"Soneto burocrático", de José Lino Grünewald.

SONETO BUROCRÁTICO.

Salvo melhor juízo doravante,
Dessarte, data vênia, por suposto,
Por outro lado, maximé, isso posto,
Todavia deveras, não obstante

Pelo presente, atenciosamente,
Pede deferimento sobretudo, 
Nestes termos, quiçá, aliás, contudo
Cordialmente alhures entrementes

Sub-roga ao alvedrio ou outrossim
Amiúde nesse ínterim, senão
Mediante qual mormente, oxalá quão

Via de regra te-lo-ão enfim
Ipso facto outorgado, mas porém
Vem substabelecido assim, amém.

§

As contradições de se buscar uma cultura letrada num país de iletrados marcaram a fundo nossa história enquanto povo. Dá pra ver isso muito bem nos adornos pedantes com que via de regra fizemos questão de lambuzar nossas obras intelectuais. O caso jurídico salta aos olhos. É muito mais do que um simples jargão técnico. É um gosto pela prolixidade e pelo pedantismo que turva até mesmo, nos seus casos mais extremos, a compreensão entre os próprios pares, pra não dizer no fato de que cria uma crosta de dificuldades num setor da inteligência que deveria estar umbilicalmente ligado à sociedade e deveria prezar pela comunicação rápida e eficiente acima de tudo.

Trata-se de um reflexo claro do bacharelismo em nossas letras, isto é, "nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências." (Hollanda: 1997, p. 157) Qualquer pessoa com um pouco de leitura que seja e com um pouco de títulos materializados na algibeira era motivo de reverência. "O amor bizantino dos livros pareceu, muitas vezes, penhor de sabedoria e indício de superioridade mental, assim como o anel de grau ou a carta de bacharel." (ibidem, p. 163) Isso tem como consequência direta o fato de que (ibidem, p. 164-165):

O móvel dos conhecimentos não é, no caso, tanto intelectual quanto social, e visa primeiramente ao enaltecimento e à dignificação daqueles que os cultivam. De onde, por vezes, certo tipo de erudição sobretudo formal e exterior, onde os apelidos raros, os epítetos supostamente científicos, as citações em língua estrangeira se destinam a deslumbrar o leitor como se fossem uma coleção de pedras brilhantes e preciosas.

Mas, uma vez que nossa formação enquanto povo conheceu uma profunda dificuldade em distinguir o público do privado, de modo que podemos notar de modo claro "o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal" (ibidem, p. 146; ordenação impessoal que seria desejável para a criação de uma administração voltada aos interesses societários e não aos próprios); uma vez que essa dificuldade sempre foi vista, o conhecimento atulhado de circunlóquios e fórmulas encomiásticas (de louvor) sufocou a inteligibilidade e a transmissão de conhecimentos. Era como se houvesse uma necessidade de cifrar as mensagens e apartar das formas mais mesquinhas possíveis o acesso do povo ao conhecimento. Claro que a princípio as formas de se impedir tal acesso, sem dúvidas desejáveis pois mantinham que era uma beleza o status quo, se ancoravam nas costas largas da Metrópole, no que a Metrópole, por exemplo, bania o acesso à educação na Colônia, e quem eventualmente quisesse instrução deveria pôr os pés no continente. Daí já se pode ver que o número de pessoas letradas era mínimo, e, portanto, o acesso ao Direito era igualmente mínimo.

Mas não se tratava apenas disso. Digamos que, se fosse "apenas" uma questão de letramento, o letramento bastava. Só que não. O Direito criou uma carapaça que afasta mesmo pessoas letradas de seu alcance. Ele, em outras palavras, também dificulta, ele cria empecilhos. Ele cifra. Numa passagem do Manifesto antropofágico, Oswald de Andrade disse que perguntou a um homem chamado Galli Mathias o que era o Direito, no que esse Galli Mathias respondeu: "garantia do exercício da possibilidade." A ação de quem fez a pergunta é direta: "Comi-o." É uma passagem interessante e reveladora: Galli Mathias é uma brincadeira, pois a palavra "galimatias" se refere a um discurso pedante, tal como a resposta que o narrador recebeu; mas não só isso, pois, sendo uma resposta pomposa e de todo um alcance teórico, e sendo o texto de Oswald uma proclamação antropofágica, o fato de que o narrador tenha comido esse Galli Mathias é uma forma de incorporar esse pedantismo a si próprio, o que valida por exemplo a tese de Sergio Buarque de Hollanda (p. 155; 165) quando diz que o homem brasileiro se apega de maneira mágica e fantasiosa às ideias estrangeiras que lhe são apresentadas.

