Uma discussão desencontrada.

C
onfesso que não presto muita atenção no que acontece na FLIP. Isso explica porque deixei, até pouco, passar a discussão sobre literatura feminina que pegou fogo por lá. Quem quiser ler a reportagem a respeito, pode pegar o gancho da fala de Daniel Galera: aqui (é importante ressaltar que a mesa era sobre outro assunto; a questão sobre a literatura feminina acabou acontecendo). Acompanhei muito pouco das opiniões que correram, mas, do que captei, eu pincelaria um texto de Ronaldo Bressane, aqui, e um de Sérgio Rodrigues, aqui.


O texto de Sérgio Rodrigues cai como uma luva na falácia do espantalho logo de cara, ao criar essa figura do anão albino não sei das quantas pra ilustrar uma discussão histórica e culturalmente condicionada. É o que aparece também no texto de Bressane quando ele cita, com uma pitada de sarcasmo, "as minorias LGBTXYZ ou nerds viciados em RPG bem como seguidores da Cientologia". São momentos muito infelizes que demonstram um menosprezo por parte dos autores a respeito das questões tratadas... Quem sabe se soubessem (ou se reconsiderassem com mais ênfase e calma) que a sociologia não é tão simplesmente na porta ao lado, poderiam extirpar estas excrescências. Mas não chego a dizer que esses momentos danificam a estrutura central de seus argumentos; na verdade, se digo que a discussão é desencontrada, é porque creio que ela deixou de perceber bem duas coisinhas: 1) a fala de Galera girou em torno de um conceito adstringente e redutor de literatura feminina; e 2) a abordagem sobre literatura feminina naquela mesa, por sua vez, girou em torno da questão de se um escritor homem pode expressar artisticamente experiências femininas ou não em seu texto. Uma vez que entendemos isto, então os textos de Bressane e Sérgio Rodrigues a meu ver possuem premissas corretas, das quais coaduno. Especificamente, que o conceito redutor de literatura feminina é danoso e que sim, um homem pode expressar artisticamente experiências femininas, uma vez que a capacidade empática humana não é coisa pouca. Não se pode menosprezá-la.

A seleção de autores e de mesas na FLIP é reconhecidamente excludente. Todos os anos, um número baixo de mulheres, negros, gays... E aí entra a perguntinha demoníaca: o que acarreta esse panorama excludente são critérios meramente qualitativos ou será que uma defasagem na percepção do fenômeno literário não está em jogo? As críticas de Ricardo Domeneck permanecem atuais: aqui. Em que sentido digo atuais? Não vou ficar entrando muito em rodeios, portanto tentarei ser direto.

Há um conceito operacional, funcional do que seria a literatura feminina. O problema é que esse é um conceito excludente. É aquela ideia de que a literatura feminina é literatura feminil, de mulherzinha (nessas horas adjetivos referentes à mulher são sempre associados à fraqueza e à falta de vigor, mesmo qualidade), leve, floreada, o escambau. Tal concepção é funcional pois se posta diante de um público, que é sempre um complexo de pessoas em muitos sentidos inapreensível (o que não exclui formas de agrupamento voluntárias e conceitualmente condicionadas, isto é, leitores com mesmas bases conceituais, com mesmas teorias, com afinidades em suma, o que implica uma série de posturas análogas para com o fenômeno literário); se posta diante de um público e cria um padrão, uma espécie de recorte e nele encaixa um setor de leitores (na verdade, em tese espera encaixar). Como esse recorte e essa percepção de público não se dá por si só nem numa esfera apenas referente à vendagem, mas também numa esfera educacional, crítica, teórica etc, então nós podemos dizer que o recorte de público que permite a criação do que se entende por literatura feminina possibilita mais do que a construção artificial de uma identidade no meio da variedade: permite a emergência de um conjunto de posturas que são lançadas ao público de leitores como um todo (e esse público, por sua vez, repete estas posturas, uma vez que o "lançadas" implica dizer um acondicionamento desse público), bem como emergência de uma produção de obras que refratem e alimentem concepções assim.

É quando toda uma literatura é produzida a fim de que se encaixe nesse recorte e todo o público de leitores se comporta de certas formas quando referente a esse recorte. Se nós pensamos a ideia de uma literatura feminina como advinda desse recorte de público, implica dizer que há uma literatura que é feita e vendida como se encaixando no padrão da literatura feminina e a própria comunidade de leitores se posiciona de certas formas face a esse conjunto da literatura feminina, estando esse público incluso ou não no recorte mencionado. Anne Finch, poetisa inglesa do século XVII, possui um poema icônico chamado The Introduction (Raphael Elaphar o traduziu na íntegra, e duas vezes, aqui), em que, no final da primeira estrofe, comenta:

      Mas ah! Que uma mulher queira escrever
      Os homens veem como intrometer,
      E logo é tida como presunçosa
      E dona de uma falta indecorosa.
      Dizem: "se esqueceu qual o seu lugar?
      A moda, a dança, cozinhar, passar...
      Coisas de mulher são coisas assim.
      Ler, escrever, pensar: isso é ruim
      Para sua beleza, é exaustivo
      E fere os privilégios de que vivo!"
      (Enquanto a escravidão do lar é tida
      Como o mais alto objetivo da vida.)

