Nobel: um prêmio admirável.
(Svletana Alexievich, jornalista bielorrussa vencedora do Nobel de 2015.)
Todo ano é a mesma coisa: aquela torcida, ainda que singela, por alguém ou no mínimo por algum gênero literário. No meu caso, em especial a segunda opção: qualquer poeta que ganhe eu já comemoro. (Embora deva reconhecer que os contistas e os dramaturgos estão em lençóis muito piores nesse quesito: a poesia, apesar de ser muito maltratada, ainda assim impõe respeito: é matriarca.) Na torcida individual, eu sempre dou um jeito de acender alguma velinha por Ferreira Gullar, se bem que, neste ano, dada a premiação de Augusto de Campos com o Neruda, eu tenha namorado um pouco essa possibilidade.
E aí o que acontece é aquele sentimento incrível de, mais ou menos às 07:30 em ponto da manhã, você estar devidamente arrumado pra assistir ao vivo o anúncio do vencedor do Nobel. Quando aquela porta ali abre, sempre às 8 e pouco, e sai alguém com uma pasta em mãos... Olha, isso é emocionante demais. Pra quem gosta de literatura, é um momento verdadeiramente mágico.
Mas nem só disso vive o Nobel. O Nobel é um prêmio admirável por algumas razões. Primeiro de tudo, é preciso reconhecer que ele não é um prêmio previsível. Seu objetivo não é o de premiar o escritor mais aclamado do mundo pelo simples motivo de que a dinâmica do reconhecimento literário, num âmbito mundial (embora este raciocínio possa ser aplicável também a âmbitos menores, como a literatura continental, nacional ou regional), é excludente. Isto é: se fosse apenas o caso de premiarmos os autores mais aclamados, então nós cairíamos numa espécie de pingue-pongue eterno entre instâncias de legitimação literária, ao passo que qualquer cultura longe dessas instâncias, como por exemplo a nossa, brasileira, dificilmente teriam sequer uma chancezinha que fosse de ganhar o Nobel.
Não. O Nobel tem um objetivo... Bem. O Nobel quer mudar o mundo. O testamento de Alfred Nobel busca claramente uma forma de contribuir com a paz entre os povos. É uma celebração da cultura mundial em tudo o que ela possa nos fornecer de vislumbre de um mundo mais justo e harmônico. No campo específico da premiação literária, é preciso ter em mente que os objetivos do Nobel se referem àquele autor que contribuiu com "the greatest benefit to mankind" (na verdade, esse é um critério mais geral, aplicável a todas as categorias) e que "have produced in the field of literature the most outstanding work in an ideal direction".
Do segundo trecho que citei, o Nobel se pauta, evidentemente, por autores que tenham demonstrado uma excelência literária, o que outstanding work atesta de modo claro. Mas não só isso: in an ideal direction. O que quer dizer isto?
A discussão é ampla. As micro-justificativas que são dadas para os vencedores podem ser lidas como uma especificação do que seria esse in an ideal direction para cada caso. É preciso, naturalmente, cominar uma expressão à outra, isto é, é preciso que o trabalho seja outstanding e que vá rumo an ideal direction. Isso pode dar ensejo a muitas formas de interpretação, haja vista que esse in an ideal direction não é apenas uma questão conteudística; antes, tendo em vista aquilo que Hjelmslev chamou de forma do conteúdo e conteúdo da forma, é também entender que in an ideal direction também pode incindir na forma de uma obra literária. O melhor texto que você vai encontrar a respeito do assunto é um de Sture Allén, Aspects of the Nobel Prize, aqui. Cito, em específico:
The solution would thus appear to be that Nobel's phrase in an ideal direction means 'in a direction towards an ideal'. The sphere of the ideal is in turn indicated by the fundamental criterion for all the Nobel Prizes, namely that they are to be awarded to those who "shall have conferred the greatest benefit on mankind". This means, for instance, that writings, however brilliant, that advocate, say, genocide, do not comply with the will.
