Os irmãos Castilho.


(António Feliciano de Castilho)


António Feliciano de Castilho (1800 - 1875) e José Feliciano Castilho (1810 - 1879). Os irmãos Castilho. Quero propor uma pequena pausa para que possamos considerar o trabalho de ambos como parafraseadores e considerarmos sua beleza ou pelo menos o interesse que possam ter. É, assim sendo, diferente do que Machado de Assis, amigo íntimos dos dois, fez quando intitulou uma crítica sua de "Irmãos Castilho" (um texto onde o maior elogio que Machado faz à poesia de José, por exemplo, é a correção métrica...). Enquanto poetas não sou lá um entusiasta do que deixaram. António produziu muito mais que José, e quando falo poesia dos dois, eu basicamente falo da poesia de António. E fosse o caso de realmente apontar o que me agrada na obra poética dele, e pra ficar com alguns exemplos de cabeça, seria o caso de citar duas estrofes do poema A Noite do Cemitério,

        Enquanto aos ciprestes esguios troncos
        Altos espectros se abraçam,
        Ou com mil formas terríveis
        Ante mim calados passam,

        Enquanto larvas aéreas
        Ao luar sentar-se vão,
        Além, de escalvados crânios
        Sobre terrível montão;

Onde julgo esse hipérbato no final da primeira estrofe impactante o suficiente pra que o leitor o guarde na memória, pra não dizer, claro, no clima macabro que António consegue construir ou, melhor dizendo, conseguiria ainda que o poema se reduzisse a somente estas duas estrofes (a velha prolixidade romântica!). Enquanto nos dois primeiros versos da primeira estrofe temos a contraposição entre os galhos finos dos ciprestes e os altos espectros que se abraçam, criando uma espécie de neblina fantasmagórica, nós chegamos ao hipérbato dos outros dois restantes que dão um ritmo bom ao texto e quebram a construção natural da cena com o empecilho do eu lírico que contempla a cena: passou por mim a coisa muda de figura. A segunda estrofe também é toda trabalhada nos contrapontos, com essas larvas aéreas (atenção pro termo: "larvas" e não, sei lá, insetos) que chegam até o luar e, logo mais abaixo (ou como diz o poeta, "Além"), crânios calvos aos montes.

Além destes versos, cito a simplicidade aqui e acolá em Os Treze Anos ― por exemplo as estrofes que abrem e fecham o poema ou "Nos serões já canto, / nas feiras já feiro" ― ou então aquela estrofe final de Invocação a Deus:

        Nas trevas da ignorância
        Não medra o santo amor.
        Ilustra-nos! melhora-nos!
        Senhor! Senhor! Senhor!

Em todos os três, trechos de poema que parecem ir contra a retórica claudicante da maior parte da poesia do autor... como se o que eu apreciasse em sua obra fosse justamente um não-Feliciano-de-Castilho. Mas o substrato desta conversa não é nem tanto a obra poética de ambos. Estou pedindo para que olhemos por alguns instantes o resultado que ambos conseguiram no campo da paráfrase. Mas pra chegar lá, quero apresentar os dois figurões para o leitor.

Eram filhos de José Feliciano de Castilho (1765 - 1826), um médico Real da Câmara que acompanhou D. João VI no Brasil. Apesar dos dois terem sido eruditos notáveis, o que se tornou famosinho foi só o António, importante poeta romântico. Aos 6 anos ele, António, ficou cego graças a um surto de sarampo. Já sabia ler e escrever a essa época, e, se você for parar pra pensar bem, o esforço e a trajetória de António são uma coisa até motivacional. Ele conseguiu essa erudição notável que me referi basicamente na base do que lhe contavam a respeito. E não estou falando de superficialidades; falo de um conhecimento sólido em latim e em humanidades clássicas que poucos em seu tempo ostentaram. Foi também licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, só pra você ter uma ideia no calibre do cara. E pra fechar a coisa toda, ele versejava com enorme facilidade. Mas isso desde criança, criancinha. Com 16 ele já tinha o rudimento da coisa muitíssimo bem assentado, e não espanta que, quando resolvesse, a essa idade, escrever um poema em louvor à rainha, a obra fosse acolhida com surpresa.