O próximo passo é esperável: o homem brasileiro, a partir de teorias que ele a custo digere, se é que digere, as transforma em dogmas e as simplifica, visto que assim poderá conviver com elas de maneira menos turbulenta (turbulenta pois o obrigaria a pensar) e transmiti-la graças a ciframentos simplistas e impactantes. Esse ciframento começa, no contexto colonial, quando esses raros espécimes de letrados, que não precisavam nem tanto ser o sumo da inteligência, se viram diante da necessidade de uma plateia ou de pelo menos alguns gatos pingados pra tornar a vida colonial menos patética (pra não dizer no jogo de vaidades e no prazer que o conhecimento esbanjado traz consigo...). Eu repito: as contradições de se buscar pela cultura letrada num país de iletrados marcaram a fundo nossa história enquanto povo. Durante séculos o escritor em nosso país teve que se contentar com a criação de um autopúblico, ou seja, congregações de pessoas letradas que compartilhavam juntas seus conhecimentos, numa espécie de clube fechado da lisonja. Mas não só isso, pois a posição do escritor não teve, durante nosso período colonial, um papel social definido (Candido: 2011, p. 87), é dizer, ela sempre existiu de maneira subsidiária a outras atividades, no geral públicas: e isso, a bem dizer, foi algo que persistiu durante muito tempo, de modo que o escritor que tinha seu ganha pão em profissões jurídicas era a figura carimbada em nossas letras, a tal ponto que Drummond chegou a dizer que toda a literatura brasileira é e foi feita por funcionários públicos.

Com o advento da Independência, a literatura produzida no país e, de modo geral, o conhecimento produzido no país cunhou formas de veicular conteúdos nacionais e lançá-los, de maneira bombástica, sobre as massas. "Ainda hoje, a cor local, a exibição afetiva, o pitoresco descritivo e a eloquência são requisitos mais ou menos prementes, mostrando que o homem de letras foi aceito como cidadão, disposto a falar aos grupos" (ibidem, p. 91). Ou então (ibidem, p. 90-91):

A ação dos pregadores, dos conferencistas de academia, dos glosadores de mote, dos oradores nas comemorações, dos recitadores de toda hora correspondia a uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos a leitura. Deste modo, formou-se, dispensando o intermédio da página impressa, um público de auditores, muito maior do que se dependesse dela e favorecendo, ou mesmo requerendo, no escritor, certas características de facilidade e ênfase, certo ritmo oratório que passou a timbre de boa literatura e prejudicou entre nós a formação dum estilo realmente escrito para ser lido.

Esse sebo retórico representa um temor da realidade prática e do que ela demandar, no caso da produção intelectual, de contenção da esfera privada. Mesmo quando o Direito escapole das regras de etiqueta mumificadas que ele ostenta com tanta felicidade, por exemplo quando ele versifica petições e decisões (como num caso recente no Tocantins), ele o faz da maneira mais torpe possível, ou buscando chamar a atenção de maneira simplista, ou então se valendo dos instrumentos poéticos da maneira mais incompetente possível, dando a entender que se compraz com a mera transgressão esporádica e o véu de sensibilidade que ela porventura traga: ou seja, aquela correlação ingênua de que, se o juiz, o delegado, o advogado ou o escambau versificam, é porque são pessoas sensíveis, quando, analisando-se de maneira mais detida muitos desses irrompimentos poéticos em textos jurídicos, o que se verifica é que o operador do Direito parece ter apenas aproveitado a deixa para dar vazão a seus horrores sociais ou à sua sensibilização por cartela, por chavões... Noutras palavras: se o operador do Direito não consegue utilizar com competência as formas discursivas jurídicas (visto que em algum lugar de sua alma ele ainda acha que escrever bem é só escrever de acordo com a gramática normativa, isso, claro, após pelo menos quatro demões de pedantismo), o que ele tem demonstrando quando escapole do formato do discurso jurídico clássico é que ele também não domina os outros discursos de que se vale, e que portanto possui uma defasagem discursiva grave. Ele sabe dar voltas, sabe dar tapinhas nas costas, sabe achar sinônimos descabidos e estapafúrdios para não tornar seu textinho enfadonho. Ele parece que só não sabe mesmo é escrever como gente.

