de fato e não uma variedade que se sustente de forma qualitativa. É superficial.

O que se segue ao longo do livro são poemas que sem muito peso na consciência eu chamo de despretensiosos. Despretensiosos, leia-se: sem um rigor formal apurado, próximos da poesia de quem escreve ouvindo o coração, nem uma nem outra característica, deixo bem claro, necessariamente ruins. Claro que isso pode parecer um disparate pois o poeta é i-rô-ni-co; mas se essa ironia se dá de forma muitas vezes impensada (adejando superfícies, quando muito), rodeada de um cinturão de objetos tornados entulho; bem, não consigo chegar a outra conclusão, diante dessa profusão propriamente dita, que não a de que são poemas despretensiosos. Quem traz de tudo e não consegue afiar as arestas de algum propósito que seja, esse alguém não tem pretensão alguma que não a da repercussão lírica (por exemplo se saísse da aurora e fosse à sarjeta) ou daquilo que eu chamo de iconoclastia terapêutica (o famoso imaginar que seu leitor segura o livro com as pontas dos dedos e, que portanto o faça, vamos lá: hora de estarrecê-lo).

Pois você vai encontrar de quase tudo no livro. Sim, pétalas, caso queira, mas também Kant, Spinoza e Milton Santos ou, ainda, cinema, cinema, cinema. É muito bom que o estágio atual da poesia permita ao poeta fazer essa salada toda, mas a exigência de que, independente de que objeto você vai colocar no meio do seu poema, você o coloque como um objeto artisticamente efetivo; essa exigência não mudou em nada, e sempre que nós observarmos o poeta tergiversando e enchendo linguiça, ou simplesmente colocando esses objetos, como dito, para chocar o leitor (e, claro, o leitor já não se choca do mesmo modo que nossos coleguinhas do século passado, embora ele ainda se choque pelo fato de que mantemos, querendo ou não, uma ideia de poesia como discurso florido e blábláblá); sempre que o vemos fazer isso é hora de redobrarmos a atenção. Nada de deslumbre, minha gente. Pois algo desse naipe é terrível, e acontece muito com Gabriel Resende. O poeta tem, literalmente, o mundo todo pra colocar ali no seu poema, mas a impressão que temos é a de que ele se deslumbrou demais com aquilo ou, quem sabe, até se postou de forma consciente diante de todas essas possibilidades (e digo "de forma consciente" graças à voz irônica de muitos desses versos: isto é, a ironia pressupõe uma certa consciência), mas sem que o resultado tenha se demonstrado assaz instigante. Poder colocar qualquer coisa no seu poema sem que o leitor torça o nariz (a não ser que estejamos falando de bustos e sarcófagos), isso é uma coisa; outra totalmente distinta é saber que coisa colocar.

Um exemplo: os três versos iniciais de não é um sonho:

          começar o dia no café e terminar no freddy krueger:

          acordo com a vitória nos dentes e no leite. diabólicos hálitos
          de café reviram os delicadíssimos olhos cor de rosa. calei

 "calei" não é verbo: é uma fratura da palavra "caleidoscópío". (Os ganhos c'um cavalgamento tão forte desses são mínimos: ouso dizer negativos.) Não creio que seja necessário explicar muito. A atmosfera entre sonho e pesadelo é o bastante para que Krueger surja no meio do poema. A ideia da vitória nem tanto nos dentes, mas no leite, é interessante (o leite fortifica mas é um negócio bem menos viril que a vitória nos dentes), mas não vamos muito além disso. "delicadíssimos olhos cor de rosa": é claro que o poeta quer ser frufru. Sim, nós entendemos. E, depois que o entendemos, desinteressamos.