Naturalmente que aqui já entraríamos em outras discussões, como a de ser ou não possível que um autor cuja obra renda loas ao holocausto seja considerada boa. De minha parte, como sou um relativista em termos valorativos, eu, por surpreendente que possa parecer (e confesso que quando paro pra pensar nisso, eu realmente vejo que é surpreendente até pra mim mesmo), creio que seja possível, dependendo dos critérios valorativos adotados, que a pessoa considere a obra como sendo boa. Em específico se imaginarmos a situação de um crítico que valore a obra não por seu conteúdo mas sim por sua forma, ou pelo desenvolvimento e forma de lidar com o conteúdo e não pelo conteúdo em si. Claro que isso não quer dizer que a opinião de tal crítico se tornaria menos debatível ou criticável; antes, minha opinião é a de que toda crítica é criticável. Mesmo porque, das opções que listei, todas elas dão um jeito de excluir o conteúdo do holocausto do escopo analítico, substituindo-o por outras formas de valoração que o dispensem. E veja que não se trata apenas de opções de leitura puramente formais de uma obra; é possível também que, num enfoque conteudístico, eu dê um jeito de chutar as loas ao holocausto em minha valoração, à maneira de dizer que, embora a obra trate de maneira crua demais o holocausto, sua investigação dos grandes dramas humanos seria maior.
Enfim. São discussões nas quais não desejo entrar. A questão é: o Nobel tem um objetivo mais amplo que o de apenas premiar a excelência. Como todo prêmio, claro, ele sempre vai buscar premiá-la. Mas não só. Se digo mais amplo, pressuponho mais inteligente e honesto, pois ele não premia a excelência tendo como muleta apenas a vendagem mundialmente considerada. Ele arregaça as mangas e vai à caça. Ele demonstra uma visão realmente mundial do fenômeno literário, e não uma visão pseudo-mundial (isto é, se ele apenas se rendesse ao critério da visibilidade, ele não estaria possuindo um alcance verdadeiramente mundial).
Nesse sentido digo que ele é admirável. Ele, mais do que pressupor uma pluralidade, corre atrás e se demonstra atento a essa mesma pluralidade, de tal modo que consegue atuar no cenário literário de maneira largamente benéfica, mudando o foco das atenções, periodicamente, a outras literaturas, a outros autores que, se fossem depender apenas do impacto mercadológico, seriam excluídos, como, de resto, muitos, muitos, inúmeros são. E ainda que se venha a contra-argumentar que o júri do Nobel é feito por membros de várias nacionalidades, e que isso pode de certo modo condicionar o resultado (o que só aqui já é um argumento esdrúxulo, posto que pressuporia que jurados de outras nacionalidades seriam defensores cegos de suas literaturas nacionais ou que seriam leitores menos qualificados, quando o que ocorre na verdade é que eles simplesmente são leitores com bases distintas mas nem por isso menos sólidas); ainda que se venha a contra-argumentá-lo, ainda assim não estaríamos mudando a realidade dos fatos, mesmo porque o objetivo de uma premiação não pode ser apenas a de premiar, com, quem sabe, um toque de condescendência, autores marginais (isto é, à margem dos grandes centros de produção e veiculação literária) à maneira de cotas ou que o valha. Não é isso. Se o Nobel busca por um corpo de júri que se faça plural, e se o resultado a que chega é também plural, ele, logo, é um prêmio que se norteia por um entendimento realmente amplo da literatura, realmente mundial, como eu havia dito. É uma importantíssima lição não só para outras premiações literárias, mas também para nós próprios enquanto leitores, que, fiados numa concepção estática e reclusa de qualidade literária, parecemos não ter a coragem suficiente nem o ânimo minimamente necessário para descobrirmos, nem que por um átimo que seja, a realidade heterogênea e incrivelmente rica da literatura.
Mas devo reconhecer que o contra-argumento que pus em cima da mesa é esdrúxulo demais. Não creio que alguém fosse realmente chegar a uma ideia assim. Mesmo porque estaríamos ignorando o funcionamento do Nobel: numa primeira etapa temos pencas e pencas de sugestões vindas do mundo todo e, numa segunda, um grupo seleto de membros da Academia Sueca decidindo, a partir de uma lista menor de indicados, o vencedor. Assim sendo, um eventual complô em prol de autores menores vindos dos cafundós do mundo não é plausível de ocorrer no Nobel. Se o Nobel premia autores distantes, autores, por assim dizer, desconhecidos, é porque faz parte de sua proposta. E aqui voltamos ao que disse anteriormente. Não é simplesmente que o Nobel devia premiar mais literatura e menos política, como alguns já chegaram até a maldosamente sugerir, fazendo acompanhar uma lista entediante de nomes de injustiçados.