Pois é justamente esse sebo retórico que pode ser lido de maneira muito engenhosa no soneto de José Lino Grünewald que trago pra vocês. É evidentemente uma paródia, em especial no sentido etimológico da paródia como um canto paralelo. Grünewald usa as armas do inimigo para ridicularizar o que pretende expôr. Claro que se trata de um exagero, mas qualquer pessoa que convive um pouquinho que seja com o Direito, nem que seja apenas zanzando nos corredores de uma Faculdade, sabe que a distância entre a realidade jurídica e o que o soneto de Grünewald apresenta não é algo absurdo. Ela é crível. E isso é o que importa.

Temos uma série de expressões que são encadeadas para dizer absolutamente nada. Mas, o que é interessante, a maioria das expressões pressupõe que algo foi dito, que algo foi provado. Por exemplo a primeira estrofe. Pressupomos que algo foi alegado e que, a não ser que venha coisa melhor... Mas o que foi alegado? É preciso saber o que foi alegado antes de fazermos qualquer coisa. E no entanto, o soneto não nos deixa chegar a lugar algum. Ele nos prende. Ele pega aquela imagem clássica da burocracia como um enorme labirinto escuro e frio e a exacerba: nós, leitores, estamos presos nesse labirinto sem saber para onde ir. A burocracia é um mundo à parte, totalmente apartado da realidade. A sensação que temos é que essa selva de expressões conectivas, expressões que deveriam nos levar a algum lugar ou então remeter a coisas que estão sendo ditas, enlaçam o conteúdo do texto jurídico e o tornam impermeável e hermético.

E Grünewald consegue explorar isso muito bem. Como o soneto todo é feito de expressões e não de conteúdos, especificamente de advérbios, conjunções e locuções adverbiais ou conjuncionais, isso faz com que, por conseguinte, as rimas também sejam desse modo, o que é algo bastante raro, é dizer: é comum que nós rimemos entre substantivos, adjetivos e verbos, de modo que, caso venhamos a usar conjunções ou advérbios (os advérbios são mais frequentes, em especial os terminados em "-ente"), eles ainda assim não ocupem todo o espaço do poema, mas sejam a exceção. A ponta de lança de rima, se está construída desse jeito, tem o que nos dizer, pois o fim do verso faz com que o leitor, uma vez terminado esse verso, tenha meio que duas opções: ou o conteúdo do verso está completo, isto é, a ideia foi encerrada naquele verso, o que diga-se de passagem é o preceito clássico, ou esse conteúdo, essa ideia está incompleto e ele precisa ir para o verso seguinte, uma vez que o verso que ele acabou de ler foi cortado de maneira abrupta e sofreu aquilo que em poesia nós chamamos de cavalgamento (ou enjambement). Mas, mesmo que o verso termine com um cavalgamento, existe a esperança de que o próximo verso termine a ideia.

