"A mulher calada", de Janet Malcolm.



Vou partir do princípio que você sou eu. Aí eu digo que, supondo que você queira ler uma biografia de Sylvia Plath e, por algum motivo, não leu a contra-capa de A mulher calada, de Janet Malcolm, ou, mesmo supondo que a tenha lido, ainda assim continuou achando que se tratava de uma biografia, o que implica dizer que portanto não deve ter lido também os dados de catalogação do livro ("3. Poetisas norte-americanas. ― Crítica e interpretação. 1."); supondo tudo isso, então creio que você pode se decepcionar. Na verdade, mesmo quem tenha em mente que não se trata de uma biografia e sim de uma interpretação de biografias, mesmo essa pessoa pode torcer um pouco o nariz: interpretar uma obra à luz da vida do artista é uma coisa; interpretar a própria pessoa do artista é uma coisa; mas interpretar biografias?

Isso, como eu disse, é você sendo eu. E eu ― o que eu fiz e senti nos primeiros instantes de leitura foi isso. Um pouco mais de corda, todavia, e o livro desenguiça. As desconfianças tidas até então mudam seu formato e, rearranjadas, surpreendem. Esse livro merece ser lido.


A autora está questionando a relação entre fato e ficção, ou, mais precisamente, entre a vida do biografado e a própria biografia. A mulher calada no título é Sylvia Plath, mas não podemos pensar que a autora está atribuindo esse título de calada simplesmente porque Sylvia pôs fim à sua vida. Janet reflete também, e creio que até mesmo fundamentalmente, numa questão que eu poderia formular da seguinte maneira: as pessoas que passam por nossas vidas de algum modo deixam um pouco delas mesmas em nós. O biógrafo, no afã de reconstituir a vida de certa pessoa e expô-la ao público, vai mais cedo ou mais tarde (pra não dizer que ele está o tempo todo fazendo isso) buscar esses vestígios que a pessoa, quando em vida, deixou na face da Terra. A relação entre fato e ficção, entre o biografado e a biografia, portanto, não é para Janet uma questão simples de dar um retrato fiel e averiguá-lo de acordo com o que fora feito até então. Nós não temos como reconstituir de maneira completa a vida de alguém. O que passou, passou. Nossa existência é um exaurimento. Mas, no curso desse exaurimento, como eu disse nós deixamos parte de nós na face da Terra, e o biógrafo, da forma como pode, reconstrói um mosaico que consiga dar a estranhos a medida da vida de alguém.

Esse "da forma como pode" é um verdadeiro nó górdio, em especial para com a biografia de Plath. Caso o leitor não saiba, Sylvia Plath foi uma das expoentes daquilo que nós chamamos de poesia confessional. Não dá pra dizer que aqui no Brasil nós tivemos algo do tipo. Pelo menos grosso modo, pois, uma década depois da poesia confessional ter estourado lá fora ― isto é, durante a década de 70 nós brasileiros e brasileiras também líamos uma poderosa guinada autobiográfica em nossa literatura. Tivemos por exemplo Ferreira Gullar equacionando suas memórias com o passado e o presente político do país (o Poema Sujo é de 76), Drummond com seu ciclo autobiográfico Boitempo (o primeiro volume de Boitempo é de 68, o segundo de 73 e o terceiro de 79), Gerardo Mello Mourão com seu Os Peãs (O país dos Mourões é de 63, Peripécia de Gerardo é de 72 e Rastro de Apolo é de 77), os dois na poesia, e, na prosa, Pedro Nava com o seu (Baú de Ossos saiu em 72), tivemos Cora Coralina (o artigo de Drummond é de 80, mas Poemas dos becos de Goiás saiu primeiro em 65 e depois em 78), Ana Cristina César (A Teus Pés é de 82)... Ou seja: uma efervescência memorialista e intimista digna de nota mesmo em solo nacional. Mas, de todo modo, lá fora a coisa foi talvez mais intensa ou pelo menos foi estudada de modo a realçar tais características autobiográficas de maneira explícita. Os poemas de Plath são poemas onde, não sem exagero, nós só podemos captar sua verdadeira dimensão se tivermos pelo menos uma ideia vaga de como foi sua vida. Quando ela por exemplo, num poema como Daddy, poetiza a relação com seu pai, nós podemos até ler na figura desse pai um arquétipo central opressor (e os exageros a que Plath incorre, como o de usar um instrumental metafórico referente ao holocausto, encaminham a leitura para raias assim), mas isso não nos permite pôr em segundo plano a figura real de Otto Emile Plath.

