Mulheres e prêmios literários.




A Anica (do blog Hellfire Club, aqui) compartilhou dia desses (no facebook; não em seu blog) um texto de Nicola Griffith (aqui; ela é essa daí da foto) que trata sobre a escassa presença de mulheres em prêmios literários de alta patente. É a mesma discussão que trago à baila. Livros escritos por mulheres ou sobre mulheres não têm ganho grandes prêmios literários. Antes de refletir um pouco sobre o assunto, resolvi parar e fazer o mesmo dentro do curralzinho que me tange, isto é, em relação a alguns grandes prêmios de poesia lusófonos.

Vejamos. Para não me alongar em demasia, pego apenas dois casos: o Jabuti e o Portugal Telecom (que trocou de nome esse ano; agora é Oceanos). Um e outro posso considerar como dos maiores prêmios literários lusófonos, e um e outro possuem um espaço à poesia. Mas não só isso: um e outro contam, também, com uma lista de finalistas, o que será particularmente importante pras considerações que tecerei.

Comecemos com o Jabuti. O Jabuti existe desde 1959. Não quero analisar todo esse percurso de tempo. Analisarei de 2003 pra cá. A ideia inicial seria a de analisar de 2000 pra cá; mas, como o Portugal Telecom iniciou em 2003, vou colocar os dois em pé de igualdade. O espaço de tempo de 11 anos (e não 12 pois os finalistas da 13ª edição ainda não foram anunciados) é suficiente pra que uma boa parcela da produção contemporânea entre em jogo, de maneira que acho que temos aqui um espaço amostral significativo para a análise da poesia contemporânea.

  • Em 2003, dos 3 finalistas, nenhum era mulher. Por conseguinte, nenhuma mulher foi premiada.
  • Em 2004, dos 10 finalistas, nenhum era mulher. Por conseguinte, nenhuma mulher foi premiada.
  • Em 2005, dos 9 finalistas, 2 eram mulheres. As duas foram premiadas, em 1º e 2º lugar.
  • Em 2006, dos 10 finalistas, 2 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.
  • Em 2007, dos 10 finalistas, 2 eram mulheres. 1 foi premiada em 2º lugar.
  • Em 2008, dos 10 finalistas, 2 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.
  • Em 2009, dos 11 finalistas, 6 eram mulheres. 2 foram premiadas, em 1º e 2º lugar.
  • Em 2010, dos 10 finalistas, 3 eram mulheres. 1 foi premiada em 1º lugar.
  • Em 2011, dos 10 finalistas, 1 era mulher. Mas não foi premiada.
  • Em 2012, dos 10 finalistas, 3 eram mulheres. As 3 foram premiadas nos 3 lugares.
  • Em 2013, dos 10 finalistas, 3 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.
  • Em 2014, dos 10 finalistas, 2 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.

Isso quanto ao Jabuti. Já quanto ao Portugal Telecom, o que temos é (lembrando que, a partir de 2012, o prêmio passa a possuir uma categoria específica de poesia e, a partir de 2013, uma lista de semifinalistas, com cerca de 60 obras, e uma de finalistas, com cerca de 12 obras):

  • Não consegui dados muito precisos de 2003. Parece-me que, na época, a lista de finalistas não foi divulgada. De todo modo, nenhuma mulher recebeu o prêmio.
  • Em 2004, dos 10 finalistas, 1 era mulher. Mas não foi premiada.
  • Em 2005, dos 10 finalistas, 1 era mulher. Mas não foi premiada.
  • Em 2006, dos 10 finalistas, 3 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.
  • Em 2007, dos 10 finalistas, 1 era mulher. Mas não foi premiada.
  • Em 2008, dos 10 finalistas, 3 eram mulheres. 1 ficou em 3º lugar.
  • Em 2009, dos 10 finalistas, 2 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.
  • Em 2010, dos 10 finalistas, nenhuma era mulher. Por conseguinte, nenhuma mulher foi premiada.
  • Em 2011, dos 10 finalistas, 2 eram mulheres. 1 ficou em 3º lugar.
  • Como dito, a partir de 2012 passa a existir uma premiação específica de poesia. Dos 20 finalistas de poesia, 6 eram mulheres. Mas nenhuma foi premiada.
  • Como dito, a partir de 2013 nós contamos com uma lista de semifinalistas e depois com uma de finalistas. Dos 21 semifinalistas de poesia, 6 eram mulheres. Dos 4 finalistas de poesia, 1 era mulher. Mas não foi premiada.
  • Em 2014, dos 22 semifinalistas de poesia, 5 eram mulheres. Dos 4 finalistas de poesia, 1 era mulher. Mas não foi premiada.

Pois muito bem. Os dados são esses. Como se pode ver, realmente as mulheres possuem uma presença muito baixa tanto em uma premiação quanto em outra. Por quê temos tão poucas mulheres sendo premiadas? Isso é ou não um problema?