Engraçado, aliás, essa coisa de injustiçados do Nobel. O mundo é grande demais e tem autores bons demais num número suficiente pra que passemos a vida toda lendo e nos contentando. Em larga escala, o mundo literário é inexplorado. É um imenso oceano por-conhecer. O número de injustiçados do Nobel, portanto, é muito grande. Mas, quando reclamam dessas tais injustiças, citam sempre autores com um renome internacional (um dos mais frequentes é Haruki Murakami, o chamado diCaprio do Nobel). Oras: quer dizer então que o objetivo do Nobel seria o de premiar apenas o renome internacional? Se o Nobel deixa de premiar um autor de renome X para premiar um desconhecido Y, ele está realmente sendo injusto com o autor de renome X? Mas se ele premiasse X, ou se ele se ancorasse no critério do renome como sinônimo de qualidade, ele não estaria sendo injusto com Y? Claro que aqui poderíamos dizer que, como o autor Y não possui renome, ninguém, por assim dizer, sentiria sua falta, com exceção das pessoas de seu país e alguns outros. Todavia, isso não estaria fazendo com que nos rendêssemos demais ao quesito do renome?
Poderíamos também dizer que o quesito do renome não é aleatório; ele pode possuir um fundamento qualitativo, e não estou querendo negar isto. Enxergo o renome literário em grande parte como uma medida mercadológica que lança um autor no mundo (nem sempre de forma literal; existem áreas do mercado editorial mundial que se fazem de metonímia do todo ou como centros irradiadores), de modo que o efetivo sucesso desse renome dependeria tanto da qualidade da obra do autor veiculada em contextos diversos (embora eu deva lembrar que este não é nem de longe um critério que "funciona", no sentido de absoluto ou menos problemático que qualquer outro; ou seja, não é porque uma obra é lida em muitos contextos distintos que ela é, necessariamente, boa; antes, a ideia de que uma obra seja lida em muitos contextos é mais um ponto de partida para a argumentação crítica do que um método de aferição de qualidade) quanto dos próprios influxos subsequentes do mercado editorial mundial. Seria, de certo modo, uma questão de oportunidade, uma espécie de dependência de um pontapé inicial para que esse autor realmente possa tentar criar um renome. E a própria criação desse renome, é claro, está geopoliticamente condicionada, haja vista que quando falamos em renome nós falamos menos de número absoluto de leitores do que de leitores qualificados, e, mesmo dentro do campo de atuação destes leitores qualificados, falamos mais especificamente daqueles ligados a grandes centros de veiculação literária. Ou seja, não é porque críticos de muitas partes do mundo avaliaram bem que por conseguinte o autor poderia ter algo que se possa dizer de renome; é preciso que críticos de algumas partes do mundo avaliem bem: pois eles, como disse, estariam mais próximos dos centros de veiculação literária, o que implica uma difusão literária e crítica maior ao longo do globo. E aqui, claro, não adianta pensarmos no remédio de que bastaria que chamássemos esses críticos para que, juntos, escolhessem o melhor: primeiro e acima de tudo porque o Nobel já faz isso, mas faz de verdade (isto é, chama gente do mundo todo), e segundo porque, se fôssemos simplesmente chamar os críticos com maior poder de influência ou, noutras palavras, com maior renome, nós não estaríamos mudando em quase nada o que eu disse sobre a questão do renome e da literatura: continuaríamos dependendo de uma complexa mecânica que de literária não possui tanto. Assim sendo, a realidade do renome não é uma realidade para muitos. É, ao contrário, para poucos.
