A versão de Bruno Tolentino para "O Cemitério Marinho", de Paul Valéry.

 


Em 94 a história da tradução brasileira presenciou uma polêmica um tanto quanto infeliz. Envolveu, de um lado, Bruno Tolentino e, do outro, Augusto de Campos. Pelo menos inicialmente. Assim como, pelo menos inicialmente, envolveu a versão de Augusto de Campos para o poema do escritor americano moderno Hart Crane, In praise for an urn. Quem quiser saber exatamente como rolou, e onde, e quando, pode conferir este útil artigo de John Milton, que narra os acontecimentos. Ou, caso você queira ir direto aos movimentos principais, você pode ler a publicação de Augusto de Campos para o Folhetim, em 07 de agosto de 94, reunindo suas traduções de Crane: A poesia sem troféus, aqui. Depois, leia o texto que Bruno Tolentino escreveu para o Estadão, em 03 de setembro de 94: Crane anda pra trás feito caranguejo, aqui e aqui (é preciso se cadastrar pra poder ampliar as imagens). A contra-resposta de Augusto e o abaixo assinado pedindo a demissão de João Moura Jr. (editor do Estadão) saíram primeiro na Ilustrada em 14 de setembro de 94, página 5, aqui. Numa edição de 17 de setembro do Estadão, nós podemos ler, além dessa mesma contra-resposta de Augusto e do abaixo-assinado, uma contra-contra-resposta de Tolentino; aqui. Um poema satírico escrito por Tolentino a respeito do assunto pode ser lido aqui, Ilustrada, página 5.

E você está aclimatado.

Pois muito bem. Toda pessoa que pretende fazer uma crítica precisa de pelo menos duas coisinhas essenciais: bom senso e boa vontade. Bruno Tolentino apresentou muito pouco dos dois ao longo de seu texto.

Augusto caracteriza sua tradução como:

(...) bastante livre, procura manter, além do sentido orgânico geral do poema, o "staccato" e o pique emotivo-conciso do original, perdendo alguns detalhes em  função da preservação do ritmo, mas ganhando, eu suponho, coesão estrutural e surpresa poética, inclusive com o acréscimo das rimas que o original não contém, de forma a fazer a versão um poema palatável em português e não o típico vale-tudo das traduções-dublagem rotineiras.

O discurso de bater de frente com traduções que se preocupariam com o sentido apenas do poema é comum no projeto tradutório dos irmãos Campos, sem constituir exatamente uma novidade (na verdade, dentro do plano das teorias a respeito da tradução de poesia esse é um tópico extremamente batido, quase tão antigo quanto a própria reflexão teórica...). A atenção à forma igualmente. O que intriga é Augusto caracterizar sua tradução como bastante livre. Não me lembro de em outro momento ele caracterizar uma tradução sua assim. Ele possui projetos mais livres, como suas intraduções ou os casos em que interpola poemas alheios no meio do poema traduzido, conforme fez com Donne e Lupicínio. Mas caracterizar uma tradução como bastante livre, pressupondo uma manutenção relativa e tênue do que o termo tradução implica consigo... eu realmente não me lembro. Talvez um senso comum sem bom senso possa dizer que as traduções dos irmãos Campos são de modo geral bastante livres, o que demandaria, logo de início, uma especificação de que traduções exatamente estamos mencionando, para que consigamos dimensionar o caso em questão. Não basta que nos ancoremos num juízo geral, uma vez que a atividade que estamos demandando, uma análise tradutória, requer por definição uma atenção específica e pormenorizada. Se com uma análise em particular já é preciso bom senso e boa vontade, com a análise e valoração de um percurso tradutório, eu não preciso nem dizer, o grau de bom senso e boa vontade é muito maior.

Talvez essa afirmação, de que as traduções dos irmãos Campos são por definição livres, possa se dar ancorada nos conceitos desenvolvidos em especial por Haroldo da tradução como uma transcriação, onde uma atenção excessiva seria dada à forma e o conteúdo propriamente dito seria posto em segundo plano. É verdade sim que em alguns momentos de sua teorização Haroldo dá a entendê-lo, como quando por exemplo ele menciona o semantismo do texto como servindo tão somente de baliza demarcatória na operação tradutória, expressão que, como bem nota Alípio Correia Neto, é contraditória uma vez que se o semantismo do texto é uma baliza, ele não pode ser, por conseguinte, "tão-só" (embora eu deva notar que o adjetivo "demarcatória" contribui pra que a ideia apresentada ganhe uma rigidez considerável). Mas este simplesmente não é o plano geral, haja visto que a relação de Haroldo com o semantismo do original ganha outros e outros nuances com o decorrer de sua teoria (por exemplo quando, na década de 90, ele aborda o tradutor como um transfingidor), e o enfoque dado pela teoria tradutória dos irmãos Campos não se passa por uma espécie de traduzir a forma custe o que custar. Esta seria uma maneira muito ruim de lermos a teoria que de fato deixaram, uma vez que o que propõem é simplesmente que se traduza entendendo que a tradução é um ato de criação de um texto que mantenha uma relação de isomorfismo (ou paramorfismo, como Haroldo preferirá posteriormente caracterizar) com o original. A contribuição teórica de Haroldo, aliás, nem reside tanto no conceito da transcriação, que por si só é uma ideia antiga, se formos realmente parar pra pensar. Concepções da tradução como criação e como envolvendo uma margem de liberdades são tão antigas quanto Dryden. Os tópicos propriamente inovadores da teoria deixada por Haroldo eu julgo residirem muito mais em sua leitura conjunta de Walter Benjamin e Roman Jakobson; mas isso já me faz fugir do escopo deste texto.

Augusto, que é o tradutor em questão, já a essa época já havia descrito o trabalho da tradução-arte (conforme ele gosta de chamar suas traduções, e que é um correlato do conceito de transcriação de Haroldo) como uma questão não só de forma, mas também de alma, motivado, nesse caso, pelas críticas empreendidas por Ana Cristina César a seu trabalho, que o caracterizavam como frio (embora esta seja uma opinião que Ana C. posteriormente revisitou, em especial ao travar contato com a versão de Augusto para a Elegia de Donne, musicada em parte por Caetano). Oras: se Augusto de Campos caracteriza sua tradução como livre, nós não podemos aplicar os mesmos critérios que aplicaríamos para uma tradução que se pretendesse fiel. Há um redimensionamento básico de concepções aqui. Isso faz parte do que disse anteriormente a respeito do bom senso e da boa vontade, haja vista fazer parte de uma das etapas mais básicas e centrais da análise de uma tradução: a análise do projeto tradutório.