Um chamado intimista tão gritante assim fez com que o gesto final de Plath se revestisse de uma aura especial. Qualquer pessoa que se mata ganha uma aura estranha a seu redor, certamente fruto da radicalidade de seu gesto. A vida pode ser ruim pra todos nós, mas o tirar a própria vida é uma decisão que nos faz ficar, no mínimo, curiosos, perplexos. Num âmbito crítico, o gesto suicida é até mesmo uma nódoa que a priori pode propulsionar a carreira do poeta, haja vista que quando alguém se suicida jovem, essa pessoa põe fim à torrente de possibilidades que sua existência poderia oferecer ― e assim, quando contemplamos a obra de um suicida, não dá pra ler e não considerar, ainda que de relance, algo além da própria vida e da própria produção que essa pessoa teve ― você acaba fatalmente considerando também o caudal de possibilidades que passa a como que existir ao lado dessa pessoa. E aí a pessoa se torna uma enorme promessa, um enorme "poderia ter sido". Isso propulsiona, claro, o interesse crítico em torno da pessoa, pois é uma maneira de agigantar uma produção, mas, por outro lado, faz com que as pessoas tendam a dispender um interesse crítico não raro superficial e curioso em demasia a respeito da obra produzida, pra não dizer no fato de que toda uma série de mistificações começam a surgir ao redor desse fantasma do "poderia ter sido".

Esta condição que a obra de Plath alcançou é no mínimo engenhosa. Sua estratégia poemática é a de trazer o leitor para muito perto de seus textos, fazendo com que esse leitor busque devassar a vida de Plath para que consiga se sentir seguro em relação a uma leitura formulada. Mas o gesto de Plath foi radical demais, foi abrupto demais. Não  parece haver aquele acabamento que a vida humana, a partir de certo estágio, começa a adquirir (a não ser que estejamos falando de um acabamento funesto: o acabamento de quem enxerga na obra um ponto final à vida de mesmo peso que o gás inalado). Há um enorme rombo. E a coisa só foi ficando mais nebulosa, pois, imediatamente após o suicídio de Plath, as pessoas envolvidas diretamente com ela passaram a adotar uma postura reticente. Ted Hughes, por exemplo, ex-esposo de Sylvia e por muitos considerado como motivo do suicídio (o livro de Janet é uma tentativa de mudar essa versão maniqueísta), mutilou Ariel, o último e a meu ver o mais bem realizado livro de Plath ― aquele em que nós observamos de maneira mais raivosa e explosiva a forma como a poeta trabalhava o material de sua própria vida num plano poemático. Ted também fazia uma espécie de linha dura com aqueles que se metiam a biografar sua esposa, e nisso Ted não estava sozinho: ele contava com a ajuda de Olwyn Hughes, sua irmã e ex-agente do espólio literário de Sylvia.

1994, data em que Janet publicou seu livro (a edição brasileira foi rápida no gatilho, lançando já em 1995) ― ou, reformulando pra dar a real dimensão da coisa ― os anos 90 foram anos decisivos pra questão Plath. O livro de Janet  é uma análise de todas as biografias de Sylvia Plath disponíveis e de como os vários biografados encontraram dificuldades em montar suas versões, por motivos que vão desde o impasse prático com os Hughes até a mistificação da pessoa Sylvia Plath que foi formada ao longo dos anos. O caso em que a autora se demora mais é o caso envolvendo Anne Stevenson, autora de Bitter Fame, uma biografia lançada em 1989 e que é, de acordo com Janet, "de longe a mais inteligente das cinco biografias de Plath lançadas até hoje e a única esteticamente satisfatória." (p. 17; estou usando a edição de 1995 e não a edição de bolso lançada recentemente.) É girando em torno desse caso em específico que ela, claro, abordará outras edições e outros relatos de interesse bem como outras pessoas, por exemplo A. Alvarez, um escritor e crítico inglês muito próximo aos Hughes e a Plath. Alvarez resenhou Bitter fame e, em 71, havia lançado um relato pessoal a respeito do suicídio de Sylvia, fornecendo inclusive alguns detalhes que Ted Hughes achou que foram excessivos e invasivos demais.