Além do mais, é preciso reconhecermos a especificidade do Nobel. Ele é um prêmio que possui uma operacionalidade própria. Ele anda com as próprias pernas, ou seja, ele não depende de inscrições, e ele premia o conjunto da obra de um autor dentro dos parâmetros que mencionei anteriormente. Isso por si só faz muita diferença. Posto num âmbito mundial, onde a desigualdade da veiculação literária possui extremos gritantes demais para serem ignorados, e onde conglomerados editoriais movimentam com mãos imensas o cenário literário, a atitude pluralista do Nobel, eu repito, é admirável.
Talvez pareça ser uma necessidade de fazer média grande demais, no que voltaríamos à ideia de que o Nobel tem feito mais política do que de fato laureado a literatura. Porém, do que expus até aqui, creio já ter ficado claro que não é minha opinião: ele precisaria "fazer política" pra, justamente, laurear a literatura. Não faz sentido que se queira pluralizar o Nobel de física, por exemplo, haja vista que dentro da avaliação da descoberta científica mais importante do ano há uma objetividade e uma universalidade que a avaliação literária não tem como gozar. Na verdade, não é só uma questão avaliativa: uma descoberta física, dada sua universalidade, já impacta o mundo como um todo. Não digo que a obra literária de um escritor não o impacte. Mas uma premiação literária que se aferrasse à mecânica do renome literário não impactaria da mesma forma, dada a preponderância cultural do fenômeno literário: ou seja, a premiação deixaria de fomentar a literatura (pois o Nobel, hoje, tem a real capacidade de premiar, virtualmente, um autor de qualquer parte do mundo) e, por conseguinte, de oxigená-la ("oxigenar" entendido em muitos sentidos, em especial no de que um autor vindo de um contexto distinto do nosso, um autor fora dos grandes centros de veiculação literária é um autor que traz consigo necessidades críticas novas, pra não dizer no simples fato de que ele traz consigo a possibilidade de que descubramos a literatura de seu país, de sua cultura). Além do mais, o problema com a construção de um prêmio de literatura que impacte virtualmente o mundo todo já começa com o próprio espectro de alcance desse prêmio, ou seja, o até onde ele enxerga. É tolo pressupormos que, ao nos arvorarmos na ideia do renome como correspondente da objetividade e da universalidade científica, nós estaremos premiando mais literatura do que política. Acho até que tenderíamos a fazer o contrário...
Naturalmente que nestas horas também entramos em contato com o argumento de que o Nobel gosta de premiar autores com uma verve política mais acentuada. Se desta constatação a pessoa parte pra ideia de que, portanto, o Nobel premia literatura menor pelo simples fato de que uma literatura comprometida politicamente seria inferior, eu sinceramente, de minha parte, dou um longo suspiro e espero que algum dia esse alguém possa lançar um olhar um pouco menos encabrestado na coisa toda. Muitas vezes a universalidade que alardeamos numa obra é resultado de uma metonímia (ou seja, certa cultura é elevada a status de universal, ao passo que todas as outras são tidas como "presas demais a seu contexto") ou resultado de uma argumentação seletiva e excludente em pelo menos dois sentidos: tanto num plano de conteúdo, ou seja, toma-se os estratos políticos e contextuais da obra para depois excluí-los ou neutralizá-los sob a égide do discurso "mas a universalidade é mais latente, mais poderosa", ou então é-se feito este exercício ou esta constatação para algumas obras seletas enquanto, para outras, que poderiam muito bem receber o mesmo tipo de leitura, silencia-se ou faz-se o caminho reverso: acentuar os estratos políticos e contextuais da obra e, ao invés de pô-los em segundo plano em prol da tal universalidade, diz-se que são eles que atrapalham a dita cuja. Isso tudo, claro, pra não dizer que não é porque uma obra seja universal que ela necessariamente seja melhor que outra: a universalidade se encaixa melhor em certas formas de argumentos, mas isso não quer dizer que uma obra que realmente dependa de seu contexto seja necessariamente uma obra menor pelo simples fato de que ela possui dificuldade em se comunicar dentro de outros contextos... (Quer dizer: possuiria? Dentro de que contextos estamos falando? Ou melhor: será que essa transcendência contextual da obra literária não exigiria, por parte do leitor, uma transcendência contextual também? E essa transcendência contextual, ela é possível ou ela é simulada, isto é, sai-se de um contexto para se pisar em outro tomado como universal? E essa transcendência contextual, ela é necessária? E essa transcendência contextual, não é factível pensar que ela seja mais difícil, dentro de certas obras, que o simplesmente fazer o caminho reverso, isto é, acentuar o contexto? E por aí vamos...)