O que Augusto diz é que, embora ele tenha tomado liberdade conteudísticas suficientes para que ele próprio caracterize sua versão como bastante livre, ele buscou manter algo do ritmo original do poema e algo de seu sentido orgânico geral. A crítica de Tolentino não parece ter percebido esse detalhe fundamental, ou não quis perceber, quem sabe. Ele acusa Augusto de Campos de, principalmente, não ter entendido o original em inglês (acusação que depois se transformaria na acusação de que os irmãos Campos não sabem inglês nem nenhuma outra língua da qual se propõem traduzir), de ter se aferrado a uma formalidade excessiva, antiquada e desnecessária, e de ter enxertado, em decorrência desse segundo defeito, palavras e expressões no original de Crane apenas pra fechar a métrica e rimar.

O problema é que, como estamos falando de uma tradução bastante livre, boa parte dessa relação com o original é solapada e nós ficamos, como eu disse, diante de um outro tipo de relação. Não estou dizendo que a crítica de Tolentino passe por longe do que se pode entender como uma crítica que sirva para uma tradução livre, o que, no caso em específico da tradução bastante livre de Augusto de Campos, seria tentar entender até que ponto ele realmente conseguiu manter o que se propôs (o ritmo, por exemplo, ou a tal versão palatável), bem como até que ponto ele criou um texto que, por mais liberdades que tenha tomado, seja um texto de interesse tanto autonomamente quanto em relação ao original. A crítica de Tolentino também toca nesses assuntos, e mesmo que algumas de suas acusações se tornem inúteis dentro do projeto tradutório de Augusto, isso não quer dizer que elas eventualmente não possam ter um fundo de verdade. Por exemplo quando Tolentino critica a tradução de Augusto da palavra suburbs por "subúrbios", explicando que o original de Crane não carrega consigo esse sentido, digamos, degradado que "subúrbios" possui em seu íntimo. Estivéssemos diante de uma tradução que não se pretendesse bastante livre e de fato poderíamos dizer com certeza que o tradutor errou aqui. Mas, como estamos diante de uma tradução bastante livre, isso não só se torna difícil de averiguar como se torna até mesmo despiciendo, pois, numa tradução bastante livre, um erro pode se tornar num aspecto interessante. Todavia, como Augusto incorreu numa espécie de falso cognato, e isso de maneira tão explícita, tão automática, então é razoável dizermos sim que ele não sabia o que o original dizia, embora isso seja de todo modo uma suposição que pode ou não ter relevância dentro da análise.

A acusação do formalismo é particularmente interessante pois Tolentino aproxima os concretos dos parnasianos, o que é algo no mínimo intrigante. Que correlação existe, afinal de contas? Oras: a correlação de se dar uma atenção excessiva à forma, totalmente oposta à índole de Tolentino. Tolentino não batiza o livro em que reúne algumas de suas polêmicas, em especial esta com Augusto, de Os sapos de ontem por acaso. Aqui ele está fazendo uma menção ao poema Os sapos de Manuel Bandeira, lido na ocasião da Semana de 22 e escrito contra Goulart de Andrade, sendo, posteriormente, tido como um ataque ao parnasianismo. Os sapos de ontem, os parnasianos, são os mesmos de hoje, os concretos, diz-nos Tolentino.

Afinal de contas, não é porque Tolentino escreve depois um livro com centenas de sonetos que ele é um parnasiano; ele de fato apregoava um retorno às formas clássicas, mas esse retorno não era nem obrigatório (a contra-reforma de Tolentino é mais funda do que isso, mesmo porque ele não pode ser caracterizado como um conservador tradicional, tradicional aqui entendido de acordo com a caricatura que, no debate político, se faz das posições conservadoras, algo como ler o passado de maneira acrítica), nem pressupunha aquela ideologia de culto à forma em detrimento do conteúdo, das ideias do poema. Logo mais eu chegarei nisso. A questão aqui é que a acusação de Tolentino era de que os concretos eram parnasianos enrustidos. Por isso o aferrar-se à formalidade do poema. Pois não é o simples fato de que os concretos tenham, em sua fase heroica, declarado o fim do ciclo histórico do verso que exclui por conseguinte qualquer maneira de aproximação deles com o parnasianismo. A bem da verdade, o único concreto que a essa época (década de 80) ainda mantinha uma posição integralmente arredia com o parnasianismo era Haroldo de Campos (embora, numa entrevista ao Roda Viva em 90, ele declare apreciar os sonetos Vila Rica e o Língua portuguesa de Bilac). Décio Pignatari gostava de recomendar aos outros que lessem Bilac para que assim aprendessem os rudimentos do verso (e no final de seu livro O que é comunicação poética ele recomenda o tratado de Bilac com Guimaraens Passos), pra não mencionar o testemunho de Bóris Schnaidermann, em vídeo compartilhado no facebook onde Schnaidermann lê um soneto de Bilac, de que Décio gostava muito de Bilac. Já Augusto, na década de 80, por duas ocasiões abordava o parnasianismo de maneira até elogiosa: em O Anticrítico, ele menciona que, embora os parnasianos como poetas não fossem dos mais realizados, eles ainda assim eram bons naquilo que se propunham (e Augusto cita até a boutade de que o nome de Bilac era um alexandrino francês perfeito, com hemistíquio e tudo mais), e, no prefácio de Linguaviagem, o poeta, se perguntando qual seria a utilidade de traduzir dois poemas seguidores de preceitos tão rígidos de versificação clássica (Herodiade de Mallarmé e La jeune parque de Valéry), diz que o contato com tais regras versificatórias podia ser útil para os poetas mais jovens, que parecem tê-las esquecido (isto é, Augusto está se referindo à poesia da geração de 70). Outros repiques a respeito do assunto podem ser lidos numa entrevista em 2008 para o IHU Online, aqui, em que Augusto, ao falar de traduções, sugere que o tradutor deva ser um parnasiano que não pode errar a métrica nem mesmo a rima. E de fato, com frequência Augusto se gaba dizendo que os concretos, ironicamente (ironicamente pois decretaram em sua fase heroica o fim do ciclo histórico do verso), são dos poucos que realmente sabem versificar.

Enfim. Périplo feito. Daqui já dá pra entender que a afirmação de Tolentino não é absurda. O que deve ser notado, porém, é que Tolentino acusa Augusto de querer encaixar tudo na métrica e na rima custe o que custar, de onde destaca passagens onde Augusto insere uma palavra no texto apenas pra que ela rimasse. Por exemplo, na terceira estrofe, "indistintos" com "instintos". Tudo isso pra Tolentino é um verdadeiro absurdo, e, estivéssemos diante de uma tradução que se pretendesse fiel, seria realmente. Mas é uma tradução bastante livre. E é muito provável que quando Augusto assim caracterizasse seu projeto tradutório, ele estivesse pensando justamente nisso, uma vez que não é de sua índole assim proceder. Nós possuímos estudos que conseguem comprovar (por exemplo o empreendido por Paulo Henriques Britto sobre a tradução de Augusto para a décima nona Elegia de Donne, um dos artigos mais fundamentais na fortuna crítica de Britto) que Augusto de Campos é um tradutor que não insere palavras pra rimar, mas, pelo contrário, já pensa em soluções que buscam manter o sentido do original e ainda assim rimar.

