A respeito de um soneto de Augusto dos Anjos.
Os poemas de Augusto dos Anjos são inconfundíveis. Esse uso intenso de termos científicos de ponta faz com que o leitor no mínimo os ache engraçados — e não exatamente que os rejeite, como seria nossa tendência inicial ao ler expressões que não fazemos a mínima ideia do que sejam. Parece haver um magnetismo em seus poemas. E aqui não custa lembrar que primeiro Augusto dos Anjos foi aclamado justamente pelo povo para só depois chamar a atenção da crítica. É muito curioso, de fato, mas não deixa de ter lá sua lógica, visto que esse amontoado de termos obscuros é usado com uma fluência e mesmo uma elegância que nos deixam curiosos em parte pelo que podem significar, mas em grande parte pelo fato de fazerem sentido dentro do poema.
Quero deixar claro que não falo de “fazer sentido” dum ponto de vista exclusivamente semântico. O que quero dizer é que esses termos inusitados estão amarrados numa cadeia sonora muito bem bolada. Há sempre um clima de mistério e surpresa propiciado pela pirotecnia de suas rimas, que muitas vezes são riquíssimas e impedem o leitor de em algum momento conseguir prever o que está por vir, até porque chega um ponto em que ele sabe que se surpreenderá com as rimas.
Essa cadeia sonora muito bem bolada implica também dizer que a atitude do leitor frente um poema de Augusto dos Anjos não precisa ser a de sair igual louco procurando o significado das expressões. Em muitos casos nós vemos um exagero e mesmo um volteio por parte do poeta para fazer com que a expressão científica se encaixe (mas, como o leitor desconhece o significado da expressão científica, ele ignora esse volteio, esperando ser presenteado pela sonoridade bombástica da poesia do autor e, claro, sendo sempre recompensado). Me parece nítido que o propósito é via de regra o de impactar e de plantar caraminholas na nossa cachola. Claro que não é só isso; existe uma grandeza no uso de termos científicos altamente especializados. Pois esse tipo de terminologia é necessariamente usada para tratar com precisão cirúrgica de alguma coisa qualquer. São insubstituíveis. Não se diz simplesmente “cloreto de sódio” para substituir um termo como “sal”; usa-se pois um termo como “cloreto de sódio” capta minúcias que “sal” simplesmente não capta. A questão é que Augusto dos Anjos consegue usar esse instrumental altamente específico num plano poético mais amplo, ou seja, seus poemas sempre tratam de temas que parecem assolar o âmago do ser humano como um todo. Em muitos casos, são poemas de um fino pendor metafísico, que beiram questões como a essência do Ser ou os insondáveis mistérios da Morte.
E aqui a relação é curiosa. Essas discussões filosóficas tão abstratas geralmente demandam termos muito amplos, os quais, embora possam ser especificados durante o raciocínio filosófico (por exemplo quando Heidegger, pensando a questão do ser, o recorta em ser-aí, ser-em, ser-com etc), ainda assim mantêm uma certa amplitude até para que o assunto, por natureza tão extenso, consiga ser abrangido de maneira adequada (até porque os grandes conceitos da tradição filosófica, apesar de muitas vezes serem conceitualmente amplos, são também especializados a seu modo, isto é, filosoficamente especializados). Mas aí vem Augusto dos Anjos e emprega um instrumental científico de ponta, cirúrgico mesmo, para tratar de questões filosóficas profundas, só que tudo, veja só, num âmbito poético, o que costuma implicar um substrato emocional poderoso ou então, no mínimo, o emprego de aspectos textuais tidos como secundários pela filosofia ou pela ciência (por exemplo a sonoridade ou as metáforas). Dessa mistura parece surgir uma contradição. Afinal de contas, o palavreado científico altamente especializado funciona bem em sua área, mas em questões metafísicas o palavreado especializado tem de ser outro. Augusto dos Anjos consegue uma espécie de milagre ao unificá-los em seus textos.