Os anos áureos de sua vida foram os anos 1840. António já havia se incorporado ao establishment poético português, e foi durante essa época que rolou a tal da "Questão Coimbrã". De um lado do ringue, os poetas que representavam a estética romântica, e, do outro, os jovens que propugnavam a estética realista. Quem havia cutucado a onça fora António, numa longa epístola publicada como posfácio a um poema de Pinheiro Chagas (Poema da mocidade). Lá ele menciona de forma depreciativa nomes como Teófilo Braga e Antero de Quental: "ahi os affectos e paixões, o amor e o odio, o egoismo, a inveja e o medo, perturbam o juizo, e, ou gelam as mãos nos copos da espada, ou desfecham golpes á toa, sobejos para destruição, mas, para victoria, malogrados." O clima foi acirrado e chegou inclusive a baixarias, como quando Teófilo Braga, em Teocracias Literárias, afirma que a fama de António se dava porque era cego: "Digamos a verdade toda. O sr. Castilho deve a sua celebridade á infelicidade de ser cego. O que se espera de um cego? Apenas habilidade." Um dos documentos fundamentais dessa querela foi a carta, escrita em novembro de 1865 por Antero de Quental, dirigida a António, que hoje recebe o título de Bom senso e Bom Gosto. Entre outras coisas, Antero afirma que o que se ataca da escola de Coimbrã (da qual Antero fazia parte) não era nem tanto uma concepção poética mais atrevida, mas "A guerra faz-se ao escandalo inaudito d'uma litteratura desaforada, que cuidou poder correr mundo sem o sello e o visto da chancelharia dos grãos-mestres officiaes." Um pouco mais à frente, num parágrafo de impacto:

V. ex.ª, com a imparcialidade que todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal feita, mas tambem pequena e miseravelmente feita. Mas é que a eschola de Coimbra commetteu effectivamente alguma cousa peior de que um crime—commetteu uma grande falta: quiz innovar. Ora, para as litteraturas officiaes, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sophismas, do que envenenar com o erro as fontes do espirito publico, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, peior do que isto é essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar.

Uma das frases finais é: "A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança." A questão Coimbrã é incontornável para quem quer conhecer a literatura portuguesa do período.

António também desenvolveu um método de alfabetização denominado "Método Castilho" ou "Methodo Porthuguez", influenciado pelo método de alfabetização fortemente gestual de um francês chamado Pierre-Alexandre Lamare. Como não podia deixar de ser, a polêmica foi grande em relação ao tal do método. António pretendia um método de alfabetização rápida que envolvesse a memorização a partir de desenhos e histórias, bem como o uso do canto, marchas e palmas. É um negócio bastante lúdico que busca prender a atenção do aluno: por exemplo quando António manda que "A liçao seja sempre o mais variada possivel". Ele dispõe até sobre a mobília da sala de aula e sobre a postura do professor ("A afabilidade grave"). A parte em que dá dicas de como fazer com que as crianças memorizem o alfabeto me pareceu particularmente divertida. Veja-se o que António nos diz do U maiúsculo:

Formidavel poço é este! Faz lá em baixo uns ecos, qe é gosto ouvi-los! Os rapazes, e mesmo a gente grande, em se chegando a ele debruçam-se para baixo a gritar: u, u, u! e a regalarem-se de escutar um u, u, u! qe sáe lá do fundo. Os pequenos já não chamam ao poço senão u, e, por consequência, u á sua sombra.

Seguido da historinha do u minúsculo:

O gaiatinho tem a mania de arremedar tudo quanto á 'neste mundo! Até o poço arremeda, como se está vendo, pondo-se com as pernas e braços para o ar, e berra: u, u, u! chamam-lhe u peqeno, e u peqeno á sua sombra.

O desenho:


Um pouco depois de desenvolver seu Método, António escreveu um Tratado de Metrificação que se tornaria um dos mais importantes da língua. De forte influência francesa, António afasta a contagem de sílabas poéticas seguindo um padrão ibérico, ou seja, que considerava as sílabas pós-tônicas na contagem, e passava a adotar a contagem até hoje vigente de se contar só até a última sílaba tônica. Ele também desmantelou o alexandrino espanhol e sistematizou o alexandrino francês, que possuiria enorme importância no parnasianismo brasileiro graças à porta-de-entrada de Machado de Assis, que foi o primeiro praticante desse dificílimo tipo de verso em solo nacional.

