Omar Khayyam (1048 - 1131) e Edward Fitzgerald (1809 - 1883).


(Omar Khayyam)


Omar Khayyam, o poeta, matemático e astrônomo persa, é uma das figuras mais emblemáticas da cultura ocidental. Em especial pela filosofia de vida que podemos extrair dos poemas que deixou, denominados rub'aiyat, رباعیات (rub'aiyat é plural de rub'ai, رباعی). Neles, como sintetiza muito bem Manuel Bandeira, podemos contemplar todo um agnosticismo, imediatismo e hedonismo. O que importa é o presente, o agora. O ontem e o passado não são absolutamente nada. Deus, as certezas absolutas, a ciência... Uma jarra de vinho e a pessoa amada são o que bastam. O que somos nós? Dá uma olhada nessa jarra de vinho aqui, feita de barro. Esse barro é barro, e nós todos vamos voltar ao barro; logo, o que impede que esse barro seja um imperador ou um jovem efebo de séculos atrás? — Daí, conforme dirá num rub'ai (na tradução de Bandeira), "Vem, minha amada! À embriaguez / Quero pedir que me faça / Esquecer que neste mundo / Jamais saberemos nada."

A questão a ser levantada, todavia, é que a influência poderosa que a figura de Khayyam exerceu na cultura Ocidental partiu de uma tradução controversa, isso lá em meados do século XIX, e ainda hoje nós ocidentais não parecemos ter uma concepção muito clara de quem foi a figura Khayyam. Não é muito espantoso se percebermos que, com Khayyam, na prática incorremos no mesmo mecanismo de exclusão e exotismo que aplicamos a uma vasta parcela da cultura oriental: isto é, que o tratamos com as violentas luvas de pelica do orientalismo.

Conhecer melhor Khayyam envolveria um conhecimento mais amplo da cultura persa. Infelizmente não poderei oferecê-lo. Endosso a lista de conhecedores-desconhecedores de sua obra e me limito a alguma atenção à recepção de Khayyam partir da tal tradução controversa antes mencionada.

É o seguinte: quem menospreza a importância da tradução provavelmente ignora sua importância no todo orgânico de uma cultura. Não digo só no sentido prático de que, como existem muitas línguas no mundo e nenhuma perspectiva de unificá-las, nós precisamos da tradução querendo ou não. Digo isso também me referindo à influência direta que as traduções podem exercer dentro de um ramo cultural específico, a saber, o artístico, o poético. O caso de Omar Khayyam no ocidente é eloquente demais a respeito do assunto. O que conhecemos de Khayyam ainda hoje é em grande parte graças ao que Edward Fitzgerald, um tradutor inglês vitoriano (século XIX), nos concedeu. Na verdade, dizer "tradução" referindo-se ao trabalho de Fitzgerald é pouco. Ele chamava suas versões de transmogrifications, ou seja, quando uma coisa adquire a aparência de outra, o que implica um desapego à literalidade do texto e uma busca de como que transmigrar alma poética do autor para o tradutor. Num pequeno ensaio que Jorge Luis Borges escreveu sobre o rub'ai, ele sugere que a alma de Khayyam incarnou no seu tradutor vitoriano. (Borges possui um poema denominado Rubaiyat, e seu pai, Jorge Guilhermo Borges, verteu para o espanhol a versão de Fitzgerald.)

Claro que aqui há muita pena pra ser corrida, pois seria o caso de questionarmos o que está em jogo quando falamos da literalidade do original. O senso comum nos diz que é o que o original diz, o sentido mais evidente ou irredutível, o palavra-por-palavra, o que tá lá na página, uai. Mas aspectos formais podem possuir uma importância maior dentro de um projeto tradutório, ou então, sei lá, a questão da receptividade (isto é, buscar um efeito análogo ao que o original possui ou possuía quando de sua publicação), e nem por isso estaríamos necessariamente diante de uma não-tradução, caso o tradutor venha a incorrer em cortes ou substituições para validar um projeto tradutório assim — cortes ou substituições, operações tidas como próximas do que se costuma chamar "paráfrase". Afinal de contas, mesmo que incorra, o tradutor poderia ainda assim estar traduzindo a obra, com a diferença de dar um enfoque em aspectos no geral postos em segundo plano — e é por isso que não devemos achar que cortes ou substituições são operações exclusivas da paráfrase, visto que, pra virarmos o jogo, se o tradutor dá privilégio a tais aspectos no geral relegados a segundo plano, as traduções ou formas de percepção corriqueiras são elas mesmas também excludentes em relação a tais aspectos secundários. E aqui não se trata de necessariamente achar pêlo em ovo ou qualquer coisa do gênero, ou seja, "querer que minúcias sejam tão importantes quanto aspectos principais". São minúcias porque poucos o percebem, poucos o realçam. Absolutamente nada impede que dentro de uma argumentação consistente eu reencontre a importância do que até então era minúcia. Afinal de contas, a tradução é sempre resultado de uma articulação crítica, pra não dizer que estamos à roda de uma escritura, de um aparato textual que gera significados, é dizer, que não se reduz à univocidade de um sentido pré ou pós-estabelecido. Novos sentidos sempre serão possíveis, novas percepções sempre serão possíveis não porque a mensagem é plurívoca, mas porque o aparato de significação do texto, isto é, o texto em-si, gera muitos e novos sentidos.