A edição brasileira, como eu disse, é de 95, um ano depois do lançamento do original. A obra foi relançada em 2012, numa edição de bolso que me parece bem mais elegante que a edição de 95 (não tão elegantes quanto os 10 reais que paguei na edição de 95 num sebo). Mas enfim. Tanto uma quanto outra data são dignas de nota. A década de 90, eu havia mencionado, foi uma década importante para o redescobrimento de Plath. O livro de Janet é um primeiro passo a esse respeito, mas não só; no final da década de 90, precisamente 98, Ted Hughes resolve quebrar o gelo. O pivô da separação conturbada entre Ted e Sylvia foi um caso amoroso que Ted houvera tido com Assia Wevill. O "resultado" foi o trágico suicídio de Sylvia (entre aspas pois não quero dizer que foi só por culpa disso). Mas a desgraça foi maior ainda para Ted: Assia também se matou, com a diferença de que, ao invés de Sylvia, que deixara Frieda e Nicholas, filhos dela com Ted, dormindo num aposento ao lado, Assia inalou metano junto de Shura, o filho que tivera com Ted. Só aqui o leitor já pode imaginar a enorme tristeza que cercou a vida de Ted, os horrores que esse homem não deve ter presenciado ― tanto que, numa das passagens mais belas da obra de Janet, ela nos conta de quando foi visitar Ted e, chegando na porta da residência do poeta laureado, ela simplesmente desistiu.

O fato é que em 98 Ted quebrou o gelo. Ele reuniu poemas que havia escrito durante 25 anos num livro intitulado Cartas de aniversário. Não são poemas quaisquer. São poemas que relembram momentos que ele viveu ao lado de Sylvia. Muitos desses poemas são de uma pungência quase que inacreditável, como por exemplo O minotauro. É difícil, aliás, pensar o contrário: as cartas de aniversário são para a esposa que já não pode mais fazer aniversário, mas não só isso; Ted havia descoberto que tinha câncer terminal, e foi por isso que ele resolveu abrir sua intimidade publicando a obra. A edição brasileira da obra também foi rápida no gatilho: um ano depois a editora Record estava com a obra já nas livrarias, em tradução incrivelmente esmerada (dado o curto tempo que não deve ter sido o de tradução) de Paulo Henriques Britto.

Em 2004, um novo passo foi dado. Frieda, filha, como dito, de Ted e Sylvia, publica uma edição fac-similar e restaurada de Ariel de acordo com a ordem que a mãe havia deixado antes de seu suicídio, e com todos os poemas, isto é, sem cortes. Esta edição, por sua vez, seria publicada no Brasil pela editora Verus em 2007, numa também esmerada tradução de Rodrigo Garcia Lopes. Nunca estivemos tão próximos de Sylvia Plath ou, em suma, da verdade. E no entanto, as lições de cautela e contemplação que o livro de Janet nos oferece ainda continuam de pé e não perderam nem um pouco sua pertinência.

Eu disse anteriormente que a questão com o livro de Janet é a questão dos vestígios que nós deixamos na face da Terra. Não há uma questão simples de contrapôr a verdade dos fatos. Janet faz um estudo realmente amplo dos limites da biografia, como, aliás, ela expõe no subtítulo da obra: "Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia". E o faz aqui não só no sentido de expôr para o leitor os entraves que qualquer biógrafo da poeta encontrará. Seu escopo vai além. Se o fosse, ela se limitaria a uma atividade de contraponto minuciosa entre o que está nas biografias e o que uma versão mais acurada, por assim dizer, da realidade que os fatos nos permitem subsumir. Mas não é por aí. Isso implicaria, pelo menos, que a voz de Janet, da pessoa Janet Malcolm, fosse suprimida do livro, o mesmo podendo ser dito das outras personagens que compõem a obra. A. Alvarez, por exemplo, seria mera peça histórica, e qualquer referência à figura de Alvarez após a morte de Sylvia serviria apenas para lançar luz sobre seu passado (algo como dar um retrato um pouquinho mais fidedigno de Alvarez pra que o leitor sinta melhor as reentrâncias de seu relato; mas só isso: Alvarez compreendido como um fornecedor-de-relatos). E no entanto, o que vemos é que Janet se posta de maneira muito bem feita ao longo do livro, e quando ela apresenta alguém, ela apresenta esse alguém na integridade do que ele é e não na comodidade de ser peça num mosaico.