Em seus últimos anos de vida António se dedicou à tradução. Traduziu Virgílio, Ovídio, Anacreonte, Cervantes, Shakespeare, Goethe... Estes últimos de forma controversa pois Castilho não conhecia nem inglês nem alemão. Sua tradução do Fausto, feita a partir de uma edição francesa e de uma tradução literal feita por seu irmão José mais um amigo, Laemmert, deu ensejo ao que se chama hoje de "Questão faustiana". Castilho bateu a mão na mesa e defendeu em especial a questão do humor: o que fazia rir em Berlim não era o que fazia rir em Portugal. Daí que pra ele a tradução devia ser uma "transsubstanciação", um termo que Castilho usou tendo em mente as conotações sacras. Mas um germanófilo denominado Joaquim de Vasconcelos, esposo de Carolina Michaëlis (a grande estudiosa do trovadorismo português), chegou a denominar a versão de Castilho de um aborto nacional. Em outros momentos da polêmica, que aos poucos foi se estendendo e atingindo mais gente, Joaquim de Vasconcelos diz de maneira um tanto quanto explícita que a alegada mediocridade das traduções em pauta se davam graças a uma inferioridade frente ao povo alemão. E se Castilho se valera do termo "transsubstanciação" pra se referir a sua tradução, Joaquim de Vasconcelos dizia com todas as letras: aquilo era uma profanação, isso sim.

Daqui já deu pra perceber o tamanho da encrenca. O tamanho da encrenca de novo. Mas não é nem tanto de Goethe que eu desejo falar. Peço mais atenção às traduções de Ovídio, pois é a partir delas que vamos chamar José a frente pra contar um pouco da sua história. Isto é, "contar". Entre aspas pois sobre José não há muito o que ser dito. Ele veio pro Brasil em 1847 e aqui viveu até o fim de seus dias. Era bem vindo na corte graças a toda sua erudição. O Imperador gostava dessas coisinhas. De vez em quando ia pra Europa, como quando, viajando a Paris, apresentou seu irmão António a Alexandre Dumas (António meio que tietava o Dumas). Junto ainda com o irmão, publicou no Brasil os volumes da "Livraria clássica portuguesa". O máximo de polêmica que há em relação a seu nome é em relação à ocasião da Lei do Ventre Livre, onde, face às críticas de José de Alencar, o romancista, José, depois seguido de Franklin Távora, bateu de frente com a posição conservadora de Alencar. Afora isso, nada de mais. Exceto seu trabalho enquanto filólogo e tradutor de literatura clássica.

Aí sim. Em 1862 António publicava sua tradução para A arte de amar de Ovídio. Ele também traduziu Os Fastos, Os amores e alguns trechos dAs Metamorfoses (este último trabalho dando prosseguimento ao de Bocage). Os comentários que José escreveu à tradução do irmão para A arte de amar e Os amores foram copiosos. Intitulam-se, respectivamente, "Grinalda da arte de amar" e "Grinalda ovidiana". O primeiro possui em 6 volumes e o segundo 2. São notas minuciosas da mitologia greco-romana, de seus costumes, de sua língua, de biografias e de trechos traduzidos de outros poetas (ele dizia que pretendia satisfazer a um interesse moral, histórico, crítico e poético).

Um dos poetas que mais aparecem nestas traduções é Marcial (mas também existem outros como Juvenal ou Propércio). Marcial foi um famoso epigramista romano, autor de alguns dos versos mais saborosos de que se tem notícia. Em língua portuguesa ele recebeu, no final do século XX, traduções divertidas da safra de Décio Pignatari, e até então euzinho aqui jurava de pé junto que quem havia começado a, digamos assim, perseguir o sabor e a jovialidade dos versos de Marcial pela primeira vez havia sido o Décio. Até que, lendo José Feliciano Castilho e os epigramas de Marcial no século XX (aqui), de Joana Junqueira Borges, descubro o nome da figura e tenho a ideia de realizar esta postagem.

E aqui nós entramos na dimensão da paráfrase. Não é tão simples dizer o que seria uma paráfrase e o que não seria, pois há uma zona realmente muito esfumaçada entre a paráfrase a tradução. O leitor entra em contato com o original, o leitor recenseia e valora as várias características desse original que conseguiu captar e/ou interpretar. Ele pode valorar algumas como sendo mais importantes do que outras e assim chegar a um projeto tradutório que chamaríamos de radical (geralmente chamamos de radical quando ele valora como importantes aspectos ou percepções textuais tidas como secundárias). Por exemplo quando, numa tradução de uma peça teatral elisabetana, eu decido que a inteligibilidade é o aspecto mais importante a ser perseguido. Não quer dizer que vá ser uma coisa em detrimento da outra; eu posso conseguir manter muitos aspectos, claro, o que vai depender de minha capacidade. Mas mesmo essa manutenção pode ainda assim ser condicionada, no sentido de que, vamos supôr que frente a uma fala da peça elisabetana que me referi, eu tenha de optar entre manter o tom coloquial e um trocadilho sacro-chulo.