Sim, creio que é sim um problema. E aqui, desde já, é necessário que afastemos as respostas cínicas a respeito do assunto. Não estou apregoando cotas para o cânone nem muito menos que passemos a premiar mulheres apenas porque são mulheres, pondo de lado critérios de efetividade estética (na verdade, estou propondo que ponhamos justamente esses critérios no centro da mesa), ou mesmo que chutemos pra escanteio um homem que segundo o júri seja bom em prol de uma mulher que julguem mediana. O problema precisa ser colocado, a meu ver, dentro da sua real dimensão. Não estou acusando o prêmio de na verdade só premiar pessoas medianas ou ruins; na verdade, muitos poetas que já foram indicados para algumas das edições do prêmio são dos meus favoritos: por exemplo Paulo Henriques Britto, Marcus Fabiano Gonçalves, Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto, Marília Garcia ou Angélica Freitas.

Sou, em matéria de estética, um relativista. Não de modo total, pois faço uma série de ressalvas em relação ao relativismo desabrido na medida em que ele, na manifestação de alguns, se esqueça de considerar a realidade sociológica e argumentativa da crítica. Mas eu posso dizer, noutras palavras, que não creio que existam padrões que se queiram universais e infalíveis quando o assunto é a valoração literária: e mesmo supondo que existissem, mesmo supondo que só com o tempo nós realmente descubramos o que é bom e o que não é (argumento a meu ver ruim pois parte da premissa que o tempo é uma pátina consensual e uniforme, quando, na verdade, o futuro é tudo daqui pra frente, o futuro é um campo de embate de linhas de força distintas exatamente e em muitos sentidos mais intenso do que o próprio presente); e mesmo supondo que existissem e o tempo fizesse o que dizem que ele faz, isto é, peneirar, nós estamos falando de literatura contemporânea: nada disso aconteceu ainda; o tempo ainda é Godot. Assim, não acredito nem nos padrões qualitativos infalíveis ou mesmo objetivos, nem no tempo como panaceia. Podemos falar de zonas de consenso estética ou mesmo de consensos excessivamente gerais (num nível tão genérico que passa a ser impossível manter essa consensualidade num nível de debate efetivo, real); mas é no máximo isso: consensualidades parciais e datáveis (mas nem por isso menos importantes ou sólidas). Acho que existem tantas formas de valoração distintas quanto distintos sejam os argumentos, e o que devemos parar pra analisar é muito mais a qualidade do argumento do que de fato o julgamento final.

As duas premiações analisadas são soberanas pra decidirem premiar quem quiserem. Acho uma pena que em nenhuma das edições as premiações, e de modo geral é o que acontece Brasil afora, tenha sequer se preocupado em justificar o voto com um pouco mais de esforço que seja. Sei que o número de jurados é alto pra dar conta do número de obras inscritas, mas, à medida que o prêmio avança, conforme ocorre pelo menos com o Portugal Telecom, é comum que o número de críticos também vá se afunilando. E além do mais, um quesito de transparência depois da premiação feita não seria nada mal, no sentido de obrigar o crítico a pôr por escrito seus votos pelo menos na última fase e divulgar todas as justificativas posteriormente. O que deveria importar são os argumentos e não a autoridade estética do crítico. Dependermos da autoridade do crítico, aliás, é algo um tanto quanto risível, não só pelo que a ideia em si traz de "manja dos paranauês: então basta", quanto no sentido de que pressuporia que a avaliação estética depende de alguns instrumentos mais avançados do que outros e só, o que é uma meia verdade posto que sim, a avaliação estética se refina à medida que o crítico refina seus instrumentos de interpretação textual, mas, a partir do instante em que nos contentamos apenas com o aval e não com a leitura em si, é como se déssemos mais importância à posse do instrumental crítico do que de fato pro instrumental crítico em funcionamento. Pautarmos premiações literárias na argumentação mais do que apenas no prêmio ajudaria não só a desbancar meio mundo de bancas de júri fajutas, como contribuiria com o debate e com a própria literatura de maneira mais ampla e efetiva. Se digo pra vocês que crítica é uma questão de argumentos, então se uma premiação, que é o resultado de um empreendimento crítico (por óbvio), decide não justificar, decide não argumentar, então ficamos nos fiando em critérios de apreciação estética nebulosos. E não devia ser assim.

O que está em questão não é nem tanto isso. Podemos observar, de maneira clara, não só a partir do número de mulheres que realmente receberam um prêmio, ou das que subiram no pódio, ou das que foram indicadas, que existe por parte das premiações uma deficiência perceptiva. Isto é: não demonstram conseguirem perceber a produção literária feita por mulheres ao longo do país. Evidentemente que em qualquer uma das premiações, e mais amplamente em qualquer premiação que seja, é desejoso que se premie autores que tenham demonstrado excelência. Trata-se de um princípio operacional que serve de pressuposto a qualquer premiação literária. A falta de justificativas por parte dessas premiações infelizmente nos impede de poder discutir e debater de maneira mais sólida o que o júri entendeu por excelência e o como ela percebeu e interpretou, julgou essa excelência; e digo nos impede de debater nem tanto no sentido de contestar, pois, como eu disse, as premiações são soberanas; mas sim no sentido de termos subsídios críticos para que a discussão siga em frente, haja vista que o objetivo final de todo empreendimento crítico é a oxigenação do fenômeno literário por vias do debate, e não o depósito periódico de uma vultuosa quantia na conta bancária de alguns sortudos.