Quando ela apresenta, pra se ter uma ideia, Anne Stevenson, ela vai além do simplesmente mostrar uma biógrafa que merece estar por trás do relato biografado oferecido. Ela se condói de Stevenson e a todo instante se arrisca num exercício empático para com aquela mulher que não pôde contar seu relato de maneira inteiramente livre. Janet, por exemplo, chega até a ler a obra autoral de Anne, ressaltando um longo poema intitulado Correspondences, que pra Janet é uma obra-prima, e do como a escrita desse poema fez com que Anne tivesse de largar o esposo e o filho e fugir com um outro poeta a fim de que gozasse da liberdade artística necessária. "Escrever é uma atitude carregada pra qualquer um, é claro, seja homem ou mulher, mas as escritoras parecem precisar de medidas mais fortes que os escritores, apelar para arranjos psíquicos mais peculiares, a fim de ativar sua imaginação." (p. 91-92) Mesmo que esse tipo de frase sirva como uma luva para Sylvia, o simples fato de que ela tenha sido dita não diretamente sobre Sylvia, mas diretamente sobre Anne, demonstra uma preocupação que num livro de mera averiguação dos fatos não constaria. Isso sem mencionar de quando Janet começa a falar de Anne, logo no segundo capítulo da obra. Lá ela se refere ao fato de que ambas estudaram juntas na Universidade de Michigan nos anos 50, Anne um ano à frente de Janet e servindo de uma espécie de inspiração para ela. Ou então, pra fechar os exemplos do trabalho empático apurado de Janet, é quando, mais à frente, Janet encontrando-se com Anne, o como a autora mescla detalhes do conteúdo da conversa que travaram com a feitura de uma deliciosa lasanha pro jantar.

Acho que já deu pra sacar. Mais do que simplesmente querer entender de maneira mais profunda todos os lados da história, mais do que simplesmente querer cavucar de maneira mais funda a figura de Sylvia Plath no coração de quem quer que fosse, Janet está buscando conhecer seres humanos. Mesmo quando, no final da sua obra, ela narra o encontro que teve com Trevor Thomas, vizinho do apartamento de Sylvia e última pessoa a vê-la com vida, ela não está preocupada em simplesmente retirar a informação daquela pessoa e deixá-la ao relento. A mulher calada, Sylvia Plath, parece ter imposto a todos um regime de silêncio que vai muito além da censura que os Hughes exerceram ao longo das décadas. Não basta a Janet escancarar a hipocrisia dos Hughes em prol da verdade. Ela quer romper esse silêncio com histórias de vida. Ela, pra voltar ao exemplo antes mencionado, não chega a conversar com Ted Hughes diretamente. Ela se encontra com A. Alvarez, com Anne Stevenson, com Olwyn Hughes, com Trevor Thomas... mas, quando esteve à porta de Ted, ela desiste. E no entanto, a forma como ela fala e descreve Ted, a forma como ela se esforça em compreendê-lo é esplêndida. É claro que ela está buscando dar voz à mulher calada, mas nem por isso ela deixa de respeitar o silêncio dessa mulher nem, neste percurso, deixa de se esforçar em compreender o silêncio que cada uma daquelas pessoas também trazia consigo.


O livro de Janet também possui mais um aspecto que eu gostaria de pincelar. Os entraves que as biografias de Sylvia Plath enfrentaram àquela época ― e eu pelo menos não vou pôr minha mão no fogo e dizer que as biografias posteriores deixaram de enfrentar tais entraves ― são exemplares no contexto da republicação da obra em solo nacional. 2012. Um ano depois o país discutiria com fervor a questão das biografias: devem ser autorizadas ou não?

Janet Malcolm diz (p. 16):

A biografia é o meio pelo qual os últimos segredos dos mortos famosos lhes são tomados e expostos à vista de todo mundo. Em seu trabalho, de fato, o biógrafo se assemelha a um arrobador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter jóias ou dinheiro e finalmente foge, exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem.

Um pouco depois (p. 18):

A tarefa do biógrafo, como do jornalista, é satisfazer a curiosidade dos leitores, e não demarcar os seus limites. Sua obrigação é sair a campo e, na volta, entregar tudo ― os segredos malévolos que ardiam em silêncio nos arquivos, nas bibliotecas e na lembrança dos contemporâneos que passaram esse tempo todo esperando apenas que o biógrafo batesse em suas portas. alguns desses segredos são difíceis de extrair e outros, ciosamente guardados pelos familiares, até impossíveis. Os familiares são os inimigos naturais dos biógrafos; são como as tribos hostis que o explorador encontra e precisa submeter sem piedade a fim de se apossar de seu território. Se os familiares se comportam como nativos amigáveis, o que ocasionalmente ocorre ― quando se propõem a cooperar com o biógrafo, chegando às vezes ao ponto de torná-lo "oficial" ou "autorizado" ―, ainda assim ele precisa fazer valer sua autoridade e pavonear-se à frente deles para demonstrar que é o poderoso homem branco e eles não passam de selvagens nus.

