Um dedo de prosa na dedada dos outros.
Qual é a boa? Macaquinhos, performance que ganhou a internet recentemente. Não, não vou colocar imagens. Vai que denunciam meu querido bloguinho. O que você precisa saber é: armou-se um escarcéu a respeito dela. Creio que podemos ficar, a título esclarecedor e informativo, com uma notícia no Correio Brasiliense (aqui) e uma postagem no Catraca Livre (aqui), que conta com uma entrevista com o grupo.
Como sou dono de um dos blogs mais antenados e descolados da internet (sqn), vou dar meu humilde e rápido pitaco a respeito do assunto.
É o seguinte. Podemos nos encafifarmos, logo de início, sobre se isso seria realmente arte ou não ― e resmungarmos, com veemência, quem sabe, a respeito da decadência dos tempos. Ou então podemos cair na pista falsa de que o governo injetou dinheiro nisso e arrepiarmos os cabelos, o que nos levaria a uma questão mais espinhosa a respeito da grana governamental, ou seja, nossa grana investida em arte ― isso é legal ou não? e se é bacana que isso ocorra, então como deve ocorrer?
Não quero entrar no mérito da segunda questão, que demandaria de minha parte reflexões que não sei se as tenho em estado de postagem, por assim dizer. Prefiro uma rápida parada a respeito da primeira pergunta. Uma performance assim. É arte?
Nós todos sabemos que não há um conceito tão acessível de arte. Mesmo se nós fechássemos as comportas e pensássemos um conceito de arte apenas com base no que indubitavelmente assim consideramos, mesmo assim a resposta não seria nem um pouco simples, visto que a impressão que temos é a de que estamos diante de um todo inapreensível de coisas. Como reuni-las debaixo da cumbuca de um conceito que a todos equivalha?
É preciso, antes de mais nada, pensarmos o que podemos esperar de um conceito de arte. Se por algo assim nós tivermos uma espécie de pretensão neoclássica-normativista de que um conceito de arte seja a instância final do que realmente é ou não arte, que ele seja límpido, claro ou qualquer outra coisa do gênero, então é melhor depormos armas. Precisamos entender num conceito de arte uma maleabilidade que não vamos encontrar em outros conceitos que conseguem abordar fenômenos menos dependentes, de maneira tão arraigada, da cultura. Isso quer dizer, na prática, que todo conceito de arte deve lidar com zonas cinzentas consideráveis e tão incômodas quanto as zonas esclarecidas pelo conceito, quanto que a mecânica desse conceito precisa ser própria, isto é, precisa ser uma mecânica funcional que nos ajude a abarcar e abordar o fenômeno estudado.
Penso, por exemplo, na dinâmica dos conceitos na filosofia do segundo Wittgenstein, dentro da ideia de semelhanças entre membros de uma família. Se eu me perguntar o que todos os jogos do mundo têm em comum, eu dificilmente vou chegar a uma resposta, mas se eu começar a pensar características que vão se entrecruzando entre os membros de uma família, aparecendo às vezes aqui mas não ali, então nós temos um mecanismo bastante eficaz para que pensemos nesse tipo de conceito. Do mesmo modo, um conceito de arte não pode ter uma pretensão definitiva; ele deve sempre lidar com uma espécie de desfoque e com o fato de que depende mais de um raciocínio em conjunto do que um raciocínio individual. Ou seja: um conceito de arte não conseguirá abarcar todo o fenômeno. Ele pode esclarecer bem certa parte dele, mas não outra. Oras: pelo fato de que não esclareça essa outra, ele se torna inútil? Não. Isso também faz parte do que pressupus como maleabilidade de um conceito de arte.