Se há uma deficiência perceptiva por parte desses críticos, é como se o resto todo apodrecesse. A percepção crítica é um aspecto fundante da crítica literária; ela não é simplesmente um aumentar o repertório, isto é, aumentar o pano de fundo e, talvez, pincelar um ou outro pra dentro da algibeira. Se o crítico julga que é apenas isso, então esse crítico muito provavelmente não é tão bom assim e nem toma seu ofício a sério. A crítica é basicamente uma crítica de si mesmo, e, ao mesmo tempo que critica o objeto, ela deve, de acordo com o empreendimento kantiano há dois séculos atrás, criticar a si mesma. O aumento do escopo perceptivo por parte do crítico é mais do que aumentar o repertório; a partir do momento em que é um aumento da percepção crítica, é uma maneira profunda de mudar o que o crítico entende e percebe do fenômeno literário. Novas percepções críticas sobre, por exemplo, a poesia simbolista, são suficientes pra que todo o resto do fenômeno literário seja mudado, pois implica não só que estou aplicando meus instrumentos de leitura crítica, de maneira inovadora (haja vista que estamos falando de um aumento de percepção), a uma área desconhecida ou até mesmo conhecida, como também implica que, graças aos resultados advindos desse aumento perceptivo, eu estou mudando minha concepção dos períodos posteriores e mesmo anteriores (e nem tanto por haver necessariamente um fio que liga todos os componentes do arcabouço de saberes literário, mas também pelo fato de que eu, enquanto leitor, mudo a mim mesmo a cada leitura e percepção que faço).

A listagem que fiz demonstrou que as premiações trouxeram poucas mulheres ao pódio ou à lista de finalistas. É de se perguntar se possuímos tão poucas mulheres escrevendo bem dentro do país, e, já incutido dentro dessa pergunta, de nos perguntarmos se o que estamos aplicando como instrumental analítico a fim de que cheguemos ao juízo valorativo não está de algum modo inadequado ou mesmo insuficiente para que possamos ler a produção literária feminina, ou, de modo mais amplo, a produção literária de qualquer estrato literário marginal, não só tomado a partir do gênero, mas também da raça, da geografia ou quem sabe até mesmo do privilégio editorial, isto é, autores advindos de grandes editoras ou de editoras independentes.

Creio que aqui já pude mostrar como o problema vai muito além do contra-argumento espúrio das cotas para o cânone. Afinal de contas, pensar que abrir cotas para o cânone seria o suficiente é o mesmo que passar por cima de uma série de problemas com uma facilidade que beira o cinismo. As cotas para o cânone pressuporiam que uma mudança capilar basta, e que a maneira de percepção do fenômeno literário vigente está certa, sem problemas: queremos a excelência, queremos os melhores. Tão simples, certo? Não é o que está parecendo. Dizermos que, independente do livro ser escrito por uma mulher ou por um homem, o que importa é a qualidade, não é exatamente algo a ser atacado; é um princípio operacional, de novo, essencial, o de que devemos ajuizar bem esteticamente livros que demonstrem excelência. O problema passa a ser o do que se entende e do qual caminho se trilha para este ajuizamento estético, haja vista que qualquer obra pode ser ajuizada de muitas maneiras e haja vista que o ajuizamento estético dependente fundamentalmente da percepção crítica do fenômeno literário: afinal de contas, o ajuizamento estético possui em sua estrutura íntima um mecanismo comparativo, de modo que se minhas maneiras de percepção são limitadas e não parecem possuir as ferramentas necessárias para a autocrítica, então meu ajuizamento, por conseguinte, será limitado (o que, no âmbito de uma premiação literária, é um problema grave).

Logo, é mais do que abrir um espaço condescendente pra que as mulheres deem o ar da graça. É, antes, o real autoquestionamento não só em relação à literatura feminina, mas às possibilidades literárias de um modo mais amplo (estou propondo que o crítico faça um questionamento de si mesmo, que olhe pra sua luneta e pras suas técnicas e se pergunte: estou conseguindo? sou capaz?), no que cairíamos no leque de possibilidades que antes apontei: ou seja, será que essas premiações estão de fato atentas à produção literária feminina, ou negra, ou gay, ou de regiões geográficas distintas dos centros de distribuição e pensamento crítico, ou mesmo de editoras pequenas, ou de gêneros tidos como menores (por exemplo o gênero erótico ou o satírico)? A listagem que fiz, pelo menos em relação à literatura feminina, demonstra que não estamos com essa bola toda; que, pra repetir a crítica que fiz, as duas premiações estão com um grave problema de percepção do fenômeno literário.