É uma passagem famosa pois foi citada por exemplo por Virginia Woolf no seu clássico A room of one's own. Mas os versos anteriores também são dignos de nota:

      Se intento publicar os meus poemas,
      Muitos censuram e acham mil problemas,
      E alguns, julgando os versos afetados,
      Rotulam: "Fúteis. Não são inspirados."
      É quem, pensando a arte, só ressalta
      Numa obra o que nela está em falta.
      Bons críticos quem sabe ataquem isto,
      Mas, lendo, também dizem: "Por mulher escrito."

Aqui nós somos confrontados com duas realidades do recorte que engendra o conceito de literatura feminina. Na primeira citação que fiz, caímos de cara no fato de que a condição de simplesmente erguer a pena, a caneta, e escrever, é em muitos sentidos um privilégio. Implica uma especialização (ou seja, horas de estudo, não necessariamente escolares, e de gestação, de modo mais amplo, não só de um livro mas de uma escritora), e implica a aceitação, por parte do público, por parte da época, de que uma atividade assim possa ser feita por quem se propõe a fazê-la. É a realidade prática que se ergue à maneira de uma muralha entre a mulher e a escrita, e que foi responsável pelo silenciamento de tantas vozes no decorrer dos séculos, bem como responsável pela descontinuidade que a tradição de autoras mulheres apresentou na maior parte da História: ou seja, poucas, pouquíssimas realmente conseguiram fugir da opressão patriarcal e simplesmente escrever (o que implica pelo menos pegar a pena, publicar, divulgar). Mas não é só isso que avulta. A literatura também possui mecanismos excludentes próprios, visto que ela também implica um conjunto de percepções e posturas para com o fenômeno literário e não apenas a massa amorfa de obras já publicadas. Se a sociedade é machista, a literatura, que é veiculada por pessoas de carne e osso, também há de cunhar mecanismos literários machistas. Não é só que a literatura e a mulher são afastadas; a literatura também afasta a mulher, se incluirmos no bojo do que menciono como "literatura" a proibição de que a mulher trate alguns temas e de algumas maneiras, por exemplo, bem como nas formas de percepção e análise que um eventual crítico possa lançar na obra dessa autora. (Estes todos são tópicos discutidos de maneira brilhante por Sandra Gilbert e Susan Gubar em The madwoman in the attic, que analisa a literatura feminina de língua inglesa do século XIX.)

Aqui voltamos àquela noção excludente de literatura feminina que fora rechaçada na mesa da FLIP e nos textos citados. O recorte de uma literatura feminina sufoca, limita, poda. Toma-se o público feminino e, ajudado pela alvenaria patriarcal, empurra-se pela garganta desse público recortado uma literatura tal e qual. A responsividade do grupo recortado à literatura que lhes é imposta é tanto decorrência de uma identificação que, de resto, sempre fundamenta de algum modo o recorte, mas também da alvenaria patriarcal aludida, de um sistema educacional que privilegie a transmissão de certas posturas, certos autores lidos de determinadas maneiras, certos padrões de composição artística etc. Noutras palavras, o recorte de uma literatura feminina sufoca, limita, poda não só por ser recorte: ele, uma vez que não está sozinho e nem é simplesmente o ato de recortar, mas também o ato de se educar tendo em vista o que este recorte propicia e o que dele se espera, acondiciona a produção literária feita por mulheres de maneira geral, e faz que mesmo aquelas que busquem fugir do tal recorte de público (que com o passar dos anos passa a ser um nicho forçado, uma gaiola), sejam postas em segundo plano, sejam lidas de maneira duvidosa, sejam encaixadas de maneira torta em leituras guiadas por posturas analíticas masculinas etc.