Assim, entendido que essa suposta preferência do Nobel por obras que não renegam sua contextualidade política não faz do Nobel um prêmio partidário, deve-se notar que quando, em uma lista de injustiçados do Nobel, alguém inclui nomes como Joyce ou Gullar, o que se está fazendo é uma confusão e, claro, um desentendimento de como o Nobel de fato funciona, de quais são suas propostas. Joyce foi de fato um autor de renome, mas e quanto a Gullar? O mundo realmente conhece a poesia de Ferreira Gullar? Gullar tem renome em nosso país, mas lá fora não. Assim sendo, se o Nobel foi supostamente injusto ao não premiar Joyce, pois Joyce tinha renome, ele não o foi ao não premiar Gullar, pois Gullar não tem renome. Mas aqui entra a questão: Gullar, ora essa, não merecia? Sua poesia não é boa o suficiente para o Nobel?
Como ficou claro no início do texto, minha opinião é a de que sim, Gullar merece vencer. Todavia, como ele sequer pode ser cogitado para tal se nós estivermos falando de uma premiação que busca apenas premiar o melhor escritor do mundo e, em busca deste fim, se ancora apenas em quesitos de renome, de quantidade de leitores, de volumosidade bibliográfica? Se estes forem realmente os critérios, então Gullar está fora da jogada, assim como tantos e tantos outros. E o resultado seria óbvio: o Nobel deixaria de ser um prêmio de alcance mundial.
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Mas devo reconhecer que o contra-argumento que pus em cima da mesa é esdrúxulo demais. Não creio que alguém fosse realmente chegar a uma ideia assim. Mesmo porque estaríamos ignorando o funcionamento do Nobel: numa primeira etapa temos pencas e pencas de sugestões vindas do mundo todo e, numa segunda, um grupo seleto de membros da Academia Sueca decidindo, a partir de uma lista menor de indicados, o vencedor. Assim sendo, um eventual complô em prol de autores menores vindos dos cafundós do mundo não é plausível de ocorrer no Nobel. Se o Nobel premia autores distantes, autores, por assim dizer, desconhecidos, é porque faz parte de sua proposta. E aqui voltamos ao que disse anteriormente. Não é simplesmente que o Nobel devia premiar mais literatura e menos política, como alguns já chegaram até a maldosamente sugerir, fazendo acompanhar uma lista entediante de nomes de injustiçados.
Engraçado, aliás, essa coisa de injustiçados do Nobel. O mundo é grande demais e tem autores bons demais num número suficiente pra que passemos a vida toda lendo e nos contentando. Em larga escala, o mundo literário é inexplorado. É um imenso oceano por-conhecer. O número de injustiçados do Nobel, portanto, é muito grande. Mas, quando reclamam dessas tais injustiças, citam sempre autores com um renome internacional (um dos mais frequentes é Haruki Murakami, o chamado diCaprio do Nobel). Oras: quer dizer então que o objetivo do Nobel seria o de premiar apenas o renome internacional? Se o Nobel deixa de premiar um autor de renome X para premiar um desconhecido Y, ele está realmente sendo injusto com o autor de renome X? Mas se ele premiasse X, ou se ele se ancorasse no critério do renome como sinônimo de qualidade, ele não estaria sendo injusto com Y? Claro que aqui poderíamos dizer que, como o autor Y não possui renome, ninguém, por assim dizer, sentiria sua falta, com exceção das pessoas de seu país e alguns outros. Todavia, isso não estaria fazendo com que nos rendêssemos demais ao quesito do renome?