Ele consegue isso empregando alguns instrumentos específicos e recorrentes. Um deles o de comumente trazer situações cotidianas ou que passem pela realidade empírica de maneira visceral. Muitas vezes há também o outro lado da moeda, sobre situações absurdas, fantasmagóricas e oníricas, mas mesmo essas situações, digamos assim, “surreais” só o são por passarem e perturbarem a concretude do real. Outra ferramenta que o poeta usa bastante é a de segmentar seu poema em pequenas notações que se assemelham à observância científica de um fenômeno. Além disso, a filosofia de Augusto dos Anjos é iconoclasta, ancorada na dúvida absoluta, na rejeição de verdades consagradas e na proclamação da vanidade da existência. Se em algum instante os dois pólos opostos, o científico e o metafísico, que Augusto dos Anjos conhecia com grande erudição, parecem se harmonizar ou pelo menos cada qual apontar para uma verdade, a postura do poeta é via de regra a de destruir qualquer resultado minimamente estável que se tenha pretendido esboçar, deixando o leitor, no fim das contas, com um monte de destroços. E aqui de novo caímos numa ironia esplêndida, uma vez que estamos falando de um poeta que escreveu numa época de efervescência positivista acentuada. A partir do momento em que ele se vale de posturas, conquistas e termos dessa empreitada positivista e, de modo geral, de grandes resultados, de ápices do pensamento ocidental, mas não para chegar a resultados objetivos e universais e sim para plantar uma verdadeira banana dinamite dentro do poema, ele está por conseguinte operando um grande ataque à concepção de mundo de seu tempo. Afinal de contas, ele pega todo o instrumental mais fino de entendimento de mundo de sua época e o usa pra proclamar o enorme Nada.
O soneto que trago creio que demonstra isso muito bem. Ele pega os pólos científico e metafísico para depois proclamar sua insuficiência. É um soneto dramático, no sentido mais simples de que traz personagens num diálogo. Na época em que Augusto dos Anjos o escreveu, esse tipo de soneto era muito apreciado pelo público, muito embora via de regra não passasse de uma versalhada boba, a exemplo do que Artur Azevedo diz na segunda estrofe de “Impressões de teatro”: “— ‘O pai quem é?’ pergunta. — ‘Eu!’, lhe responde / Um pajem que entra. — ‘Um duelo!’ — ‘Sim! Quando? Onde?’” Neste que estamos lendo, temos basicamente a conversa entre o eu lírico e um farmacêutico. No início do século XX, o farmacêutico era bem mais do que era hoje; como muitas cidades brasileiras não contavam com um médico, o farmacêutico, ou boticário, acabava sendo um curandeiro ou um médico-geral do povo.
Na primeira estrofe o poeta pede para que alguém lhe traga materiais químicos para fazer a lágrima. Os famosos termos científicos especializados de Augusto dos Anjos estão muito bem representados já no segundo verso: “Clorureto de sódio, água e albumina”. E a linguagem formal do primeiro, com esse “por obséquio”, contribui para uma atmosfera formal e distanciada logo de cara, muito embora haja um choque com a imagem da lágrima de todos os vencidos, um jeito muito dramático de ampliar as imagens de uma estrofe que começou com a menção a elementos químicos.
Na segunda, uma fala do farmacêutico, nos deparamos com uma frase um tanto curiosa. Ela começa unindo a farmacologia e a medicina, ciências finas e avançadas, mas logo fala de uma “relatividade dos sentidos”, expressão que nos coloca num plano mais humano, isto é, mais empírico e menos científico. Os dois versos juntos querem dizer, em outras palavras, que a ciência e o ser humano “Desconhecem os mil desconhecidos”. O duplo esforço da ciência e de nós, seres humanos, com todos os nossos sentidos à flor da pele, parece ter sido em vão: desconhecemos um número enorme de desconhecidos, de modo que o próximo verso, que se refere a uma secreção divina (mencionada com apoio de um pronome vago: “dessa”, contraposta ao “isto” do terceiro verso), tem lá sua coerência: diante de tantos desconhecidos que desconhecemos, nós nos posicionamos diante de algo que só tem explicação sobrenatural. Mas isso quem disse foi o farmacêutico, alguém que não deveria se contentar com uma explicação dessas ou que, mesmo supondo que fossem mil os desconhecidos, não deveria por conseguinte atribuir explicação divina ao fenômeno.
