Uns poeminha aí.
Do poema curto nós poderíamos passar um bom tempo falando um bom punhado de coisas, mas me parece que estaríamos de todo sempre em roda da: suficiência. Não se trata de dizer que ela é questão que só diz respeito aos poemas curtos, mas sim que, quanto a estes, o ditame da suficiência se faz mais explícito, e o poema curto deve, dentro de seu exíguo espaço, se demonstrar suficiente no sentido de conseguir chegar seja lá a que propósito for. Deve se mostrar apto, se aqui nós pudermos acoplar a concepção poundiana da beleza como aptidão para o propósito. Isso não exclui as várias características que ele pode ostentar, dentro de que poética ele nos pareça se aproximar, de modo que, se se pretender inventivo, num exíguo espaço tem que ir lá e se mostrar inventivo, e, se se pretende lírico, nesse mesmo exíguo espaço tem que ir lá e se mostrar lírico.
Suficiência, portanto. Mais uma vez digo que não quero com isso implicar que, se estivéssemos diante de um poema maior, os ditames dessa mesma suficiência, o que, trocando em miúdos, quer dizer um olho torto para com excessos, não devam também vir ao caso. Afinal de contas, não é porque estamos diante de um poema curto que esse poema por definição estaria impedido de possuir, por estranho que possa parecer, excessos dentro de si. Não vejo nenhum óbice a que isso ocorra. Na verdade, se eu fosse comparar o poema curto com um tiro que se pretenda certeiro, o simples fato de você errar o alvo já parece apontar para isso, uma vez que o poema parece ter querido chegar a uma direção (ou, até pra ser mais exato, pois em última instância é sempre assim que acontece: conforme a direção que nós julgamos ele tenha se encaminhado) mas na realidade acabou chegando a outra, ou às vezes nem mesmo chegando, apenas parando no meio do caminho. Tudo isso é o bastante pra que o poema pareça se revestir de uma aura de excesso ou então, no mínimo, de insuficiência. E tanto o excesso quanto a insuficiência se mostram evidentes demais, e com muita facilidade, quando estamos diante de um poema curto. Aquela pequena centelha de inteligência que esperamos encontrar em todo poema ― essa fagulha é comum que o poeta, no afã de criá-la, acabe apagando-a ou, então, no afã de criá-la na medida exata e suficiente para seu pequenino poema, acabe por não criar absolutamente nada, e a única coisa a que nós realmente podemos aplaudir em relação esse poema é o fato de que o poema pelo menos foi curto (se bem que pode acontecer também do poeta, ao lado desse poema curto, ter escrito outra dezenas de acompanhantes igualmente insípidos).
A antologia de 100 poemas com até 100 caracteres publicada no Jornal Opção, edição 2128 (fazendo coro com os 100 contos de até 100 caracteres na edição 2078 e os 30 contos de até 100 caracteres na edição 1909), creio que consegue demonstrar com felicidade as vicissitudes que o poema curto tem a nos oferecer. De maneira geral, eu considero uma boa seleção, tendo em vista que, dos 100 poemas arrolados, quase um décimo deles eu considero realmente bom ― um número a meu ver mais do que satisfatório. Buscarei, como sempre, ser o mais claro possível em relação a esse considerar-bom, o que, na prática, implica argumentar a respeito. Os poemas ruins eu reservarei para o final, mais a título exemplificativo ― e comentados de passagem ― que qualquer outra coisa. E não digo só no sentido de que os outros nove décimos são só de poemas ruins, pois existem também aqueles que até são bem feitos, mas não possuem toda a inteligência que esses, que considero bom, possuem.
Faço também notar uma coisa certo modo óbvia: ninguém conseguirá sequer esboçar convicção se, com base apenas num poema curto, almejar dizer se um poeta é bom ou ruim (é possível que só se estivermos falando de haikais, onde o que está em jogo nunca são apenas haikais, você vagamente consiga algo do tipo) ― e falo isso tendo em vista qualquer julgamento qualitativo que seja, com qualquer pretensão que seja, desde a mais modesta de se exprimir e embasar uma opinião até aquela que, transcendendo esse primeiro estágio, nele pretenda alicerçar uma aparelhagem que busque dar conta de fatias mais largas do fenômeno contemporâneo. É plausível supormos que um poeta consiga escrever um bom poema curto por sorte. Essas coisas acontecem. Menciono isso pois não me parece totalmente correto que o leitor queira (e vai saber o que os leitores hoje em dia andam querendo), com base no que a antologia tem a oferecer, efetuar um julgamento a respeito da poesia contemporânea como um todo ― algo que, de resto, sempre possui seus ares de ridículo. Se digo que a seleção é bem feita, digo no sentido de que, se você for parar pra analisar os poemas curtos arrolados, vai encontrar desde aqueles despojados, aqueles francamente líricos e até aqueles sisudos. É de tudo quanto é tipo. E assim sendo, quando, ao longo deste texto, eu for elogiar um poema qualquer, que fique bem claro que eu o elogio de maneira sincera (se bem que isso de ser ou não sincero é irrelevante: prestai atenção aos argumentos, leitor, aos argumentos...) e até passo a nutrir subsídios positivos quanto a dizer se o poeta é no geral bom ou não de serviço. Mas esse balde de água fria precisa ser jogado: são subsídios e nada mais. Alguém daí da seleção pode muito bem ter escrito um poema mediano que beira o sensabor sem que isso implique um demérito que abale as estruturas de sua poesia. Quando muito, o demérito de sempre: ter escrito um poema dispensável. Caso o leitor queira um exemplo logo de cara, eu dou o de Fabiano Calixto, que comparece na coletânea com um poema sem brilho algum ― algo um tanto quanto oposto à índole da poesia de Calixto, a meu ver uma das mais interessantes hoje em dia.
Por fim, faço notar que tomo como base a edição virtual: aqui. Ela apresenta alguns problemas de diagramação, de modo que, em alguns casos, nós não temos como saber se estamos diante do título do poema ou do primeiro verso. A inclusão do título em caixa alta seria suficiente pra acabar com este mal, o que inclusive acontece com alguns deles. Mas tudo bem: de todo modo, pressuponho que a edição impressa do jornal tenha banido essas ambiguidades.
Vamos começar.
O primeiro poema que destaco é o de Alberto Bresciani:
Pássaro habitado por pássaros
voo
Sem pouso
"Caminhos" eu acho que é o título do poema, e por isso não o incluí. O primeiro verso é o verso que realmente chama a atenção. Na verdade, eu diria até que o poeta poderia ter afiado melhor a tesoura dos versos e, ao invés de se deixar seduzir pela mágica dos três versos, um número certo modo cabalístico quando o assunto é poema curto (posto que estabelece um contato direto com o haikai), ele poderia ter reduzido o poema apenas ao primeiro verso. "Pássaro habitado por pássaros" é realmente fantástico. Fazer uma analogia entre pássaros e caminhos é uma coisa absolutamente batida, mas, a partir do momento em que estamos diante de um pássaro que é habitado por pássaros, então a coisa é outra, uma vez que damos ao verso uma ideia de liberdade no mínimo peculiar. Um pássaro evidentemente é habitado por um pássaro, a não ser que esse pássaro esteja ferido ou qualquer coisa do tipo (e aí não possa voar nem fazer coisas que o façam pássaro). Mas quando esse pássaro é habitado por pássaros, no plural, então nós temos um realce duplamente inteligente, pois ele não só adiciona um elemento que habita esse pássaro que funciona e que se demonstra inesperado ― ou seja, estamos diante de uma redundância, que, por incrível que possa parecer, se mostra como sendo surpreendente no plano do poema ―, mas também graças ao fato de conseguir realçar a liberdade ainda maior desse pássaro, pois, se ele é habitado por pássaros, no plural, ele é múltiplo, e, em ser múltiplo, ele consegue ser ainda mais liberto. Esse o grande xis da questão. Sabemos que pássaros dependem essencialmente de bandos, de modo que se temos um pássaro que é habitado por pássaros, nós temos uma relação que parece suprimir a necessidade de um bando. Um pássaro que, como venho dizendo, se demonstra livre. Todavia, pra citar aqueles versos de Auden em sua elegia a Freud, ser livre é com frequência estar sozinho. Oras: o pássaro é habitado por pássaros. Voz passiva. O que poderia ser uma bela imagem de autossuficiência eis que ganha os matizes de um quadro certo modo triste, uma vez que se esse pássaro é habitado por pássaros, nós podemos vislumbrar a possibilidade de que esse pássaro sinta uma certa estranheza para com aqueles pássaros que lhe habitam. Essa estranheza já está de certo modo implícita na própria redundância, uma vez que se eu pego a ideia de um pássaro e digo que ele é habitado por outros pássaros, a simples reocorrência da ideia de pássaros cria uma estranheza dentro daquilo que deveria ser absolutamente coincidente. O que, observando de maneira até mais atenta, tem lá sua lógica, pois se pressupormos que o pássaro é um, de uma espécie, não podendo ser de duas pelo fato de ser singular, a pluralidade de pássaros que habitam nele já incute um fator de diferenciação pois se torna razoável pensarmos que, desses pássaros, no plural, que lhe habitam, existem pássaros de várias espécies. O que constitui, assim sendo, mais um argumento em prol da estranheza que aludi, e de tal modo que, com um simples verso, o poeta consegue trazer com habilidade tudo o que a liberdade do voo traz consigo ao mesmo tempo que uma espécie de melancolia implícita. E, conforme disse, tal coisa seria possível ainda que o poeta tivesse dispensado os próximos versos. Afinal de contas, a ideia de um voo sem pouso é a ideia de um voo constante, ao passo que a ideia dos caminhos, no plural, é essencialmente a ideia de uma indecisão, se bem que, cominado com o voo ser sem pouso, possamos também pressupor que esse voo constante aos poucos vai percorrendo todos os caminhos. Todavia, como o núcleo substantivo do poema é um pássaro, no singular, nós nos vemos diante de uma pluralidade essencial que precisa ser corrida por apenas um pássaro em movimento perpétuo, como que em cadeia. Ideias (e eu realmente não creio estar defendo de maneira exagerada) que o simples verso inicial já continha!
