silvamoonlake
Na última postagem do ano eu gostaria que voltássemos para o Finnegans Wake. Não tem nada de mensagem escondida ou qualquer coisa do gênero. Pode abaixar o fogo sacro da auto ajuda, portanto. O Finnegans Wake muito provavelmente deve ter lá sua passagem que funcione pra colocar num cartão de ano novo. Não me lembro de nenhuma agora mas com certeza deve ter. O Finnegans Wake tem de tudo. O que quero mesmo é que olhemos para essa obra e, nesses instantes finais do ano, saboreemos um pouquinho o que o tal do livro tem a nos dar. Não tem gente que passa o ano comendo um bom prato de comida ou saboreando (eca!) um vinho? Pois então. Blasé por blasé, vamos saborear o Finnegans Wake. Ou, ainda, caso você nunca o tenha saboreado (ou fez cara feia quando provou, o que meio que dá na mesma), caso você veja no Finnegans Wake apenas uma obra feita para loucos descabelados que gostam de dar cintadas nas costas (e veja bem: não estou negando nada disso, desde que o cinto seja de nylon), então que aqui nós tenhamos, juntos, uma derradeira forma pra que eu busque te convencer de que o Finnegans Wake é legal e que não é obra do demônio.
Vamos lá.
É possível dizer que o Finnegans Wake é muitas coisas (e se você quiser falar "uma bosta" ou "um embuste", então fale agora que a gente ainda te escuta ― aliás, eu até noto que "bosta" e "embuste" têm, juntas, uma sonoridade legal). Mas, se lembrarmos que aquilo que o linguista russo Roman Jakobson caracterizou como a função poética da linguagem, ou seja, quando a mensagem expressa se volta para si mesma e, entre as várias consequências disto, ela como que realça sua concretude, sua imagética, sua sonoridade; se considerarmos esta descoberta do linguista russo, então nós podemos certamente dizer que o Finnegans Wake é armado de função poética até os dentes. O próprio Joyce, é sempre bom repetir, dizia que o Finnegans Wake é pura música, e aqui no caso específico que estamos tratando, uma única e mísera frase do famoso capítulo 8 (também intitulado Anna Livia Plurabelle), em que Joyce buscou uma forma de fazer com que as palavras denotassem ao máximo o fluir das águas, isto se torna particularmente importante.
Do ponto de vista sonoro, a frase que lhes trouxe é pródiga nesse sentido. Ela fala basicamente de um pólo feminino e de um pólo masculino. O feminino é um tanto quanto sedutor, ao passo que o masculino, estrangeiro, já é mais áspero. O masculino vai até o feminino buscando a fecundação. Esse o cerne da frase como um todo, e, considerando que estamos no primeiro livro da obra, o livro dos patriarcas e das matriarcas, digamos assim, essa fecundação originária é fulcral. A candura do pólo feminino é retratada, claro, pela escolha dos adjetivos mas também pela forte aliteração brandamente apresentada, em específico uma forte aliteração em S e em L. Já o caso do pólo masculino é acompanhado de uma aliteração em T e em R, com vogais mais surdas e uma linguagem mais dura no geral. Depois disso nós temos um trecho considerável sem nada tão marcante assim até que chegamos a uma aliteração em F na palavra forstfellfoss que se faz acompanhar do S muito bem marcado em plash across.
Dos compostos criados por Joyce para a frase, sauntering, silvamoonlake, Curraghman e forstfellfoss são os que merecem atenção. Em sauntering nós temos tanto o sentido de perambular quanto, conforme nota do próprio Joyce, a palavra francesa s'aunter, aventurar-se. Em minha tradução, parti da opção dada por Schüler, que escolhi mais por um critério fonético, tornando-a em verbo, como no original, e dobrando o N para indicar que estamos tratando de Anna Livia Plurabelle, algo que, se eu realmente fosse fazer uma tradução integral da obra (depois, claro, de ganhar na Mega Sena), eu procuraria fazer sempre, embora, neste caso, seja algo certo modo despiciendo pois creio que após 6 páginas de leitura do capítulo (ele inicia na página 196), o leitor já deva ter sacado que é sobre Anna Livia Plurabelle que ele fala (basta lembrar, afinal de contas, o início: "O tell me all about" blábláblá).