No próximo verso aparece a figura do pai Ioiô, apelido carinhoso de Alexandre Rodrigues dos Anjos, pai do poeta, morto em decorrência de um insulto cerebral que o imobilizou numa cama. Augusto dos Anjos tratou a situação da morte de seu pai em dois sonetos muito comoventes: “A meu pai doente” e “A meu pai morto”. Não custa lembrar que o livro Eu é dedicado, entre outros, à memória de seu pai. A referência carinhosa neste soneto quebra o tom frio e vago dos versos anteriores. Desarma. Claro que já no verso seguinte temos o bom e velho Augusto dos Anjos de “ânsia psíquica da última eficácia”, com duas proparoxítonas posicionadas num único verso (algo raro) e acentos bem distribuídos. Mas a menção ao pai Ioiô demonstra, de todo modo, como, apesar de Augusto dos Anjos ter à sua disposição todos os instrumentos capazes de fazê-lo fugir da vida a seu redor — seja graças à ciência, seja graças à filosofia, seja graças à postura iconoclasta e negativa —, ele ainda assim está falando essencialmente de si mesmo, dos horrores, mistérios, perplexidades de viver. Eu. Neste sentido vale a pena fazer pelo menos uma menção ao penúltimo verso, com uma redundância tocante de pronomes de primeira pessoa: “lembrar-me eu de meu Pai” (o uso de “Pai” em maiúscula é também digno de nota na medida em que termos em maiúscula geralmente assinalam passagens significativas nos poemas de Augusto dos Anjos, e, neste soneto, “Pai” é a única a aparecer assim).
Fabricar a lágrima, como o poeta pretendia no começo, é tarefa inútil, uma vez que lágrimas exigem de antemão um mundo, lembranças, afeto, maldade ou, em suma, o que chorar. A última rejeição de Augusto dos Anjos não é uma rejeição absoluta como poderíamos perceber em outros poemas do autor; é uma rejeição em prol de algo. No caso, da lembrança, do afeto. É, por assim dizer, um soneto de exceção na obra do poeta. Poderíamos ser até mais específicos e dizer que a exceção começa a ser desenhada a partir dos tercetos, pois o poeta começa criando um clima de negação primeiro do que a ciência seria capaz de oferecer, depois do que a metafísica ou nossa percepção humana igualmente ofereceriam, para, já no primeiro terceto, irromper com a referência ao pai Ioiô, referência esta, repito, que desarma o poeta. Um desarmamento a meu ver muito bonito, especialmente se considerarmos a grandiloquência com que Augusto dos Anjos sempre trata seus temas e a maneira como ele joga tudo ao chão e espatifa. Aqui ele também joga as drogas da farmácia, mas a lembrança de pai Ioiô — jamais. Ela é a lágrima. Parece existir uma contenção no singular “lágrima”; um poeta romântico não se contentaria apenas com uma, mas com todas. De todo modo, apenas uma lágrima que seja, é o suficiente. A inclusão do pai Ioiô, uma personagem concreta, de carne e osso, num poema que primeiro tratara da lágrima na sua generalidade química, depois na sua generalização conceitual (a lágrima de todos os vencidos), e depois da essência divina da lágrima; sua inserção no poema nos leva a canalizar nosso afeto em direção ao pai Ioiô, até porque todos os outros motivos para chorar foram afastados pelo poeta. A ânsia psíquica da última eficácia, ou de qualquer eficácia que seja, como que parafraseando em termos arrevesados a ideia de um efeito placebo ou coisa do gênero (quem sabe a busca por uma espécie de emplastro Brás Cubas), é substituída pela simples lembrança carinhosa do pai. Não há que se buscar algo além disso.