Se quisermos voltar à performance propriamente dita, os comentários que fiz não parecem ter nos levado muito adiante. Se digo que, por exemplo, pensar a arte é pensar com vistas a uma multiplicidade de conceitos maleáveis, como se possuíssemos uma caixinha de ferramentas com muitos conceitos aplicáveis a muitos casos, então é de se pensar se nós não poderíamos, com base no conceito certo, por assim dizer, validarmos qualquer coisa como arte. É uma possibilidade, sem dúvidas, mas que entretanto pressuporia, além da própria força de convencimento do conceito trazido à baila, que todos os conceitos de arte que viéssemos a trazer em nossa caixinha de ferramentas estão em pé de igualdade, o que não é bem uma verdade. Existe um cerne duro do que se entende por arte. Arte é um conceito realmente difícil de ser abarcado em sua totalidade, pois existem obras que se localizam numa zona cinzenta ― e isso desde reações dúbias a respeito de se aquilo ali seria arte ou não ("posso até aceitar que seja, olhando desse modo...") até reações veementes ("tá brincando que isso daí!..."). Mas nós temos uma concepção do que é arte. Podemos não saber expressá-la muito bem ou conceituá-la; mas nós sabemos com uma parte considerável do fenômeno. Assim, um conceito de arte que pareça lidar bem com obras localizadas numa zona cinzenta mas não com aquelas no cerne duro... Bem. Um conceito desses dificilmente será aceito como válido.
Claro que aqui você pode dizer que nós podemos ficar só com esse cerne duro e descartar o resto. Mas é preciso cautela mesmo aqui, pois isso seria excluir coisas demais. E não só isso: um cerne duro num conceito de arte não é, ainda assim, algo tão simples de ser definido; na verdade, dum ponto de vista puramente conceitual ele se vale de categorias muitas das vezes mais abstratas do que os conceitos tentados por teóricos individuais. A diferença reside em que ele se refere a um conjunto de obras que nós consideramos como arte, isto é, ele exclui aquelas obras dúbias, aquelas obras que ficam na parte cinzenta, de modo que esse cerne duro deve ser entendido mais como uma zona das obras artísticas que nossa sociedade consolidou entendimento como sendo sem dúvidas arte, do que como um conceito pronto que vagaria pela cabeça das pessoas. Pode até ser esta última opção, mas só se nos lembrarmos que, se realmente um conceito desses habitasse o inconsciente de uma sociedade, ele seria abstrato a um nível tal que deveria ser necessariamente expresso e, portanto, voltaríamos à problemática aludida de se conceituar arte. Pra não dizer, claro, que um conceito de arte não deve apenas olhar pros abismos do inconsciente, mas também, e principalmente, pra própria realidade da arte.
Assim, o cerne duro é mais certo no sentido de que se embasa em obras que nós chamamos de arte sem titubear. Mas, se ficássemos só com esse cerne duro, como eu disse, nós basicamente dependeríamos de um recorte artístico que pode ser grande a ponto de se tornar indesejável, ou seja, se quiséssemos manter uma lógica mínima no conceito nós teríamos que excluir obras que uma fatia considerável poderia chamar de arte (penso em específico em obras de vanguarda que tiveram importância capital para a arte ou que tem se revelado produtivas e enriquecedoras), ou então teríamos de redundar numa espécie de postura arbitrária, considerando o que é arte sem que tivéssemos lá muito rigor com as possibilidades abertas por cada passo numa conceituação (ou seja, o famoso "se isso entra, então aquilo pode entrar também; mas se aquilo pode entrar e no entanto não parece ser, então como ficamos?" etc). E não só isso. Se ficássemos só com esse cerne duro, nós reduziríamos possibilidades interpretativas que dependam de conceitos novos de arte que lancem sondas e iluminem essas tais zonas cinzentas. Isso se dá não só no tentar entender essa zona cinzenta. A arte como um todo está sempre se referindo e se direcionando ao cerne duro. Mas como estamos num todo cultural, fenômenos de repercussão de leituras são intensos, o que, trocando em miúdos, quer dizer que estudar as zonas cinzentas de um fenômeno artístico pode ser também estudar o próprio cerne duro.