Existem outros problemas também ao longo do texto de Tolentino, afora o principal de que ele simplesmente passou por cima do projeto tradutório de Augusto. Ele parece ler com muita má vontade algumas soluções, que não me parecem tão ridículas quanto Tolentino apregoa. A tradução de "What the dead keep, living still", que Augusto traduz para "O que ainda vivo o morto abriga", não me parece esse bicho de sete cabeças que Tolentino diz ser. É verdade que a versão do próprio Tolentino parece ser mais clara, e, diga-se de passagem, a versão de Tolentino possui uma tendência clarificadora, o que explica o fato dela possuir uma estrofe a mais. O que quero dizer é que a versão de Augusto não é nenhum absurdo. É de maneira análoga que Paulo Vizioli e, recentemente, Luis Ariston Dantas (no reveillon do ano passado, na Revista Zúnai) o traduzem. Outro exemplo de passagem que parece ser mais picuinha da parte de Tolentino é quando ele implica com o fato de que Augusto traduz o gold hair do original por "a mecha de ouro", e não "as mechas", no plural.

Existem passagens em que ele me pareceu se aproximar de acertar o alvo. Como quando, por exemplo, ao falar sobre o adjetivo "baço" na penúltima estrofe, se pergunta o que diabos ele fazia ali se, antes, o rosto fora caracterizado como "terno". É realmente um problema, pois aponta para um ilogismo na tradução de Augusto, embora, tendo em vista que o rosto é caracterizado como "terno" na primeira estrofe e nós estamos na última, e isso após nós já termos até passado pelo crematório, não creio que essa transformação seja um absurdo tão grande assim. É possível e digo até que é plausível supormos que Augusto caracterizou o rosto como "baço" apenas pra efeitos de rima, como Tolentino acusa, mas o ilogismo apontado não me parece acentuado ― e o ilogismo no corpo do texto é uma acusação plausível para uma tradução que se pretenda bastante livre, muito mais do que a ideia do enxertar pra rimar, mesmo porque, afinal de contas, eu posso enxertar pra rimar e ainda assim continuar bom: a tradução livre pode me dar essa margem de liberdade...

Do mesmo modo, Tolentino se pergunta pela razão do verbo "remoía" na antepenúltima estrofe, falando do relógio. O original diz: "The insistent clock commented on". A versão de Augusto se encaminha no sentido de acentuar o tom de enfado da ocasião, quem sabe ampliando a ideia do relógio ser insistente, o que explica seu "remoía" e, logo depois, a inclusão de "obrigatório" (que parece ser também uma leitura expandida de proper to the time). No âmbito de uma tradução livre, estas transformações são aceitáveis, o que não quer dizer que sejam necessariamente as melhores. A motivação da tradução de Augusto no caso desta estrofe parece ter sido no sentido de enxergar no relógio do crematório uma coisa desagradável, à maneira daquele relógio na rapsódia de Eliot, um relógio que realçasse a falsidade daquelas exéquias como que impostas, o que uma leitura do último verso permite supormos. Não acho que seja lá uma boa transformação, uma boa tradução livre, uma vez que o caráter do relógio em Crane é menos acentuado, sendo, portanto, mais discreto, embora insistente, e, por conseguinte, parece realçar o clima de paz sem, por conseguinte, excluir notas de incômodo diante da morte e da própria situação de se estar num crematório enterrando alguém que, de resto, não deveria estar morto, uma vez que ostenta tanta vida (e daí o what the dead keep, living still). Crane diz: "And such assessments of the soul", um verso que Tolentino elogia e do qual tem razão ao apontar que Augusto nem de longe consegue um correspondente tão sonoro a tal verso (o que certamente é uma crítica séria pois nos faz duvidar do até que ponto a manutenção rítmica foi alcançada por Augusto, como prometido), e, logo depois, fala do relógio na sala do crematório comentando a respeito. A respeito do quê? O original de Crane dá a entender: such assessments, what the dead keep e, posteriormente, Touching as well upon our praise. Não há exatamente um tom de mofa como parece despontar na tradução de Augusto, graças a seu "remoía", seu "sem poupar", seu "obrigatório" (e a inclusão dos três pode ser também fundamentar uma crítica séria sobre até que ponto a tradução de Augusto é emotiva-concisa, como prometido) ― e sim um tom muito mais pacato que, uma vez que é insistente, incomoda.

A tradução de Tolentino possui bons momentos. Digo em especial dois. Veja-se:

          fez-nos pressentir que nos mortos
          algo da vida não termina

"algo" é indeterminado e, no entanto, pungente o bastante. É raro encontrar fórmulas assim. No geral, quando é pra especificar, nós literalmente especificamos, de modo que especificar tomando como base uma generalização é uma tacada de mestre. Cito também:

                                         Ainda assim,
          e tendo em mente o ouro sem fim
          de uns cabelos, já não lhe alcanço

          rever o rosto,

(Alguém com a mesma má vontade de Tolentino poderia escarnecer a respeito do ouro ser "sem fim"...)

Na mesma estrofe, Tolentino diz:

          sinto falta da seca estocada
          das abelhas contra o campo branco...

Enquanto o original diz:

          And miss the dry sounds of bees
          Stretching across a lucid space.

A conotação a um campo iluminado foi em parte perdida, pois não estou certo até que ponto um campo branco pode nos fazer chegar lá. De todo modo, enquanto no original as abelhas zumbem, Tolentino adiciona uma "estocada seca". E pra quê? Pra rimar com "vincada", versos antes? É uma opção de leitura. Se estivéssemos com má vontade. Mas nós podemos simplesmente dizer que essa seca estocada não precisa ser necessariamente uma ferroada. Pode ser, apenas, o zumbido mesmo, metaforizado de maneira até interessante. Embora, claro, nem Tolentino nem Augusto tenham conseguido soluções satisfatórias para o entrechoque dos sons secos nos versos 2 e 3 da estrofe (broken brow, dry) que se transforma na ágil aliteração em S do verso 4. Uma tentativa, quem sabe mais simples, poderia ser:

          Ainda, ao lembrar mechas de ouro,
          Já não vejo a fronte franzida
          E esqueço o seco som de abelhas
          Cruzando a zona reluzente.