silvamoonlake é uma palavra que demonstra de maneira magnífica o poderoso alcance dos neologismos de Joyce. Aqui nós temos silva, que em latim é bosque, temos silver, temos moon e temos lake. A ideia é a de uma lua de prata que brilha no lago de um bosque. Haroldo de Campos tem razão quando diz que isso é praticamente um haikai (ou é isso ou é título de algum filme da Xuxa). Tenho certeza que qualquer haicaísta que se preze bateria palmas para uma solução assim. Pois, como se não bastasse, visto que o leitor pode ainda assim não estar muito convencido da coisa toda, nós ainda temos uma forte efetividade estética no plano da frase como um todo, haja vista que é uma palavra que como que serve de desaguadouro de toda a aliteração em S e em L da passagem até então.
Não foi fácil traduzir isso. A versão de Augusto de Campos me parece supremamente boa. Todas as formas que pensei em manter a tal da lua não deram certo, de maneira que, pra não repetir o neologismo de Augusto, tendo em vista que eu o considero meio que o ápice da frase (e, bem, a coisa tem que andar, não é mesmo?), ao invés da ideia de uma lua pálida brilhando no lago, parti pra ideia, apenas, de um lago no meio de um bosque iluminado pelas estrelas. Aqui, claro, a ideia de silver se torna inútil. E assim eu cheguei a "silvestreláguas", que traz também a ideia de águas silvestres, ideia, diga-se de passagem, que acaba até mesmo eclipsando o compósito "silva" + "estrelas", de modo que tive que adicionar um apóstrofo aí no meio pra que, quem sabe, o leitor se atentasse um pouquinho.
Curraghman já é uma palavra mais chata. O site do finnwake.com diz, a respeito de curragh:
marshy waste ground; spec. the proper name of the level stretch of open ground in Co. Kildare, famous for its racecourse and military camp + Joyce's note: 'curragh: barony' + churchman - a clergyman + currach (Anglo-Irish) = curach (Irish) - coracle, a small wickerwork boat.
Aqui eu basicamente dei só mesmo um jeito de chunchar esse curragh no meio da tradução (um dos principais motivos é a referência ao condado de Kildare, geograficamente específica), já aproveitando também o "nd" do composto "Curragh'dvindo", isto é, advindo de "Curragh".
forstfellfoss, ainda seguindo as notas fornecidas neste site, traz consigo florest, first, fell, que em alemão é carne e se esconder, fossefald, que em dinamarquês é cachoeira, e -foss, que em norueguês também denota cachoeira. Como se pode ver, muitos significados referentes à ideia de cachoeira, o que, numa espécie de metafórica do texto joyceano, parece indicar um ato sexual, opção que, diga-se de passagem, foi a seguida por Schüler. Minha tradução meio que tentou dar uma mesclada no restante da frase também. "Desembocar" me parece, dependendo do uso que se faz, ter uma conotação sexual que pode até ir de encontro ao que o próprio original de Joyce nos permite, haja vista que, de resto, ele não é explicitamente sexual nesse sentido (neste capítulo de Joyce, mais e mais vou me convencendo de que os sentidos aquáticos são mais importantes até do que os sexuais ou religiosos, por exemplo). O problema é que, embora aqui nós tenhamos uma menção aquática e uma menção corpórea (a ideia de embocar, beijar, sei lá, algo ou alguém), nós ainda ficamos sem a ideia da cachoeira, o que eu resolvi adicionando o "em cascata" logo depois para também corresponder, seguindo no caso a ideia da expressão "efeito em cascata", o across her do original. plash, sendo assim, que funciona como uma espécie de onomatopeia, acabou ficando de fora. A forte aliteração do original também foi esmorecida numa fraca aliteração em C.