Mas isso aí que eu disse de cortes e substituições, é claro, deve ser sempre pensado e pesado em níveis razoáveis, pois digamos que, caso seja o escopo do tradutor perseguir um aspecto que outras traduções no geral não mantêm (o que talvez baste para que caracterizemos sua tradução como "radical": perseguir o que no geral olha-se com vistas grossas), isso não lhe dá o aval de menosprezar em demasia outros aspectos do texto como por exemplo a dimensão imagética do poema, ou seja, as imagens que o poema quer incutir. Nós ainda mensuramos e sempre mensuraremos a qualidade de uma tradução, até onde algo assim for possível (em níveis absolutos é claro que não, mas em níveis satisfatórios é possível que sim), de acordo com o que a tradução mantém (ou corresponde, caso queira) do original; a diferença é que, dentro de projetos tradutórios distintos, a percepção do original pode ser distinta, ela pode privilegiar aspectos M e N e não A e B, ela pode se valer daqueles e daqueles instrumentos de transposição para que dê o serviço como feito e a tradução representativamente funcione como o original (ou, mais exatamente, aquela interpretação do original) na cultura de chegada.

A ideia é a de antes de tudo uma compreensão do projeto tradutório, ou seja, o como o tradutor irá se portar face ao original para que consiga chegar a um resultado que representativamente funcione como o original numa outra cultura. Pois toda tradução é um ato crítico. Não quer dizer simplesmente no sentido poundiano da crítica via tradução, mas também no sentido de que, se as línguas são distintas (uma aporia do pensamento tradutório), isso implica possibilidades discursivas e resultados discursivos distintos (o grau de diferença vai depender do grau de diferença entre as culturas). Face a um texto literário, que é um tipo especializado de discurso, nós estamos lidando com algo que trabalha a linguagem de forma peculiar, independente de julgarmos o resultado final bom ou não. Mesmo que o texto literário apenas repita clichês literários, a forma de repeti-los, de estruturá-los, de percebê-los etc é única. Assim, uma tradução envolve a percepção/interpretação desse texto literário e de suas várias características; mas, posto que não pode manter todas, deve elencar quais julga mais importantes e é nesse elencá-las que está seu projeto tradutório, ou seja, uma forma de proceder, de gerenciar as perdas e ganhos que a operação tradutória implica. E esse projeto tradutório é resultado de uma articulação crítica.

Pois bem. Voltando à tradução controversa de Fitzgerald. Eu possuo minhas limitações ao discutir os resultados de Fitzgerald. Não sei persa. Ao que me consta, em alguns casos (raríssimos) o tradutor foi bem fiel ao original, em outros ele parece ter mesclado rub'aiyat (Fitzgerald fez uma seleção, mas ao todo existem mais de 400) e em outros ele se distanciou bastante. Após traduzir seis peças de Calderon de la Barca (mais tarde ele traduziria outras duas), Fitzgerald se dedicou ao estudo da língua persa, e em 1856 ele chegou até a publicar anonimamente uma tradução em versos miltônicos de um poema de Jami, o maior dos poetas sufitas do século XV. Em 1857 E. B. Cowell encontrou um manuscrito com os rub'aiyat de Khayyam numa biblioteca em Calcutá, no que tirou uma cópia pra si e compartilhou com o amigo. Foi assim que a coisa começou. Um ano depois, escrevendo pra Comwell, Fitzgerald reconhece que suas traduções são não-literais (un-literal) e que mesclou rub'aiyat. Face a tamanha instabilidade, concluir com Borges que Khayyam incarnou em Fitzgerald é daqui pr'ali — mas alerto que devemos também ter em mente que a dinâmica tradutória de Fitzgerald refrata uma ideologia orientalista, e existem estudos sérios mostrando que operações tradutórias de Fitzgerald face ao original de Khayyam, em especial no que tange as exclusões, terminam numa manipulação ideológica.