O segundo poema que destaco é o de Alexandre Guarnieri, que, de novo presumo, chama-se "Estatigrafia". Estatigrafia é o estudo daquelas listras que vemos em rochedos, buscando como que contar-lhes a história. Diz o poema:
Veios de calcita irisam, rios lentos
na sólida rocha, sob terreno
tão árido e seco, outrora gelo.
O que destaco aqui seriam duas coisas, dois detalhes inteligentes que a meu ver conseguem suscitar aquela fagulha que eu falei no início do texto. O primeiro deles é o fato de que estamos diante de um poema essencialmente substantivo, que conta, apenas, com um único verbo no presente do indicativo: "irisam". Esse processo não tem começo nem fim, e, graças ao fato de ter sido incluso no presente, e ter sido incluso a sós, ele como que cria uma espécie de movimento perpétuo, algo que nós não temos perspectiva de algum dia acabar ― ou então, tendo em vista que o poema possui um subsídio científico, que só vá acabar com a descoberta propriamente dita: até lá, todos os tempos convergem no tempo presente da pesquisa sendo realizada. A sintaxe do poema é também interessante e concorre para que o trabalho inicial feito nesse único verbo ganhe outros nuances. Logo depois da primeira frase, "Veios de calcita irisam", nós temos "rios lentos na sólida rocha", que é um desdobramento da primeira, embora ao mesmo tempo já seja uma transformação. É um desdobramento imagética, ou seja, uma imagem tirada da primeira frase do poema que desenvolve sua ideia ― e, como desdobramento, nos dá novas informações a respeito do processo que assistimos. É preciso que o leitor saiba ver a situação. No início nós temos os veios de calcita, ou seja, o veio é da calcita e a calcita não pode ser pensada sem o veio. Com esse desdobramento, todavia, o poeta habilmente faz com que nosso olhar dê um enfoque a esse veio, de modo que, agora, esse veio, que se transforma num rio lento (e eu faço notar que o adjetivo "lento", que tem tudo pra ser gratuito, aqui comparece para que tenhamos uma dimensão mais exata do presente do verbo "irisar"), se dissocia da rocha, pois nós já não temos o par inteiramente coeso do veio de calcita, mas, sim, um rio lento correndo numa rocha sólida. É uma dissociação que também se dá graças à segunda imagem evocada, que mantém com a primeira uma relação basilarmente comparativa, pois, como sabemos que não tem como um rio correr numa rocha sólida, ainda mais sabendo que essa rocha é a calcita, nós portanto captamos de pronto os esteios da imagem e percebemos seus eixos comparativos que, uma vez percebidos, apontam para a tal da dissociação: o que antes era uma coisa incrustada na outra, o que antes era uma coisa sem distância alguma entre seus componentes, agora se remodela e nós já podemos pensar um componente sem o outro, sendo que, até pra ser mais preciso, o que realmente vem à baila é justamente o fato de que um componente existe em contraste com o outro.
A próxima frase, "sob terreno árido e seco", é uma espécie de pausa, e o duplo adjetivo "árido e seco", ao contrário de "lento", já não é um conjunto que muito me agrada, embora eu reconheça que essa repetição é necessária para que um ritmo girando entre eneassílabos e hendecassílabos seja dado ao texto. Chamo também atenção para "sob", que contribui para que o cenário do poema como que submerja e faça de nosso ato de leitura um ato essencialmente geológico. Aqui nós já não temos um desdobramento, mas temos, em contrapartida, uma espécie de indicação de paisagem, que, se formos até parar pra pensar de forma detida, é também peculiar, uma vez que essa indicação de paisagem costuma vir no começo, mas, aqui no poema, está no penúltimo movimento frásico, de modo que pode ser de certo interesse que essa indicação da paisagem tenha ocorrido só quando estamos próximos de esmiuçar ainda mais a câmera narrativa detida sobre os veios de calcita. Isto é: funciona como uma espécie de contraponto entre duas frases que se esmiúçam e esta, que se expande.
E por fim, a última frase, "outrora gelo", que faz com que caiamos na pré-história daquilo, e consegue tanto harmonizar quanto dissociar nosso movimento óptico. Digo harmonizar pois nós comparamos os veios com rios, coisa de certo modo meio óbvia tanto visualmente quanto pela própria palavra "veio", também usada em contextos hídricos, e, unindo essa dupla inscrição aquática, nós chegamos até o gelo; todavia, também indica uma dissociação graças ao fato de que estamos diante de uma paisagem árida e seca (e esse é um segundo indício que eu encontro pra respaldar a dupla adjetivação, isto é, ela ocorreria tanto por necessidade rítmica quanto pra intensificar bem que tipo de paisagem era aquela, o que propicia o choque) e que essa paisagem outrora foi gelo ― e essa dissociação também se fortifica se observarmos que os versos 1 e 2 são rimas toantes perfeitas, enquanto o 3 lhes acompanha só com as vogais E e O (um E fechado ao invés de aberto, como que fechando o ciclo e as comportas do trabalho geológico ― pra não citar, claro, o fato de estar no singular e os outros dois, no plural). Só que essa dissociação, que nos chega ao fim da leitura do poema, é toda guiada pelo verbo no presente, e o fato do poeta tê-lo sustentado o poema inteiro é digno de nota pois faz com que, assim, o trabalho propriamente geológico da estatigrafia não caia por terra, uma vez que a estatigrafia, estudando o presente, consegue colher indícios e fatos relativos a um passado basilar e atuante.
O segundo detalhe que eu aponto do texto é o contraponto imagético que a paisagem seca apresenta diante do verbo "irisar", essencialmente colorido e muitíssimo bem escolhido ― pois não só consegue colorir o poema de maneira admirável como, também, serve de maneira inteligente à ideia dos veios (o arco-íris pode ser lido como um conjuntinho de veios coloridos) e ao jogo entre a aridez e as águas implícitas daquela paisagem, que, mais uma vez combinando com o verbo "irisar", transformam algo que tinha tudo pra ser morto, árido propriamente falando, num cenário que subterraneamente contém vida (e a simples imagem do arco-íris sobre um rio ou uma superfície de gelo meio que dispensa comentários).
Suficiência, portanto. Mais uma vez digo que não quero com isso implicar que, se estivéssemos diante de um poema maior, os ditames dessa mesma suficiência, o que, trocando em miúdos, quer dizer um olho torto para com excessos, não devam também vir ao caso. Afinal de contas, não é porque estamos diante de um poema curto que esse poema por definição estaria impedido de possuir, por estranho que possa parecer, excessos dentro de si. Não vejo nenhum óbice a que isso ocorra. Na verdade, se eu fosse comparar o poema curto com um tiro que se pretenda certeiro, o simples fato de você errar o alvo já parece apontar para isso, uma vez que o poema parece ter querido chegar a uma direção (ou, até pra ser mais exato, pois em última instância é sempre assim que acontece: conforme a direção que nós julgamos ele tenha se encaminhado) mas na realidade acabou chegando a outra, ou às vezes nem mesmo chegando, apenas parando no meio do caminho. Tudo isso é o bastante pra que o poema pareça se revestir de uma aura de excesso ou então, no mínimo, de insuficiência. E tanto o excesso quanto a insuficiência se mostram evidentes demais, e com muita facilidade, quando estamos diante de um poema curto. Aquela pequena centelha de inteligência que esperamos encontrar em todo poema ― essa fagulha é comum que o poeta, no afã de criá-la, acabe apagando-a ou, então, no afã de criá-la na medida exata e suficiente para seu pequenino poema, acabe por não criar absolutamente nada, e a única coisa a que nós realmente podemos aplaudir em relação esse poema é o fato de que o poema pelo menos foi curto (se bem que pode acontecer também do poeta, ao lado desse poema curto, ter escrito outra dezenas de acompanhantes igualmente insípidos).