§


Os movimentos seguintes da polêmica você já sabe quais foram. A tentativa infantil e ridícula de boicote por parte de Augusto, que eriçou os cabelos e, ao invés de argumentar igual gente, ou de simplesmente estampar um "Erm... Sabe, cara... Tradução bastante livre, sacou?", tentou despedir o pobre do João Moura que estava torto no seu canto. John Milton aborda muito bem o tom de autoridade que Augusto emplastra em seu texto, o que é algo muito contraditório se nos lembrarmos que a vanguarda concreta sempre ostenta um discurso de auto-marginalização. É um discurso que possui suas verdades, pois não creio que a poesia concreta propriamente dita tenha realmente se incorporado ao establishment brasileiro, embora, pelo menos, ela esteja numa situação melhor que a da Práxis, por exemplo. Todavia, apesar de ser assim com a poesia propriamente dita, a vanguarda concreta se estruturou no sentido de ampliar seu campo de atuação, ramificando-se também em crítica e tradução, e, no campo da tradução, alguns pressupostos teóricos dos irmãos Campos e especialmente sua prática tradutória foram extremamente influentes numa época em que a tradução literária no Brasil estava ganhando consistência (na verdade, até hoje são influentes, e digo de minha parte merecidamente influentes). Mexer com isso era uma maneira de mexer com os brios de Augusto, o que, aliado ao fato de que de modo geral os concretos nunca souberam como lidar com uma polêmica (a bem da verdade poucos sabem, mas tem alguns que você sabe que se caírem numa polêmica... é aquela vergonha alheia), deu no que deu.


§


Muito interessante isso tudo. Mas tem um problema.

E o Valéry?

Ele me ligou, isso no começo da postagem, dizendo que iria se atrasar. Mas já chegou. Senhores, Valéry. Valéry, senhores. O que temos pra hoje? Temos a tradução que Tolentino efetuou de O cemitério marinho, inclusa no livro O mundo como idéia, editora Globo, 2002, p. 337-340. Eu a incluirei logo abaixo, não precisa ficar desesperado.

Por que motivo Tolentino traduziu Valéry? Seguinte. A tese central, o fio da meada desse livro do Tolentino é mostrar como o mundo... Bem. O mundo se tornou uma espécie de ideia. A poesia foi progressivamente se afastando do mundo e o idealizando. Tolentino propõe uma forma de se criticar essa concepção ao longo de poemas que vão desde paráfrases até versões, poemas em inglês, francês... Enfim. Valéry é um caso particularmente interessante pois, como Tolentino aborda num poema escrito logo após sua versão, Valéry seria um poeta que teria encarado a Ideia, com I maiúsculo (o que Tolentino, no soneto que escreveu logo após sua versão, intitulado Post-scriptum a uma tradução, diz como "estranha estátua de isopor"), quando, a bem da verdade, a poesia de Tolentino é aquilo que Érico Nogueira muito bem caracterizou: uma poesia de ideias. Valéry seria um representante clássico justamente de quem teria enxergado o mundo como Ideia.

Daí a tradução de Tolentino. Quer dizer: tradução? Aqui entra uma ironia. Muito do que Tolentino acusou Augusto de Campos pode ser lançado sobre sua tradução de O cemitério marinho. Em especial no sentido de que em alguns instantes ele parece ter deformado, se fôssemos dizer com má vontade, o original de Valéry apenas pra manter a forma do original. Não chego a dizer que Tolentino tenha incorrido num formalismo excessivo. Suas rimas são até castiças, é verdade. Castiças, entenda-se: ele não se vale muito de rimas toantes, dando a entender que, entre torcer um pouco a ordenação dos fatores dentro do verso e adicionar uma rima toante, a primeira opção tenha sido preferível. E não digo com isso que a rima castiça seja necessariamente um problema; pode ser, pode não ser; mas, dentro da relação entre esta versão de Tolentino e um formalismo excessivo, base de sua crítica à versão de Augusto, a rima ser castiça ou não é um aspecto a ser abordado. (Eu, caso queira ter uma ideia melhor, não reputo as rimas que Tolentino aplica em sua tradução do poema de Crane como castiças.)

Não causa espanto nem me contradiz o fato de que ele tenha rimado "pombas" com "tumbas" no primeiro verso pois essa é uma rima clássica. Drummond fechou o último poema de seu livro Claro Enigma, o poema Relógio do rosário, com uma rima entre "pombas" e "tumbas", remetendo-nos evidentemente ao início deste poema de Valéry. É realmente complicado você conseguir rimá-los. Jorge Wanderley possui uma solução interessante: "Esse teto tranquilo, onde andam pombas, / Freme entre tumbas e pinhos, quando tomba / Pleno o Meio-Dia e (...)" (e Jorge Wanderley é um exemplo de tradutor que não possui, em suas traduções, rimas que eu consideraria castiças). Uma outra opção que me ocorre seria: "Esse teto plácido, onde anda a pomba, / Em meio ao pinheiro e à tumba ribomba". Aqui eu coloco a cesura na quinta sílaba, lembrando-me que, quando Valéry foi escrever o poema, ele se preocupou primeiro em achar a forma que traduzisse o que ele sentia, e por isso ele se valeu do decassílabo acentuado na 4 e na 6 (mais na 4, pois, na versificação francesa, o decassílabo pode ser acentuado na 4 e, depois, na 6, 7 ou 8). Entenda-se: ele queria um ritmo arcaico, uma forma arcaica, e por isso usou o decassílabo, que é um metro raro de ser encontrado em língua francesa, que se vale do alexandrino majoritariamente. Como em português o decassílabo é o metro padrão e como o alexandrino não é tão arcaico assim (o alexandrino foi largamente usado por nossos parnasianos), uma opção seria essa que dei: acentuar o decassílabo na 5, que era a forma de acentuação usada pelos trovadores.

A tradução de Tolentino vale-se de acentuações heroicas (6, 10) e sáficas (4, 8, 10). Existem, em número reduzido, decassílabos fora disso. Mas a escansão do poema confunde. Em alguns casos nós aplicamos sinalefas com certa extensão, mas, já em outros, não podemos aplicar, caso contrário não entra na métrica decassilábica. Por exemplo, no final da terceira estrofe, "Cumeeira de ouro, Teto arfante!" A sinalefa entre "de" e "ou-" é praticamente obrigatória. E no entanto Tolentino não a faz. Outro exemplo, na quarta estrofe, estaria em "Tão alto subo sobre o que admiro". A sinalefa entre "que" e "ad-" é evidente. Mas não é feita. Uma opção simples seria o poeta ter adicionado um "eu" após o "que", fazendo com que a sinalefa fosse feita e a métrica fechasse sem maiores problemas. Isto é: "Tão alto subo sobre o que EU admiro".