Poderíamos também dizer que o quesito do renome não é aleatório; ele pode possuir um fundamento qualitativo, e não estou querendo negar isto. Enxergo o renome literário em grande parte como uma medida mercadológica que lança um autor no mundo (nem sempre de forma literal; existem áreas do mercado editorial mundial que se fazem de metonímia do todo ou como centros irradiadores), de modo que o efetivo sucesso desse renome dependeria tanto da qualidade da obra do autor veiculada em contextos diversos (embora eu deva lembrar que este não é nem de longe um critério que "funciona", no sentido de absoluto ou menos problemático que qualquer outro; ou seja, não é porque uma obra é lida em muitos contextos distintos que ela é, necessariamente, boa; antes, a ideia de que uma obra seja lida em muitos contextos é mais um ponto de partida para a argumentação crítica do que um método de aferição de qualidade) quanto dos próprios influxos subsequentes do mercado editorial mundial. Seria, de certo modo, uma questão de oportunidade, uma espécie de dependência de um pontapé inicial para que esse autor realmente possa tentar criar um renome. E a própria criação desse renome, é claro, está geopoliticamente condicionada, haja vista que quando falamos em renome nós falamos menos de número absoluto de leitores do que de leitores qualificados, e, mesmo dentro do campo de atuação destes leitores qualificados, falamos mais especificamente daqueles ligados a grandes centros de veiculação literária. Ou seja, não é porque críticos de muitas partes do mundo avaliaram bem que por conseguinte o autor poderia ter algo que se possa dizer de renome; é preciso que críticos de algumas partes do mundo avaliem bem: pois eles, como disse, estariam mais próximos dos centros de veiculação literária, o que implica uma difusão literária e crítica maior ao longo do globo. E aqui, claro, não adianta pensarmos no remédio de que bastaria que chamássemos esses críticos para que, juntos, escolhessem o melhor: primeiro e acima de tudo porque o Nobel já faz isso, mas faz de verdade (isto é, chama gente do mundo todo), e segundo porque, se fôssemos simplesmente chamar os críticos com maior poder de influência ou, noutras palavras, com maior renome, nós não estaríamos mudando em quase nada o que eu disse sobre a questão do renome e da literatura: continuaríamos dependendo de uma complexa mecânica que de literária não possui tanto. Assim sendo, a realidade do renome não é uma realidade para muitos. É, ao contrário, para poucos.
Além do mais, é preciso reconhecermos a especificidade do Nobel. Ele é um prêmio que possui uma operacionalidade própria. Ele anda com as próprias pernas, ou seja, ele não depende de inscrições, e ele premia o conjunto da obra de um autor dentro dos parâmetros que mencionei anteriormente. Isso por si só faz muita diferença. Posto num âmbito mundial, onde a desigualdade da veiculação literária possui extremos gritantes demais para serem ignorados, e onde conglomerados editoriais movimentam com mãos imensas o cenário literário, a atitude pluralista do Nobel, eu repito, é admirável.
Talvez pareça ser uma necessidade de fazer média grande demais, no que voltaríamos à ideia de que o Nobel tem feito mais política do que de fato laureado a literatura. Porém, do que expus até aqui, creio já ter ficado claro que não é minha opinião: ele precisaria "fazer política" pra, justamente, laurear a literatura. Não faz sentido que se queira pluralizar o Nobel de física, por exemplo, haja vista que dentro da avaliação da descoberta científica mais importante do ano há uma objetividade e uma universalidade que a avaliação literária não tem como gozar. Na verdade, não é só uma questão avaliativa: uma descoberta física, dada sua universalidade, já impacta o mundo como um todo. Não digo que a obra literária de um escritor não o impacte. Mas uma premiação literária que se aferrasse à mecânica do renome literário não impactaria da mesma forma, dada a preponderância cultural do fenômeno literário: ou seja, a premiação deixaria de fomentar a literatura (pois o Nobel, hoje, tem a real capacidade de premiar, virtualmente, um autor de qualquer parte do mundo) e, por conseguinte, de oxigená-la ("oxigenar" entendido em muitos sentidos, em especial no de que um autor vindo de um contexto distinto do nosso, um autor fora dos grandes centros de veiculação literária é um autor que traz consigo necessidades críticas novas, pra não dizer no simples fato de que ele traz consigo a possibilidade de que descubramos a literatura de seu país, de sua cultura). Além do mais, o problema com a construção de um prêmio de literatura que impacte virtualmente o mundo todo já começa com o próprio espectro de alcance desse prêmio, ou seja, o até onde ele enxerga. É tolo pressupormos que, ao nos arvorarmos na ideia do renome como correspondente da objetividade e da universalidade científica, nós estaremos premiando mais literatura do que política. Acho até que tenderíamos a fazer o contrário...