Vamos ser mais concretos e imaginarmos aquela passagem no Hamlet em que o Hamlet manda a Ofélia ir procurar um convento: "Get thee to a nunn'ry". Nunn'ry pode ser convento ou puteiro. Meu objetivo, prosseguindo com a suposição, seria chegar a um resultado inteligível, ou, pra sermos ainda mais radicais, um resultado que simule o impacto de Hamlet na audiência contemporânea valendo-se, para tal, dos instrumentos de uma tradução modernizante. Eu posso, nessa empreitada, usar uma gíria ou um duplo sentido que até conseguiria manter uma correspondência para com nunn'ry e seu significado sacro-chulo, mas que, para tal, forçosamente me fizesse lançar mão daquele arcabouço de falas contemporâneas, de gírias atuais (algo envolvendo "pagar de santa", "pau oco", "pagar pau", sei lá) que, por exemplo, uma tradução que pretendesse uma linguagem a meio-termo não conseguiria ou conseguiria de outra forma. É por isso que digo que são manutenções condicionadas: a forma de percepção que tenho do original ligada a meu projeto tradutório faz com que minhas soluções tradutórias condicionem meus resultados. Traduzir nunn'ry para um jogo entre "pagar de santa", "pau oco" e "pagar pau" é uma opção tradutória condicionada a determinadas maneiras de perceber o original e de estruturar minha tradução como um todo. Posso até adicionar uma fala tão chula assim numa tradução até então "normal", mas isso dependeria, por sua vez, de mais uma pá de aspectos, como por exemplo o grau de aceitabilidade do original, o grau de aceitabilidade da minha própria tradução (se ela suportaria ou não uma variação tão brusca assim) etc.

O que quero dizer com isso é que é preciso que consideremos o projeto tradutório (ou seja, o todo de uma tradução, aqui entendido também como o que uma tradução pretende fazer) antes de respondermos o que é paráfrase, pois eu não posso sair por aí chamando de paráfrase aquilo que não está de acordo com minha percepção do texto original. A tradução sempre se liga a um perceber o original e a um mobilizar esforços que não são simplesmente neutros ou separados; eles são umbilicalmente ligados à percepção que fiz do original bem como aos resultados que as soluções até então feitas possibilitam. E digo até mais: o projeto tradutório é um todo crítico, ou seja, eu, enquanto leitor, leio o original e percebo uma gama de aspectos, frutos ou não de minha interpretação. Desses vários aspectos, visto que a tradução é uma tarefa de transposição de um discurso especializado de uma língua para outra, eu elenco quais julgo mais importante para que minha tradução consiga ser representativamente o texto original na cultura de chegada. Assim, a percepção que embasa o fenômeno tradutório é uma percepção crítica, e toda forma de se analisar e pensar a tradução deve considerar essa dimensão crítica.

Apesar de existir uma zona realmente nebulosa entre a tradução e a paráfrase, chega um momento em que nós podemos dizer de forma um tanto quanto segura que estamos diante de uma paráfrase e não de uma tradução. É quando o texto resultante não estabelece mais um contato com o texto original, o que não quer dizer que necessariamente o texto resultante tenha se apartado de todo do texto original. Grande parte dos empreendimentos parafrásicos buscam chegar a um texto que possua um impacto análogo ou que em algum momento, nem que seja pra depois escapulir, siga a senda possibilitada pelo texto original.

Sei que não estamos chegando a nada lá muito concreto, mas, pelo menos quanto a mim, eu nunca tive a pretensão de chegar. A paráfrase exacerba a dimensão paródica de seu texto, ou seja, a dimensão de ser um canto paralelo, até o nível em que o leitor já não pode mais dizer que estamos falando de um texto que busca corresponder e representar o original na língua de chegada. As disparidades ganham importância sem que, todavia, o rastro do original seja perdido de vista, de modo que a ancoragem da paráfrase em relação ao original continua existindo, mas com o único objetivo de deixar patente ao leitor aquela zona de discrepância que, dentro da paráfrase, passa a ser uma fonte semântica. Ou seja: enquanto na tradução nós temos um texto que, buscando mais do que corresponder, busca representar o original na língua de chegada, apagando as discrepâncias em prol da criação de um texto que autonomamente, e de acordo com a percepção que o tradutor teve do original bem como dos recursos e achados que conseguiu mobilizar, se sustente na língua de chegada; enquanto com a tradução é assim, com a paráfrase nós temos um texto que possui um grau de dependência não necessariamente mais tênue que a tradução, mas que, todavia, busca realçar (ou, independente de buscar ou não, no fim das contas acaba realçando-o) a discrepância entre ele e o texto original. Talvez por isso, ou seja, por ser mais descolado, que a paráfrase na prática se sustente mais como um original do que o texto traduzido, uma vez que, na dinâmica representativa da tradução, os traços de autorias são relevados (o que não quer dizer, nem de longe, que, na prática do ofício do tradutório, ou seja, no praticar-se a tradução, o tradutor tenha sido "invisível").

