Vivas exceções.
Carla Diacov.
comboio de gente
entardecendo assim tão cedo
que gente pode entender a sobrevivência indisciplinada dos trens?
e precisa?
os condenados permanecem
atrás da persiana
que louca alfândega! as disposições das cordas
teu peito tendido ao mar
a dor do couro
uns outros tecidos de sal
dificultoso amor salgado
a praia e
trilhos vindo dali até sumirem ali
na água cheia de vivas exceções
■
Esse poema aqui é legal. Vi a autora compartilhando-o no facebook um tempão atrás. Nem sei se ela publicou em outro lugar, ou mesmo se o decepou brandindo a espada do deletar. (E se a brandiu, azar o dela: esse poema vai persistir enquanto persista esse bloguinho.) O fato é: poema legal, sabem? Devo ser sincero e dizer que não sei se vou continuar com a mesma opinião daqui a, sei lá, seis meses. Sinto que esse poema se mantém em meu coraçãozinho, pra formularmos a questão de maneira bem clichê mesmo, mas que essa estadia tem prazo marcado ― o problema sendo justamente que esse tempo, eu presumo, não será um tempo prolongado. Pelo menos é o que eu sinto, e a impressão vai tomando forma nas cartas de tarô quando levanto aquela dali e vejo a figura do poema-superior-se-anunciando-no-horizonte. E oh sim, claro, eu adoraria me enganar ― ou não me enganar, visto que a promessa é de que deixe de gostar desse porque um substituto surgiu na praça. Mas que diferença faz, não é mesmo? Coração de leitor de poesia é grande e cabe amores superados também. Muitas vezes, aliás, ele até acomoda as visitas em outro aposento pra não incomodar aquela paixonite antiga: "você forasteiro é bom, mas eu sinto que tem um quê de diferente em você..."
O segredinho do poema é que ele fala da vida de gado das pessoas e de como isso faz com que elas se aproximem da morte. Você vai se lembrar daquele poema do Drummond sobre o cara que vai morrer num desastre de avião mas que ― surpresa! ― o dia inteiro se preparava para a morte de maneira podemos dizer até inconsciente ("Acordo para a morte. / Barbeio-me, visto-me, calço-me." etc etc) ― mas nem por isso menos lógica. Ou seja: parece que levamos uma vida tão mais-ou-menos que se acontecer um desastre isso meio que seria um lucro (o número de pessoas na sua missa de sétimo dia seria pelo menos... hum... cerca de 20% maior). Ou, até pra tentar colocar a questão de maneira ainda mais exata, é uma vida tão mais-ou-menos que dá a entender que somos guiados como um bando de bois até o abismo e não nos sacolejamos um mínimo sequer pra fugir dessa rota.
Então entra o poema de Carla Diacov. Logo no primeiro verso eu pediria pra que você notasse o fato do comboio ser de gente. Isto é, sem o artigo, o que faz daquela multidão uma multidão menos específica e (ouso dizer) menos humana. Trata-se de um procedimento muito usado pela poesia do segundo Drummond, e que, nesse início aqui, ficou bem colocado. Você lê uma coisa dessas e quer prosseguir. Até palpito que dá um caráter meio lúgubre à cena: pessoas sendo tratadas como se fossem carga. E olha que não é muito absurdo ler uma nota dessas pois o próximo verso a respalda muito bem, ainda mais com a expressão "assim tão cedo". Mas neste segundo verso, claro, as pompas todas são devidas ao verbo "entardecendo". Nós sabemos que o que acontece em nossa rotina de trabalho é que, ao entardecer, voltamos pra casa para que recuperemos forças e aguentemos o tranco do outro dia. O que ocorre, todavia, é que esse entardecer, que traz consigo a noite ― e a noite é uma metáfora universal da morte ―, acontece cedo (uma morte precoce, portanto, sem implicar, pelo menos neste início, uma morte física), e só aqui, num único verso, temos as três partes do dia convergindo e coexistindo de maneira admirável. Não é fácil chegar a um resultado tão bom desses logo no começo.