Naturalmente que nestas horas também entramos em contato com o argumento de que o Nobel gosta de premiar autores com uma verve política mais acentuada. Se desta constatação a pessoa parte pra ideia de que, portanto, o Nobel premia literatura menor pelo simples fato de que uma literatura comprometida politicamente seria inferior, eu sinceramente, de minha parte, dou um longo suspiro e espero que algum dia esse alguém possa lançar um olhar um pouco menos encabrestado na coisa toda. Muitas vezes a universalidade que alardeamos numa obra é resultado de uma metonímia (ou seja, certa cultura é elevada a status de universal, ao passo que todas as outras são tidas como "presas demais a seu contexto") ou resultado de uma argumentação seletiva e excludente em pelo menos dois sentidos: tanto num plano de conteúdo, ou seja, toma-se os estratos políticos e contextuais da obra para depois excluí-los ou neutralizá-los sob a égide do discurso "mas a universalidade é mais latente, mais poderosa", ou então é-se feito este exercício ou esta constatação para algumas obras seletas enquanto, para outras, que poderiam muito bem receber o mesmo tipo de leitura, silencia-se ou faz-se o caminho reverso: acentuar os estratos políticos e contextuais da obra e, ao invés de pô-los em segundo plano em prol da tal universalidade, diz-se que são eles que atrapalham a dita cuja. Isso tudo, claro, pra não dizer que não é porque uma obra seja universal que ela necessariamente seja melhor que outra: a universalidade se encaixa melhor em certas formas de argumentos, mas isso não quer dizer que uma obra que realmente dependa de seu contexto seja necessariamente uma obra menor pelo simples fato de que ela possui dificuldade em se comunicar dentro de outros contextos... (Quer dizer: possuiria? Dentro de que contextos estamos falando? Ou melhor: será que essa transcendência contextual da obra literária não exigiria, por parte do leitor, uma transcendência contextual também? E essa transcendência contextual, ela é possível ou ela é simulada, isto é, sai-se de um contexto para se pisar em outro tomado como universal? E essa transcendência contextual, ela é necessária? E essa transcendência contextual, não é factível pensar que ela seja mais difícil, dentro de certas obras, que o simplesmente fazer o caminho reverso, isto é, acentuar o contexto? E por aí vamos...)
Assim, entendido que essa suposta preferência do Nobel por obras que não renegam sua contextualidade política não faz do Nobel um prêmio partidário, deve-se notar que quando, em uma lista de injustiçados do Nobel, alguém inclui nomes como Joyce ou Gullar, o que se está fazendo é uma confusão e, claro, um desentendimento de como o Nobel de fato funciona, de quais são suas propostas. Joyce foi de fato um autor de renome, mas e quanto a Gullar? O mundo realmente conhece a poesia de Ferreira Gullar? Gullar tem renome em nosso país, mas lá fora não. Assim sendo, se o Nobel foi supostamente injusto ao não premiar Joyce, pois Joyce tinha renome, ele não o foi ao não premiar Gullar, pois Gullar não tem renome. Mas aqui entra a questão: Gullar, ora essa, não merecia? Sua poesia não é boa o suficiente para o Nobel?
Como ficou claro no início do texto, minha opinião é a de que sim, Gullar merece vencer. Todavia, como ele sequer pode ser cogitado para tal se nós estivermos falando de uma premiação que busca apenas premiar o melhor escritor do mundo e, em busca deste fim, se ancora apenas em quesitos de renome, de quantidade de leitores, de volumosidade bibliográfica? Se estes forem realmente os critérios, então Gullar está fora da jogada, assim como tantos e tantos outros. E o resultado seria óbvio: o Nobel deixaria de ser um prêmio de alcance mundial.