Dois pitacos.



A ABL acaba de divulgar os vencedores de seus prêmios literários de 2015: aqui. A afirmação feita pelo jornal O Globo de que nenhum livro de poesia seria premiado (aqui) estava certa. Como ficamos?

Para um leitor como eu, apaixonado que só por poesia, a notícia foi recebida com espanto. Fico com um sentimento muito forte de que a banca julgadora não acompanhou realmente a poesia produzida no ano passado, e que aqueles livros lançados que eu tanto gostei (por exemplo Marília Garcia ou Fabiano Calixto) poderiam sim ter sido premiados, poxa vida. Como dito por Eucanaã Ferraz na matéria dO Globo, a decisão da ABL é radical. Ela talvez possua lá seus lados positivos, como levantado por Adriana Calcanhotto (aqui) e Ricardo Domeneck (aqui): notadamente, de que a poesia não ser premiada por uma instituição que de certo modo representa o establishment é um ganho para a poesia, e de que a não premiação da ABL é um rompimento na lógica cordial de muitos concursos literários do país e, quem sabe, até mesmo da própria poesia brasileira (Ricardo Domeneck diz: "Há muita preguiça hoje na poesia brasileira").

Não nego nada disso. Mas acho que precisamos tentar olhar pra questão e quem sabe buscar soluções que melhor satisfaçam. Não acho que nós possamos negar que os concursos literários, que realmente têm se alastrado pelo país numa proporção até alta, são instrumentos benéficos de fomento à literatura. Os malefícios são o ônus de sempre, em especial se pensarmos na criação de uma crosta literária de artistas dependentes de editais e incentivos oficiais. Mas isso a meu ver não muda o fato de que os concursos continuam como uma senda de particular interesse.

O que eu diria, pra não cair em rodeios, é que o que realmente me incomoda na decisão da ABL é, repito, aquele sentimento de desinteresse por parte dela que você sente quando olha pro resultado. Pois veja o leitor que dar um prêmio a uma publicação literária é um ato crítico. Você escolhe o melhor. Mas a crítica não é uma questão veiculada em termos absolutos, ou seja, quando nós falamos de crítica, nós não temos como chegar a resultados que se queiram provados seja lá por que técnica for, por que teoria for. Não existem provas quando o assunto é crítica. A crítica é uma tarefa arraigadamente subjetiva, o que não quer dizer que ela não se deixe perpassar, estruturar e nortear por instâncias e conceitos estéticos que funcionam dentro de determinados nichos estéticos onde porventura o leitor se encontre ― ou seja, que ela não possua seu lado objetivo, "objetivo" aqui entendido como sociológico. É dizer: enquanto leitores que compõem nichos estéticos maiores ou menores, nós temos nossas referências e nossas posturas determinadas para com o fenômeno artístico (alguns nichos para com o todo do fenômeno, outros para com parte), de modo que existem zonas de concordância e substratos consistentes que fazem com que nossa apreciação estética viceje.

O que realmente podemos pedir à crítica, portanto, não é que ela acerta. Isso nem a curto, médio ou longo prazo. Pedir para que a crítica acerte algo é pedir algo que ela não pode fornecer pura e simplesmente. Pois não só ignora a diferente fundamentação entre os vários nichos estéticos ― o que não quer dizer que todos estão em pé de igualdade, ou seja, é um fato que alguns nichos estéticos são mais valorizados dentro da dinâmica do campo cultural que outros ― como também ignora mudanças geográficas e temporais, o tempo aqui entendido não como um rio que passa e consolida, e sim como um espaço de embate entre tendências e percepções. O que podemos pedir à crítica é que ela argumente, é que ela deixe claro o que pensa para que, assim, nós tenhamos algo a que, digamos assim, atacar, concordar, discordar ― em suma, argumentar de volta, em suma, debater. Mais uma vez eu repito que pedir à crítica que argumente não é pedir a ela que prove; é só que ela objetive seu juízo estético a fim de que ele saia de uma zona de pressuposições que, no final das contas, depende muito pouco de critérios estéticos, ou seja, essa zona de pressuposições é toda ela uma zona também de critérios geográficos, econômicos, de gênero, raça etc etc.