O próximo verso funciona bem dentro do poema, mas, por si só, não merece uma estrelinha do titio. Ele funciona pra quebrar o ritmo dos versos anteriores, que era, pelo menos, o ritmo de versos não tão grandes assim. "a sobrevivência indisciplinada dos trens", todavia, eu reconheço que pode ser de interesse se notarmos que, ao contrário do que podemos pressupor ― ou seja, que os trens, objetos conduzidos pelo homem e operando dentro da precisão dos trilhos ―, levam uma sobrevivência indisciplinada, contrária à ideia da rotina que faz com que o comboio de gente entardeça cedo e, portanto, perca toda uma existência que poderia ter sido mas que não foi. Mas aqui, claro, outra coisa está em jogo: não a existência e sim a sobrevivência. Embora seja uma escolha de palavras meio manjada ― qualquer poeta que vai escrever um poema sobre a vidinha de merda que levamos vai cogitar em algum momento trocar "existência" por "sobrevivência" ou "viver" por "sobreviver" ―, é pelo menos uma escolha que se faz necessária e que adiciona um toque interessante ao poema, especialmente se considerarmos que o material humano é reificado (tornado em objeto: comboio ― e ainda por cima no plural, o que faz com que a substância humana se dilua na massa de pessoas) e que o objeto é, na medida do possível, humanizado.
Se o terceiro verso não me agrada particularmente ― e digo isso em especial espiando toda a força lírica que o segundo possui ―, o quarto é bom. Muita gente seguiria em frente, mas esse instante, e esse contraponto entre um verso pequenininho após um verso grandão ― esse tipo de coisa é bem bolada. Afinal de contas, de que adiantaria as pessoas entenderem essa sobrevivência indisciplinada dos trens? Que sobrevivência seria essa? Seria, se quiséssemos entrar num jogo de metonímias, a ideia de que o trem se liga de algum modo ao ciclo econômico ou funciona, no mínimo, de engrenagem de trabalho (trens transportam mercadorias ou pessoas ― trabalhadores ―, o que talvez dê na mesma), e, portanto, essa sobrevivência indisciplinada seria o mecanismo de uma sociedade de mercado? (Esse seria um bom momento pra sugerir que enxergássemos uma metonímia mineira em "trem", mas, como eu sei que você não vai aceitar isso, eu vou programar esse parêntesis para se autodestruir em cinco frases.) Não estou muito certo que chegar tão longe assim seja uma boa, embora, caso você queira chegar, eu vou até anuir e continuar te ouvindo com interesse. Mas, seja lá o que essa sobrevivência indisciplinada tenha a oferecer, ou seja lá o que a gente tenha a tirar dela, o fato é que a pergunta dá um soco no estômago ― precisaríamos entender? O que isso nos traria? Não que não traga nada ― pode ser que traga alguma coisa ― qualquer coisa, ainda mais considerando que nossa vidinha é realmente mais-ou-menos e qualquer coisa a mais é lucro ―; mas, do que trouxer, de que modo isso mudaria um pouco que seja nossa situação?
Estou sendo negativo em minha leitura, mas é que enxergo em quase tudo nesse poema uma imagem de morte. Daqui pra frente a coisa só piora. Os condenados que permanecem por trás da persiana ― eita imagem boa, viu. De novo eu preciso comparar com o que presumo que todo o comboio de poetas faria, isto é, trazer a ideia do condenado perto da forca, guilhotina, pelotão de fuzilamento, sei lá. Não. Aqui eles estão atrás da persiana. Não acho nem um pouco absurdos partirmos da persiana e irmos para um ambiente mais formal, uma vez que é comum que em ambientes mais formais ― por exemplo delegacias ― hajam persianas; mas, caso você não queira aceitar esse tipo de pulo hermenêutico, você vai pelo menos concordar que os condenados estão dentro de algum lugar e a ideia das persianas, que simbolizam uma maneira de você tapar a visão externa ao mesmo tempo que permite olhadelas, por parte de quem está do lado de dentro, para o que esteja lá fora; você vai concordar, eu dizia, pelo menos que a ideia das persianas adiciona uma clausura e um acuamento instigantes. Muito sutil e muito bem montada, pois, quando a gente fala em clausura e acuamento, nossa tendência é erguer muros gigantes e espessos em nossos textos como imagens daquilo, ou então em metáforas batidas de caça. Mas aí entra a pergunta: precisa? Carla Diacov, nossa convidada especial, está ali no cantinho gesticulando que não. Basta uma simples persiana para que os condenados permaneçam. Permaneçam para o quê? Para morrer, é claro, mas será que apenas pra isso? Aí já não sabemos. Mas eles permanecem.