A antologia de 100 poemas com até 100 caracteres publicada no Jornal Opção, edição 2128 (fazendo coro com os 100 contos de até 100 caracteres na edição 2078 e os 30 contos de até 100 caracteres na edição 1909), creio que consegue demonstrar com felicidade as vicissitudes que o poema curto tem a nos oferecer. De maneira geral, eu considero uma boa seleção, tendo em vista que, dos 100 poemas arrolados, quase um décimo deles eu considero realmente bom ― um número a meu ver mais do que satisfatório. Buscarei, como sempre, ser o mais claro possível em relação a esse considerar-bom, o que, na prática, implica argumentar a respeito. Os poemas ruins eu reservarei para o final, mais a título exemplificativo ― e comentados de passagem ― que qualquer outra coisa. E não digo só no sentido de que os outros nove décimos são só de poemas ruins, pois existem também aqueles que até são bem feitos, mas não possuem toda a inteligência que esses, que considero bom, possuem.
Faço também notar uma coisa certo modo óbvia: ninguém conseguirá sequer esboçar convicção se, com base apenas num poema curto, almejar dizer se um poeta é bom ou ruim (é possível que só se estivermos falando de haikais, onde o que está em jogo nunca são apenas haikais, você vagamente consiga algo do tipo) ― e falo isso tendo em vista qualquer julgamento qualitativo que seja, com qualquer pretensão que seja, desde a mais modesta de se exprimir e embasar uma opinião até aquela que, transcendendo esse primeiro estágio, nele pretenda alicerçar uma aparelhagem que busque dar conta de fatias mais largas do fenômeno contemporâneo. É plausível supormos que um poeta consiga escrever um bom poema curto por sorte. Essas coisas acontecem. Menciono isso pois não me parece totalmente correto que o leitor queira (e vai saber o que os leitores hoje em dia andam querendo), com base no que a antologia tem a oferecer, efetuar um julgamento a respeito da poesia contemporânea como um todo ― algo que, de resto, sempre possui seus ares de ridículo. Se digo que a seleção é bem feita, digo no sentido de que, se você for parar pra analisar os poemas curtos arrolados, vai encontrar desde aqueles despojados, aqueles francamente líricos e até aqueles sisudos. É de tudo quanto é tipo. E assim sendo, quando, ao longo deste texto, eu for elogiar um poema qualquer, que fique bem claro que eu o elogio de maneira sincera (se bem que isso de ser ou não sincero é irrelevante: prestai atenção aos argumentos, leitor, aos argumentos...) e até passo a nutrir subsídios positivos quanto a dizer se o poeta é no geral bom ou não de serviço. Mas esse balde de água fria precisa ser jogado: são subsídios e nada mais. Alguém daí da seleção pode muito bem ter escrito um poema mediano que beira o sensabor sem que isso implique um demérito que abale as estruturas de sua poesia. Quando muito, o demérito de sempre: ter escrito um poema dispensável. Caso o leitor queira um exemplo logo de cara, eu dou o de Fabiano Calixto, que comparece na coletânea com um poema sem brilho algum ― algo um tanto quanto oposto à índole da poesia de Calixto, a meu ver uma das mais interessantes hoje em dia.
Por fim, faço notar que tomo como base a edição virtual: aqui. Ela apresenta alguns problemas de diagramação, de modo que, em alguns casos, nós não temos como saber se estamos diante do título do poema ou do primeiro verso. A inclusão do título em caixa alta seria suficiente pra acabar com este mal, o que inclusive acontece com alguns deles. Mas tudo bem: de todo modo, pressuponho que a edição impressa do jornal tenha banido essas ambiguidades.
Vamos começar.
O primeiro poema que destaco é o de Alberto Bresciani:
Pássaro habitado por pássaros
voo
Sem pouso
"Caminhos" eu acho que é o título do poema, e por isso não o incluí. O primeiro verso é o verso que realmente chama a atenção. Na verdade, eu diria até que o poeta poderia ter afiado melhor a tesoura dos versos e, ao invés de se deixar seduzir pela mágica dos três versos, um número certo modo cabalístico quando o assunto é poema curto (posto que estabelece um contato direto com o haikai), ele poderia ter reduzido o poema apenas ao primeiro verso. "Pássaro habitado por pássaros" é realmente fantástico. Fazer uma analogia entre pássaros e caminhos é uma coisa absolutamente batida, mas, a partir do momento em que estamos diante de um pássaro que é habitado por pássaros, então a coisa é outra, uma vez que damos ao verso uma ideia de liberdade no mínimo peculiar. Um pássaro evidentemente é habitado por um pássaro, a não ser que esse pássaro esteja ferido ou qualquer coisa do tipo (e aí não possa voar nem fazer coisas que o façam pássaro). Mas quando esse pássaro é habitado por pássaros, no plural, então nós temos um realce duplamente inteligente, pois ele não só adiciona um elemento que habita esse pássaro que funciona e que se demonstra inesperado ― ou seja, estamos diante de uma redundância, que, por incrível que possa parecer, se mostra como sendo surpreendente no plano do poema ―, mas também graças ao fato de conseguir realçar a liberdade ainda maior desse pássaro, pois, se ele é habitado por pássaros, no plural, ele é múltiplo, e, em ser múltiplo, ele consegue ser ainda mais liberto. Esse o grande xis da questão. Sabemos que pássaros dependem essencialmente de bandos, de modo que se temos um pássaro que é habitado por pássaros, nós temos uma relação que parece suprimir a necessidade de um bando. Um pássaro que, como venho dizendo, se demonstra livre. Todavia, pra citar aqueles versos de Auden em sua elegia a Freud, ser livre é com frequência estar sozinho. Oras: o pássaro é habitado por pássaros. Voz passiva. O que poderia ser uma bela imagem de autossuficiência eis que ganha os matizes de um quadro certo modo triste, uma vez que se esse pássaro é habitado por pássaros, nós podemos vislumbrar a possibilidade de que esse pássaro sinta uma certa estranheza para com aqueles pássaros que lhe habitam. Essa estranheza já está de certo modo implícita na própria redundância, uma vez que se eu pego a ideia de um pássaro e digo que ele é habitado por outros pássaros, a simples reocorrência da ideia de pássaros cria uma estranheza dentro daquilo que deveria ser absolutamente coincidente. O que, observando de maneira até mais atenta, tem lá sua lógica, pois se pressupormos que o pássaro é um, de uma espécie, não podendo ser de duas pelo fato de ser singular, a pluralidade de pássaros que habitam nele já incute um fator de diferenciação pois se torna razoável pensarmos que, desses pássaros, no plural, que lhe habitam, existem pássaros de várias espécies. O que constitui, assim sendo, mais um argumento em prol da estranheza que aludi, e de tal modo que, com um simples verso, o poeta consegue trazer com habilidade tudo o que a liberdade do voo traz consigo ao mesmo tempo que uma espécie de melancolia implícita. E, conforme disse, tal coisa seria possível ainda que o poeta tivesse dispensado os próximos versos. Afinal de contas, a ideia de um voo sem pouso é a ideia de um voo constante, ao passo que a ideia dos caminhos, no plural, é essencialmente a ideia de uma indecisão, se bem que, cominado com o voo ser sem pouso, possamos também pressupor que esse voo constante aos poucos vai percorrendo todos os caminhos. Todavia, como o núcleo substantivo do poema é um pássaro, no singular, nós nos vemos diante de uma pluralidade essencial que precisa ser corrida por apenas um pássaro em movimento perpétuo, como que em cadeia. Ideias (e eu realmente não creio estar defendo de maneira exagerada) que o simples verso inicial já continha!
O segundo poema que destaco é o de Alexandre Guarnieri, que, de novo presumo, chama-se "Estatigrafia". Estatigrafia é o estudo daquelas listras que vemos em rochedos, buscando como que contar-lhes a história. Diz o poema:
Veios de calcita irisam, rios lentos
na sólida rocha, sob terreno
tão árido e seco, outrora gelo.