A crítica precisa se expressar, portanto. E o que me incomoda nessa questão com a ABL é que a ABL se calou. Não sei se ela pretende se pronunciar, e eu realmente desejo que ela se pronuncie, mas meu temor é o de que ela, como de resto ocorre com muitos outros concursos ao longo do país, se cale e não se preocupe em dar uma explicação. Evidentemente que a ABL é soberana e pode muito bem premiar quem ela quiser; não digo que ela deve se pronunciar para que possamos contestar judicialmente sua decisão; é só que ela precisa se contestar para que, se vier a ser o caso, nós contestemos sim sua premiação embasados no que ela disse (ou então contestemos o que ela disse), ou seja, que argumentemos a respeito, visto que, de resto, como não existem verdades absolutas na crítica, a crítica é um genuíno espaço para o debate, e todo crítico tem que estar preparado para dar a cara a tapa, para aguentar a retranca. Uma argumentação expressa por parte da ABL representaria um interesse a mais no sentido de realmente consolidar seu ato crítico, fazendo com que a premiação se torne menos arbitrária do que até então ela tem dado mostras de ser. Evidentemente que argumentar, expressar, dizer o porquê de não ter premiado nada num ano é algo complicado ― a probabilidade é de que uma resposta vaga surja ―, mas ainda assim seria um esforço e poderia demonstrar por parte da instituição não pra que saibamos o que eles entendem por excelência ou por obra de qualidade ― o leitor que eventualmente esperasse isso do factível comunicado da ABL estaria esperando Godot ― mas para que entendesse a forma como a comissão se posta diante do fenômeno poético, quais seriam as razões de seu descontentamento e por aí vamos.

Evidentemente que dependendo da escolha ou, melhor dizendo, das escolhas feitas ao longo dos anos, nós podemos formular uma ideia muito clara de como a ABL se institui criticamente. Mas esta passa a ser uma pressuposição nossa, que, por mais que possa ser conduzida de maneira até bastante sólida ― analisando também o perfil da banca, o perfil da própria ABL e por aí vai ― não creio que isto exclua a pertinência de uma explicação mais clara por parte da ABL ao invés desse aproveitem-o-ordenado. Forçar, por assim dizer, a emissão de um argumento que embase a escolha é uma maneira, eu já disse, de deixar a coisa menos arbitrária. Naturalmente que a ABL pode fazer o que quiser, eu também repito, mas não precisamos ficar chegando toda hora nesse beco sem saída. Ela pode fazer o que quiser ― e eu também posso achar que ela chegou num resultado muito infeliz.

Pois a bem da verdade, devo dizer que o que começa me desagradando nessa premiação da ABL já é o próprio premiar um livro de poesia lançado no ano. A poesia não se reduz a termos livrescos. Concordo com o professor João Cezar de Castro Rocha quando ele olha para os concursos literários e, assim como eu, enxerga uma ótima possibilidade de fomentarmos a leitura, mas ao mesmo tempo percebe a forma displicente e certo modo desinteressada com que esses concursos são conduzidos. Enquanto a ABL decide não premiar nenhum livro de poesia do ano, o Museu da Língua Portuguesa está com uma exposição que reúne mais de 500 poetas de todo país. Seria muito mais benéfico para o todo da poesia se a ABL aproveitasse a ocasião do prêmio, que é realmente vultuoso, e buscasse fazer algo a mais pela poesia, ou seja, que demonstrasse mais interesse em não apenas premiar o mérito, mas também em fomentar o todo. Pode parecer estranho como algo assim seria feito, ou seja, uma coisa e outra, mas no final das contas a simples criação de um concurso literário já é uma maneira de fomento que transcende a pessoa do premiado, ou, no caso da ABL, que não foi lá bem um concurso pois não houve chamado nem edital ― isto é, foi mais um prêmio mesmo, um reconhecimento ―, a simples possibilidade desse reconhecimento numa quantia vultuosa já é uma forma de fomento.

Mas pode ser mais. Eu repito: a poesia não se reduz a termos livrescos. A ABL poderia ampliar sua concepção de poesia ― algo nem um pouco difícil de ser feito, bastando que se acople algumas visões um pouquinho mais modernas do fenômeno poético e, é claro, uma piscadela que seja no passado da poesia ― e, ao invés de premiar o melhor livro, premiar o poeta que no todo da produção de determinado ano chegou ao melhor resultado. Pois veja o leitor que existem poetas que simplesmente não se dão bem quando o assunto é publicação impressa. Um poeta visual, por exemplo. Pedir que o poeta visual publique em livro é pra poucos. Não só porque encarece em demasia e elitiza ― o que por si só já é um empecilho enorme pra que um poeta visual sequer sonhe com a publicação ― um trabalho que muitas das vezes é coisa corriqueira, coisa que visa justamente cair na boca do povo; às vezes nem é possível colocar no papel o trabalho do poeta visual. Pense-se num poeta visual que intervém no espaço urbano. Oras: toda intervenção urbana depende do contexto urbano concreto. Como vamos incluir sua obra num livro? Com apoio em insípidas notas de rodapé?

Se um critério mais amplo de poesia fosse aceito, um poeta visual poderia sem problemas algum ser incluso dentro da premiação. E não só isso: um poeta popular, por exemplo. Um músico. Um poeta performático. Ou simplesmente um poeta que não publicou nenhum livro mas publicou em muitas revistas. Sei lá.

