Albas.



Originalmente postado no escamandro.

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Alba é um gênero da poesia lírica medieval que traz a situação de dois amantes que passaram uma noite danada de boa e que, quando a aurora raia, precisam partir, se separar. Algo aparentemente banal, mas que possui alguns significados dignos de nota.

O negócio é que existe uma sensualidade na alba que não costuma aparecer muito em outros gêneros poéticos. A alba é um coito interrompido. Ou coito continuado. Explico: a aurora raia e os momentos aprazíveis entre os amantes são dissipados. Eles precisam fazer sabe-se lá o quê, cada qual pro seu lado. A questão é que, de todo modo, eles passaram a noite juntos, e isso incute uma carga considerável de sensualidade no poema, fazendo com que o eu lírico, mesmo que reclame da partida ou mesmo que aguarde por outra noite igual aquela, adote pelo menos uma postura um pouco mais alegre e feliz do que sói nos outros gêneros líricos medievais. Daí o que disse de coito interrompido/continuado. Coito hoje em dia é ato sexual; mas nos idos medievais, não custa lembrar, coito era o sofrimento amoroso. Daí uma palavra como "coitado".

Das outras figurinhas que costumam aparecer nas albas, duas são dignas de nota. Primeiro o gaita, que é o vigia, o sentinela, o guarda que diz pros amantes que a noite acabou, a aurora vem e, bem, eles precisam tomar rumo. É a presença desagradável, em suma. Em segundo, é comum que as albas se relacionem a flores e tragam aves cantando consigo. Embora cantar a passarada tenha sido uma constante na poesia desde sempre, indo do pássaro de Lésbia aos rouxinóis de Milton, Coleridge ou Keats e até o nosso Mário de Andrade empalhador de passarinhos; embora assim tenha sido, poucas épocas literárias souberam dar com tanta mestria a voz e o tom para que a passarada cantasse. Com as albas não é diferente. Os passarinhos cantando ao longo do poema criam uma atmosfera amorosa marcante, como que representando a ideia de que tudo respira amor naquela situação (algo fundamental na sistemática do locus amoenus). Claro que a simples presença dos pássaros cantando já é um prenúncio claro do dia, de modo que esses mesmos pássaros, embora alegres, se imiscuem na mescla perfeita de alegria e de tristeza que a alba retrata. Daí também, eu digo, sua carga poética, meio que paralela à figura do gaita, que, se formos parar pra pensar bem, surge quando tecnicamente não deveria ser mais requisitada: vigias, sentinelas e guardas são pensados para situações noturnas. Surgirem de dia é uma espécie de reviravolta no plano temporal do texto, como que pra mostrar que a partida deve ser feita já.

Existem albas (embora não tantas de modo geral) na poesia occitana, na poesia portuguesa e na poesia alemã. Ela também pode ser chamada de aubade ou, no caso da poesia alemã, de Tagelied. Na poesia occitana temos exemplares de Raimbaut de Vaqueiras, Guiraut de Bornelh, Guiraut Riquer. Esta postagem que vocês leem é tripartida: trago primeiro uma alba anônima datada do século XII, talvez a mais famosa, trago logo abaixo para o leitor a célebre versão que Ezra Pound fez dela e, por fim, uma alba em galego-portuguesa.

Comecemos falando da alba occitana.

Seguindo o comentário de Hugh Kenner no capítulo Motz el Son de seu monumental livo The Pound Era, podemos observar nesta alba uma intrincada cadeia sonora que ultrapassa e muito o esquema rímico externo: veja-se por exemplo como ab sa, na segunda estrofe, ecoa escria do primeiro verso e antecipa dia no final. Esta cadeia sonora possui inclusive uma construção simbólica, qual seja: Kenner nota como a assonância em A ao longo do poema se mescla à assonância em O (esta última também contando, nos versos 4 e 5, de um jogo espelhado entre jos e tro, internamente, e flor e tor externamente) até que, no fim do texto, tenhamos l'alba contraposto a jorn, como que representando o embate entre o dia e a noite. (Num âmbito tradutório isso pode parecer algo difícil pra caramba de transpôr, mas surpreendentemente não achei: palavras como "aurora" e "claro" já possuem O's e A's suficientemente intercalados...)

O resto a ser apontado seria a estrutura paralelística em flashes que o poema apresenta. Três tomadas: o casal de rouxinóis, os amantes e o vigia chegando. Os rouxinóis cantam no alto e cantam o dia inteiro, ininterruptamente, algo que aconteceria também com os dois amantes não fosse a presença do vigia. E esse vigia, não custa lembra, escria. Escria é exatamente o mesmo que o rouxinol fazia a seu par. Uma ambiguidade que ajuda a demonstrar a superfície densamente lírica e amorosa da situação... (Isso sim já é difícil pra caramba de transpôr.)

A cadeia sonora que me referi antes, para passarmos da primeira parte da postagem pra segunda, explica as opções tomadas por Pound. E é a ele que mais cedo ou mais tarde, quando falamos de poesia provençal, acabamos chegando.