O que destaco aqui seriam duas coisas, dois detalhes inteligentes que a meu ver conseguem suscitar aquela fagulha que eu falei no início do texto. O primeiro deles é o fato de que estamos diante de um poema essencialmente substantivo, que conta, apenas, com um único verbo no presente do indicativo: "irisam". Esse processo não tem começo nem fim, e, graças ao fato de ter sido incluso no presente, e ter sido incluso a sós, ele como que cria uma espécie de movimento perpétuo, algo que nós não temos perspectiva de algum dia acabar ― ou então, tendo em vista que o poema possui um subsídio científico, que só vá acabar com a descoberta propriamente dita: até lá, todos os tempos convergem no tempo presente da pesquisa sendo realizada. A sintaxe do poema é também interessante e concorre para que o trabalho inicial feito nesse único verbo ganhe outros nuances. Logo depois da primeira frase, "Veios de calcita irisam", nós temos "rios lentos na sólida rocha", que é um desdobramento da primeira, embora ao mesmo tempo já seja uma transformação. É um desdobramento imagética, ou seja, uma imagem tirada da primeira frase do poema que desenvolve sua ideia ― e, como desdobramento, nos dá novas informações a respeito do processo que assistimos. É preciso que o leitor saiba ver a situação. No início nós temos os veios de calcita, ou seja, o veio é da calcita e a calcita não pode ser pensada sem o veio. Com esse desdobramento, todavia, o poeta habilmente faz com que nosso olhar dê um enfoque a esse veio, de modo que, agora, esse veio, que se transforma num rio lento (e eu faço notar que o adjetivo "lento", que tem tudo pra ser gratuito, aqui comparece para que tenhamos uma dimensão mais exata do presente do verbo "irisar"), se dissocia da rocha, pois nós já não temos o par inteiramente coeso do veio de calcita, mas, sim, um rio lento correndo numa rocha sólida. É uma dissociação que também se dá graças à segunda imagem evocada, que mantém com a primeira uma relação basilarmente comparativa, pois, como sabemos que não tem como um rio correr numa rocha sólida, ainda mais sabendo que essa rocha é a calcita, nós portanto captamos de pronto os esteios da imagem e percebemos seus eixos comparativos que, uma vez percebidos, apontam para a tal da dissociação: o que antes era uma coisa incrustada na outra, o que antes era uma coisa sem distância alguma entre seus componentes, agora se remodela e nós já podemos pensar um componente sem o outro, sendo que, até pra ser mais preciso, o que realmente vem à baila é justamente o fato de que um componente existe em contraste com o outro.
A próxima frase, "sob terreno árido e seco", é uma espécie de pausa, e o duplo adjetivo "árido e seco", ao contrário de "lento", já não é um conjunto que muito me agrada, embora eu reconheça que essa repetição é necessária para que um ritmo girando entre eneassílabos e hendecassílabos seja dado ao texto. Chamo também atenção para "sob", que contribui para que o cenário do poema como que submerja e faça de nosso ato de leitura um ato essencialmente geológico. Aqui nós já não temos um desdobramento, mas temos, em contrapartida, uma espécie de indicação de paisagem, que, se formos até parar pra pensar de forma detida, é também peculiar, uma vez que essa indicação de paisagem costuma vir no começo, mas, aqui no poema, está no penúltimo movimento frásico, de modo que pode ser de certo interesse que essa indicação da paisagem tenha ocorrido só quando estamos próximos de esmiuçar ainda mais a câmera narrativa detida sobre os veios de calcita. Isto é: funciona como uma espécie de contraponto entre duas frases que se esmiúçam e esta, que se expande.
E por fim, a última frase, "outrora gelo", que faz com que caiamos na pré-história daquilo, e consegue tanto harmonizar quanto dissociar nosso movimento óptico. Digo harmonizar pois nós comparamos os veios com rios, coisa de certo modo meio óbvia tanto visualmente quanto pela própria palavra "veio", também usada em contextos hídricos, e, unindo essa dupla inscrição aquática, nós chegamos até o gelo; todavia, também indica uma dissociação graças ao fato de que estamos diante de uma paisagem árida e seca (e esse é um segundo indício que eu encontro pra respaldar a dupla adjetivação, isto é, ela ocorreria tanto por necessidade rítmica quanto pra intensificar bem que tipo de paisagem era aquela, o que propicia o choque) e que essa paisagem outrora foi gelo ― e essa dissociação também se fortifica se observarmos que os versos 1 e 2 são rimas toantes perfeitas, enquanto o 3 lhes acompanha só com as vogais E e O (um E fechado ao invés de aberto, como que fechando o ciclo e as comportas do trabalho geológico ― pra não citar, claro, o fato de estar no singular e os outros dois, no plural). Só que essa dissociação, que nos chega ao fim da leitura do poema, é toda guiada pelo verbo no presente, e o fato do poeta tê-lo sustentado o poema inteiro é digno de nota pois faz com que, assim, o trabalho propriamente geológico da estatigrafia não caia por terra, uma vez que a estatigrafia, estudando o presente, consegue colher indícios e fatos relativos a um passado basilar e atuante.
O segundo detalhe que eu aponto do texto é o contraponto imagético que a paisagem seca apresenta diante do verbo "irisar", essencialmente colorido e muitíssimo bem escolhido ― pois não só consegue colorir o poema de maneira admirável como, também, serve de maneira inteligente à ideia dos veios (o arco-íris pode ser lido como um conjuntinho de veios coloridos) e ao jogo entre a aridez e as águas implícitas daquela paisagem, que, mais uma vez combinando com o verbo "irisar", transformam algo que tinha tudo pra ser morto, árido propriamente falando, num cenário que subterraneamente contém vida (e a simples imagem do arco-íris sobre um rio ou uma superfície de gelo meio que dispensa comentários).
Do poema de Alexandre Pilati, eu diria mais no sentido de: só os dois primeiros versos. Ele se chama "Cronômetro". Veja:
Ventre d’arame-farpado:
o tempo.
Rasgar-se, aprender, varar:
viver.
Ser de feridas, miro a idade em mim.
A rispidez do R no primeiro verso consegue dar a crueza necessária à coisa toda. Além, claro, da simples mescla entre um ventre e um arame farpado. Ou seja: o ventre se liga ao que gera a vida, de modo que se temos um ventre de arame-farpado, nós temos que essa gestação será dolorosa. Oras: se assim é, então por que motivo o poeta teria que continuar expandindo a ideia do poema, com, por exemplo, essa sucessão de verbos no infinitivo no terceiro verso ou então, pior ainda, esse "Ser de feridas" no último? Esse tipo de coisa é inútil. Eu repito: depois dos dois primeiros versos, só o jogo aliterativo entre "varar: / viver." vale a pena ser mencionado. Lembra quando eu disse que o poema, mesmo curto, podia conter excessos? Pois então. Esse aqui os contém, e eu considero que num nível que só nos deixa com uma sensação: desperdício.
O poema de André di Bernardi, esse:
Lua estranha
escrevi o seu nome
num bodoque
e atirei o pássaro
vivo
rumo a tudo.
Ele possui um jogo de imagens também engenhoso, à maneira do de Bresciani. Bodoque é tipo um estilingue. A indeterminação sintática dos dois primeiros versos, ou seja, nós não sabemos bem se o eu lírico escreveu o nome da Lua ou o nome de uma outra pessoa, parece ser resolvida se lembrarmos que parece muito mais lógico escrever o nome de outro alguém que o nome da Lua: que nome da Lua, afinal, seria esse? A questão é que o poeta escreve esse nome num bodoque. E então joga o pássaro. Oras: o bodoque é pra você jogar alguma coisa num pássaro. Existe uma confusão interessante e até saborosa, eu diria, nesse poeminha aqui. O poeta guarda o nome no bodoque e aí joga o pássaro, o que é diferente até mesmo dele jogar o pássaro usando o bodoque (se bem que essa é uma ideia que pode ter sido bem o que o eu lírico fez). Um nonsense que parece se encaixar bem ao texto, transformando a ideia da caça despretensiosa de um pássaro usando-se de um bodoque (algo que está implícito na imagética do Cupido) no lançar um pássaro que voará rumo a tudo, enquanto o nome propriamente dito fica guardado no bodoque, isto é, no instrumento que deveria ter sido usado para a conquista. O que me incomoda, todavia, mais uma vez é a falta de consciência na hora de recortar o poema. Os dois últimos versos são inúteis. O último, até, me parece meio cacofônico, embora eu reconheça que isso possa ser impressão minha apenas. Com a lua estranha eu nem encuco tanto, pra ser sincero, pois acho que esse cenário lunar pode dar uma beleza que seja ao poema e, talvez graças ao adjetivo, pode aclimatar o leitor menos disposto a simplesmente degustar um nonsense a essa hora da manhã.