Postas estas reflexões, voltamos ao caso dos irmãos Castilho. Dada a radicalidade e a fuga da letra do original em níveis maiores que o razoável, eu chamo seus empreendimentos de paráfrase, tendo também em vista, é claro, que existem menções explícitas por parte de ambos de seus trabalhos como paráfrase. Pode ser que o leitor os aceite como sendo traduções, visto que de resto buscam se aproximar de aspectos do original como a comicidade em Marcial ou o lirismo em Ovídio. Mas aí já é por parte do leitor.

Mesmo porque meu objetivo aqui não é nem tanto o de mensurar o grau parafrásico, por assim dizer, do trabalho dos irmãos Castilho. As traduções dos irmãos Castilho tinham um fundo precípuo de naturalização do original na língua de chegada, o que, nos que trago à baila, foi ligado à voltagem máxima. O leitor pode ler mais a respeito no subseção 1.2 do trabalho António Feliciano de Castilho, tradutor do "Fausto", de Carlos Castilho Pais (2013, aqui). Meu objetivo é que é que o leitor, quanto às versões de José, possa saborear seus melhores momentos sem, necessariamente, a pretensão de avaliar se como traduções foram bem sucedidas ou não. Eu mesmo possuo um conhecimento em latim extremamente parco pra sequer dizer um A a respeito do assunto. As versões de José vão de encontro às versões livres de seu irmão António, que traduzia Virgílio e Ovídio usando alexandrinos franceses rimados de acordo com o padrão clássico (em dísticos) e que traduzia poetas líricos (Anacreonte por exemplo) tendo em mente momentos líricos árcades de nossa língua. E eu sinceramente acho que José chegou às vezes a bons resultados, como espero o leitor possa perceber da pequena seleção que faço. Ele tinha uma audição privilegiada. Soube dar a suas versões de Marcial de um sabor popular impressionante... Os irmãos Castilho. Foram versáteis, não há que negar.

Já de António eu deixo uma canção de Ovídio, de Os amores. É uma do meu agrado, mas, é claro, existem outras. Posso citar II. 12 ("O que amor fez com mil, também comigo faz; / Quer que para o-servir desprese os bens da paz"), II.16 ("A terra, onde os inquietos não pararam, / Pesada feche em seo avaro fundo / Os que, ousadas jornadas, inventaram / Dissociar o mundo!"), o final da III.5 ("Dissera . . . Accórdo exangue, em gelido suor . . . / Tacita escuridão me-reina em derredor."), o da III.12 ("Vós, que sabieis, / Crédula gente, / O quanto mente / Qualquer cantor"). António havia passado o ano de 1855 em solo nacional e queria publicar um livro de Ovídio aqui ("uma lembrança da minha passagem n'este pays"), no que se decidiu por Os amores. Como ele mesmo fala em prefácio, o que fez está mais próximo da paráfrase que da tradução:

Traductor fiel e conciso nas Metamorphoses e nos Fastos, preferi ser paraphrasta nos Amores. A índole d'esta obra stava pedindo, na nossa língua, a fórma lyrica, a metrificação multicor e scintillante, mimos e graças do dizer, a que o grave e heroico decassyllabo se recusa. Pradarias smaltadas de flores, e matizes de arco-iris, não se-debuxam com traços de lapis; exigem palheta bem provida.

Não sendo a toa que, alguns parágrafos depois, ele se referirá às canções ovidianas como sendo suas e a sua obra como sendo "um studo de fórmas".

Espero que o leitor se divirta. Se peço que realcemos a dimensão parafrásica dos textos, é muito mais no sentido de apreciarmos os resultados enquanto textos autônomos. Claro que, dentro da dinâmica parafrásica que antes me referi, considerar os textos como textos autônomos, no sentido de podermos considerá-los textos autorais de António e José, não será tão complicado pois digo que são paráfrases; mas ao mesmo tempo é algo incompleto pois, eu também disse, a paráfrase possui fontes semânticas implantadas na discrepância para com o texto original. A análise delas, que comporia uma segunda parte da análise da paráfrase, eu, desde já pedindo desculpas, não tenho como fornecer ao leitor.