O Portugal Telecom, por exemplo. Analisando a curadoria e júri da premiação, que indica quem a compôs (algo a meu ver muito louvável):

  • Em 2003, dos 21 jurados que escolheram os finalistas, 6 eram mulheres. Dos 7 que escolheram os vencedores, eram 2.
  • Em 2004, dos 20 jurados que escolheram os finalistas, 6 eram mulheres. Dos 9 que escolheram os vencedores, eram 2.
  • Em 2005, dos 20 jurados que escolheram os finalistas, 7 eram mulheres. Dos 10 que escolheram os vencedores, eram 2.
  • Em 2006, dos 15 jurados que escolheram os finalistas, 7 eram mulheres. Dos 10 que escolheram os vencedores, eram 4.
  • Em 2007, dos 15 jurados que escolheram os finalistas, 6 eram mulheres. Dos 10 que escolheram os vencedores, eram 5.
  • Em 2008, dos 15 jurados que escolheram os finalistas, 7 eram mulheres. Dos 10 que escolheram os vencedores, eram 6.
  • Em 2009, dos 11 jurados que escolheram os finalistas, 7 eram mulheres.

A partir de 2010 o site da premiação informa apenas os nomes que compõem a curadoria. A curadoria é responsável por, digamos assim, fiscalizar o processo de premiação, não impedindo que também componha o júri. Como não estou falando da curadoria, deixo de lado os dados.

Como podemos ver, a disparidade numérica foi se reduzindo ao ponto de chegarmos a um bom patamar. Mas não quero implicar com isso que um número justo de mulheres compondo o júri do prêmio seja uma garantia de que a literatura feminina ou mesmo a literatura de estratos marginais será avaliada da forma como merece. Como argumentarei logo mais, o júri dessas premiações está interligado a uma realidade fática da literatura e do próprio mecanismo da premiação que poda e peneira ainda mais seu espectro perceptivo. Isso não deixa de ser uma ressalva, mas não pode ser tomado como uma desculpa. Além do mais, embora seja razoável crermos que uma mulher terá uma percepção da literatura feminina a priori mais acurada que a do homem, isso não impede que um homem também possa tê-la, mesmo porque estamos falando numa esfera crítica onde não se pode pressupôr algo como uma espécie de instrumentos exclusivos de um gênero ou de outro. O instrumental crítico é teoricamente comum a todos; mas apenas isso: teoricamente. A partir do instante em que ele é posto na prática é que podemos sentir as mudanças de uso que dele são feitas, à guisa de um martelo que, podendo ser usado por todos, na prática parece ser um instrumento único a cada um de nós conforme o batamos seja lá em que obra for. (E não preciso nem dizer que a existência puramente teórica de um instrumento crítico, aqui tomada como isenta de uma aplicação prática, é um absurdo, e que é com frequência no âmago da prática que o instrumental crítico encontra sua validade ou suas deficiências.)

A paridade de gênero, de raça, geográfica etc numa banca de júri equivale às mesmas necessidades e caraminholas que a presença de mulheres, por exemplo, nas premiações literárias tem a oferecer: isto é, se possuímos uma disparidade de gênero numa banca de júri, então é de se perguntar se não temos mulheres capacitadas para compôr esse júri. Razões práticas das mais variadas podem sempre oferecer escusas fortes para que pontualmente a disparidade ocorra, mas, se estivermos falando de algo que se protraia no tempo, o problema é basicamente o mesmo. Se temos uma deficiência perceptiva por parte da premiação, e se essa deficiência se mostra não pontualmente mas ao longo dos anos, então acho mais do que razoável dizer que uma busca por paridade de gênero, raça, geográfica etc passa a ser desejável. Junto de outras medidas, em especial as de se buscar por um prêmio que forneça argumentos e justificativas mais do que apenas somas monetárias, o ganho literário como um todo seria enorme. Mesmo porque o Jabuti e o Portugal Telecom são prêmios críticos que partem de inscrições, o que é algo que possui consequências profundas: uma coisa é que o júri tenha a liberdade de premiar quem ele queira; outra é que o artista ou o editor tenha que inscrever a obra. Na segunda modalidade nós temos fatalmente uma limitação que, por certo, poda o espectro perceptivo do crítico (e de novo eu digo que isto é sem dúvidas uma ressalva, embora não uma desculpa). A pluralidade do júri não se faria sentir de maneira tão direta quanto num prêmio onde o júri poderia ir à cata, por assim dizer, da obra. Teríamos de partir primeiro da representatividade que a premiação traz consigo para depois incorrermos nas raias do estímulo.

Mas de volta aos dados trazidos. Creio que, com eles em mãos, o problema ficou até mais instigante. Muitas das mulheres que compuseram o júri do Portugal Telecom são críticas consolidadas: por exemplo Flora Süssekind, Leyla Perrone-Moisés, Regina Dalcastagnè, Nelly Novaes Coelho, Regina Zilbermann etc. É difícil simplesmente dizer que gente dessa envergadura possua uma deficiência perceptiva. Não digo que seja de todo um absurdo pois a excelência crítica numa área não implica dizer que esse crítico por conseguinte está preparado para ser, por conseguinte, um bom jurado numa premiação literária, o que implica uma percepção crítica sintonizada nas frequências da literatura contemporânea. Todavia, não creio que seja o caso aqui.