Enfim.
Depois desse, o de Anna Luísa Braga:
voltei a fumar no instante em que te vi
A coisa que uma penca, pelo menos, de poetas contemporâneos mais adora é colocar um cigarro no meio do texto. Querendo indicar uma aproximação amorosa ou uma espécie de sensualidade ao-rés-do-chão, esse uso ostensivo do tabaco se transforma em metáfora ― embora metáfora tão batida quanto para um provençal os pássaros cantando o eram. A maior parte desses poemas resulta bastante banal, certamente da mesma banalidade de quem realmente precisa acender um cigarro pra satisfazer seja lá que diabos for. É raro você encontrar alguém que consiga transformar o cigarro numa metáfora realmente operacional dentro de seu texto, à guisa dos cigarros na cama de Ricardo Domeneck. Anna Luísa Braga até que se sai bem. Dos poemas arrolados é o único que consegue ir de encontro, dentro de sua ideia geral de uma espécie de história implícita e in nuce, do micro-conto de Hemingway (e é interessante você parar pra pensar que muitos desses poemas da antologia, e o de Anna Luísa Braga é um deles, parecem servir também de micro-conto, e o reverso também poderia ser aplicável a muitos micro-contos).
Digo que a autora se sai bem pois se a pessoa do poema diz que volta a fumar no instante em que viu uma outra (e esse é um dos casos em que, frente a esse "tu", me parece perfeitamente plausível dizermos estar diante de um caso amoroso), então é de se pressupor uma espécie de ansiedade por parte da pessoa do poema. Ela parece ter um tipo de descontrole ou, no mínimo, a presença daquela outra pessoa a abala fortemente. Sabemos que parar de fumar é difícil, e que por qualquer coisa você realmente volta, mas, combinando essa tendência com o simples ter visto outra pessoa, e que, assim, no exato instante em que se viu essa pessoa, você volta a fumar... Bem. Combinando tudo isso nós podemos pressupor toda uma história por trás que, é claro, simplesmente não tem como ser determinável, assim como as razões de se vender sapatinhos de bebê novos, sem uso, não poderão ser determináveis. Mas nós temos uma espécie de baliza sólida, nós podemos nos aventurar em imaginar muitas razões sem que esse imaginá-las se torne excessivo e, aspecto importantíssimo, nós podemos imaginar essas razões com um senso de justeza e suficiência, de curiosidade genuína mesmo. Conseguir alcançar exatamente essa balança é muito difícil. Você pode muito bem achar que conseguiu, fazendo um recorte de uma situação meio que extraordinária mas com todo um cuidado pra não torná-la pomposa demais. E no entanto, o que você apresenta é um produto insípido.
De Felipe Pauluk, acho que intitulado "Bisturi", vejamos:
como uma
estrela cadente louca
minha língua-poema
rasgou o céu da tua boca
Bisturi, instrumento cirúrgico e frio por excelência. Só que aqui contraposto a um texto de forte sensualidade, em que até a estrela cadente é caracterizada como louca. O que eu peço pra que notemos é o trabalho sonoro. A rima parcial entre "uma" e "poema", por exemplo, que, embora fraca, a meu ver é até apontável se observarmos outras estruturas sonoras ao longo do poema como a aliteração em L no segundo verso que vai de encontro ao "língua" no terceiro, ou a própria correspondência fônica entre "minha" e "língua". Após, deve-se notar também o jogo sonoro entre "louca", "rasgou" e "boca" (talvez colocando "como" e "poema" também na jogada), com esse O fechado que bate de frente com o salto que a língua dá lendo "céu da tua". Na verdade, se formos prestar atenção só no movimento que nossa língua faz ao longo do poema, nós temos uma miscelânea interessante de movimentos linguais. Temos E, temos I, temos O, temos U... Só não temos A, o que não chega a ser exatamente um problema pois na fala do A nós meio que anulamos a língua do processo. Ou seja: o poeta fala de uma "língua-poema". O que gera interesse em seu poema, porém, é que o movimento de nossa língua, o movimento que a língua faz, propriamente, ao longo do poema, que possui uma sonoridade muito bem montada, é um movimento que serve pra realçar a cadeia poética do texto. E aqui eu creio que posso pelo menos argumentar a respeito da qualidade desse poema, e tentar contrapô-lo, por exemplo, ao que de Yago Rodrigues, no final da coletânea, tem a apresentar. Pois enquanto no de Yago, que é até interessantezinho, nós temos uma imagem que desperta a atenção do leitor, ainda mais se considerarmos a sensualidade da língua passando no céu da boca, nada disso consegue gerar tanta atenção assim quando, olhando pro gramado do vizinho, nós vemos que Felipe Pauluk abre a tenda das mesmas estruturas metafóricas só que com muito mais interesse. Afinal de contas, a ideia da estrela cadente se liga diretamente ao céu da boca da outra pessoa, e o risco que a estrela cadente deixa simula os movimentos da língua de alguém na boca de outro: e tudo isso nós sentimos muito bem pois nossa língua, enquanto isso, está que nem uma doida na nossa boca.
O poema de Monique Revillion chama-se "Números":
Dez mil crianças
refugiadas
desapareceram
em caminhos
sem chegada.
Contar até dez mil
entre pausas
é quase nada.
No geral, quando você escreve um poema curto é comum que você rime. Esse parece ser um meio um tanto quanto padronizado de você gerar interesse ali dentro do seu texto, o que o salva de, pelo menos, morrer de inanição. Só que a quantidade de rimas idiotas que você encontra em poemas curtos... é de cair a bunda (o que não chega a ser exatamente um problema pois, como é sempre bom lembrar, é um princípio operacional da crítica o de que a maior parte dos poemas produzidos, seja de que poética for, é ruim). Esse poema de Monique Revillion pode servir como uma lição. Nós temos rimas em "-ada" como rimas principais, mas também temos rimas parciais com "-anças" e "-ausas". O que quero dizer é que ― e já aqui eu digo que, se por algum motivo você está achando que eu sou uma espécie de taradão dos cortes, alguém que acha que poema curto só é bom quando é mutilado ― bem, acho que posso provar o contrário dizendo que sim, eu achei que o poema de Monique, a princípio, podia acabar no quinto verso, mas, depois de refletir bem, consegui perceber o quão bem ela se saiu nos versos posteriores, e o como a inclusão de uma terceira rima em "-ada" (e uma toante com "-ausa") foi bem feita. A imagem das dez mil crianças refugiadas, certo modo exagerada (o que não quer dizer que não vá de encontro à realidade nem que não seja necessária para a manutenção do impacto lírico) desaparecendo em caminhos sem chegada é de uma força ímpar. Os caminhos sem chegada são muitos: basta você se lembrar do horror absoluto da imagem daquela criança morta numa praia europeia. Aquilo ali é um caminho sem chegada. A questão é que, se o poema de Monique se resumisse a isso, ele seria impactante, teria um recorte bom e eu até o consideraria bacana e provavelmente estaria falando dele aqui agora. Só que ela resolve adicionar mais um pouquinho. Uma voz certo modo irônica. É o pulo do gato. Todos os exemplos que estou esmiuçando aqui são exemplos do que eu entendo de inteligência poética a serviço do poema, e esse caso no poema de Monique é explícito.
Como assim contar até dez mil entre pausas? Bem. Nós sabemos que o fenômeno da imigração europeia não é uma coisa que só rolou ano passado. Se você achou que dez mil é um número exagerado, como até mesmo eu sugeri antes, a poeta contorna a situação e diz: contar entre pausas. Quer dizer que você tem que contar o fenômeno da imigração como um todo, como um fenômeno de recorrências históricas. E por isso é que é quase nada. E isso nos leva ao título. Números. As dez mil crianças que desaparecem em caminhos sem chegada. Elas desaparecem. Não simplesmente "morrem". Se elas desaparecem, elas desaparecem até das estatísticas. Aquele velho lance da estatística contribuir para desumanizar seres humanos. Só que esses números são entrecortados. Esse desaparecimento é ainda mais sutil e, graças ao fato de que ele persiste historicamente, ele é ainda mais brutal. Os números não são apenas os da dez mil crianças. São números que se protraem no tempo. Por isso é quase nada. Não só porque temos um fundo que presumimos ser muito maior. Mas também porque são vidas que desaparecem, que se tornam por si só um quase nada.