A falta de resposta, o corte abrupto que a poetisa opera é, mais uma vez, bom. O poema de um modo geral poderia pecar facilmente nesse sentido, ou seja, efetuar cortes bruscos de maneira muito frequente, mas, tendo em vista que a poetisa entretece os estratos de significado fazendo deles um pequeno conjuntinho compacto de idas e vindas entrecruzadas; se pudermos ter em vista o que aponto, então não creio que seja um perigo no qual o poema incorra e que lhe derrube. Essa, eu digo, é a grande beleza do poema ― a dança imagética que ele vai operando. Não digo bem uma dança sutil pois se você sai de imagens ferroviárias para imagens marítimas, você não está fazendo um movimento qualquer. O ponto que eu levantaria é: temos uma dança que vai se tornando sutil, em que todas as mudanças bruscas que o poema eventualmente disponha aos poucos vão se encaixando umas nas outras e pronto. Da sobrevivência indisciplinada dos trens, que parece indicar uma imagem de descarrilamento, terminamos com a água cheia de vivas exceções.
Depois disso vem uma exclamação ruim pra danar (ainda está pra surgir um verso iniciado com o adjetivo "louca" e terminado em exclamação que seja bom) e uma série de comparações que irão de um ambiente marítimo ― associado sempre a uma Death by water ― e um ambiente de trocas, propriamente formal, se ligarmos os pontos entre termos como "alfândega" ou de novo a ideia dos trilhos. Assim, a ideia da disposição das cordas sugere um enforcamento, e o peito tendido ao mar um afogamento. Você pode ler de outra forma, claro, mesclando ideias como a do peito tendido ao mar como uma maneira de libertação ou de busca por aventuras ― mas acho que a predominância de notas tristes ao longo do poema pelo menos respalda minha leitura, ou, até, faz com que a libertação que você enxergue seja rodeada de angústias. Por exemplo "a dor do couro".
O que é preciso ser apreciado, eu insisto, é:
uns outros tecidos de sal
dificultoso amor salgado
Isso é bom. Combinando com o verso anterior, "a dor do couro", nós temos um verso que traz uma imagem ríspida, dura, um verso que traz uma imagem branda (em especial graças a "tecidos") e outro que volta com uma imagem dura ("dificultoso", "salgado"). Mas o que é mais bonito é que tudo isso está entretecido, e você sai da comparação da pele com um couro dolorido e já cai nos tecidos de sal ― e aqui, claro, você deve ser sensível à mudança dos artigos de "a" para "uns outros" ― ou seja, note a especificidade que contribui para a dureza do verso anterior e note a vagueza malemolente do verso seguinte. Depois disso, você cai num verso que não traz artigo algum, mas, pelo contrário, a palavra "amor" ao lado de dois adjetivos pesados. Um deles, até, que se liga ao tecido de sal do anterior, mas de tal modo que esse pequeno colar de pérolas que são esses três versos traga consigo uma imagem de ternura árdua, é verdade, dificultosa, é óbvio, mas nem por isso menos encantadora. É bonito ver uma imagem dessas surgindo de forma praticamente orgânica no âmbito do poema. Até a forma como "a dor do couro", com quatro sílabas, se encaixa nas oito dos dois versos seguintes é apreciável.
O que se segue não é tão legal assim. A menção à praia é meio gratuita, e me parece que ela só funciona pois a poetisa de algum modo achou que não seria legal colocar apenas um "e" no próximo verso. Mas ela não adiciona absolutamente nada: a imagem marítima já estava completa, e o tênue contraponto que traz consigo um corpo-humano de repente moldado ao mar ― ao contrário de ideias concretas e sólidas, prosaicas dos versos iniciais ―, esse tênue contraponto já era o bastante pra trazer uma pletora suficiente de significados ao poema, ou seja, significados que mesclam ideias de libertação e de morte ― e significados que mesclam o tom dificultoso do amor a seu alívio implícito.