A tradução de Castilho para Os amores bem como os comentários do irmão podem ser lidos aqui.



(José Feliciano de Castilho)


MARCIAL,
tradução
JOSÉ FELICIANO DE CASTILHO

§

I, 39

Isso que recitas
Fidêncio, era meu;
mas quando o recitas,
parece que é teu.

*

II, 13

Pede o juiz e o escrivão;
pede o porteiro e o auditor:
pede o escrevente e o letrado,
e pede o procurador;
e depois dos tais sujeitos
pede inda o fiel dos feitos...
Queres conselho? O melhor
é pagar logo ao credor.

*

IV, 12

Como és generosa, ó Márcia!
Dás a dez, a trinta, a cem!
Nem ao menos tens vergonha
de o não negar a ninguém!

*

IV, 15

Debalde me pediste ontem
emprestado cem mil réis.
Hoje pretextas visitas,
e dizes que necessitas
         cristais,
         castiçais,
         painéis.
Acaso me tens por tonto?
Negar cem e dar um conto!

*

XII, 45

Quando Tício enterra a calva
numa pele de cabrito,
diz o povo às gargalhadas:
Lá calçou o carrapito!


OVÍDIO,
tradução
ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO

§

Livro II, Canção 2ª

A um eunucho.
         Perdeste, eunucho e servo,
         O amor e a liberdade;
         Porém de ti dependem
         De uma gentil deidade
         A liberdade, o amor.

         Sou eu mais desgraçado;
         Escravo sou e adoro;
         Tem dó do meo estado!
         Tua attenção imploro,
         Imploro o teo favor.

Minha estrella hontem quiz (si fausta ou dura
Sábel-o tu, não eu) quix minha estrella
Que, em quanto descuidado passeava
Das Danaides no portico pomposo,
Topasse em meo passeio o mais formoso,
O objecto mais gentil que o Tibre lava.
         Vencido, impaciente,
Corro, escrevo, supplico, envio, espero. . . . .
Tremo, chega, abro, leio, encontro, ó Numes!
Com mão veloz e tremula ― Não posso! ―
Insto, escrevo de novo, inquiro a causa;
Responde-me que és tu; que são teos olhos,
Teo eterno velar, teo genio duro.

         Ah! bom guarda imprudente,
Não queiras provocar mais longamente
Com teo rigor a sua má vontade.
         Quem só faz tyrannias,
Quem calea as flores com que a mão da sorte
Vinha alegre enfeitar os nossos dias,
Que hade esperar que lhe-desejem? morte.

Teo senhor, seo esposo (outro tyranno)
Co'a vergonhosa lida em que te-envolve
Parece algoz, e além de algoz insano.
Porque é tanto guardar? que perderia
         Si não guardasse tanto?
Deixava de ser seo o seo encanto?
Seo thesouro gentil diminuia?
Mais deixomo-l'o a elle e aos seos delirios;
Faça do seo consorcio o seo inferno;
Arda no amor como si ardesse em furias;
Nutra embora a chimera, que lhe-finge
Que póde ser de um só a que amam todos;
Creia que a fé dos vinculos depende;
Que suspeita e rigor ternura inspiram;
Que amor, audacia, e astucia nada pódem;
         Que o zê-lo não se-illude;
Que os céos aos opprimidos não accodem;
Que a feridade faz brotar virtude.

Deixemo-l'o! Mas tu, piedoso, ao furto,
Onde espinhos lançou diffunde rosas;
E nas chagas, que abriu por tua dextra,
Tu, em segredo, balsamos derrama!
Sem que o-sonhe ninguem, por ti disfructe
A doce, a suspirada liberdade.
         Talvez, talvez que um dia
Si hoje a-tiver por-ti, por ella a-tenhas.
Sê cumplice, fautor dos meigos crimes
Da formasa infeliz senhora tua,
         Agora tua escrava.
Receias de ser cumplice? não sejas,
         Mas dissimula; cega,
Ensurdece, crê tudo, e mais não peço.

         Vem-lhe carta que retira
                  Com praser?
         Abre a medo, lê, suspira,
                  Torna a ler?

         Teo juiso deve
                  Sempre ao bem;
         Imagina que lhe-escreve
                  Sua mãe.