Se digo que a rima é bem colocada no poema, estou pensando no fato de que ela, por si só, graças a seu mecanismo rímico que não atinge perfeitamente todos os versos (nem mesmo imperfeitamente atinge), cria um jogo de pausas, pra não dizer no fato de que, como esses versos são rimados, eles são demarcados de maneira mais precisa do que se não fossem rimados (ainda mais tendo em vista que eles não possuem nada de caracterizadamente poético, por assim dizer). Aponto também que a segunda frase do texto consegue, graças à rima, se unir de maneira mais forte à primeira, e assim, embora seja um comentário de matizes irônicos que acaba se distanciando um pouco daquela imagem apresentada das dez mil crianças desaparecendo, ainda assim se liga, sonoramente, e se imiscui da dramaticidade dessa mesma imagem.
Eu poderia citar muitos outros exemplos de versos que também se calcam na rima como fator de surpresa mas que falham em níveis maiores ou menores. Compare o funcionamento da rima nesse poema de Monique com a rima no poema de Giovanna Venturini, por exemplo, ou no de José Santos, um e outro com um sabor que você pode até caracterizar como leminskiano, mas desde que você, ao fazê-lo, guarde para si a responsabilidade de efetuar um recorte da pior parte da obra de Leminski e de aceitar esse mesmo recorte como representativa dela (algo que, pelo menos de minha parte, eu julgo inaceitável).
O poema de Paulo Paniago, por sua vez, é um caso que consegue nos demonstrar uma inteligência compositiva também acentuada e até mesmo um senso de espaço para com o poema curto admirável. Veja:
Um dia após o outro é apenas
um dia após o outro apenas
Entre um verso e outro, a única coisa que muda é um verbo: "é". Mas o efeito é bem armado, e a impressão que fica é de que o poeta, graças ao recorte que operou no poema, conseguiu dizer exatamente o que queria dizer, além, claro, de ter se demonstrado interessante de modo suficiente. Você vai encontrar algo parecido nos primeiros versos do poema de Marcelo Adifa, mas sem uma construção tão apurada e cometendo a gafe de continuar quando já deveria estar terminando. O primeiro verso é uma definição rompida. Ou seja: o poeta nos diz que um dia após o outro é apenas... Apenas o quê? Nós temos que ir ao próximo verso pra saber. E o que encontramos surpreende: o mesmo verso, praticamente, só que mudando apenas o "é", que, no poema, possui a função de determinar, de definir o que representa um dia após o outro. O primeiro verso, graças a esse verbo, presentifica e consegue esmiuçar o que exatamente é o objeto de análise. Como o segundo verso é uma repetição do primeiro, praticamente, esse simples aspecto já nos parece demonstrar que o poeta quer dizer com isso que um dia após o outro é praticamente a mesma coisa: ambos contêm a mesma substância. Todavia, esse segundo verso já não conta com o verbo "é" que lhe vivifica e lhe coloca numa posição dominante, por assim dizer, e não subordinada. A questão é que, como o molde dos versos é uma expressão quebrada, e como o segundo verso também é quebrado ― ou seja, pra tentar ser o mais claro possível, como o segundo verso também termina com "apenas", nós temos como que o apontamento de um duplo caminho. O primeiro deles é no sentido de que, como esse "apenas" indica um rompimento, de modo que teríamos de conferir o próximo verso; e como o poema está no final, e portanto não tem próximo verso; então, por conseguinte, nós podemos pressupor (graças também ao fato de que foi exatamente o que aconteceu do primeiro ao segundo verso) que temos uma espécie de sequência infinita de encadeamentos da mesma expressão, como se o poeta, assim, de maneira bastante minimalista, estivesse querendo dizer que um dia após o outro é exatamente a mesma coisa sempre. Já o segundo sentido nos permite dizer que esse "apenas" tranforma a estrutura do poema numa estrutura cíclica, isto é, ele está dizendo, noutras palavras, que um dia após o outro é apenas... um dia após o outro. Só isso. Apenas isso. Nada de mais. E aí nós criamos uma espécie de estrutura cíclica que vai alimentando o poema de maneira indefinida, sem necessitar que o poeta discorra a respeito do assunto, uma vez que a simples disposição e construção do poema, a repetição que ele empreende e a supressão do verbo "é", consegue demonstrar para o leitor o que significa um dia após o outro. Em suma: suficiência.
O poema de Roberto Menezes:
Depois das duas
O saldo da noite
ramalhete de tulipas
vazias de chope.
A construção da imagem aqui é urbana, noturna e interessante na medida certa. O poeta não precisa ficar fazendo aquela espécie de movimento óptico barroco e exagerado que podemos enxergar no poema de Bruno Brum, um poeta que, de resto, possui uma poética eu considero até interessante, mas que, tomando como base o exemplar trazido à baila ― ainda mais se contraposto ao poema de Roberto Menezes ―, se torna o caso de poema que padece de excesso, o caso de um poema que quer se entupir de interesse nem tanto pra estimular o leitor, mas pra refletir, de algum modo, a riqueza da vida: algo que ele não consegue justamente por ter focalizado mal a cena e por ter acumulado pormenores, fazendo com que o poeta transpareça muito mais do que a matéria tratada, o que prejudica um, outro e, no frigir dos ovos, o poema como um todo. Assim, minha crítica aos excessos que reputo evidentes no poema de Bruno Brum não é no sentido de que na vida pessoas como a mulher retratada não existam, mas sim que esse enfoque cai com ênfase demais e esmiuçando uma descrição antes gratuita do que inteligente ou transparente que seja, indicando que a realidade que ocasionou a composição do poema recebeu uma intervenção pesada e artificial por parte do poeta. Em essência, como é uma fuga que decorre da passagem da matéria lírica pela pessoa do poeta, não estamos numa distância tão grande assim do poeta romântico tratando de sua amada num leito de rosas. O fato de que Bruno Brum tenha partido da realidade nua e crua e de que sua composição poética seja toda feita de coisas concretas não me parece mudar muito a ordem dos fatores, se a ordenação dessas mesmas coisas concretas, no saldo mimético, ao invés de ser capaz de compor um instante epifânico que necessitaria de uma consideração detida sobre a realidade enquanto múltipla e de uma consideração para com o próprio leitor, passa tempo demais repercutindo na óptica do eu lírico, tanto que, no fim das contas, a especificação toda que o poema opera serve apenas pra que você ache aquilo ali engraçado e diferente, sem qualquer centelha de interesse ou qualquer tipo de emoção que se demonstre convincente. Peca, pra voltar ao que comecei dizendo, por excesso.
No caso do poema de Roberto Menezes, muito mais equilibrado e revelador, o que é preciso ser ressaltado é o ramalhete de tulipas vazias de chope. Não creio que haja uma razão específica para o fato de serem tulipas, além do quesito de que, se o poeta tivesse escolhido apenas uma flor ou uma rosa, ele não teria ganho a beleza do fato de termos, diante de nós, em específico, uma tulipa, que, sonoramente, combina tão bem com o P de "chope" e o T de "ramalhete" (além do I de "vazias"). Oras: se estamos depois das duas e temos a indicação de um chope, nós só podemos deduzir embriaguez. Afinal de contas, como podemos conceber um ramalhete de tulipas vazias de chope? Não se trata de um ramalhete vazio de chope, pois, se assim fosse, então o "vazias" deveria concordar: "vazio". Não. São as tulipas que são vazias de chope. Preciso confessar que não estou conseguindo direito equacionar a imagem em minha cabeça, o que não quer dizer que eu deixe de reconhecer sua beleza lírica, em especial pelo fato de que as tulipas vazias de chope conseguem como que se harmonizar com a própria ideia de um chope (ou uns, ou vários chopes) depois das duas. Você não tem nada de excessivo aqui. Você não tem um autor batendo palmas e pulando a dois metros de altura pedindo que você preste atenção na cena lírica que ele retrata. Na realidade as coisas acabam funcionando assim mesmo: o texto literário nos ensinando a ver melhor a vida e a vida nos ensinando a ver melhor o texto literário. Um ramalhete de tulipas vazias de chope imprime uma sobriedade num ambiente que parece estar embriagado, ainda mais considerando que este é o saldo da noite. É delicado, mas não é simplesmente delicado como se numa redoma. Isso palpita. E é o que interessa.