Não podemos simplesmente descartar essas possibilidades de leitura. Mesmo porque, na prática, e também como eu disse, esse cerne duro de um conceito de arte se liga muito mais a um conjunto de obras que consideramos como arte sem titubear do que de fato a um conceito pronto pra uso. De certo modo, dependermos desse cerne duro não é excluirmos a atividade teórica. Ela ainda está de pé. Nós só estaríamos nos referindo a um alvo em específico, e, como eu disse, na prática todo conceito de arte que se queira válido tem que levar em conta esse alvo. Alguns, corajosos e necessários, podem querer ir além. Serão bem sucedidos se conseguirem ir além e não aquém. Mas não é porque levam não-sei-o-quê em consideração que deixam de ser sérios. Muitas vezes, aliás, quem parte desse raciocínio simplista é quem não empreendeu de fato a aventura teórica, limitando-se a uma noção vaga de arte e se ancorando neste cerne duro de maneira irrefletida (muitas vezes anacrônica também).
Quero dizer, em outras palavras, que, embora para pensarmos a arte nós precisemos de uma gama de conceitos maleáveis, essa gama de conceitos e mesmo essa maleabilidade vão de encontro ao que comumente pensamos a respeito da arte (por exemplo dimensão humana, imaginação, emoção etc etc) pois essas coisas são como linhas de força que sustentam nossa concepção, certo modo desconjuntada e abstrata (mas nem por isso menos funcional justamente por esses cabos de força), de arte.
Mas ok ok. Pude avançar um pouco, mas não creio que tanto. Passos de formiguinha, sempre. Este seria o caso de trazermos teorias a respeito da performance e pensarmos até que ponto o espetáculo em questão se encaixaria nelas. Mas isso, claro, se quiséssemos uma versão inocente do funcionamento de uma empreitada teórica, haja vista que teorias artísticas não servem pra que nos deem conceitos que nós posteriormente usaremos como uma espécie de fôrma sobre o fenômeno artístico, descartando os rebotalhos. Teorias são formas de se enxergar e pensar o fenômeno artístico que devem dar ensejo a manifestações teoricamente tão inventivas, por parte do leitor, quanto o ato inicial do teórico propriamente dito. Assim, não é que, com uma cartela de teorias a respeito de performance na mão, nós fôssemos ter um arsenal bacana pra que realmente viéssemos a saber a resposta para tão intrigante questão a respeito do espetáculo da dedada no rabo. Na verdade é: com essa cartela na mão, nós teríamos alicerce para que prosseguíssemos o trabalho teórico que toda teoria sempre estende a seu leitor. Se o leitor pega essa teoria e a empacota no caixotinho de um objeto, ele não está aceitando a aventura que a teoria tem a lhe oferecer.
Quero ser um pouco mais direto. Espetáculos performáticos se valem de vias corpóreas como linguagem. O corpo é uma linguagem. Quer dizer que o corpo comunica coisas, e que, se eu pensar o corpo em certas situações, esse corpo pode estar nos dizendo algo, ele pode ser capaz de dar ensejo a uma estrutura comunicativa ― ou seja, ele sai do estágio de nos dizer uma mensagem para o estágio de possibilitar que, mais do que isso, nós, que o contemplamos, pensemos mensagens com base naquilo.
Não acho um absurdo dizer que uma roda de pessoas explorando o cu uma das outras é uma forma de linguagem. Não consigo imaginar como não seria. Mais do que existir uma mensagem por trás (esse tipo de procura por "mensagens por trás" é uma das coisas que mais estragam a fruição artística...), os corpos usados na apresentação, da forma como estão, da forma como se movimentam, da forma como se relacionam, permitem que os interpretemos, que construamos leituras. Sei que é muito difícil, vendo um espetáculo desses, você não adotar uma postura conservadora, mas é preciso manter o siso no lugar. Estamos diante de uma situação em que o corpo, tornado linguagem, consegue nos comunicar coisas ― e nós conseguimos atribuir coisas a esse corpo, entre elas emoções, sentimentos etc etc. Você pode pensar que essa é uma forma estranha de pensar a arte, pois retiraria toda a beleza e mesmo a dimensão moral da arte. O que eu teria a argumentar a respeito disso é: a arte não precisa nem de beleza e nem de moral; se formos realmente pensar a arte, é muito melhor que venhamos a pensá-la de maneira que transcenda esse tipo de coisa, caso queiramos realmente nos posicionarmos no cerne da arte e não num dos aspectos da arte que pode surgir.