Todavia:
na água cheia de vivas exceções.
Não posso passar por cima disso. Nós começamos com uma metáfora forte: gente como carga. O que temos logo depois é uma plácida imagem de um plano aquático cheio de vivas exceções. Gosto de ler essas vivas exceções como aquelas pessoas que de algum modo conseguiram fugir do apelo da morte (ou da vida entediante ― a morte arrastada). Isso não exclui necessariamente minha leitura deste poema como povoado de imagens de morte. Oras: as vivas exceções são exceções. O adjetivo "vivas" pode nos levar a imaginar que essas exceções são exceções de vida que resiste ainda, mas de todo modo nós podemos apenas ler no adjetivo "vivas" a ideia de que as exceções como que cintilam, são notáveis ou qualquer coisa do gênero. A água está cheia dessas exceções vivas. É uma forma muito interessante de enunciar a situação. É como se as águas, que de algum modo se conectam ao comboio de gente e toda a desgraça que esse comboio traz consigo, fossem um amontoado de vidinhas quaisquer. O problema é que essas águas estão cheias de vivas exceções ― o que subverte a simples ideia da exceção, pois se algo está cheio delas, então a exceção não é mais exceção. Todavia, se o tônus do tempo, se as imposições da época fazem com que as pessoas entardeçam cedo, então, mesmo que a água seja cheia de vivas exceções, ainda assim nós podemos caracterizar essas exceções como exceções de fato. Não há, portanto, uma incongruência lógica grosseira. Há, pelo contrário, a consideração de algo maior que passou, de certo modo, implícito ao longo do poema ― trocando em miúdos, a consideração do tom áspero do nosso tempo que faz com que o tecido aquático se amargure, ainda que muitas exceções vivas existam nessas mesmas águas.
Naturalmente que a ideia do trem indo até essa água é também digna de nota, e serve pra mesclar de maneira habilidosa as duas camadas de sentido principais do poema ― a ferroviária e a marítima. Mas aqui eu noto que é bom, pelo menos, sabermos que a crueza de um comboio cheio de gente, de algum modo, se transforma nessa água cheia de vivas exceções. Nada tão absurdo assim se considerarmos a forma hábil com que a poetisa vai tecendo suas metáforas, ou seja, aquilo que disse: ela aproveita as camadas de sentido ― ou seja, não existem camadas de sentido supérfluas no poema ― e dá-lhes a devida metamorfose. Creio que o ponto de tornada de um esboço sentimental triste para um esboço sentimental alegre e certo modo esperançoso se dá com o peito tendido ao mar e, principalmente, com a evocação do amor. Nesse sentido, considerando que temos um primeiro instante de delineamento de uma situação lúgubre e, logo depois, de uma situação branda e agradável (embora árdua, como eu ressaltei), o verso "praia e" sirva como introdução a um terceiro movimento menor e de caráter conclusivo que busca unir uma coisa à outra até chegarmos ao fecho do poema, que, como eu disse, é notável graças à maneira como mescla uma incongruência a princípio grosseira ― as exceções povoarem certo lugar, o que faria com que a exceção deixasse de ser uma exceção ― e cria, numa única pincelada, um retrato lírico poderoso de nosso tempo.
Isso é bom. Combinando com o verso anterior, "a dor do couro", nós temos um verso que traz uma imagem ríspida, dura, um verso que traz uma imagem branda (em especial graças a "tecidos") e outro que volta com uma imagem dura ("dificultoso", "salgado"). Mas o que é mais bonito é que tudo isso está entretecido, e você sai da comparação da pele com um couro dolorido e já cai nos tecidos de sal ― e aqui, claro, você deve ser sensível à mudança dos artigos de "a" para "uns outros" ― ou seja, note a especificidade que contribui para a dureza do verso anterior e note a vagueza malemolente do verso seguinte. Depois disso, você cai num verso que não traz artigo algum, mas, pelo contrário, a palavra "amor" ao lado de dois adjetivos pesados. Um deles, até, que se liga ao tecido de sal do anterior, mas de tal modo que esse pequeno colar de pérolas que são esses três versos traga consigo uma imagem de ternura árdua, é verdade, dificultosa, é óbvio, mas nem por isso menos encantadora. É bonito ver uma imagem dessas surgindo de forma praticamente orgânica no âmbito do poema. Até a forma como "a dor do couro", com quatro sílabas, se encaixa nas oito dos dois versos seguintes é apreciável.