O problema parece ganhar arestas novas. O Portugal Telecom, conforme informado pelo próprio site, premiou ao longo de sua história autores advindos de 12 editoras distintas. 12 editoras distintas não é algo nem um pouco satisfatório. A deficiência perceptiva por parte dos críticos não vai de encontro apenas a uma deficiência perceptiva de sua formação, de seu instrumental, de suas técnicas. Um crítico que componha uma banca de júri de uma premiação deve ser um crítico sintonizado com a literatura contemporânea. Digo sintonizado no sentido não só de saber ler o que vem até ele; digo sintonizado no sentido de arregaçar as mangas e sair à caça do que justamente não está a seu alcance imediato. É preciso um vigor que para muitos críticos, consolidados que sejam, já não é mais tão desejável (e não por não serem menos vigorosos, mas por possuírem ou um vigor distinto, ou um vigor encaminhado a objetos distintos que não a literatura contemporânea). A literatura contemporânea é um fluxo quase que ensurdecedor. Em muitos sentidos é confortável que o crítico se limite ao que uma série de órbitas concêntricas lhe informe, ou, quando muito, o que um círculo de amizades igualmente o faça. Nosso circuito de divulgação literária é excludente. O privilégio de ter obras veiculadas fora de um pequeno círculo de giz caucasiano é quase que um milagre. E, é claro, o crítico não pode ficar dependendo de milagres.

A realidade com editoras grandes é mais fácil. Digamos que ter o espectro perceptivo calibrado ao catálogo dessas grandes editoras é mole. Difícil é ter calibrado com as pequenas, o que, metaforicamente, é o mesmo que, ao invés de você sintonizar uma rádio no conforto de sua poltrona, você ter que arrumar a mochilinha e sair desembestado no mundo tentando achar sintonias novas (ou, como dizem os editores da Modo de Usar, lançar sondas nas jazidas). Além do mais, existem entraves físicos que de certo modo privilegia um corte prévio ao fluxo do contemporâneo. Explico: tanto no Portugal Telecom quanto no Jabuti é necessário que o artista inscreva seu livro e envie 5 exemplares. No âmbito da poesia, por exemplo, só isso já é um problema grave: muitos poetas mal e mal conseguem publicar seu livro, quem dirá se planejarem para concorrer no prêmio! É claro que grandes editoras possuem uma competitividade muito maior nessas horas, mesmo porque elas inundam as livrarias e possuem uma rede de distribuição e mesmo de crítica muito mais efetiva do que a de qualquer editora pequena. Podemos, então, dizer que essas premiações estão certo modo presas a grandes editoras?

O Jabuti, por exemplo, conforme disposto no item 5.2 de seu edital e sub-itens seguintes (aqui), cobra uma taxa de inscrição: obras individuais associadas à CBL pagam R$ 245 a obra, R$ 315 para associados a instituições congêneres e R$ 370 a não-associados. Considerando que a tiragem de um livro de poemas é algo em média de 100 exemplares (é essa a realidade das editoras pequenas), eu não preciso nem dizer que não é algo viável para muitas editoras. E de fato, se formos observar o número de obras inscritas na categoria para o prêmio Jabuti do ano de 2003 até 2014, temos, respectivamente, os seguintes números: 106, 122, 126, 112, 150, 138, 145, 176, 156, 107, 111 e 110. O número de obras, por exemplo, inscritas no Jabuti de 2014, ultrapassou no total os 2 mil inscritos. Supondo que todos tenham pago 245, nós temos meio milhão arrecadado. Acho que isso deve pelo menos pagar uma boa parte do prêmio. E não acho ruim que o prêmio o faça. É preciso que ele sobreviva; ter um alcance nacional é, quase que por definição, ter uma planilha de contas gorda. Não tenho meios pra discutir se o preço da inscrição é exagerado ou não, mas é inegável que ele poda. Na verdade, se considerarmos a premiação pra poesia, só o simples fato do Jabuti premiar livros impressos apenas já implica um recorte excludente, pois muitos poetas não cabem num livro: por exemplo um poeta performático. O que quero ressaltar com isso tudo é que essa realidade prática da inscrição aumenta em mais alguns plugues a conexão entre os problemas práticos que entravam a publicação e divulgação de literaturas que não contam com o apoio de grandes veículos de divulgação, e a cúpula crítica da premiação. Assim, embora estejamos discutindo o tópico das mulheres e da premiação literária, isso não quer dizer que toda a plêiade de problemas que a mulher enfrente ao publicar e divulgar uma obra não esteja presente (por exemplo o simples problema do ser-escritora numa sociedade machista, ou então o ser resenhada, haja vista que nós ainda lemos muito pouco mulheres).

Claro que, ainda na questão numérica das inscrições (mais especificamente, dentro do setorzinho da poesia), é razoável dizer que há uma espécie de elas-por-elas. Supomos que grandes editoras possuem uma capacidade enorme de inscrever obras num prêmio como o Jabuti; até pressuponho que no orçamento pra publicação do livro deva ter uma parte que é levada em conta justamente nesse sentido: ou seja, a grana pra publicação. Mas as grandes editoras, como sabemos bem, publicam pouco poesia, de modo que, mesmo que elas registrem tudo o que tenham publicado de poesia num ano, ainda assim isso se brincar não chega nem a 10. Ainda podemos vislumbrar uma participação considerável de pequenas editoras nesses números. Aqui eu confesso que estou na especulação, mas, haja vista que o Jabuti é um dos principais prêmios do país, eu pressuponho que não seja baixo o número de editoras pequenas participantes; pressuponho que ele pelo menos é bem maior que a casa dos 12. É o mesmo raciocínio em relação à literatura feminina: disse no final do parágrafo anterior que a mulher enfrenta, ainda hoje, embora num grau consideravelmente menor, entraves para com a publicação literária que o homem no geral não enfrenta. Alguns dados nos dão a real dimensão do problema.