Pois na verdade, nós tendemos de maneira muito fácil a ridicularizar a performance das dedadas. Eu mesmo acabei de fazer isso, percebeu? Uma roda de pessoas explorando o toba umas das outras. O problema é que isso atravanca a discussão. Sabemos que não é só isso. Deveríamos saber, pelo menos. Você pode rir horrores de todas as piadas que um negócio desses tem a oferecer, e eu falo isso porque a mão do trocadilho chega tá tremendo. Mas um instante de seriedade terá de bater à porta. Pois senão, é como se reduzíssemos a obra apresentada a uma simplificação grotesca e, com base nessa simplificação grotesca, pretendêssemos continuar a discussão. Ué. O piso em falso aqui é evidente: o mesmo raciocínio pode ser aplicado a toda e qualquer obra que pinte na jogada, por mais sacrossanta que seja sua fama. Isto é: se digo isso da obra ali, controversa, eu também posso dizer, por exemplo, que o Davi de Michelângelo é um homenzarrão de pau pequeno. Qualquer pessoa com bom senso diria que estou reduzindo a estátua; que ela possui mais coisas etc etc. Ainda que eu chegue a dizer que a performance não é arte e o Davi sim (o Davi certamente está no que chamei de cerne duro de um conceito de arte), eu precisarei esmiuçar minhas considerações e não poderei, caso realmente queira argumentar que nem gente, aceitar que um lado possa ser ridicularizado e o outro não.
Pois isso do "possuir mais coisas" também incide aqui, oras! O fato de estarem numa roda é algo que pode nos dizer algo, por exemplo. Faz com que todos explorem o cu uns dos outros; faz com que nenhum esteja em posição de vantagem, por assim dizer. O mesmo com o título da performance, Macaquinhos (sem artigo), sugerindo que os atores se comportam iguais macacos (e nós todos sabemos que um macaco enfia o dedo no rabo sem pudor nenhum) e que nós, como sabemos pelo slogan, somos todos macacos. Suponho, até, que os movimentos que são feitos e a velocidade são maneiras importantes de se ter em mente também, o mesmo podendo ser dito de saber se a performance tem outros atos etc etc. Tudo isso pode nos dizer algo, tudo isso pode servir para que embasemos uma leitura.
Se é incômodo ou não estarmos num ambiente desses vendo isso, aí já são outros quinhentos. Mesmo porque não bastaria que eu viesse à frente e desse meu testemunho pois eu sou praticamente um eremita e não saio de casa pra nada. A situação parece ser uma materialização da piada pronta que conhecemos bem: um crítico de arte encasquetado com uma obra que, faça-me o favor!; se isso daí for arte, então eu nem sei o quê (algo como por exemplo a exposição O olho do cu, aqui). É como se ele estivesse procurando pelo em ovo. Mas de novo aporta o problema que apontei antes, visto que, se realmente acreditamos que a situação de alguém ir num espetáculo desses e colocar o Tico e o Teco pra funcionar, buscando empreender leituras a respeito do que assiste; se realmente acreditamos que uma situação dessas é a materialização daquela outra, então nós estamos, implicitamente (explicitamente, eu diria), pressupondo tanto a ridicularização da obra em si quanto uma espécie de falência da crítica ou coisa do gênero. Ou seja: nós chegamos com mais bagagem do que a requerida para realmente ler a situação, o que implica dizer que nós chegamos abarrotados de penduricalhos que não abrimos mão nem a pau ― e assim nós não discutimos uma palha sequer do assunto.
Pois a esse respeito, mesmo que venhamos a anuir que isso aí na nossa frente não é uma obra de arte, e por motivos nem sempre muito claros ― às vezes, simplesmente porque achamos um absurdo ou porque achamos que está distante demais daquele cerne duro de um conceito de arte que me referi anteriormente, uma explicação que parece boba mas que eu reconheço que possui sua força ―; mesmo que venhamos a anuir a respeito disso, é muito duvidoso que simplesmente joguemos o espetáculo no lixo depois deste movimento inicial. Oras: se concluímos que não é arte, isso não quer dizer que a leitura acabou; quer dizer que ela mudou de campo e que, por surpreendente que possa parecer, até ganhou aspectos novos, haja vista que, se uma obra se diz arte mas nós não consideramos que ela seja, então ela pressupõe, pelo menos, uma aproximação com a arte conforme nós a entendemos, e essa proximidade, ainda que malograda, é significativa.