Mas eu mencionava aspectos da tradução. Vamos a alguns exemplos colhidos, de certo modo, ao acaso.

Na terceira estrofe, penúltimo verso, Tolentino diz: "Edifício sem dono". O original diz: Édifice dans l'âme. A tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia, em decassílabos brancos, que é no geral muito próxima do palavra-por-palavra e da sintaxe do original (em alguns momentos muito feliz na captação rítmica também), diz: "Um edifício na alma". A de Jorge Wanderley: "Um edifício em minh'alma". E a de Edmundo Vasconcelos, que toma muitas liberdades, entre elas a de dispôr o poema em formato monostrófico, fazer quebras de linha, traduzir em verso livre etc, diz: "Castelo n'alma". Mas por quê "sem dono", sendo assim? Seria pra rimar? O verso anterior diz: "cortinado de chamas sobre o sono". O original: "Tant de sommeil sous une voile de flamme". A tradução de Damasceno e Alvim: "Tanto de sono sob um véu de chama". Podemos até questionar a ideia de se transformar um véu num cortinado (ou a própria inversão de ênfase), mas vá lá, tanto um e outro cobrem.

Seria, portanto, o caso de dizermos que Tolentino despovoou o edifício do original apenas pra rimar?

Na décima estrofe, terceiro verso, lemos: "archotes fulcros / de pedra e ouro sob tantas árvores". O original: "Fragment terrestre offert à la lumière, / Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,". A tradução de Damasceno e Alvim: "Pouca de terra oferecida à luz, / Prezo este sítio, que dominam tochas,". A de Jorge Wanderley: "Terreno ofertado à luz matinal, / Pleno de chamas ― amo este lugar,". Pois bem. Como assim archotes... fulcros? Fulcro é ponto de apoio, sustentáculo, base. A ideia não é de todo absurda, eu posso dizer com boa vontade. Afinal de contas, o próximo verso da estrofe diz: "Composé d'or, de pierre et d'arbres sombres,". Ou seja: temos a ideia de composição. Daí "fulcros". Mas o que é composto de ouro, de pedras e de árvores, não é o archote. O archote ficou pra trás. Agora Valéry está falando do campo. Como o archote pode ser fulcro do ouro, da pedra...? Ver o verso que rima com este é instrutivo: "e tu, mar, cão fiel junto aos sepulcros." O original: "La mer fidèle y dort sur mes tombeaux!". Damasceno e Alvim: "O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos." Rimar com "sepulcros" não é fácil, nem mesmo se você lança mão de uma rima toante. Daí a solução de Tolentino...

Com esses dois rápidos exemplos eu digo que é mais correto tratarmos a tradução de Tolentino como uma tradução livre. Existem passagens onde, devido às necessidades de tradução da forma, o poeta acabou por embaralhar o poema e mudar a ordem dos fatores de maneira significativa. Oras: uma das bases da crítica de Tolentino às traduções de Augusto era a de que Augusto incorreria num formalismo excessivo e sem razão, fazendo com que ele adicionasse palavras ou, então, torcesse a sintaxe de seus versos. Torcer a sintaxe do verso é também uma base para muitas das críticas de Augusto a traduções alheias, pois, como Augusto reiteradamente diz, torcer o verso para fins rímicos é sinal de um tradutor que no final das contas não sabe rimar nem metrificar direito. Nesse sentido, sua concepção está próxima da de Tolentino (ambas, de resto, aproximando-se do dictum de Pound de que a boa poesia deve ser pelo menos tão bem escrita quanto a boa prosa, frase que, de resto, Tolentino sempre citava), embora Tolentino dê alguns passos a mais. O que intriga, contudo, é que torcer a sintaxe dos versos nem sempre é uma ideia abominável dentro de uma tradução (e isso pelo simples fato de que existem torções e torções, pra não dizer na própria liberdade que o original dá), e, entre reordenar os fatores dentro do verso para que tenhamos uma frase em sintaxe normal mas que, todavia, acabe incorrendo numa deformação da imagem do original... Bem. É um risco. É também uma torção. E, como venho dizendo, é irônico. Afinal de contas, a pergunta que fica é: essa mudança da ordem dos fatores dentro dos versos, essa mudança das imagens apresentadas, nós podemos caracterizá-la como gratuita? Em certos casos eu julgo que sim. Veja-se o último verso que citei, "e tu, mar, cão fiel junto a sepulcros". No próximo verso, que inicia a décima primeira estrofe, de fato Valéry chamará o mar de cadela. Mas por enquanto não, nem, muito menos, de cão fiel. É uma adição sem necessidade. Ele poderia simplesmente dizer: "e tu, mar, fiel junto a meus sepulcros." O mar dormir fiel junto a túmulos é uma coisa; a ideia do mar como um cão fiel é outra, possuindo, até, uma ideia de obediência implícita que me parece destoar muito do que de fato Valéry está dizendo.

Outro exemplo de como a versão de Tolentino embaralha a ordem dos fatores. Também na décima primeira estrofe, os versos 2 a 4: "Onde o zagal passa sozinho o dia / a apascentar seus mortos, seus cediços /  carneirinhos de mármore em teus flancos". O original: "Quand solitaire au sourire de pâtre / Je pais longtemps, moutons mystérieux, / Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,". Damasceno e Alvim: "Quando, sorriso de pastor, sozinho / Apascento carneiros misteriosos / ― Branco rebanho de tranqüilos túmulos ―". Jorge Wanderley: "Quando sozinho, em riso de pastores, / Calmo apascento ovelhas misteriosas, / Rebanho branco de tumbas quiescentes,". Tolentino exclui o eu lírico da jogada e transforma a marcação temporal numa marcação de espaço. Considero uma mudança radical. Não é que o eu lírico seja, em absoluto, um pastor das tumbas que o mar guarda, essas ovelhas misteriosas, mas, graças a seu sorriso, ele se compara e lhe ocorre a comparação. É uma ideia certo modo absurda, mas que aprofunda a desolação que o eu lírico sente, esse fazendeiro do ar. A estrofe diz: quando isso acontecer comigo, quando esse sorriso de pastor me fizer pastorear tumbas, afasta as pombas temerosas, os sonhos vãos, os anjos abelhudos. É um pedido que incide no próprio eu lírico. Ele não se despersonaliza e manda que isso aconteça lá onde o zagal, o campônio (Tolentino escolheu "zagal" certamente de olho na aliteração em Z com "sozinho", contraposta à aliteração em S dos versos seguintes, uma solução muito apurada) faça aquilo e aquilo, o mar afugente as pombas etc etc. Oras: a metáfora central é de que o mar é um cemitério. E o eu lírico está diante do mar. A relação de proximidade é clara. Não seria muito difícil para Tolentino se aproximar do original. Bastar-lhe-ia ter colocado algo como: "Quando eu, zagal, sozinho passo o dia / a apascentar meus mortos, meus cediços".