Se aqui estou, se aqui escrevo, então, quase que por definição (meu blog, minhas definições), eu não vou falar de questões jurídicas. Não vou falar da decisão do STF. Até poderia pincelar umas citações de constitucionalistas ou algumas passagens dos votos dos ministros ― votos estes que, uma vez que você espana a camada de prolixidade infelizmente própria do Direito, são sempre elucidativos, eu diria até didáticos ―; sim, poderia fazer isso, mas digamos que já é o bastante conviver com isso o restante do dia inteiro. Que minhas madrugadas sejam ao menos imaculadas.

Apesar do tom agressivo das metáforas usadas por Janet, ela própria é um tanto quanto cuidadosa nos relances biográficos a que se ensaia. Afinal de contas, Janet está na posição de uma espécie de biógrafa no ponto de bala ― não, contudo, biógrafa de fato. Ela se debruça sobre biografias já feitas, mas isso não a impede de ter lido previamente um material considerável e de ter um faro aguçadíssimo como biógrafa e como jornalista. Posso citar, a esse respeito, a maneira admirável como ela presta atenção à figura de Richard Sassoon, um namorado que Sylvia teve antes de conhecer Ted, em determinada parte do livro. Do mesmo modo, relances biográficos que ela traça de Sylvia e de Ted são muito apurados. Por exemplo: "Todos nós inventamos a nós mesmos, mas alguns acreditam mais que os outros na ficção de que somos interessantes. Provavelmente por sentir o gelo do vazio com uma intensidade tão inquietante, Sylvia Plath era levada a empilhar várias camadas de aquecida auto-absorção entre si e o mundo exterior." (p. 107) Outra passagem digna de nota seria quando Janet comenta uma edição das cartas de Sylvia intitulada Letters home. Janet não só escaneia os propósitos por detrás da edição (marcadamente, o de mostrarem que a poeta não era simplesmente aquela figura odienta de Ariel e The bell jar, mas sim uma moça adorável e amável) como também comenta: "A publicação de Letters home, porém, teve um efeito diferente do planejado pela sra. Plath. Em vez de mostrar que Sylvia não era 'assim', as cartas fizeram o leitor admitir pela primeira vez a possibilidade de que sua relação doentia com a mãe fosse a razão da qual ela era assim." (p. 42-43)

São passagens que demonstram que Janet é uma leitora muito bem aparelhada de biografias, e que consegue analisar com argúcia as menores reentrâncias do material levantado por outros autores. A grosso modo realmente, eu repito, nós podemos enxergar um tom violento nas metáforas que ela usa pra descrever o trabalho do biógrafo, mas não me parece que nem de longe Janet se vislumbre com um trabalho conduzido de maneira tão grotesca assim. O retrato fiel a que ela se refere não deve ser lido como um retrato a contra-gosto e com o simples intuito de chocar. Janet sabe muito bem que o choque distorce e se afasta da realidade de uma vida, a qual, como sugeri, passa obrigatoriamente pela memória e pela vida de outros. Mesmo porque, a biografia de alguém morto é uma coisa; a de alguém vivo, é outra. Janet cita como exemplo a biografia de Ian Hamilton sobre J. D. Salinger, publicada em 1986 (p. 118-120). Hamilton queria como que provocar Salinger, de tal modo que a reação de Salinger para com a biografia escrita seria um capítulo a mais da própria biografia. E, no esboço original da obra, Hamilton usou-se de algumas cartas que trocara com Salinger, mas Salinger judicialmente barrou o uso delas ― isto é, elas tiveram de ser cortadas da edição final. O argumento jurídico era forte: o uso legítimo não cobria a correspondência de alguém vivo.

Assim entendido, o livro de Janet é uma lição. Para que repitamos aquele agradável exercício do início da resenha (o supôr que você seja eu), caso você tenha procurado no livro um libelo em prol da liberdade absoluta das biografias, é certo que o livro de Janet é um prato cheio. Mas claro que a discussão não pode depender apenas do aval jurídico. O aval jurídico, conforme ficou argumentado no caso brasileiro, é um passo essencial. Mas a lição que Janet tem a nos dar é mais delicada. Os limites da biografia não são necessariamente jurídicos. Uma biografia não é nunca a história de só uma pessoa. Uma biografia é pelo menos a história de gente.