Uma anuência de nossa parte a respeito de que aquilo ali não é arte pode implicar que estamos sendo moralistas. Ou fiscais de cu. Não acho que as coisas sejam tão simples assim. O cu é um tabu? Sim, é. Mas será que se, arvorado nesse tabu que seja, eu chegar à opinião de que aquilo não é arte ― será que com base nisso eu estarei sendo um conservador, um enrustido ou qualquer coisa do gênero? Acho que não. As pessoas parecem enxergarem esse espectro de conservadorismo como uma alavanca que só possui duas posições: extremo-A e extremo-B. Não é assim. Posso ser uma pessoa um tanto quanto liberal e ainda assim me incomodar, profundamente, com a performance. Claro que aqui eu entendo que existem dois tipos de incômodos: o incômodos da pessoa que entra, senta e começa e assistir ― e o incômodo de quem entra, senta, começa a assistir e termina e ainda assim fica incomodado. Se acuso alguém de conservador, parece ser muito mais no segundo sentido.
Afinal de contas, a arte serviria pra quebrar tabus. Se a arte quebra um deles e a pessoa insiste em não quebrá-lo, isso como que comprovaria primeiro a eficácia da obra de arte ― pois incomodaria as pessoas mais conservadoras e tornaria saliente o tabu evidenciado ― e segundo o caráter obtuso da pessoa que assiste e mantém sua opinião. Claro que só seria realmente assim se supuséssemos que o leitor que insiste em não quebrar o tabu seja um leitor obtuso até as tripas, o que nem sempre é verdade. Ele pode ser obtuso com aquela questão mas não com outras. Ou pode ser até um leitor bem liberal que simplesmente achou sua obra um negocio incapaz de quebrar qualquer tabu que seja (quando muito, espicaçar os corcéis do conservadorismo). Ou pode ser um leitor que também acha aquele tabu uma coisa a ser quebrada, mas o associa a um todo maior, de modo que quebrar aquele tabu, em específico, conforme a obra parece incutir no fim das contas, esse leitor enxerga como uma bobeira, uma perda de tempo, uma iconoclastia terapêutica ou simplesmente uma coisa insuficiente diante de um complexo maior de questões sociais.
O que me parece complicado, partindo desses pressupostos, é uma série de questões. A primeira que eu levantaria é que sair por aí quebrando todo e qualquer tipo de tabu não é uma coisa lá muito legal. É preciso ter uma certa consciência ao se quebrar um tabu. Ou que tabu quebrar. Ou como. Existem tabus numa sociedade que são importantes. O tabu pode ser visto como um ponto frágil. Um ponto revelador. Mas não necessariamente um ponto hipócrita. Assim, e aqui estaria o cerne de meu argumento, não é porque você toca num tabu e parece estar às vias de quebrá-lo com um golpe de karatê que o que você fez se tornou relevante e os outros é que são uns quadrados da vida; não, não, meu amigo; tabus são pontos delicados de uma sociedade, e a estratégia de choque é apenas uma das estratégias de se tratar e de se evidenciar esse tabu. Existem outras, por incrível que possa parecer (a arte é mesmo impressionante, não?). Sei que muitos parecem achar que a única forma de você tratar um tabu é escancarando e colocando o véu da hipocrisia abaixo. O problema é que, muitas vezes, esse ato de rasgar o véu da hipocrisia diz muito a respeito de quem o rasga também, pra não dizer que um ato de veemência desacompanhado de inteligência e efetividade artística e estética parece redundar numa maneira de realçar o status quo, haja vista que um tabu não é, literalmente, uma espécie de tábua esperando ser marretada e rachada ao meio, mas, antes, uma sociedade com pontos específicos que possuem uma sensibilidade mais acentuada, o que pode implicar, também, contra-respostas, recrudescimentos e ostracizações.