Não é tão simples dizer até que ponto as adições de Tolentino seriam aceitáveis ou não. A base de sua tradução não é nem tanto a adição, mas a reordenação dos fatores dentro dos versos, ou seja, a reordenação da imagem. Essa reordenação pode ser em maior ou menor grau, e pode necessitar, também em maior ou menor grau, de adições que ou são dedutíveis do próprio original (um efeito que, em tradução, é melhor chamarmos de "alargamento" do que propriamente de "adição"), ou que são dedutíveis dentro da nova ordenação da imagem. Veja-se, pra continuarmos na décima primeira estrofe, os dois últimos versos: "afugenta essas pombas, esses brancos, / altos sonhos, e os anjos metediços." O original: "Éloignes-en les prudentes colombes, / Les songes vains, les anges curieux!" Damasceno e Alvim: "Afasta dele as pombas temerosas, / Os sonhos vãos, os anjos indiscretos." A coloração do sonho como branco e como alto me parece, de certo modo, implícita na ideia das pombas e dos anjos, isto é, estando no céu. Embora um e outro sejam adições, e embora Tolentino não tenha traduzido a ideia de prudência das pombas nem de vanidade dos sonhos, me parecem adições até aceitáveis. Pelo menos dentro da imagem apresentada no texto, que, por seu turno, também me parece razoavelmente próxima da imagem original. Mais concreta, é verdade, transformando os sonhos em coisas brancas e altas ao invés de sonhos vãos.

São vários outros exemplos de embaralhamento da ordem dos fatores dentro dos versos, ou, então, de adições ao longo do poema, algumas delas incorrendo em posição rímica. Não quero, todavia, dizer que estamos diante de uma versão à qual devamos aplicar a mesma retórica bombástica e má vontade com que Tolentino usou em seu artigo contra a tradução de Augusto. Pelo contrário. Como dito antes, creio sim que a versão de Tolentino para O cemitério marinho é uma versão livre, embora eu diga que não tão livre quanto a de Augusto para In praise for an urn, e digo isso tomando como base que suas adições são ou se pretendem mais discretas que as de Augusto, decorrentes, em grande medida, mais do embaralhamento das imagens que acaba ocasionando adições que, muitas vezes, se camuflam, se harmonizam na nova disposição. E até vou além e digo que a versão de Tolentino, dentro do campo da tradução livre, é mais bem realizada que a tradução livre de Augusto, embora, a esse respeito, eu reconheça que os argumentos tendam a não serem suficientes uma vez que nós não só estamos falando de graus de liberdade distintos como também estamos falando de uma relação com dois originais muito distintos. De todo modo, a versão de Tolentino possui momentos altos, capazes de rivalizar com os melhores da versão de Augusto para Crane (desta, eu também destaco os que o próprio Tolentino realçara: "E a gargalhada de Gargântua" e, em especial, "Corcéis suaves do ciclone").

Os exemplos são muitos. Veja-se: "Como o fruto transmuda em gosto a polpa / e a delícia em ausência numa boca", "Aqui sorvo o devir que sou, fumaça", "Ó belo, ó verdadeiro céu, aos poucos / vou mudando" (um cavalgamento que realça e muito a força do verso), "sobre a mansão dos mortos pairo e passo", "Só que louvar tão claro sabre / supõe da sombra uma porção calada", "oscilo incerto / entre o vazio e o vir-a-ser mais puro", "Falso cativo das folhagens, mar / que róis ferralhas", "seus cediços / carneirinhos de mármore em teus flancos", "O inseto raspa a nítida caliça", "A morte disfarçada em cemitério", "A larva fia onde escorriam dores...", "o último dom lutando com a mão ávida", "que onda e ouro colorem por aqui?", "ardo em música e o dardo me atravessa" e a penúltima estrofe inteira.

Nem todos dos melhores, observados sob o prisma da tradução. Ou seja: alguns fugindo consideravelmente do original, mas, ainda assim, capazes de se sustentarem enquanto poesia, de forma independente. Existem também aqueles que me pareceram péssimos, como, por exemplo, "a uma sabedoria de algarismo", "um vasto sacrifício sobre a lousa" (lousa, isto é, argósia, lápide etc), "Cabeça exata de um coroamento", "não me deixa dormir de tanto amor!" etc etc. A transformação de "il faut tenter de vivre!" em "À vida! À vida! À vida!" não me impressionou nem um pouco; na verdade, essa última estrofe eu julguei bastante medíocre na versão de Tolentino; "página mal lida" para "mon livre" é fraco (mon livre se liga mais à ideia da escrita do que propriamente à ideia de leitura: logo, simbolicamente mais a um polo ativo do que passivo), assim como os "jorros magníficos", se contrapostos à vaga em pó que ousa saltar das ondas, é fraco. Posso dizer, de modo geral, que é como se a estrofe de Tolentino não tivesse captado as investidas ativas que o eu lírico faz ao longo dessa estrofe, caracterizando o livro como seu e ordenando a seus versos que voem, maneira análoga à ousadia da vaga que ousa saltar das ondas, como se, no fim, esse irrompimento de vida fosse um ataque final ao cemitério marinho, fosse, todo ele, um ousar viver. Também julgo fracas esse "focas da luz" no verso final (na verdade eu as julgo absurdas, e isso por um motivo muito simples e, mais uma vez, irônico: focs não é "focas" ― "foca" é phoque ―, mas, sim, como todos os outros tradutores souberam perceber, "velas"...), que, se funcionam sonoramente, é de maneira capenga e nem de longe incorrendo em algo que corresponda à força da remembrança cíclica do original: Ce toit tranquille.