Se digo que a rima é bem colocada no poema, estou pensando no fato de que ela, por si só, graças a seu mecanismo rímico que não atinge perfeitamente todos os versos (nem mesmo imperfeitamente atinge), cria um jogo de pausas, pra não dizer no fato de que, como esses versos são rimados, eles são demarcados de maneira mais precisa do que se não fossem rimados (ainda mais tendo em vista que eles não possuem nada de caracterizadamente poético, por assim dizer). Aponto também que a segunda frase do texto consegue, graças à rima, se unir de maneira mais forte à primeira, e assim, embora seja um comentário de matizes irônicos que acaba se distanciando um pouco daquela imagem apresentada das dez mil crianças desaparecendo, ainda assim se liga, sonoramente, e se imiscui da dramaticidade dessa mesma imagem.
Eu poderia citar muitos outros exemplos de versos que também se calcam na rima como fator de surpresa mas que falham em níveis maiores ou menores. Compare o funcionamento da rima nesse poema de Monique com a rima no poema de Giovanna Venturini, por exemplo, ou no de José Santos, um e outro com um sabor que você pode até caracterizar como leminskiano, mas desde que você, ao fazê-lo, guarde para si a responsabilidade de efetuar um recorte da pior parte da obra de Leminski e de aceitar esse mesmo recorte como representativa dela (algo que, pelo menos de minha parte, eu julgo inaceitável).
O poema de Paulo Paniago, por sua vez, é um caso que consegue nos demonstrar uma inteligência compositiva também acentuada e até mesmo um senso de espaço para com o poema curto admirável. Veja:
Um dia após o outro é apenas
um dia após o outro apenas
Entre um verso e outro, a única coisa que muda é um verbo: "é". Mas o efeito é bem armado, e a impressão que fica é de que o poeta, graças ao recorte que operou no poema, conseguiu dizer exatamente o que queria dizer, além, claro, de ter se demonstrado interessante de modo suficiente. Você vai encontrar algo parecido nos primeiros versos do poema de Marcelo Adifa, mas sem uma construção tão apurada e cometendo a gafe de continuar quando já deveria estar terminando. O primeiro verso é uma definição rompida. Ou seja: o poeta nos diz que um dia após o outro é apenas... Apenas o quê? Nós temos que ir ao próximo verso pra saber. E o que encontramos surpreende: o mesmo verso, praticamente, só que mudando apenas o "é", que, no poema, possui a função de determinar, de definir o que representa um dia após o outro. O primeiro verso, graças a esse verbo, presentifica e consegue esmiuçar o que exatamente é o objeto de análise. Como o segundo verso é uma repetição do primeiro, praticamente, esse simples aspecto já nos parece demonstrar que o poeta quer dizer com isso que um dia após o outro é praticamente a mesma coisa: ambos contêm a mesma substância. Todavia, esse segundo verso já não conta com o verbo "é" que lhe vivifica e lhe coloca numa posição dominante, por assim dizer, e não subordinada. A questão é que, como o molde dos versos é uma expressão quebrada, e como o segundo verso também é quebrado ― ou seja, pra tentar ser o mais claro possível, como o segundo verso também termina com "apenas", nós temos como que o apontamento de um duplo caminho. O primeiro deles é no sentido de que, como esse "apenas" indica um rompimento, de modo que teríamos de conferir o próximo verso; e como o poema está no final, e portanto não tem próximo verso; então, por conseguinte, nós podemos pressupor (graças também ao fato de que foi exatamente o que aconteceu do primeiro ao segundo verso) que temos uma espécie de sequência infinita de encadeamentos da mesma expressão, como se o poeta, assim, de maneira bastante minimalista, estivesse querendo dizer que um dia após o outro é exatamente a mesma coisa sempre. Já o segundo sentido nos permite dizer que esse "apenas" tranforma a estrutura do poema numa estrutura cíclica, isto é, ele está dizendo, noutras palavras, que um dia após o outro é apenas... um dia após o outro. Só isso. Apenas isso. Nada de mais. E aí nós criamos uma espécie de estrutura cíclica que vai alimentando o poema de maneira indefinida, sem necessitar que o poeta discorra a respeito do assunto, uma vez que a simples disposição e construção do poema, a repetição que ele empreende e a supressão do verbo "é", consegue demonstrar para o leitor o que significa um dia após o outro. Em suma: suficiência.
O poema de Roberto Menezes:
Depois das duas
O saldo da noite
ramalhete de tulipas
vazias de chope.
A construção da imagem aqui é urbana, noturna e interessante na medida certa. O poeta não precisa ficar fazendo aquela espécie de movimento óptico barroco e exagerado que podemos enxergar no poema de Bruno Brum, um poeta que, de resto, possui uma poética eu considero até interessante, mas que, tomando como base o exemplar trazido à baila ― ainda mais se contraposto ao poema de Roberto Menezes ―, se torna o caso de poema que padece de excesso, o caso de um poema que quer se entupir de interesse nem tanto pra estimular o leitor, mas pra refletir, de algum modo, a riqueza da vida: algo que ele não consegue justamente por ter focalizado mal a cena e por ter acumulado pormenores, fazendo com que o poeta transpareça muito mais do que a matéria tratada, o que prejudica um, outro e, no frigir dos ovos, o poema como um todo. Assim, minha crítica aos excessos que reputo evidentes no poema de Bruno Brum não é no sentido de que na vida pessoas como a mulher retratada não existam, mas sim que esse enfoque cai com ênfase demais e esmiuçando uma descrição antes gratuita do que inteligente ou transparente que seja, indicando que a realidade que ocasionou a composição do poema recebeu uma intervenção pesada e artificial por parte do poeta. Em essência, como é uma fuga que decorre da passagem da matéria lírica pela pessoa do poeta, não estamos numa distância tão grande assim do poeta romântico tratando de sua amada num leito de rosas. O fato de que Bruno Brum tenha partido da realidade nua e crua e de que sua composição poética seja toda feita de coisas concretas não me parece mudar muito a ordem dos fatores, se a ordenação dessas mesmas coisas concretas, no saldo mimético, ao invés de ser capaz de compor um instante epifânico que necessitaria de uma consideração detida sobre a realidade enquanto múltipla e de uma consideração para com o próprio leitor, passa tempo demais repercutindo na óptica do eu lírico, tanto que, no fim das contas, a especificação toda que o poema opera serve apenas pra que você ache aquilo ali engraçado e diferente, sem qualquer centelha de interesse ou qualquer tipo de emoção que se demonstre convincente. Peca, pra voltar ao que comecei dizendo, por excesso.
No caso do poema de Roberto Menezes, muito mais equilibrado e revelador, o que é preciso ser ressaltado é o ramalhete de tulipas vazias de chope. Não creio que haja uma razão específica para o fato de serem tulipas, além do quesito de que, se o poeta tivesse escolhido apenas uma flor ou uma rosa, ele não teria ganho a beleza do fato de termos, diante de nós, em específico, uma tulipa, que, sonoramente, combina tão bem com o P de "chope" e o T de "ramalhete" (além do I de "vazias"). Oras: se estamos depois das duas e temos a indicação de um chope, nós só podemos deduzir embriaguez. Afinal de contas, como podemos conceber um ramalhete de tulipas vazias de chope? Não se trata de um ramalhete vazio de chope, pois, se assim fosse, então o "vazias" deveria concordar: "vazio". Não. São as tulipas que são vazias de chope. Preciso confessar que não estou conseguindo direito equacionar a imagem em minha cabeça, o que não quer dizer que eu deixe de reconhecer sua beleza lírica, em especial pelo fato de que as tulipas vazias de chope conseguem como que se harmonizar com a própria ideia de um chope (ou uns, ou vários chopes) depois das duas. Você não tem nada de excessivo aqui. Você não tem um autor batendo palmas e pulando a dois metros de altura pedindo que você preste atenção na cena lírica que ele retrata. Na realidade as coisas acabam funcionando assim mesmo: o texto literário nos ensinando a ver melhor a vida e a vida nos ensinando a ver melhor o texto literário. Um ramalhete de tulipas vazias de chope imprime uma sobriedade num ambiente que parece estar embriagado, ainda mais considerando que este é o saldo da noite. É delicado, mas não é simplesmente delicado como se numa redoma. Isso palpita. E é o que interessa.
Existem outros poemas ao longo da coletânea que eu também destacaria, por razões diversas. O recorte ágil e a imagem instigante do poema de Samuel Luis Borges é um exemplo. Se não o comento com mais tardar, é por uma dificuldade da minha parte em equacionar direitinho como o poema funciona, embora sinta que ele seja um exemplo flagrante de inteligência compositiva. Oras: o corpo já é o nu. O olho é o que vê, independe de ser nu ou não. Se o corpo de algum modo veste o olho, é como se o corpo incutisse alguma coisa a esse mesmo olho, no sentido de: o olho vê o corpo e, de algum jeito, ele se manifesta, ele é vestido do que aquele corpo representa. "Nu", no último verso, pode ser lido tanto no sentido de que o olho é nu, ou seja, o olho enxerga pura e simplesmente, quanto no sentido de que teríamos uma vírgula implícita depois do terceiro verso, e na verdade o que temos é que o corpo nu veste o olho. O paralelismo sutil do poema, a maneira sóbria com que o verbo "veste" se isola no segundo verso e o final muito bem marcado com "nu" são dignos de nota. Acho que independente de você considerá-lo ou não um bom poema, pelo menos concordar que é um poema minimalista bem montado você consegue sem muitos problemas.