Pound publicou sua versão para esta alba anônima do século XII na Little Review em maio de 1918. Posteriormente ela seria inclusa numa sequência maior denominada Langue d'oc, com versões para outros autores provençais (Girart Bornello, Guilhem de Peitieu, Cerclamon e Arnaut Daniel). Antes, em The spirit of romance (1910), essa mesma alba havia aparecido numa tradução em prosa. Na ocasião, Pound menciona que as primeiras albas foram escritas em latim e com referências mitológicas no meio do texto. Depois, diz que a alba de sua preferência é a que começa com "En un vergier sotz fueilla d'albespi" (ela também é anônima, mas é do século XIII).

O espectro tradutório de Pound é vasto. A detração simplista ignora isso com uma facilidade estarrecedora... Mas eu me calo, senão fujo pela tangente e vou bater asas em outros campos. Onde quero chegar é: o caso de sua versão para a alba occitana talvez seja uma espécie de meio termo. A divisão estrófica inusual e o uso de uma linguagem prosaica exacerbam algumas características do original, mas isso não quer dizer que sejam mudanças gratuitas ou insossas. Esta versão de Pound nunca chegou a satisfazê-lo, conforme ele diz numa carta para Felix E. Schelling em 1922. Mas ele se mostrou bastante atento para a cadeia sonora do texto, de modo que a maneira como sua versão vai desfiando alguns momentos do original occitano possui correspondência direta na maneira como o próprio original interconecta suas palavras. Kenner nota como, por exemplo, day, no segundo verso, ecoa mate e late. Bower com flower e tower, por sua vez, é uma maneira de corresponder à assonância em O que, como vimos, também é presente no texto occitano. E por aí vai.

Além desta alba anônima do século XII e da versão de Pound, eu disse que incluo para vocês uma alba em língua portuguesa. Infelizmente, a única que nos restou. Há quem diga que, devido ao fato dela não apresentar os penduricalhos típicos da alba (marcadamente o gaita), ela não seria 100% alba. Enfim. Ela é de autoria de Nuno Fernandes Torneol, um trovador do século XIII. Nós sabemos praticamente nada de sua vida, mas isso não quer dizer que ele seja um total desconhecido nosso. A primeira estrofe de sua cantiga "Pois nací nunca vi Amor" foi musicada pela banda Legião Urbana em Love Song. A alba Leda m'and'eu requer de nossa parte um tipo de sensibilidade meio que distinta do que aplicaríamos ao caso da alba anônima do século XII. Enquanto nesta a concisão é acima de tudo admirável, a par de sua estrutura fônica e do paralelismo direto e conciso que ela apresenta, no caso da alba de Torneol temos algo realmente mais dilatado, mas que nem por isso perde em musicalidade e pungência. É muito difícil analisar um texto que na verdade era letra de música, de modo que o que poderíamos pensar como sendo repetições talvez inúteis, possuem uma função, presumimos, importante na estrutura musicada do texto.

Tem uns versos aí desse poema que são de uma musicalidade espetacular. Por exemplo "toda-las aves do mundo d'amor dízian". A rapidez que o poeta dá ao verso, vista facilmente no turbo que ele dá ao passar de dois dátilos para três iambos, ainda hoje em dia é um efeito que poucos teriam a felicidade de alcançar. A paranomásia entre Levad' e Leda é igualmente digna de nota, comprimindo nesta mera justaposição o cerne da alba: a alegria e a despedida. Toribio Fuente Cornejo, numa leitura acurada do poema, nos remete também ao simbolismo duplo que as estações do ano representam no poema, ou seja, enquanto a primeira parte (duas primeiras estrofes) remete a um clima invernal, a segunda parte (estrofes três e quatro) traz um clima primaveral e a terceira parte (estrofes restantes) um clima certo modo outonal. Certo modo outonal pois há no poema uma destruição do locus amoenus, essa instância que durante muito tempo se demonstrou essencial, como nos lembra E. R. Curtius, para a construção de um ambiente lírico. Sua destruição, a destruição reiterada desse locus amoenus representaria um conturbamento interior profundo, ou, ainda mais precisamente, seguindo a leitura de Toribio, a destruição dos elementos carregados de simbologia erótica e, por conseguinte, a interrupção/prolongamento violento do coito.