Considerando o espectro de alcance das grandes editoras, o que, na prática, implica considerar um espectro de alcance que se estende por todo o país, Regina Dalcastagnè cita que 71% dos prosadores publicados de 1990 a 2014 eram homens e 96% eram brancos. A desproporção só para com a publicação parece bater com o baixo número de mulheres premiadas, mas, como eu disse, há também toda uma parcela de editoras pequenas nessa jogada, e, embora não tenhamos dados formais sobre as estatísticas para com editoras pequenas, é razoável pressupôr que com elas a desproporção é menor. Aliás, é também Dalcastagnè quem cita outros números que poderiam inclusive ter substituído minha análise anterior: isto é, tomando-se como base os principais prêmios brasileiros (Portugal Telecom, Machado de Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo, Zaffaroni & Bourbon) no período de 2000 a 2014, e computando só o primeiro lugar, nós tivemos 39 homens premiados e apenas 3 mulheres. (A primeira pesquisa foi coordenada por Regina, enquanto a segunda foi feita por ela própria; você pode ler a versão mais recente de ambos os dados, cobrindo até 2014, aqui; salvo engano, ela ainda será publicada academicamente; a versão antiga da pesquisa sobre o romance brasileiro, que vai até 2004, pode ser lida aqui, em especial a p. 19 do pdf; e, referentes até 2011, aqui, p. 12 do pdf.) Há um abismo que separa a mulher da publicação, mas ele não justifica a desproporção tão gritante entre mulheres e homens premiados. Na verdade, compararmos a proporção entre autores publicados e a proporção entre os premiados é útil só a longo prazo e num espaço amostral mais gordo como o que temos à nossa frente, pois não faz muito sentido que a proporção de autores premiados de algum modo bata com a de autores publicados. Isso não precisa ocorrer. O que faço é, frente ao fato de que num espaço de tempo considerável não premiamos mulheres e temos dado mostras de sequer as lermos ou mesmo percebermos a produção literária feita por elas, pedir pra que questionemos nossos pressupostos enquanto leitores.

Chega uma hora em que não dá mais pra ficarmos nos respaldando apenas na qualidade. Como se a qualidade fosse autoevidente. Autoevidente, eu expus lá atrás, ela não é. Ela sempre necessita de uma argumentação mais demorada, e seria desejável que grandes prêmios (pelo menos eles!) a fizessem. Poderiam até mesmo reduzir a quantia paga aos artistas e passar a dá-la aos críticos (e sim, poderiam até reduzir o número de críticos também). Vale muito mais uma premiação que justifique com demora suas escolhas do que uma que pague uma soma vultuosa e se contente com isto. Os critérios qualitativos do Jabuti, por exemplo, mais ou menos de 2009 pra cá parecem ter sofrido algumas mudanças. Até então, a premiação costumava dar seus prêmios a poetas de uma linhagem órfica, certo modo cerebrina, ou então com uma poesia lírica, digamos assim, tradicional, uma poesia lírica que apresente um eu cuja sentimentalidade, intensa mas nem por isso desabrida, passe pelos canais corpóreos de sempre: na prática, a visão e a audição ao invés de, por exemplo, o paladar e o tato. Em 2000 o Jabuti premiava Thiago de Mello; em 2001, Anderson Braga Horta (poeta que, confesso, não conheço) ao lado de Lêdo Ivo e Alberto da Costa e Silva; em 2002 ele premiava Claudia Roquette-Pinto, mas ao lado de Lêdo Ivo, novamente, e Ivo Barroso; em 2003, Bruno Tolentino, Gerardo Mello Mourão e Marcus Accioly (o último eu não conheço, mas os outros dois nós podemos caracterizar de forma até segura de órficos); em 2004, Alexei Bueno, Marco Lucchesi, Alphonsus de Guimarães Filho e Armando Freitas Filho; em 2005, trazendo duas mulheres pro pódio, eram duas mulheres cuja poesia não destoava dos traços gerais até então: Dora Ferreira da Silva e Neide Archanjo; em 2006, Affonso Romano de Sant'Anna, Ruy Espinheira Filho e Domingos Pellegrini; em 2007, Affonso Ávila, Neide Archanjo, Armando Freitas Filho e, postumamente, Bruno Tolentino; e em 2009, Ivan Junqueira, Marcus Vinicius Quiroga e Paulo Henriques Britto.