         Vês entrar desconhecidos?
                  Deixa-os ir;
         Serão já teos conhecidos
                  Ao sahir.

         Diz que a amiga está doente?
                  Quem a-vai vêr?
         Tal nao ha; mas que não mente
                  Deves crer.

         Quando tarde, e que te-afronte
                  Seo tardar,
         Bom remedio; pôr á fronte,
                  Ressonar.

         Deixa-a ir de Isis ás festas
                  Muito em paz;
         Si são livres ou si honestas
                  Que te-faz?

         Aos theatros toda a gente
                  Folgar vem;
         Que te-impota que os-frequente?
                  Que mal tem?

Ah! meo amigo! quantos bens auguro
Ao feliz confidente! (e que serviço
Mais leve que o calar?) Já te-prevejo,
Superior ao receio dos açoites,
Seo mimoso valido, e a teo arbitrio
Volvendo e revolvendo a casa inteira,
Em quanto os socios teos no pó se-arrastam.
         Em teo favôr presinto,
Sumidas as razões, brilhar pretextos.
Teo senhor lhes-dá fé: caro á senhora,
És caro as dous; dobrado amor te-escora.
Si elle um dia, collerico, em teo damno,
Torva a fronte encrespar, tens n'ella Deusa,
Que póde quanto quer, e quer valer-te.
         É preciso entretanto
De tempo em tempo andardes desavindos;
Que te-chame verdugo, auctor do pranto
         Que tão acerbo e tanto
Estragado já tem seos olhos lindos;
         Zeloso e audaz tu deves
Lanãr-lhe em rosto alguns delictos leves,
Que ella refute e triumphante a-façam;
Crimes vãos, de nenhuma consequencia
Todo o indicio dos outros lhe-desfaçam;
Brote da accusação alva innocencia.

         Honra e favor assim te-aguarda,
         Grosso peculio obtens assim;
         Verás quão pouco o dia tarda,
         Que aos ferros teos virá pôr fim.

         Olha o que é dados aos delatores?
         Desprêso, horror, grilhões fataes;
         Carcere immundo, opprobio, dores,
         Ralam a vida aos desleaes.

         Tantalo á fome e á sede estala
         Com fructa e um rio encantador;
         Cabe este inferno a quem não cala;
         Tantalo o-tem por falador.

Quem quer ser Argos trema-lhe a sorte!
Ministro velador de altos ciumes,
Argos, do officio em premio, obteve a morte;
Io, a guardada em vão, pertence aos numes.
Não tens visto, como eu, rojar cadêas
         Nas roxeadas plantas
Servo imprudente, que obrigará o esposo
A ver da esposa o crime, e a infamia propria?
Leve castigo da horrorosa culpa
         De quem sem dó fizera
Dous infelizes co'uma só palavra.

Tu, privado do amor, talvez o-ignores,
         Mas toma este dictame:
         Inda que ouvil-os queira,
Não ha marido que taes crimes ame.
Ou tem affecto, ou coração gelado;
Nem um nem outro te-agradece o zêlo.
Se fructo a um te-canças em dizêl-o,
Dizendo-o ao outro, o-fazes desgraçado.
Accrescenta inda a isto o quanto é árdua,
         Ante quasi impossivel
         Dar provas convincentes,
         Em culpas amorosas,
         Até quanto evidentes.

         Vê que o juiz do pleito
         Sem prevenções não é,
         E menos tem a peito,
         O delator que a ré.

         Dous que seos olhos viram . . .
         Mais vale a negação:
         Olhos crueis mentiram,
         Labios formosos não.

         Chôro lhe-orvalha emtanto
         As rosas do pudor;
         Vem dó; co'o dó vem pranto,
         Co'o pranto volve amor.

         Escuta-o nos affagos
         Da renascente paz:
         "Teos ais vão ser bem pagos!
         "O vil, punido assaz!"

         Oh! nunca assim te-affoites;
         Partido egual não tens;
         Vencido, tens açoites,
         E vencedor, que bens?

         Só ella decahindo
         Póde inda ser feliz;
         Tem um semblante lindo,
         Dorme co'o seo juiz.

Seria sem razão, além de injúria,
Repellires-me tu; não tramo ou peço
Attentados, violencias; não misturo
Vaso traidor de perfido veneno,
Nem vês que em minha mão punhaes reluzam.

         Dar só quero aos meos affectos
         Cauto rumo e pôrto amigo;
         Ter com ella, ao teo abrigo,
         Doce amor, segura paz.