Um segundo exemplo seria o poema de Micheliny Verunschk, que, graças a esse pas de deux, e não simplesmente "balé", "dança" ou qualquer coisa do gênero, incute no leitor uma ideia exata. Parece-me que falta algo a esse poema, mas, enquanto eu não puder definir que diabos é esse "algo", nem que seja pelo menos um apontamento dele, então eu não posso dizer qualquer coisa que seja a respeito do poema no sentido de "depreciá-lo", ou simplesmente no de argumentar a respeito do porquê acho-o não tão satisfatório. Aqui já dá pra perceber que são raros os casos de poemas curtos em que o poeta pode se dar ao luxo de ir de encontro a uma expressão mais genérica que seja. Ele pode até fazer isso, mas desde que, à maneira dos haikaístas, saiba mesclar o que é geral e comum com o que é único e aparentemente irrepetível.
Existem também aqueles que não considero bons, e digo isso num nível que vai dos francamente ruins aos bobos e àqueles que poderiam simplesmente ter apresentado algo a mais. Destes últimos, que a bem da verdade não é correto chamarmos de "ruins" e sim de "medianos", eu dou como exemplos o de Mário Braz Manzi Muniz, que só consegue apresentar um interesse (no final das contas nem tão grande assim) graças ao choque que sentimos ao ler sobre a porra usada como cola no final, ou então a sensualidade às mínguas no de Nina Rizzi, e digo "às mínguas" tendo em mente por exemplo o poema de Pauluk, que parece pôr no chinelo qualquer sensualidade de qualquer outro poema da antologia. Dos francamente ruins, eu cito o de Kaio Bruno Dias (o poema parece uma postagem daquela página de facebook: histórias sem graça), Marco Cremasco (comparar o vento a uma criança, e ainda por cima falar do depois que ela cresce, é terrível, e a única coisa que merece uma estrela é o fato dele pelo menos não ter terminado rimando em "-ar"), Paulino Junior (mais outra crítica à vidinha que levamos, coordenada por mais um apanhado de siglas que no final das contas só esperam o próximo que as encontre diferentes), Chaul (é meio melancólico quando nem a brincadeira no final, algo como a última esperança do poema inteiro, não consegue chegar lá), Maria Balé (raros são os poemas curtos que realmente conseguem alguma coisa terminando em frase de efeito), Marcia Barbieri (embora eu confesse que o título possa gerar algum interesse, na prática é a mesma coisa que o de Paulino Junior: eu vejo até, graças ao tom afirmativo do poema, a mesma monotonia só que trilhando sendas distintas), José Inácio Vieira de Melo (depois de Joyce e Kaváfis não é possível que realmente queiram sustentar uma comparação entre a vida humana e a Odisseia e só), Wesley Peres (o autor é um prosador talentoso, mas essa evocação cabralina é mortalmente
entediante: minérios, concisão, negativas... oh céus: quando será que
alguém vai escrever um poema a Cabral que pelo menos não use exatamente as mesmas ferramentas de trabalho do poeta?). E claro: etc etc...
Já como exemplos de poemas bobos eu citaria o de Luci Collin, o de Luciano Ramos Mendes ou o de Katia Borges. O primeiro pode até ser que enseje, quem sabe, uma releitura saussuriana, anagramática do poema de Casimiro de Abreu, mas, de resto, é uma brincadeira que não tem mais nada a nos dizer. A não ser que seja inclusa num plano maior, quem sabe... Se bem que isso não anula o fato de que o aproveitamento do poema de Casimiro de Abreu é episódico, e se você acha o poema de Casimiro bom, então vai achar o de Luci Collin ruim (ou incompleto, ou simplificador demais, sem que adicione nada de iluminador na fonte de que parte), e se acha o de Casimiro ruim, vai se perguntar porque raios o de Luci Collin também tem que ser ruim e oferecer tão pouco. O de Luciano Ramos Mendes, do mesmo jeito: pode ser que, dentro de uma sequência maior, ganhe algum realce, ou então se você estiver disposto a ler no nome "Natalka" alguma referência maior e que me escapa. Mas e. e. cummings arrochado de forma meio marota ali nas rebarbas do poema... Isso é blasé. Sei que talvez o propósito do poema seja bem esse, mas isso eu não acho que muda uma palha do meu argumento: um poema ser insípido é uma coisa; outra totalmente distinta é que ele adeje a insipidez ou dela retire o tutano que lhe alimente. Em hipótese nenhuma escrever um poema bobo é um ganho. Só pode vir a ser um ganho se, num plano maior, os poemas que o acompanham de alguma maneira o sustentarem ou tiverem, no mínimo, preparado o terreno pra que aquele poema bobo se encaixe do jeitinho que tem de encaixar. Já o de Katia Borges brinca com uma referência a Drummond ("bonde") e outra a Elizabeth Bishop ("com mais critérios") que aparecem de maneira gratuita ao longo do poema, e, ao invés do poeta tomar as rédeas da situação e conduzir o poeta convidado a seu poema conforme os ditames do texto que ele, poeta, escreve, é como que o texto fosse tragado diante da presença maior, ou seja, você lê e fica com a impressão de que quem manda no poema é mais o convidado do que o poeta, pra não dizer na sensação de que Katia Borges encheu linguiça no poema só pra fazer essa referência sem eira nem beira aos dois poetas (em especial a Drummond).
Já como exemplos de poemas bobos eu citaria o de Luci Collin, o de Luciano Ramos Mendes ou o de Katia Borges. O primeiro pode até ser que enseje, quem sabe, uma releitura saussuriana, anagramática do poema de Casimiro de Abreu, mas, de resto, é uma brincadeira que não tem mais nada a nos dizer. A não ser que seja inclusa num plano maior, quem sabe... Se bem que isso não anula o fato de que o aproveitamento do poema de Casimiro de Abreu é episódico, e se você acha o poema de Casimiro bom, então vai achar o de Luci Collin ruim (ou incompleto, ou simplificador demais, sem que adicione nada de iluminador na fonte de que parte), e se acha o de Casimiro ruim, vai se perguntar porque raios o de Luci Collin também tem que ser ruim e oferecer tão pouco. O de Luciano Ramos Mendes, do mesmo jeito: pode ser que, dentro de uma sequência maior, ganhe algum realce, ou então se você estiver disposto a ler no nome "Natalka" alguma referência maior e que me escapa. Mas e. e. cummings arrochado de forma meio marota ali nas rebarbas do poema... Isso é blasé. Sei que talvez o propósito do poema seja bem esse, mas isso eu não acho que muda uma palha do meu argumento: um poema ser insípido é uma coisa; outra totalmente distinta é que ele adeje a insipidez ou dela retire o tutano que lhe alimente. Em hipótese nenhuma escrever um poema bobo é um ganho. Só pode vir a ser um ganho se, num plano maior, os poemas que o acompanham de alguma maneira o sustentarem ou tiverem, no mínimo, preparado o terreno pra que aquele poema bobo se encaixe do jeitinho que tem de encaixar. Já o de Katia Borges brinca com uma referência a Drummond ("bonde") e outra a Elizabeth Bishop ("com mais critérios") que aparecem de maneira gratuita ao longo do poema, e, ao invés do poeta tomar as rédeas da situação e conduzir o poeta convidado a seu poema conforme os ditames do texto que ele, poeta, escreve, é como que o texto fosse tragado diante da presença maior, ou seja, você lê e fica com a impressão de que quem manda no poema é mais o convidado do que o poeta, pra não dizer na sensação de que Katia Borges encheu linguiça no poema só pra fazer essa referência sem eira nem beira aos dois poetas (em especial a Drummond).
Enfim. Périplo feito. Repitamos: a antologia é bem montada. Você sempre fica com a sensação de que faltou coisa. Adriano Scandolara ou Angélica Freitas, dona de um dos melhores epigramas da poesia contemporânea ("diz-me com quem te deitas / angélica de freitas"), poderiam ter surgido. Só que: bléh. Esse tipo de reclamação é comum demais. E meio óbvia. Você nunca concorda com tudo. E o objetivo nunca é esse.