A partir de 2009, o prêmio muda um pouco seu escopo preferencial para com a poesia órfica. Observe o leitor como, por exemplo, até então nós não tivemos nada de poesia erótica ou satírica. E aliás, eu suponho que podemos aumentar e muito o escopo de análise e ainda assim nos estarrecermos com a escassez gritante de obras de poéticas tidas por menores, como é o caso da poética satírica ou erótica, nas premiações... E aqui, claro, podemos voltar à ideia da representatividade: é possível que o número de obras eróticas ou satíricas inscritas seja baixo pois existem paredões de discursos críticos que enxotam tais produções. Houvesse uma preocupação pela abrangência e pelo enfrentamento da real heterogeneidade do fenômeno literário e não manteríamos com tanta facilidade esses gêneros poéticos "menores" nas catacumbas... Mas voltando aos dados. Em 2009 nós tivemos Alice Ruiz, a publicação da Pasta Rosa de Ana Cristina César por Viviana Bosi, Eucanaã Ferraz e Reynaldo Bessa. (Foi mais ou menos durante essa época que um reinteresse pela figura de Ana Cristina César seria reencetado em especial por mulheres ao longo do país, o que culminaria no lançamento, em 2014, da poesia completa da autora pela Cia das Letras.) Em 2010 nós temos Marina Colasanti em primeiro, Reynaldo Jardim e Armando Freitas Filho; em 2011 tivemos Ferreira Gullar, Gilberto Mendonça Telles e Ricardo Aleixo; em 2012, Maria Lúcia Dal Farra, Zulmira Ribeiro Tavares e Josely Vianna Baptista; em 2013, Ademir Assunção, Glauco Mattoso e Antonio Cicero; e em 2014, Horácio Costa, Marcus Vinicius Quiroga e Zuca Sardan.

Claro que, ao apontar uma mudança estética, não estou dizendo que ela seja é radical. Em 2012, por exemplo, apesar de colocar três mulheres no pódio, colocou duas (Maria Lúcia Dal Farra e Zulmira Ribeiro) que não destoam dos parâmetros até então adotados. A exceção ficou com Josely Vianna Baptista, num livro de viés experimental. Parece que aos pouquinhos nos encaminhamos para algo mais contrabalanceado, de modo que a presença de poetas de vertente órfica não seja tão marcante como até então era. Creio que nos falta ainda um longo caminho até um estágio onde possamos dizer com segurança que possuímos uma premiação que realmente perceba o fenômeno literário de maneira justa e condizente com a realidade heterogênea da literatura.

Esse caminho está sendo trilhado, mas às custas de muitos solavancos. Todavia, não pensemos que, por parecer estar, a crítica que faço quede inútil. Com crítica não funciona muito bem essa coisa de deixar as coisas fluírem de acordo com a ordem natural. A ordem natural da crítica é o establishment. As ressalvas que fiz anteriormente não buscaram só mostrar que existe todo um jogo de pressuposições quando estamos diante de números tais como os que apresentei; isto é, nós não temos como saber exatamente o que aconteceu pra que números tão baixos assim fossem registrados. Tomados isoladamente, sabemos que cada ano é um ano, mas, quando observamos o baixo índice de autoras sendo resenhadas, debatidas e, nesse caso, premiadas (cominados por exemplo com os dados reveladores advindos das pesquisas de Regina Dalcatasgnè: vide os links anteriores), e quando, principalmente, os tomamos num espaço considerável de tempo, então a conclusão a que podemos chegar é só uma: problemas. Pontualmente nós podemos pressupôr, por exemplo, que tenham havido anos em que as mulheres não tenham escrito nada que o júri tenha achado bom. Mas isso por um lapso de tempo tão grande, isso como regra...

Oras: analisando-se o perfil dos vencedores, podemos notar que a maioria é homem, branco, heterossexual, não é estreante, está veiculado a determinados centros geográficos de publicação e crítica literária, possui uma obra com determinadas vertentes estéticas etc. A reversibilidade da moeda continua sendo a mesma: se é razoável dizermos que as mulheres, negros, gays, autores de editoras pequenas etc não publicaram nada de bom num ano, por outro lado o mesmo pode ser aplicado a esses autores homens, brancos, heterossexuais etc; e no entanto, apesar dessa reversibilidade ser também plausível, ela é rigorosamente a exceção. Oras: podemos até dizer que o padrão que aponto é também o padrão das obras literárias publicadas (ou seja, a maior parte dos autores obedece o tal padrão), mas aqui é necessário de novo efetuarmos um corte entre a realidade da publicação e a realidade das premiações. As premiações buscam obras de excelência, de modo que, por definição, inexiste uma coincidência total entre uma esfera e outra. É de se pressupôr que exista uma interferência considerável, mas não podemos ir muito longe além disso. O que quero dizer é: apesar da realidade da publicação literária nos levar a dizer que o número de autores advindos de estratos marginais é baixo, a reversibilidade da hipótese que fiz ainda assim é possível, isto é, se por um lado é plausível dizermos que pode muito bem haver anos em que a produção de estratos marginais não tenha sido boa, do mesmo modo é também plausível imaginarmos um ano em que a produção dos estratos-padrão também não o tenha sido.