Todos esses exemplos que mencionei, exemplos de traduções ruins. Mas em número bastante reduzido, de modo que reafirmo o que disse: a versão de Tolentino, no âmbito da tradução livre, possui um nível de excelência acentuado. A penúltima estrofe, que destaquei antes, por exemplo, é poesia da mais alta voltagem. Posso dizer que ela se afasta do original, embora não julgue ser um afastamento tão grande assim; é um afastamento que de novo se nutre de uma reordenação dos fatores do verso e que, nesse caso em específico, se vale de uma câmera, por assim dizer, até mesmo mais interessante que a do próprio original: Tolentino lança a imagem do sol como uma túnica salpicada de buracos, onde o detalhe realmente adicionado aqui é esse "salpicado", que dá um trabalho artesanal diferenciado à túnica (até mesmo um trabalho propriamente marítimo, se ligarmos "salpicado" a "sal" e, portanto, a "mar"), sobre a ideia da pele de pantera sob os cacos de milhares de ídolos do sol, onde, por sua vez, a adição reside nesses "cacos", uma vez que, no original, os milhares e milhares de ídolos do sol furam a clâmide do mar. Assim, é uma tradução um tanto quanto livre da passagem, o que demanda de nossa parte instrumentos de análise outros para que possamos apreciar melhor o objeto à nossa frente.

Fiquemos, todavia, com a versão. Não creio que ela seja do conhecimento de muitos, e presumo que, tal como eu quando a descobri, muitos até mesmo se surpreendam ao saber de sua existência.


O CEMITÉRIO MARINHO.
versão de Bruno Tolentino.
em: O mundo como ideia, Globo, 2002, p. 337-340.

Teto tranqüilo em que caminham pombas,
palpitação entre o pinhal e as tumbas,
ó mar recomeçado tanta vezes!
O meio-dia afina um fogo lento
e, recompensa após um pensamento,
o olhar se alonga sobre a paz dos deuses.

Um tear de relâmpagos consuma
diamantes rapidíssimos de espuma
e uma vasta quietude sela o abismo;
da causa eterna a pura tradução,
cintila o tempo e o sonho ascende então
a uma sabedoria de algarismo.

Firme tesouro, ó templo que a Minerva
ergues massas de calma e de reserva,
água inquieta e Olho cintilante,
cortinado de chamas sobre o sono,
ó meu silêncio!... Edifício sem dono,
Cumeeira de ouro, Teto arfante!

Templo do Tempo, inteiro num suspiro!
Tão alto subo sobre o que admiro
que meu olhar marinho é pouco humano:
um vasto sacrifício sobre a lousa,
tudo quanto cintila ascende e pousa
sobre a altitude um desdém soberano.

 Como o fruto transmuda em gosto a polpa
e a delícia em ausência numa boca,
morre a forma e mal dura o seu sabor.
Aqui sorvo o devir que sou, fumaça,
enquanto canta o céu à alma que passa
transfigurando as margens em rumor.

Ó belo, ó verdadeiro céu, aos poucos
vou mudando: do orgulho que há nos ocos
de uma indolência cheia de poder,
vou-me entregando ao teu brilhante espaço,
sobre a mansão dos mortos pairo e passo,
a sombra fragilíssima do ser.

E, a alma exposta às tochas do solstício,
sustenho-te o admirável edifício,
ó justiça da luz, cruel espada.
Reconheço a pureza que te cabe,
olha-a! Só que louvar tão claro sabre
supõe da sombra uma porção calada.

Só para mim, comigo apenas, perto
das fontes do poema, oscilo incerto
entre o vazio e o vir-a-ser mais puro;
aguardo os ecos da grandeza interna,
sombria, amarga e sonora cisterna,
o oco dentro da alma, ainda futuro.

Falso cativo das folhagens, mar
que róis ferralhas, entre o meu olhar
e a pálpebra uma brasa me procura;
vem falar de ossuários, vem da cinza
essa fagulha viva, e não precisa
dizer mais: são meus mortos que murmuram.

Sacro, onde um fogo-fátuo em fragmentos
ergue à luz seus terrenos ligamentos,
gosto deste lugar: archotes fulcros
de pedra e ouro sob tantas árvores,
tantas sombras dormindo sob os mármores,
e tu, mar, cão fiel junto aos sepulcros.

Cão esplêndido, espanta a idolatria!
Onde o zagal sozinho passa o dia
a apascentar seus mortos, seus cediços
carneirinhos de mármore em teus flancos,
afugenta essas pombas, esses brancos,
altos sonhos, e os anjos metediços.

Aqui até o futuro se espreguiça.
O inseto raspa a nítida caliça
e tudo arde e some no infinito
rumo à severa incógnita da essência...
Vasta é a vida bêbeda de ausência,
doce a amargura e límpido o espírito.

A morte disfarçada em cemitério
aquece e oculta os mortos e o mistério,
enquanto um sol no alto azul em fuga
pensa-se e se convém em pensamento.
Cabeça exata de um coroamento,
sou eu o vinco em tua testa, a ruga,

só tens a mim para conter-te o medo,
dúvidas e remorsos a que cedo
põem a falha em teu plácido diamante...
E eis que, noturno, um povo sob os mármores,
rente às raízes úmidas das árvores
associa-se a ti, inquietante;

ele é feito da ausência mais espessa,
a argila escureceu cada cabeça,
o dom da vida foi passando às flores...
Onde agora expressões familiares,
artes íntimas, almas singulares?
A larva fia onde escorriam dores...

E o gritinho feliz das raparigas,
os olhos sob as pálpebras amigas,
os seios brancos a brincar com o fogo,
o sangue entre os beicinhos de uma dádiva,
o último dom lutando com a mão ávida,
tudo vai sob a terra e entra no jogo.

E tu, minh'alma? Esperas algum dia
um sonho mais real que a fantasia
que onda e ouro colorem por aqui?
Cantarás quando fores só vapor?
Ou vês que tudo foge, que aonde for
vai morrendo a impaciência que há em ti?

Magra imortalidade do ouropel
na escuridão, horrível teu laurel
quer da morte fazer seio materno.
Piedosíssimo ardil, bela mentira!
Quem não recusa o crânio quando expira
o que sorria, quem não teme o eterno?

Arcanos pais, cabeças no regaço
da terra a que sustendes todo o abraço,
confundis nosso passo! O roedor,
o verme irrefutável não é vosso,
vós dormis: ele é meu, vive em meus ossos,
não me deixa dormir de tanto amor!

 Seria amor ou ódio? Só é certo
que seu dente fatal anda tão perto
que qualquer nome lhe convém, que importa!
Minha carne lhe agrada, em minha cama
sou dele porque vivo e ele me ama
e vê e quer e vem tocar-me à porta!

Zenão, cruel Zenão, Zenão de Eléia,
tu me feriste com o harpão da Idéia,
esse vôo hipotético no ar:
ardo em música e o dardo me atravessa,
solar, a tartaruga não tem pressa
e Aquiles corre sem ultrapassar...

Não! Não! De pé! Nas eras sucessivas
rompe as formas, meu corpo, e que enfim vivas!
Bebe, ó meu peito, de onde o vento nasce!
Um frescor vem do largo a devolver-me
a alma, o sal, a força... Cala, ó verme!
Espatifa-te, ó onda, em minha face!