A versão de Augusto de Campos é bem interessante. Ele mantém boa parte dos estratos de sentido do original, colocando o "enfiou" ali no meio mesclado ao "champinhando" e desmembrando o "primeiro". De fato, uma solução muito hábil, e posso dizer sem muitos problemas que bem melhor que a minha.
Outras palavras que seriam dignas de nota seriam por exemplo trudging, que é o mesmo que caminhar de maneira incerta como por exemplo num terreno lodoso, lurching, caminhar de forma não muito firme, vacilante, lieabroad, que é morar na casa de outra pessoa ou então em outro país ("ferramundo" de Augusto de Campos é uma boa opção; "andarulho" também, ambas muito melhores que meu mero "viandante", que buscou captar apenas a sonoridade em "and-", e digo isso, de serem melhores, em especial tendo em vista que elas se encaixam bem na sonoridade dessa parte da frase, contrastante com a anterior), e rustle, que é o mesmo que se mover com grande energia (transformei isso em "só-ia", ou seja, "só ir" e também "soía", do verbo "soer", isto é, costumava). making his hay for whose sun to shine on é o mesmo que fazer seu caminho, seguir em frente, mas também com um sentido relativo a colheita (hay) que Augusto de Campos soube captar. peats be with them é uma forma de se dizer "a paz esteja com eles!", como se eles (os carvalhos) tivessem morrido, mas dando aqui também a entender, graças a peat, que eles estão se decompondo. O killing Kildare também faz referência ao Kildare foxhound, clube de caça famoso no condado de Kildare (por isso meu "ir em caça").
E acho que é isso. Os irmãos Campos notam que, no final do livro, uma frase de cadência muito parecida com esta surgirá: "Um ágil álacre lépido leve corre currículo curso d'álgo galgures saltitando", ou, no original, "Jusy a whisk brisk sly spry spink spank sprint of a thing theresomere, saultering". De todo modo, nós temos aqui uma frase que, espero, dá a dimensão do minucioso trabalho joyceano, que, no caso, não se limita simplesmente a uma espécie de etimologia esquisita e excêntrica, mas, antes, possui uma efetividade artística pelo menos em três níveis muito bem explorados: o nível sonoro, o nível imagético e o nível que dimensiona a construção vocabular a fim de que ela contribua pro enredo ou pro andamento do texto.
Como ainda não possuo comigo a tradução de Dirce Waltrick do Amarante, mais uma vez não a incluo.
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Capítulo 8, p. 202
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She was just a young thin pale soft shy slim slip of a thing then, sauntering, by silvamoonlake and he was a heavy trudging lurching lieabroad of a Curraghman, making his hay for whose sun to shine on, as tough as the oaktrees (peats be with them!) used to rustle that time down by the dykes of killing Kildare, for forstfellfoss with a plash across her.
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trad. eu.
Ela era tão só tenra e tênue e branca e branda e esquiva e esguia e esbelta coisinha então, flannando, em silv'estreláguas e ele era um áspero andárduo andeciso viandante Curragh'dvindo, correndo em busca de um lugar ao sol, rijo como os carvalhos (todos deter-i-orem por eles!) só-iam naquela época em caça dos dyques de Kildare, pra desembocá-la em cascata.
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trad. Augusto de Campos.
em: Panorama do Finnegans Wake, editora Perspectiva, 1971, p. 57.
Ela era só uma tímida tênue fina meiga mini mima miga duma coisinha então, saltiritando, por silvalunágua e êle era um bruto andarulho larábil ferramundo dum Curraghman, cortando o seu feno para o sol cair a pino, tão rijo como os carvalhos (deus os preteje!) costumavam ruflar pelos canais do fortífero Kildare, o que primeiro florestfossenfiou champinhando através dela.
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trad. Donaldo Schüler.
em: Finnicius Revém, volume 3, Ateliê, 2001, p. 269.
Ela era só uma jovem miúda pálida fofa tímida lépida leve coisinha então, flanante junto a um silvaprataenluaradolago e ele era farto forte percorria os mares de barco a refletir os raios do sol, rijo como os carvalhos (repousem em paz!) costumava rumorejar então junto aos densos diques de Kildare, preparando a úmida conjunção com ela.