Afinal de contas, quando eu falo que um tabu não necessariamente quer dizer que devemos destruí-lo ou que estamos diante de uma sociedade obtusa e podre, eu penso em coisas como a eutanásia, que é tabu. Claro que pode parecer forçado querer colocar a eutanásia e o cu em pé de igualdade, e eu não o faria, de todo modo; mas a conclusão a que quero chegar é a de que não é porque a sociedade fez cara de nojo e se espantou com sua obra que ela é uma sociedade quadradona que merece uma paulada artística na cabeça. Que nada. Tabus, eu disse, são pontos sensíveis, e não é simplesmente da noite pro dia que deixamos isso de lado.
Além do mais, a estratégia de se abordar um tabu não se dá apenas com base no choque e no escancará-lo. Como eu também disse, existem outras, e eu o digo pois muitas vezes o que se pretende é usar a arte como uma marreta anti-tabus, algo que, por irônico que possa parecer a seus defensores, resta como sendo, na bateia, uma maneira fundamentalmente moral de tratar a arte: buscar atacar a moral de uma sociedade é sempre um modo de aprimorá-la para que ela aceite certas coisas; se meu caminho é o de acusar a moralidade reinante como conservadora e opressora, e busco, com a obra de arte desembainhada, despedaçar isso e fazer com que as pessoas passem a aceitar certa coisa, em essência esta postura não é lá muito diferente de se acusar uma corrupção moral de uma sociedade e pretender, com a obra de arte servindo de argamassa, edificar uma moral mais digna. (E aqui, claro, você já deve ter percebido que tanto uma postura quanto outra possuem suas eventuais benesses e malefícios.)
Mas a obra de arte não precisa ser só uma marreta biônica revestida com material anti-tabu. Ela pode ser uma marreta contra qualquer outra coisa, o que, em absoluto, eu não vejo como problemas, isto é, o você instrumentalizar a arte, adicionar-lhe algum propósito. O que me incomoda é quando isso se torna uma desculpa para deixarmos de analisar a efetividade artística e estética da obra, ou seja, quando um propósito qualquer que seja, moral ou não, parece se sobrepor ao que a obra enquanto um todo artístico tenha a nos oferecer. Aí é quando o debate parece se enfraquecer tanto de um lado quanto de outro, pois, enquanto pro lado de lá da corda as pessoas transformam a obra num espantalho retórico, do lado de cá as pessoas acham que quem não gostou é porque é obtuso, e que pelo simples fato de que uma obra cumpra tocar a tabuleta do tabu, mesmo que de forma canhestra e estapafúrdia um objetivo, ainda que lhe roçando a saia, ela foi bem sucedida e deve ser aceita etc etc.
Esse segundo lado da corda é igualmente simplificador, possuindo, até, uma espécie de reizinho na barriga que quer empurrar tudo pela goela dos outros e quer desses outros uma anuência absoluta com a lavra produzida numa tarde de improvisos. Não dá pra ser assim. Não é porque a arte incomoda, caso queiramos chegar a uma outra fórmula mágica, que ela se torna boa, e isso pelo simples motivo de que uma obra pode incomodar com coisas terríveis. Já imaginou uma obra que teça loas explícitas ao machismo mais nefasto? Pense, por exemplo, na grotesca cena da manteiga com Marlon Brando e Maria Schneider. Pois é.