Tùnica salpicada de buracos,
mar, pele de pantera sob os cacos
de milhares de ídolos do sol,
carne total e ébria, hidra turquesa
mordendo a própria cauda, ó correnteza
em tumulto e ao silêncio em tudo igual,

ergue-se o vento! À vida! À vida! À vida!
Lufadas viram a página mal lida,
voltam das pedras jorros magníficos,
voa, meu belo livro! E, onda a onda,
estilhaça-te, ó cúpula redonda
em que as focas da luz afiam os bicos!

§

LE CIMITIÈRE MARIN.

Ce toit tranquille, où marchent des colombes,
Entre les pins palpite, entre les tombes;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencée
O récompense après une pensée
Qu'un long regard sur le calme des dieux!

Quel pur travail de fins éclairs consume
Maint diamant d'imperceptible écume,
Et quelle paix semble se concevoir!
Quand sur l'abîme un soleil se repose,
Ouvrages purs d'une éternelle cause,
Le temps scintille et le songe est savoir.

Stable trésor, temple simple à Minerve,
Masse de calme, et visible réserve,
Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi
Tant de sommeil sous une voile de flamme,
O mon silence! . . . Édifice dans l'âme,
Mais comble d'or aux mille tuiles, Toit!

Temple du Temps, qu'un seul soupir résume,
À ce point pur je monte et m'accoutume,
Tout entouré de mon regard marin;
Et comme aux dieux mon offrande suprême,
La scintillation sereine sème
Sur l'altitude un dédain souverain.

Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée,
Et le ciel chante à l'âme consumée
Le changement des rives en rumeur.

Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change!
Après tant d'orgueil, après tant d'étrange
Oisiveté, mais pleine de pouvoir,
Je m'abandonne à ce brillant espace,
Sur les maisons des morts mon ombre passe
Qui m'apprivoise à son frêle mouvoir.

L'âme exposée aux torches du solstice,
Je te soutiens, admirable justice
De la lumière aux armes sans pitié!
Je te tends pure à ta place première,
Regarde-toi! . . . Mais rendre la lumière
Suppose d'ombre une morne moitié.

O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,
Auprès d'un coeur, aux sources du poème,
Entre le vide et l'événement pur,
J'attends l'écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!

Sais-tu, fausse captive des feuillages,
Golfe mangeur de ces maigres grillages,
Sur mes yeux clos, secrets éblouissants,
Quel corps me traîne à sa fin paresseuse,
Quel front l'attire à cette terre osseuse?
Une étincelle y pense à mes absents.

Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière,
Fragment terrestre offert à la lumière,
Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,
Composé d'or, de pierre et d'arbres sombres,
Où tant de marbre est tremblant sur tant d'ombres;
La mer fidèle y dort sur mes tombeaux!

Chienne splendide, écarte l'idolâtre!
Quand solitaire au sourire de pâtre,
Je pais longtemps, moutons mystérieux,
Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,
Éloignes-en les prudentes colombes,
Les songes vains, les anges curieux!

Ici venu, l'avenir est paresse.
L'insecte net gratte la sécheresse;
Tout est brûlé, défait, reçu dans l'air
A je ne sais quelle sévère essence . . .
La vie est vaste, étant ivre d'absence,
Et l'amertume est douce, et l'esprit clair.

Les morts cachés sont bien dans cette terre
Qui les réchauffe et sèche leur mystère.
Midi là-haut, Midi sans mouvement
En soi se pense et convient à soi-même
Tête complète et parfait diadème,
Je suis en toi le secret changement.

Tu n'as que moi pour contenir tes craintes!
Mes repentirs, mes doutes, mes contraintes
Sont le défaut de ton grand diamant! . . .
Mais dans leur nuit toute lourde de marbres,
Un peuple vague aux racines des arbres
A pris déjà ton parti lentement.

Ils ont fondu dans une absence épaisse,
L'argile rouge a bu la blanche espèce,
Le don de vivre a passé dans les fleurs!
Où sont des morts les phrases familières,
L'art personnel, les âmes singulières?
La larve file où se formaient les pleurs.

Les cris aigus des filles chatouillées,
Les yeux, les dents, les paupières mouillées,
Le sein charmant qui joue avec le feu,
Le sang qui brille aux lèvres qui se rendent,
Les derniers dons, les doigts qui les défendent,
Tout va sous terre et rentre dans le jeu!

Et vous, grande âme, espérez-vous un songe
Qui n'aura plus ces couleurs de mensonge
Qu'aux yeux de chair l'onde et l'or font ici?
Chanterez-vous quand serez vaporeuse?
Allez! Tout fuit! Ma présence est poreuse,
La sainte impatience meurt aussi!

Maigre immortalité noire et dorée,
Consolatrice affreusement laurée,
Qui de la mort fais un sein maternel,
Le beau mensonge et la pieuse ruse!
Qui ne connaît, et qui ne les refuse,
Ce crâne vide et ce rire éternel!

Pères profonds, têtes inhabitées,
Qui sous le poids de tant de pelletées,
Êtes la terre et confondez nos pas,
Le vrai rongeur, le ver irréfutable
N'est point pour vous qui dormez sous la table,
Il vit de vie, il ne me quitte pas!

Amour, peut-être, ou de moi-même haine?
Sa dent secrète est de moi si prochaine
Que tous les noms lui peuvent convenir!
Qu'importe! Il voit, il veut, il songe, il touche!
Ma chair lui plaît, et jusque sur ma couche,
À ce vivant je vis d'appartenir!

Zénon! Cruel Zénon! Zénon d'Êlée!
M'as-tu percé de cette flèche ailée
Qui vibre, vole, et qui ne vole pas!
Le son m'enfante et la flèche me tue!
Ah! le soleil . . . Quelle ombre de tortue
Pour l'âme, Achille immobile à grands pas!

Non, non! . . . Debout! Dans l'ère successive!
Brisez, mon corps, cette forme pensive!
Buvez, mon sein, la naissance du vent!
Une fraîcheur, de la mer exhalée,
Me rend mon âme . . . O puissance salée!
Courons à l'onde en rejaillir vivant.

Oui! grande mer de délires douée,
Peau de panthère et chlamyde trouée,
De mille et mille idoles du soleil,
Hydre absolue, ivre de ta chair bleue,
Qui te remords l'étincelante queue
Dans un tumulte au silence pareil

Le vent se lève! . . . il faut tenter de vivre!
L'air immense ouvre et referme mon livre,
La vague en poudre ose jaillir des rocs!
Envolez-vous, pages tout éblouies!
Rompez, vagues! Rompez d'eaux réjouies
Ce toit tranquille où picoraient des focs!