Claro que sei que isso demandaria uma busca muito mais intensa por parte da comissão participante. O espaço amostral aumenta de maneira enorme, e as chances de que as tais injustiças ocorram ficam ainda maiores. Mas eu devo repetir que incorrer nisso das injustiças ― isso das injustiças, em suma, é pedir demais pra crítica ― ainda mais pra crítica de arte contemporânea, que não conta com a consolidação relativa (mas nem por isso menos firme) de obras ou tomadas de posição estética dentro de um nicho de leitores ou mesmo da comunidade inteira (se tomarmos o mecanismo geográfico, histórico e econômico de sobreposição de um nicho em relação aos demais). Volto ao, digamos assim, antídoto da justificativa ― que nem antídoto é: é simplesmente pedir à crítica que ela faça o que ela realmente pode fazer. Isso deixaria as coisas menos arbitrárias. Mas teria um porém: como a comissão julgaria um espectro mais amplo, ela demonstraria não só uma atenção mais realista para com o fenômeno poético, como poderia demonstrar também uma forma de fomento mais efetiva e ao mesmo tempo uma premiação mais dinâmica e instigante. Num ano em que julgassem ruim a produção de livros, poderiam premiar um poeta performático ou um cordelista, por exemplo. As variações são inúmeras. Sei que possuem problemas graves, por exemplo o da percepção do fenômeno poético quando abandonamos a fragata do livro impresso (pra me valer da expressão de Emily Dickinson). É dizer: graças à reprodutibilidade técnica do livro impresso, isto é, o eu poder imprimir muitos exemplares e distribuí-los com facilidade (em tese, em tese), ele pode transcender fronteiras com mais facilidade, algo que um poeta performático não pode contar ou mesmo um cordelista não, que tem de se valer de impressões manuais precárias e que possuem um âmbito de alcance pequenino.

Demandaria uma atenção maior e na prática impossível por parte da banca. Mas aqui devo alertar que não só mesmo restrita ao livro impresso essa atenção já é pequena ― como é excludente no geral com base nos mesmos critérios que impedem o acesso à obra de um poeta-interventor urbano no Amapá, por exemplo: ou seja, a dinâmica do acesso ou então, visto que vivemos em tempos onde a presença não é mais obrigatória, a dinâmica da circulação de informações. Todavia, a partir do momento em que a comissão ampliasse seu escopo de premiação e passasse a abarcar outras propostas poéticas, ela poderia, haja vista que a ABL possui uma força simbólica muito forte na cultura literária nacional, estar virtualmente atuando em muitas áreas do fenômeno poético que poderiam gerar um efeito em cascata em relação a outros concursos poéticos ao longo do país: basta que o leitor pense no impacto que não seria a premiação vultuosa da ABL para a produção anual de um cordelista, isso tudo com o devido esforço de justificação, que, de resto, poderia envolver uma apreciação crítica mais ampla por parte da comissão.

Exigiria esforço, muito esforço. Mas o esforço da ABL é alto, e tem sido realizado com brio em outras áreas: penso por exemplo nas palestras e ciclos de debate, que trazem temas pertinentes, palestrantes de calibre e possuem o cuidado de serem veiculados virtualmente. Que seja repetido também no âmbito de suas premiações. É um princípio muito sólido o de que a crítica deve ser exigente ― mas não só no sentido de ser exigente para com seu objeto; a crítica deve também, e primordialmente, ser exigente consigo mesma.




Agora sobre os livros de colorir. Conheço uma legião de pessoas que crê que os livros de colorir são a hecatombe nuclear. As pessoas se imbecilizaram de vez. E isso num país onde os índices de leitura são vergonhosos, algo menor que 2 livros por ano ― pra não contar aquele soco no estômago que foi o descobrirmos que pra cada gol da Alemanha, 10% dos brasileiros não leu um livro sequer em 2014. Mas aí eu me pergunto: é pra tanto?

Não, não é. Estamos errando o alvo. É questionável você querer incluir um livro de colorir no mesmo balaio de livros literários ou livros do jeito que for ― livros com letrinhas, frasezinhas, sei lá. São duas propostas distintas, e as pessoas estão com muita dificuldade em entender isso (dificuldades ou maledicência?). Será mesmo um raciocínio tão sólido esse o de acharmos que em as pessoas pintarem livros de colorir elas estarão deixando de ler livros literários?

Não, acho que não. Num raciocínio análogo ao que Umberto Eco disse a respeito da cultura de massas ― e que pode ser aplicado ainda hoje a questões como Cristiano Araújo  versus "Biscoito Fino" ―, não é que a cultura de massas está ocupando o lugar da alta cultura ou cultura de proposta. Ela só está ocupando um lugar distinto, um lugar que a alta cultura não consegue alcançar, não quer, é impedida ou dificultada de acessar ou não tem como alcançar de jeito maneira. Com os tais livros de colorir eu creio que seja via de regra a mesma coisa. Nada impede que eu colora um livro e ainda assim leia um livro literário.