As albas calaram fundo na sensibilidade lírica ocidental. Como nos lembra Segismundo Spina, depois das cruzadas contra os albigenses (1209), a alba adquiriu significados religiosos, onde a noite se associava ao pecado e o raiar do dia à pureza do coração. Esta vertente se desenvolveria e desembocaria, por exemplo, na noche escura de San Juan de la Cruz. Não chego a dizer, em relação ao vezo original das albas, que ele chegou a um patamar de dominância. Calar fundo eu realmente acho que calou. Mas dominância... Nah. A situação do amor como algo impàssipossível se enraizou e se enraíza forte demais na poesia amorosa, de modo que um gênero como a alba, que pressupõe uma carnalização prévia, não grassou tanto. As pessoas fruem apenas aquela poesia amorosa que pressupõe uma distância, no geral angustiante (catártica, eu diria), para com o objeto amado. A aproximação erótica é recalcada violentamente. Mas apesar disso, calar fundo, calou: veja: nós podemos encontrar a alba por exemplo na cena do balcão de Romeu e Julieta ou então num poema como The Sunne Rising de John Donne. Se aceitarmos a relativização da aurora e pensarmos o legado da alba como sendo apenas o de uma ocasião de prazer que teve de ser interrompida, então creio que o caso moderno de Konstantinos Kaváfis possa dar excelentes ensejos, por exemplo o de quando ele nos conta de dois amantes que tiveram de sair meio que às pressas de seu quarto, no final de tarde, enquanto o sol dourava só até metade da cama. Em solo satírico e amargo nós podemos nos lembrar de Aubade de Philip Larkin (o leitor pode encontrar uma ótima tradução de Alipio Correia Neto aqui). Já em solo nacional, para não me estender muito nos apontamentos, o Poema só para Jaime Ovalle de Manuel Bandeira guarda lembranças da alba, embora seja um poema para solteiros, e, mais recentemente, a sequência Cigarros na Cama, de Ricardo Domeneck, também entra em contato com a tradição.

Além de minhas traduções para a alba occitana e a versão de Pound, incluo, para o texto occitano, a tradução de Nelson Ascher, inclusa no livro Poesia Alheia, editora Imago, 1998, p. 71, e, para a versão de Pound, a tradução de Mário Faustino, inclusa no livro Poesia, editora Hucitec e UNB, 1983, p. 102 (a célebre força-tarefa Faustino-Siamesmos-Pignatari-Grünewald), e a de Rodrigo Garcia Lopes para a Zúnai (aqui).


ALBA
Anônimo, século XII.

trad. eu.
Se ao par o rouxinol pia
Passa noite e passa dia,
Passeio com meu amor
      Flor a flor
Até gritar o vigia:
"Parou! Pois logo, eu reparo,
Raia a aurora e o dia claro."

*

trad. Nelson Ascher.
Quando o rouxinol
canta ao par, do pôr
ao nascer do sol,
entre flor e flor
beijo o meu amor

até que o vigia
brade torre afora:
"Amantes, é dia;
acordem, que a aurora
manda a noite embora!"

*

Quan lo rosinhols escria
ab sa part la nueg e.l dia,
yeu suy ab ma bell’amia
      jos la flor,
tro la gaita de la tor
escria: “Drutz, al levar!
Qu’ieu vey l’alba e.l jorn clar”.




ALBA.
Ezra Pound.

trad. eu.
Enquanto canta o rouxinol
A seu par, tanto à noite e ao sol,
Meu amor e eu, a gente se ama
Na rama,
Na grama,
'Té que o guarda da torre exclama:
        "Ora
        Pois!
                De pé, os dois!
                A branca aurora
                         Pôs
                 O escuro para
                         Fora!"

*

trad. Mário Faustino.
Enquanto o rouxinol à sua amante
Gorjeia a noite inteira e o dia entrante
Com meu amor observo arfante
Cada flor,
Cada odor,
Até que o vigilante lá da torre
Grite:
          "Levanta patife, sus!
                Vê, já reluz
                    A luz
                    Depressa, corre,
                    Que a noite morre..."

*

trad. Rodrigo Garcia Lopes.
Quando o rouxinol pra sua amada
Canta o dia todo e a madrugada
Com minha amiga deito de mãos dadas
Sob folhas,
Sobre flores,
Até que lá da torre o sentinela
Berra:
        "De pé, malandro, Vai!
        Que eu vejo a jovem
                Luz
                E a manhã já
                        Vem"

*

ALBA.

When the nightingale to his mate
Sings day long and night late
My love and I keep state
In bower,
In flower,
Till the watchman on the tower
Cry:
        "Up! Thou rascal, Rise,
        I see the white
                Light
                And the night
                        Flies"


Nuno Fernandes Torneol.

Levad', amigo, que dormides as manhanas frías;
toda-las aves do mundo d'amor dizían.
     Leda m'and'eu.

Levad', amigo, que dormide-las frías manhanas;
toda-las aves do mundo d'amor cantavan.
     Leda m'and'eu.

Toda-las aves do mundo d'amor dizían;
do meu amor e do voss'en ment'havían.
     Leda m'and'eu.

Toda-las aves do mundo d'amor cantavan;
do meu amor e do voss'i enmentavan.
     Leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss'en ment'havían;
vós lhi tolhestes os ramos en que siían.
     Leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss'i enmentavan;
vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan.
     Leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que siían
e lhis secastes as fontes en que bevían.
     Leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan
e lhis secastes as fontes u se banhavan.
     Leda m'and'eu.