E mesmo feita a devida calibragem de que esses estratos marginais não possuem acesso à publicação literária (é o que a realidade dos fatos diz) e que não estão sendo lidos (o que impede a produção e veiculação de sua literatura), ainda assim não conseguimos chegar a uma justificativa adequada à disparidade tão gritante que vemos no âmbito das premiações literárias. Se nos circunscrevêssemos a um âmbito principiológico da crítica, a coisa não mudaria muito: isto é, é um princípio operacional da crítica o de que o número de obras de excelência é baixo; se o número total de autores homens é X e o de mulheres é Y, e se X é maior que Y, e se eu tenho, digamos, um número X1 de obras de excelência dentro de X e um número Y1 dentro de Y, e se tanto X1 quanto Y1 representam um estrato numericamente baixo dentro de X e Y respectivamente, isso não quer dizer, necessariamente, que graças ao fato de que X é maior que Y então, por conseguinte, X1 seja maior que Y1 na mesma proporção que X é maior que Y, e por um motivo sólido o bastante: a produção de obras de excelência não possui uma proporção numérica lógica, por assim dizer, em relação a qualquer todo que estejamos considerando. Mas isso só num âmbito principiológico. Quando entramos na real esfera heterogênea e relativa da crítica, as coisas mudam muito de figura, pois há que se considerar a percepção que o crítico faz de X e de Y e o que ele tem como instrumental interpretativo para que consiga redundar num juízo valorativo que gere X1 e Y1. Problemas fáticos que ocasionem a marginalização de Y trarão entraves adicionais ao ajuizamento que gere Y1, por exemplo.

Isto posto, julgo que meu argumento de que há uma deficiência perceptiva que afeta o instrumental crítico segue de pé. Essa deficiência perceptiva é congruente com a realidade literária, ou seja, a própria realidade literária produz e veicula escassamente a produção desses estratos marginais; mas a existência destes entraves não anula o fato de que uma persistência numérica tão baixa é reveladora da fragilidade da estrutura crítica. E não estou, com isso, querendo reduzir os méritos reconhecidos pelas premiações desses autores, isto é, dizer que por exemplo um Ferreira Gullar, vencedor do Jabuti em 2010, tenha ganho só por ser homem, branco, heterossexual etc. Sinceramente acho esse livro do Gullar um tanto quanto chinfrim, mas quero lançar um olhar mais complexo sobre a questão do que "simplesmente" apontar a má qualidade de um livro (entre aspas pois sei que só isso já dá pano pra manga) que, ao fim e ao cabo, eu julgo ruim: isso demandaria argumentos de minha parte a respeito do assunto, o que, dentro do que entendo como sendo o funcionamento da valoração estética, me faria fugir desse assunto aqui que trato. Especificamente: a partir do momento em que o padrão é este que citei anteriormente, e que este padrão tem se demonstrando excludente, então existem problemas nesse padrão e não na produção de quem nele porventura encaixe. Estou propondo que abramos os olhos e sejamos mais atentos em relação à produção nacional em todas as suas potencialidades e não simplesmente com base em fontes esteticamente privilegiadas.

Além do mais, como eu disse, o mecanismo de inscrições e, logo, o mecanismo que faz com que o campo perceptivo dos críticos seja formado, é um mecanismo que possui entraves, não de todo desprezíveis, que barra uma parte considerável da produção poética contemporânea. Se já existe aqui mesmo uma cisão entre homens e mulheres, ou seja, mulheres são menos inscritas em prêmios, eu pelo menos não possuo dados pra provar a hipótese, embora seja uma conclusão lógica. De todo modo, acho difícil de crer que a proporção de mulheres inscritas seja sempre numa proporção tão baixa quanto a que vemos, mesmo considerando que a publicação de mulheres já seja por si só baixa. Estaríamos cada vez mais redundando numa desculpa que pontualmente pode funcionar: isto é, de que livros que o júri pudesse premiar de algum jeito ou de outro não chegou a seu conhecimento. Mas só pontualmente; num espaço temporal como o que tracei, dependermos de uma desculpa assim é absurdo: nós estamos falando de um processo que se estende ao longo do tempo.

Nós não estamos lendo nem estamos premiando mulheres. Uma coisa está ligada intimamente à outra, mesmo porque a premiação de mulheres envolve também um fator significativo no campo literário. Premiar mulheres significa, ainda mais quando falamos de premiações com alcance tão amplo quanto o Jabuti ou o Portugal Telecom. Não se trata, é bom que se repita, de defender a ideia de enfiarmos mulheres ali no pódio sem motivo algum. Não estou convidando as pessoas a, da noite pro dia, abrirem um pequeno espaço supostamente proporcional às mulheres no circuito literário. Estou convidando a que debatamos as formas com que lemos e percebemos a produção escrita por mulheres, o mesmo podendo ser dito para a forma como lemos e percebemos a produção escrita por qualquer estrato marginal. Nós não vamos chegar muito longe se continuarmos a querer resolver problemas de raiz cultural sem uma crítica antes de tudo própria. Ao invés das alvíssaras fáceis e confortáveis, fecundadas num solo onde a premiação pura e simples equivale a um investimento no todo da literatura, deveríamos descobrir um prazer maior e mais sério no dissenso, isto é, não no que ele tem de incutir contradições pseudo-prazerosas (algo próximo da iconoclastia terapêutica ou da intransigência chique), mas sim no que esse dissenso tenha a produzir de debate e discussão.