O que se segue não é tão legal assim. A menção à praia é meio gratuita, e me parece que ela só funciona pois a poetisa de algum modo achou que não seria legal colocar apenas um "e" no próximo verso. Mas ela não adiciona absolutamente nada: a imagem marítima já estava completa, e o tênue contraponto que traz consigo um corpo-humano de repente moldado ao mar ― ao contrário de ideias concretas e sólidas, prosaicas dos versos iniciais ―, esse tênue contraponto já era o bastante pra trazer uma pletora suficiente de significados ao poema, ou seja, significados que mesclam ideias de libertação e de morte ― e significados que mesclam o tom dificultoso do amor a seu alívio implícito.
Todavia:
na água cheia de vivas exceções.
Não posso passar por cima disso. Nós começamos com uma metáfora forte: gente como carga. O que temos logo depois é uma plácida imagem de um plano aquático cheio de vivas exceções. Gosto de ler essas vivas exceções como aquelas pessoas que de algum modo conseguiram fugir do apelo da morte (ou da vida entediante ― a morte arrastada). Isso não exclui necessariamente minha leitura deste poema como povoado de imagens de morte. Oras: as vivas exceções são exceções. O adjetivo "vivas" pode nos levar a imaginar que essas exceções são exceções de vida que resiste ainda, mas de todo modo nós podemos apenas ler no adjetivo "vivas" a ideia de que as exceções como que cintilam, são notáveis ou qualquer coisa do gênero. A água está cheia dessas exceções vivas. É uma forma muito interessante de enunciar a situação. É como se as águas, que de algum modo se conectam ao comboio de gente e toda a desgraça que esse comboio traz consigo, fossem um amontoado de vidinhas quaisquer. O problema é que essas águas estão cheias de vivas exceções ― o que subverte a simples ideia da exceção, pois se algo está cheio delas, então a exceção não é mais exceção. Todavia, se o tônus do tempo, se as imposições da época fazem com que as pessoas entardeçam cedo, então, mesmo que a água seja cheia de vivas exceções, ainda assim nós podemos caracterizar essas exceções como exceções de fato. Não há, portanto, uma incongruência lógica grosseira. Há, pelo contrário, a consideração de algo maior que passou, de certo modo, implícito ao longo do poema ― trocando em miúdos, a consideração do tom áspero do nosso tempo que faz com que o tecido aquático se amargure, ainda que muitas exceções vivas existam nessas mesmas águas.
Naturalmente que a ideia do trem indo até essa água é também digna de nota, e serve pra mesclar de maneira habilidosa as duas camadas de sentido principais do poema ― a ferroviária e a marítima. Mas aqui eu noto que é bom, pelo menos, sabermos que a crueza de um comboio cheio de gente, de algum modo, se transforma nessa água cheia de vivas exceções. Nada tão absurdo assim se considerarmos a forma hábil com que a poetisa vai tecendo suas metáforas, ou seja, aquilo que disse: ela aproveita as camadas de sentido ― ou seja, não existem camadas de sentido supérfluas no poema ― e dá-lhes a devida metamorfose. Creio que o ponto de tornada de um esboço sentimental triste para um esboço sentimental alegre e certo modo esperançoso se dá com o peito tendido ao mar e, principalmente, com a evocação do amor. Nesse sentido, considerando que temos um primeiro instante de delineamento de uma situação lúgubre e, logo depois, de uma situação branda e agradável (embora árdua, como eu ressaltei), o verso "praia e" sirva como introdução a um terceiro movimento menor e de caráter conclusivo que busca unir uma coisa à outra até chegarmos ao fecho do poema, que, como eu disse, é notável graças à maneira como mescla uma incongruência a princípio grosseira ― as exceções povoarem certo lugar, o que faria com que a exceção deixasse de ser uma exceção ― e cria, numa única pincelada, um retrato lírico poderoso de nosso tempo.