Não é o que acontece no soneto de Grünewald, o que aumenta o desespero do leitor. O poema me parece estar contrabalançado de versos com e sem cavalgamentos: os quartetos, por exemplo, possuem menos e os tercetos possuem mais. Mas a questão não me parece nem tanto essa. O negócio é que o poema, todo ele, é um enorme mecanismo de cavalgamentos, ou seja, é como se o poema todo efetuasse cortes de entendimento na nossa leitura. Veja-se: "Amiúde nesse ínterim, senão / Mediante qual mormente, oxalá quão". O primeiro verso quer dizer algo como: pouco a pouco, enquanto isso, a não ser que... Mas, enquanto esperamos pelo que viria a ser esse "senão", o poeta parece que desvia nossa atenção para "Mediante qual mormente". Nós, se chegamos até esse ponto do texto, ou seja, o primeiro terceto, já nos habituamos a não esperar nada do poema, de maneira que seu mecanismo de cortes súbitos de ideias funciona bem nem tanto porque nos acostumamos mas porque perdemos toda esperança. Há um certo tambor rítmico que vai compassando o poema, graças ao fato de todo ele ser em decassílabos, ser rimado e inclusive ostentar rimas internas, por exemplo em "-ente" nos versos 5 e 8. Mas essas pequenas conduções não nos levam a lugar algum, e, de certo modo, apenas ajudam a aumentar ainda mais nosso desespero, pois em parte elas nos encorajam a continuar lendo e em parte elas nos dão a sensação de estarmos habituados a algo que não sabemos nem temos como saber o que é.

O desenvolvimento lógico do poema, que na verdade é um desenvolvimento nulo, subverte a fórmula do soneto. Pois o soneto historicamente apresentou via de regra uma exposição silogística: a premissa maior no primeiro quarteto, a menor no segundo e a conclusão nos tercetos. Para Hugo Friedrich, por exemplo, o soneto era um silogismo lírico. No caso do soneto de Grünewald, nós não temos como entender absolutamente nada, de maneira que a estruturação silogística do soneto vai por água abaixo, embora, numa mirada macroscópica no poema, nós possamos notar como ele parece que se organiza mais ou menos de modo silogístico: no primeiro quarteto diz que, a não ser que venha um melhor juízo..., no segundo ele pede alguma coisa, no primeiro terceto ele se refere a alguma coisa que ocorrerá nesse enquanto e no último ele bate o martelo.

A chave de ouro traz: "Vem substabelecido assim, amém." "Substabelecido assim": assim... assim... assim como?! É o golpe final. A chave de ouro de um soneto encerra a ideia do soneto todo de maneira memorável. Os parnasianos, por exemplo, costumavam escrever primeiro a chave de ouro e só depois o resto do soneto. Nada disso é o que se vê aqui. Nós até podemos achar memorável algo que não entendemos bulhufas, mas eu duvido que possamos achar memorável algo que escarnece de nossa capacidade de entendimento. O gesto do leitor ao terminar o soneto parece ser o de um sim assustado, impactado. Pode ser que, dependendo do nível de leitura, a pessoa que leia o soneto ou que o ouça até mesmo pressinta que o assunto é importante, visto que, de resto, a utilização imbecilizante do jargão jurídico elevado a enigma tem como objetivo a impressão fácil sobre o leitor.

Grünewald terminar com "amém" é a ironia das ironias. Que assim seja... Mas de um jeito que, dada a procedência religiosa do termo, que assim seja e que ninguém dê um pio. Um dogma. O que joga uma pequena bomba no que restou das ruínas do soneto, terminando pulverizar o que restava: o soneto abre dizendo que, salvo melhor juízo doravante, ou seja, a não ser que um juízo melhor apareça... Mas como um juízo melhor poderá vir se estamos falando de um texto tão hermético assim? De um texto que, de resto, termina com "amém", como se seu objetivo fosse o de que o pedantismo extremado de sua construção anulasse qualquer pretensão de questionamento por parte do leitor?

É um ótimo soneto paródico. Pois não podemos nos esquecer que é um poema que vai de encontro à realidade burocrática. Se o soneto todo esteriliza o entendimento, mas pressupõe, graças a seu título, um domínio prático, um domínio das engrenagens do sistema... Pois muito bem. Nós estamos realmente fodidos.

§

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 12ª ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2011.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1997.