Assim, é difícil para quem não viu o espetáculo falar a respeito do mesmo. Você fica sem ter como lê-lo propriamente falando. A resposta que seus idealizadores deram ao Catraca Livre, de que o espetáculo é uma metáfora pro desequilíbrio geopolítico mundial, não convence nem um pouco. Na verdade, achei pra lá de estapafúrdia. Parece aquele papo furado de muitos artistas ao dizerem que a obra é uma crítica ou metáfora de alguma coisa que envolva capitalismo de um lado ou desintegração social do outro. É como se quisessem passar uma demão de profundidade e palavras proparoxítonas na coisa toda. De novo o problema que apontei: a obra é reduzida a um objeto sem dimensão artística nenhuma. Não é nem que a mensagem conta mais, pois quando falo em mensagem artística eu já pressuponho as estruturas que a permitem e o ato de formar uma; é que, isso sim, o pano de fundo por trás de mensagem vale mais. Tudo bem que nós não somos obrigados a aceitar essa leitura. Se digo que ela é estapafúrdia, eu penso em como, por exemplo, a obra pode metaforizar a condição desigual da geopolítica do planeta se estamos num círculo de pessoas onde todas enfiam o dedo e recebem dedadas, ou então como poderia ser isso se estamos num circulo onde todas possuem a liberdade de explorar o cu umas das outras. Não creio que algo assim realmente haja na condição geopolítica planetária... Mas a interpretação dos autores do espetáculo é uma. A nossa pode ser outra. Se é assim com outras obras de arte e mesmo com outras coisas em nossa vidinha, não faz sentido que com a performance em questão deixe de ser. Se aceitássemos que o pudesse, então nós não só estaríamos simplificando a performance como estaríamos retirando possibilidades de que esse espetáculo oferecesse mais a nós, leitores. A gente cortaria sem dó nem piedade suas asas e ordenaria: "voe! me impressione!" Uma estratégia desonesta, não preciso nem dizer.
E aqui não tem nem muito o que ser dito, ou seja, a respeito da explicação dos autores. Não que a obra depender demais de coisas além dela mesma seja um problema; a obra de arte pode muito bem encontrar em fatores externos a ela uma fonte semântica, e o choque do público pode sim ser explorado como uma; mas para isto, é necessário que a repercussão desses fatores externos encontre guarida na obra de arte propriamente dita; é necessário que a obra seja, ela própria, algo bem acabado, caso contrário nós incorremos na efeméride, na curiosidade histórica. A obra de arte tem que ser obra antes de tudo. Se é o caso ou não de Macaquinhos, repiso o que disse: não vi. Fico sem poder comentar.
Na verdade, mesmo que eu pudesse ver eu não sei se iria, o que você pode até interpretar como uma resposta final e reveladora de que no frigir dos ovos a performance é mesmo uma bosta e o que eu disse anteriormente foi ressalva e bundamolice. Se você quiser realmente chegar até aí, ok, se achegue. Não acho que isso seja nem um pouco conclusivo. Sou uma pessoa que realmente não lida muito bem com a nudez, com o sexo e com uma boa parte dos tabus de nossa sociedade. Se isso quer dizer que sou uma pessoa quadrada, uma pessoa conservadora, em tudo o que o termo conservador possua de demoníaco... Oh céus, pode ser que sim. Pode ser, simplesmente, que não sei lidar com o incômodo causado por obras que o escancarem. Nada disso, repito, implica em canalhice do meu lado ou mesmo em necessidade de mudança. Um dia, podem dizer, o cu deixará de ser tabu. É, pode mesmo. Mas também não. Pode ser que deixe, mas que volte a ser. A sociedade nem sempre caminha pra frente, e, quando falamos de tabus, nem sempre quebrar um tabu quer dizer caminhar pra frente ou pra trás. Alguns tabus precisam de discussões mais amplas que sua literalidade. Assim, a naturalização do cu pode ser perfeitamente incorporada no âmbito de uma sociedade machista, por exemplo. Pra não dizer que o cu, eu imagino, não seja apenas uma questão cultural. Quero dizer: cagamos pelo cu. O cu é sujo. Naturalizar isso não é legal. O cu tem que ter uma intimidade consigo, tem que ter toda uma higiene... (Se bem que aqui eu estou pressupondo que a performance quer que um dia andemos todos com o cu pra fora, ou que passemos a ver o cu como "ok, um cu", o que pode não ser bem uma verdade ― eu estaria lendo de forma literal demais... ―; a performance pode querer, e eu acho mais sensato pensarmos por aí, que deixemos de nos espantar com o cu, nem que por uns instantes, e daí pensemos em outras coisas.)