         Póde um rogo haver mais brando?
         Si ouves prece tão piedosa,
         Eu farei uma ditosa,
         Dous ditosos tu-farás.


ORIGINAIS

§

MARCIAL,
respectivamente

*

                  Ad Fidentinum,
Quem recitas, meu est, o Fidentine, libellus:
         Sed male quum recitas, incipit esse tuus.


*

                  Ad Sextum
Et judex petit, et petit patronus.
         Solvas, censeo, Sexte, creditori.


*

                  In Thaidem
Nulli, Thai, negas: sed si te non pudet istud,
         Hoc saltem pudeat, Thai, negare nihil.


*

                  Ad Caecilianum
Mille tibi nummos hesterna luce roganti,
         In sex aut septem, Caeciliane, dies,
Non habeo, dixi: sed tu causatus amici
         Adventum, lancem paucaque vasa rogas.
Stultus es? an stultum me credis, amice? negavi
         Mille tibi nummos: millia quinque dabo?


*

         Ad Phoebium
Haedina tibi pelle contegenti
Nudae tempora verticemque calvae,
Festive tibi, Phoebe, dixit ille,
Qui dixit caput esse calceatum.


OVÍDIO

*

Quem penes est dominam servandi cura, Bagoa,
    dum perago tecum pauca, sed apta, vaca.
hesterna vidi spatiantem luce puellam
    illa, quae Danai porticus agmen habet.
protinus, ut placuit, misi scriptoque rogavi.
    rescripsit trepida 'non licet!' illa manu; 
et, cur non liceat, quaerenti reddita causa est,
    quod nimium dominae cura molesta tua est.
Si sapis, o custos, odium, mihi crede, mereri
    desine; quem metuit quisque, perisse cupit.
vir quoque non sapiens; quid enim servare laboret,
    unde nihil, quamvis non tueare, perit?
sed gerat ille suo morem furiosus amori
    et castum, multis quod placet, esse putet;
huic furtiva tuo libertas munere detur,
    quam dederis illi, reddat ut illa tibi.
conscius esse velis―domina est obnoxia servo;
    conscius esse times―dissimulare licet.
scripta leget secum―matrem misisse putato!
    venerit ignotus―postmodo notus erit.
ibit ad adfectam, quae non languebit, amicam:
    visat! iudiciis aegra sit illa tuis.
si faciet tarde, ne te mora longa fatiget,
    inposita gremio stertere fronte potes.
nec tu, linigeram fieri quid possit ad Isim,
    quaesieris nec tu curva theatra time!
conscius adsiduos commissi tollet honores―
    quis minor est autem quam tacuisse labor?
ille placet versatque domum neque verbera sentit;
    ille potens―alii, sordida turba, iacent.
huic, verae ut lateant causae, finguntur inanes;
    atque ambo domini, quod probat una, probant.
cum bene vir traxit vultum rugasque coegit,
    quod voluit fieri blanda puella, facit. 
Sed tamen interdum tecum quoque iurgia nectat,
    et simulet lacrimas carnificemque vocet.
tu contra obiciens, quae tuto diluat illa,
    et veris falso crimine deme fidem.
sic tibi semper honos, sic alta peculia crescent.
    haec fac, in exiguo tempore liber eris.
Adspicis indicibus nexas per colla catenas?
    squalidus orba fide pectora carcer habet.
quaerit aquas in aquis et poma fugacia captat
    Tantalus―hoc illi garrula lingua dedit.
dum nimium servat custos Iunonius Io,
    ante suos annos occidit; illa dea est!
vidi ego conpedibus liventia crura gerentem,
    unde vir incestum scire coactus erat.
poena minor merito. nocuit mala lingua duobus;
    vir doluit, famae damna puella tulit.
crede mihi, nulli sunt crimina grata marito,
    nec quemquam, quamvis audiat, illa iuvant.
seu tepet, indicium securas prodis ad aures;
    sive amat, officio fit miser ille tuo.
Culpa nec ex facili quamvis manifesta probatur;
    iudicis illa sui tuta favore venit.
viderit ipse licet, credet tamen ille neganti
    damnabitque oculos et sibi verba dabit.
adspiciat dominae lacrimas, plorabit et ipse,
    et dicet: 'poenas garrulus iste dabit!'
quid dispar certamen inis? tibi verbera victo
    adsunt, in gremio iudicis illa sedet. 
Non scelus adgredimur, non ad miscenda coimus
    toxica, non stricto fulminat ense manus.
quaerimus, ut tuto per te possimus amare.
    quid precibus nostris mollius esse potest?