Os bons momentos do livro não chegam sequer a completar um poema inteiro. Confesso que gosto do primeiro verso de tentativa de cantar a musa:

          renovar a linguagem através dos cabelos

O cabelo da amada é sempre o cabelo da amada... E, tendo em vista as mil e uma formas criativas e belas que os poetas usaram pra falar dessa parte tão querida, "renovar" é o verbo que realmente vem à cabeça. O poeta começa bem. Se ele conseguisse chegar a um verso mais ou menos assim naquele soneto horrendo, ele pelo menos teria demonstrado para nós que sim, ele tentou. Agora quer saber o que incomoda? Quer saber o que o poeta faz no restante dos versos (e, de modo geral, no livro inteiro)? Ele faz isso: continua o poema por mais 15 versos, os três últimos sendo:

          se destacam da fumaça e a palavra perde seu significante
          significando mais que isso um arfar silvestre pingo de suor
          escorrido do nariz altamente erudito.

A mesmíssima tensão daquele soneto que mencionei antes pra vocês está aqui. Não mudou nada. Toda vez que Gabriel Resende olha pra tradição poética, é com uma espécie de escárnio, é pra desconstruir a torre de marfim. Acho totalmente válido que o poeta o faça, mas ele não pode acreditar que com um mísero momento poético feliz ele vai conseguir criar um subsídio digno de interesse, ainda mais sabendo que a dinâmica do poema é a de um pêndulo entre os polos elevado e prosaico de dicção literária. "silvestre pingo de suor", por exemplo (sem nem contar a forçação de barra que é a menção à linguística), é uma expressão ruim até as tripas (sem nem contar esse nariz "altamente erudito": a neurociência ainda precisa estudar o que passa na cabeça de quem escreve um poema em versos livres e ainda assim enche linguiça), o tipo de coisa que você sabe que o poeta está ridicularizando, mas ridicularizando de forma excessiva e sem permitir que antevejamos que ele realmente sabe que, na prática, nenhum bom poeta chegaria a tanto. Afinal de contas, pode ser muito divertido ridicularizar a pose de poetas ruins, mas quando você se vê diante de dos bons poetas que deram origem à pose, então você vai ter que rir na cara deles. E quando os poemas de Gabriel Resende precisam rir de gente grande, eles não conseguem. Criar um substrato classicista ao poema, em outras palavras, é mole; criar um bom substrato é que são elas.

No próximo poema, explicar, temos uma primeira estrofe digna:

          Borboletas furiosas
          invadem minha privacidade: extrair segredos
          que souberam das folhas.

Digna porque se leio uma estrofe assim, eu vou querer saber o que vem depois. Fisga-nos. Se o objetivo é ser lírico, sejamos líricos: a fúria não combina muito bem com borboletas, e a ideia de que elas invadam a privacidade do eu lírico só mostra o quão frágil é a condição do próprio eu lírico. Mas veja bem. Muito bem. Os próximos três versos:

          Peço que saiam. Com delicadeza.
          Mas elas me fuzilam: o que significa essa di agr ama ção
          essa TIPOGRAFIA

Sim. Como que duvidando que a coisa poderia ser pior, o poeta resolve brincar com as palavras e trabalhar a tipografia de maneira literal. Itálico, normal, negrito. Espaçamento. Como se a ideia já não estivesse ruim o bastante. Como se o objetivo fosse, partindo de um início altamente elevado, levar um tombo altamente feio.

O único poema no livro que, tirando algumas passagens em que o poeta começa a exemplificar demais (quando ele poderia simplesmente treinar de maneira mais atenta seus olhos), chama a atenção é gente iluminada. A estrutura paralelística (duas frases e dois modelos, um deles permitindo que alternemos predicados à maneira de um interruptor) e o refrão "a iluminação está diferente", por óbvio fazendo mais uma menção ao cinema, ganham em comovência. Faço questão de citar na íntegra:

          as pessoas acendem. a iluminação está diferente.
          as pessoas levantam. a iluminação está diferente.
          as pessoas fecham portas. a iluminação está diferente.
          as pessoas escovam os dentes. a iluminação está diferente.
          as pessoas trabalham. a iluminação está diferente.
          as pessoas folgam. a iluminação está diferente.
          as pessoas tomam café. a iluminação está diferente.
          as pessoas falam. a iluminação está diferente.
          as pessoas calam. a iluminação está diferente.
          as pessoas dirigem carros. a iluminação está diferente.
          as pessoas pegam metrôs. a iluminação está diferente.
          as pessoas veem blockbusters. a iluminação está diferente.
          as pessoas comentam o futebol. a iluminação está diferente.
          as pessoas assistem shows de rock. a iluminação está diferente.
          as pessoas usam fones de ouvido. a iluminação está diferente.
          as pessoas tocam canções de amor. a iluminação está diferente.
          as pessoas escrevem contos pornográficos. a iluminação está diferente.
          as pessoas ressuscitam os mortos. a iluminação está diferente.
          as pessoas compram pipoca. a iluminação está diferente.
          as pessoas beijam na boca. a iluminação está diferente.
          as pessoas fazem orações. a iluminação está diferente.
          as pessoas fazem macumba. a iluminação está diferente.
          as pessoas fazem downloads. a iluminação está diferente.
          as pessoas choram com Radiohead. a iluminação está diferente.
          as pessoas choram com o Papa. a iluminação está diferente.
          as pessoas imploram. a iluminação está diferente.
          as pessoas limpam os olhos. a iluminação está diferente.
          as pessoas perdem os olhos. a iluminação está diferente.
          as pessoas leem Joyce e Proust. a iluminação está diferente.
          as pessoas escrevem diário. a iluminação está diferente.
          as pessoas fumam maconha. a iluminação está diferente.
          as pessoas bebem cachaça. a iluminação está diferente.
          as pessoas tomam comprimidos. a iluminação está diferente.
          as pessoas cuidam do jardim. a iluminação está diferente.
          as pessoas alimentam cães. a iluminação está diferente.
          as pessoas alimentam bois. a iluminação está diferente.
          as pessoas alimentam as pessoas. a iluminação está diferente.
          as pessoas deixam as pessoas. a iluminação está diferente.
          as pessoas apagam as pessoas. a iluminação está diferente.
          as pessoas apagam. a iluminação está diferente.
          a iluminação está diferente. a iluminação está diferente.

Como dito, existem sequências em grande escala desnecessárias, como por exemplo a que começa em "levantam" e termina em "tomam café". Era perfeitamente possível reduzir isso a dois ou três versos. Do mesmo modo, existem lances aí meio óbvios e esperados num poema desse tipo (retrato cotidiano), como por exemplo das pessoas escrevendo contos pornográficos (é claro que o poeta vai falar do lado devasso do povão) ou das pessoas lendo Joyce ou Proust (num livro tão metalinguístico como o de Gabriel Resende, gente como Joyce ou João Cabral aparecerem é um negócio que te faz bocejar). Mas existem passagens realmente bem boladas, como "as pessoas ressuscitam os mortos" ou "as pessoas fazem downloads" logo após de "fazem orações" e "fazem macumbas". Do mesmo modo que o início ("as pessoas acendem") quando posto ao lado do final ("apagam as pessoas", "apagam" e nada): isso, eu repito, é muito comovente. E digo comovente, em especial, porque nós, lendo o poema, acabamos por conviver um pouquinho com essas pessoas que o poeta descreve e que, é claro, são pessoas muito parecidas com as que nós mesmos conhecemos em nosso dia a dia. Quando essas pessoas apagam, é como se sentíssemos falta delas. A iluminação está diferente nem tanto pelo fato de que essas pessoas estariam como que esmorecendo num ambiente apático (a apatia surgindo graças à repetição meio modorrenta e arrastada o poema todo). A iluminação está diferente porque são pessoas, seres humanos. Mesmo que sejam seres humanos fazendo coisas totalmente banais, como usarem fones de ouvido, são, ainda assim, pessoas, a tal ponto que quando saem de cena, deixam a iluminação diferente. Ou, até pra ser mais preciso: a partir do instante em que elas existem a nosso lado, elas tornam a iluminação diferente; mas, quando saem, quando apagam, é como se a iluminação voltasse a seu estado original, o problema sendo que, como já nos acostumamos a viver no meio dessas mesmas pessoas, a iluminação, ainda assim, fica diferente. A iluminação sempre ficará diferente.

Mas eu repito: momento assim é exceção. Não é que Elevador seja um livro de estreia ruim. Elevador não é um bom livro.