O raciocínio a respeito dos tabus, quando num âmbito artístico, costuma ser o de: chocaremos a plateia, e ou a plateia vai se sentir chocada mas refletir depois (e só aqui eu noto que a plateia pode muito bem refletir depois e manter o choque ou continuar achando uma porcaria a apresentação), ou então ela vai se sentir profundamente chocada e fazer um escarcéu, o que comprovará o pretendido por dois motivos: 1) evidenciará o tabu; e 2) no futuro, quando isso deixar de ser um tabu, aí sim veremos quem tem razão. Mas aqui deve-se notar que, como eu disse, essa coisa pode deixar de ser um tabu num sentido bom ou ruim... Sempre se quer algo além. Mas se se quer algo além, deve-se entender que não estamos num simplismo de reações nem diante de uma panaceia conscientizadora.
Todavia, o problema não é só esse; parece que estamos nos fiando demais no que o futuro possa nos revelar de hipocrisia a respeito de uma situação atual. O que questiono é: não estamos dependendo demais do futuro como um deus ex machina? Chocar uma sociedade pode ser recrudescer formas de contra-ataque. Ou seja: alguns tabus estão entranhados a uma pletora de outros, e concordo que muitos estão entranhados também a preconceitos e formas de opressão. Será que chocar a sociedade de forma tão direta não seria uma maneira de atiçar a fera?
Afinal de contas, nós não teríamos muito bem a quem mostrar a hipocrisia. A hipocrisia da sociedade, pra surgir, parece precisar de um terceiro que de repente entre em cena e julgue o que está acontecendo. Se não for assim, ou aportamos no raciocínio de que a maioria está com a razão, ou então nós engordamos nossos argumentos e obras com fins a mostrar que a verdade está conosco. Mas, se tiver que ser assim, ou até mesmo podendo ser qualquer uma das outras duas opções, então esse terceiro só pode ser mesmo o futuro.
E não se trata de dizer que tiram isso da cartola, uma vez que a história da arte possui muitos exemplos de obras escorraçadas pela moral de seu tempo que hoje, entretanto, são tidas como geniais. O problema é que esse ser-tido-hoje-como-genial passa por vias argumentativas essencialmente artísticas, e que, se não fosse assim, então essa obra continuaria ostracizada pela moral de uma sociedade. A lição, portanto, é a de que a obra de arte pode ser lida tendo como base e pontos de apoio uma série de coisas não propriamente artísticas, mas, se estivermos diante de um caso em que nosso alarmezinho de estamos-sendo-injustos toque, então o que deve ser feito é muito mais prestarmos atenção na obra em si (e se viermos a olhar pra fora, por assim dizer, pois que olhemos com a obra viva em nossa percepção) e não simplesmente que voltemos nossa atenção apenas à moral de nosso tempo e só depois venhamos a apontar o dedo pra obra encolhida num canto. Esse tipo de embate pode ser muito produtivo, é claro, mas ele pode, artisticamente, não resultar lá em muita coisa, uma vez que uma obra pode afrontar a moralidade de uma época e ainda ser considerada artisticamente ruim. Por exemplo Cinquenta tons de cinza. A obra quedaria como sendo uma efeméride, uma curiosidade e, se considerarmos que a obra de arte pode ser um aparato incinsivo e inventivo, ela pode passar a ser vista até mesmo como uma afronta tacanha e arrefecida, se, passados os instantes no calor do debate, percebermos que boa parte do que sustentou aquela tal polêmica foram mais nossos nervos à flor da pele e nem tanto a afronta à moral (que às vezes foi boba, superficial e pontual) ou o número de caraminholas que a obra segue plantando.
Mas isso tudo só a respeito do advento do futuro como terceiro que entre em cena. Oras: o futuro pode ser legal assim como pode ser uma droga. A estratégia implícita não convence muito. É como se ela dependesse de um ricochete à distância. A repercussão da obra de arte, se depender demais do futuro, tem o perigo iminente de tombar irrelevante: o tiro se perde no escuro. Mais inteligente seria se buscássemos repercutir a obra com mais intensidade no presente. O futuro é tudo daqui em diante. Só que ele não é um salto. Quem faz o futuro somos nós, passo a passo.