Pois a esse respeito, eu devo lembrar ao leitor que nós precisamos de uma ver por todas ― mas assim, de verdade ― largar de mão de uma concepção quantitativa, estática e patrimonial do conhecimento. O conhecimento é dinâmico e é múltiplo. Ele não é uma coisa que nós, investindo nos locais certos, adquirimos e embolsamos até o fim dos tempos. Você realmente pode achar que basta abrir um clássico da literatura que se tornou um bom leitor, mas as coisas não são tão simples assim ― e olha que eu nem vou te dar pesadelos te perguntando o que é um clássico, quem define o que é um clássico ou sob que critérios um clássico é definido. O que se entende por ser um bom leitor é ser um bom leitor de muitos textos, de muitas textualidades. É absolutamente possível que eu até seja um bom leitor dos clássicos, vamos supôr Horácio (não acho que Horácio seja hoje um autor indubitavelmente canônico), e ainda assim seja um péssimo leitor de poesia contemporânea, por exemplo, ou poesia moderna ou teoria queer ou mesmo de jornais. Do mesmo modo que o fato de que eu li Horácio na prática quer dizer muito pouco. O conhecimento é dinâmico tanto numa perspectiva interna ― no como eu absorvo o que o texto me diz para que eu consiga me tornar um leitor mais competente, mais crítico, que consiga se relacionar no mundo de forma mais ampla, bem como me relacionar de forma mais tolerante com outros seres humanos ― quanto numa perspectiva externa, ou seja, não é porque eu li Horácio que eu passei a me incluir naquele grupinho seleto de leitores de escol que já leram Horácio ― grupinho seleto aqui entendido como um grupinho secreto que compartilha das mesmas fofoquinhas e das mesmas indiretas para com os leitores de best-sellers. Digamos que a vida lá fora é mais animada que isso, e minha leitura de Horácio sempre será posta à prova da leitura de outros leitores, e isso independentemente do livro ser um clássico ou não ― aliás, toda obra literária virtualmente pode receber muitas leituras. O conhecimento que tive advindo de minha leitura da obra horaciana vai ser posto à prova pelo conhecimento de outros leitores, e não no sentido de que ele estará em risco e o outro leitor poderá negar tudo o que sei. As coisas não funcionam como um jogo infantil onde eu chuto o castelinho de areia da outra pessoa. Discutir, e a discussão estética, a discussão literária nos ensina isso muito bem, é trocar conhecimento, é incrementar mutuamente o conhecimento.

E não só isso ― o conhecimento ele também é múltiplo, ou seja, ele não vem só dos livros ou da bunda na carteira escolar. A sensibilidade estética pode nos providenciar um conhecimento de mundo muito poderoso, caso você não saiba. E eu recomendaria muito cuidado em ridicularizar o prazer que uma pessoa pode ter colorindo um livro. Grande parte do prazer e do conhecimento que um livro pode nos dar, que qualquer obra de arte pode nos dar, é de uma dimensão estética, ou seja, atua diretamente em nossas sensações, em nossas emoções. Se leio Dirceu Villa dizer que o tempo, desconfortável, é "verde-água percutido de ouro", eu posso ler o corroimento reverso do tempo que a metáfora implica, ou seja, o verde-água, que se liga a uma ideia de corrosão, de mofo ou coisa do tipo, é percutido de ouro, sendo que o ouro é o apogeu ― mas a imagem de um modo que, ao invés de ser o ouro percutido de verde-água, é o contrário, o que dá uma dimensão reversiva à imagem ―; embora eu possa ler isto, eu também posso simplesmente me comprazer com o ato do poeta em ousar colorir o tempo (colorir um poema é das coisas mais difíceis que se tem notícia) ou simplesmente com a dimensão cromática que vem a meus olhos. Qual é a diferença entre um prazer assim e o prazer de colorir um livro?

Este prazer estético é importante e ele tem o seu lugar, caso seja isso o que a pessoa quer. Acusá-la de infantilidade pois as crianças também colorem livros é um argumento reducionista, extremista e perigoso ― valendo-me das mesmas armas do jogo eu também posso achar infantil querer publicar um conto, uma vez que crianças também contam histórias. E mesmo que fosse apenas isso, uma questão infantil, sem nem percebermos a complexidade que existe entre um livro infantil de colorir e um livro adulto de colorir, isso não quer dizer que seja uma coisa ruim. As crianças têm muito a nos ensinar. Resgatar a criança que há em nós ― desde quando isso passou a ser alvo de chacotas? "A criança é pai do Adulto", dizia William Wordsworth.