A emergência de uma literatura feminina, como foi abordado de maneira incisiva por Héléne Cixous em La Rire de la Méduse, é a emergência de uma literatura escrita por mulheres que rompa com a funcionalidade desse recorte excludente. Afinal de contas, a mulher deve possuir o direito de escrever o que quiser... O que a impede que o faça é em grande medida a constrição de um conceito fajuto de literatura feminina. Nós podemos sim abordar e falar numa literatura feminina em sentidos tais como o do próprio rompimento desse recorte (isto é, uma mulher que escreva e fuja desse recorte estará produzindo literatura feminina) ou mesmo da tradição de textos literários produzidos por mulheres, que, como antes mencionei, apesar de seu caráter desencontrado ao longo dos séculos, adquiriu uma continuidade consistente a partir do século XIX (isso se considerarmos o percurso literário por si só, o que talvez no âmbito da literatura feminina não represente um grande problema mas que, no âmbito por exemplo da literatura negra, é invariavelmente empobrecedor, visto também devermos considerar a contribuição de um arcabouço cultural não-literário). É o que diz Elaine Showalter ao demarcar a história da literatura feminina em três fases: 1) a fase feminina (feminine), quando a mulher escreve e busca se igualar a padrões masculinos; 2) a fase feminista (feminist), quando a mulher protesta contra esses padrões masculinos e busca imagens e símbolos próprios; e 3) a fase fêmea (female), própria do modernismo pra cá, que é quando a mulher descobre a si mesma e traz a feminilidade como experiência para uma arte e técnicas literárias autônoma. Ainda com Showalter, essas três fases, ou a literatura feminina de modo geral, trazem consigo a emergência daquilo que Showalter chama de gynocriticism, uma forma de crítica literária que adote estruturas femininas e crie novos modelos de estudo da experiência feminina ao invés de simplesmente adotar padrões masculinos estandardizados. (Há quem critique a gynocriticism de se olvidar de aspectos raciais, políticos, regionais, geográficos etc na hora da análise, dando uma atenção supostamente demasiada ao gênero; é uma contra-crítica que possui sua procedência, mas que, de todo modo, não creio que anule a pertinência da gynocriticism, mesmo porque, apesar de seu escopo ser a questão de gênero, ela não se esquece que a instância de gênero vai de encontro e se estrutura precisamente graças a aspectos raciais, políticos, regionais, geográficos etc...)

Um caminho, noutras palavras, que levaria a uma independência literária da mulher e não a seu retorno ao que se entende de forma canhestra como literatura feminina. Simone de Beauvoir nota, por exemplo, que na história da literatura a mulher sempre foi objeto lírico e somente poucas vezes pôde se expressar, ou seja, somente poucas vezes foi sujeito lírico (é também o que Christina Rossetti alude no prefácio de seu mini-ciclo de sonetos Monna Innominata, escrito na perspectiva de Beatriz e Laura). Isso implica dizer que posturas líricas foram erigidas e convencionalizadas e impostas aos poetas de maneira geral, sejam homens ou mulheres. A subversão de um panorama assim não é simplesmente a subversão de pegar a pena, escrever, publicar, divulgar; é também a subversão de, se der na telha, sair do que se espera e entende desse convencionalismo poético, ou seja, fugir da construção cultural do segundo sexo. O que deve ser rechaçado é um conceito assim, de literatura feminina, advindo de um recorte violento de público e de uma adequação imposta e igualmente violenta a esse mesmo público. Mas isso não muda o fato de que possuímos padrões de escrita masculina (algo muito bem discutido em dois textos de Ricardo Domeneck, Útero, XX, GENDER/GENREaqui e aqui). Que temos uma literatura de homenzarrões, o reverso da moeda da literatura de mulherzinhas que possui o diferencial de ocupar uma posição ativa no fenômeno literário.

O que não implica dizer que não seja um conceito igualmente fajuto. Coisa que, diga-se de passagem, nos faz voltar à correlação que, segundo Sérgio Rodrigues e Bressane, outras pessoas apontaram (mas que infelizmente não pude ler para entender mais de perto o argumento), de que somente uma mulher poderia escrever sobre mulheres. O argumento central de Sérgio Rodrigues, eu repito, é também o meu: a capacidade empática humana não é coisa pouca. Ela é surpreendente. Mas os mecanismos de exclusão são tão eficientes que estratos oprimidos de uma sociedade não encontram fisicamente e nem mesmo artisticamente meios de equacionar suas experiências em obras acabadas. O empoderamento dessas mulheres e estratos sociais é uma maneira simples e óbvia de podermos escutar as histórias e emoções que eles podem nos contar. E veja que não se trata nem tanto de dizer que existem coisas que só eles poderão expressar. É razoável (digo até que é óbvio) dizer que existem vivências que somente alguns poderão ter, mas entre a vivência e a expressão há uma distância considerável (a distância de se mobilizar um arsenal discursivo capaz de plasmar a experiência em texto, em obra), de modo que creio que virtualmente qualquer pessoa é capaz de expressar qualquer conteúdo, desde que possua uma capacidade empática desenvolvida o suficiente (o que implica um conluio, ainda que mínimo, para com o vivenciar uma experiência própria, vivenciar uma alheia ou lançar mão de saberes compartilhados grupalmente, ou seja, saberes culturais); não se trata de dizer isto, mas sim de dizer que serão relatos a mais que só têm o que nos enriquecer. São histórias, são emoções, experiências que deixamos de presenciar graças a mecanismos excludentes brutais.

Em outras palavras, é que não dependamos apenas da nossa capacidade empática, que, apesar de esplêndida e muito maior do que podemos pensar, não é onipotente nem muito menos, é claro (não sei se isso passou pela cabeça de alguém, mas, se passou, sinceramente, viu!...), exclui a necessidade de que ouçamos as experiências de vida que as mulheres têm a nos contar. Se isto vier mediado pelas constrições do recorte de público, então ok. Se não, ok também. Venha como vier. A literatura é mais rica assim.