O fato é que Rubáiyát of Omar Khayyam foi um sucesso estrondoso. Ainda é. Tony Briggs (aqui) nos diz que existem hoje mais de 650 edições da obra, e mais de 150 artistas já a ilustraram. Tamanho sucesso teve início em 1861, quando Dante Gabriel Rossetti encontrou ao acaso o livro e, indicação vai, indicação vem, mexeu seus pauzinhos (mostrou por exemplo pra Swinburne) e pimba. Da primeira edição, de 1859, com 75 quadras, seguiram-se outras cinco com algumas mudanças seja no sentido de aumentar o tamanho do livro (a edição de 1868 é a maior, com 110), seja no sentido de apresentar variantes (o rub'ai XII, por exemplo).

Sucesso tão enorme que boa parte dos escritores que se influenciaram por Khayyam nunca nem mesmo tocou no original persa. Fernando Pessoa é um exemplo, tendo-nos deixado uma amostra considerável de rub'aiyat: tanto que os pesquisadores da obra pessoana chegaram até a encher um livro todo só deles (Canções de beber, editora Assírio e Alvim). O leitor aclimatado à obra de Pessoa talvez se lembre do poema Rubaiyat incluso na revista Contemporânea em 1926, que inicia com: "O fim do longo, inutil dia ensombra." A maior parte dos rub'aiyat de Pessoa possuem mais de uma estrofe, sendo escritos como uma sequência. Não é nenhum problema ou coisa do gênero. Rub'ai na poesia persa é uma estrofe de dois versos com dois hemistíquios em cada verso. No Ocidente esses versos se tornaram quatro (meio que dá na mesma), o que de resto já estava incluso no nome, pois rub'ai deriva do árabe رباعي, que, por sua vez, possui como raiz ر ب ع, isto é, "quatro". Portanto, rub'ai: quadra. O rub'ai, pra se ter uma ideia, não necessita a rigor nem mesmo ter o esquema rímico AABA (esse foi o esquema rímico de Fitzgerald; mas só). Maria Manir Miguel Feitosa, que estudou com mais tardar a presença do rub'ai na obra de Pessoa (Fernando Pessoa e Omar Khayyam, editora Giordano, 1998), mostrou que o rub'ai não apareceu só num sentido literal, ou seja, quadras decassilábicas rimadas em AABA, mas também foi subsidiário da obra de heterônimos como Ricardo Reis ou Bernardo Soares. Listo abaixo o meu rub'ai preferido de Pessoa e listo duas traduções de Pessoa para Fitzgerald, conforme citados por Maria Manir (p. 89-90).

Incluo também um rub'ai traduzido por Manuel Bandeira tendo como base a versão francesa de Franz Toussaint. As versões francesas são quase tão antigas quanto as inglesas. Mas os franceses são mais animados. Enquanto Fitzgerald publicava em 1859 a primeira edição das suas, J. B. Nicolas publicava em 1867 uma edição com 464. A perícia com que Bandeira brande o verso branco nestas traduções é um enorme aprendizado. Bandeira se vale de muitos metros, da redondilha menor aos bárbaros, o que demonstra um senso rítmico apurado por parte dele, uma vez que as versões de Toussaint são em prosa. Vide por exemplo o último verso do rub'ai 100. A impressão que tenho é que poucos hoje em dia conseguiriam manejar o verso branco com a perícia de Bandeira (ou com qualquer perícia que seja).

Traduzo para o leitor um rub'ai de acordo com a tradução de E. H. Whinfield. E. H. Whinfield, que chama o rub'ai de quatrain apenas, foi tradutor de 500 rub'aiyat em 1888. Traduzo também cinco de acordo com Fitzgerald. O primeiro deles faz referência a Iram, que, segundo Fitzgerald, foi um jardim real hoje soterrado nas areias da Arábia (mas também encontrei quem diz que foi uma rica cidade onde os moradores veneravam ídolos de pedra, e que foi destruída pelo vento), e Jamshyd, um rei mitológico que possuía uma taça de sete-anéis cheia do elixir da imortalidade e que lhe permitia observar o universo e o futuro. Jamshyd viveu 700 anos ao todo. A tal da taça lhe foi concedida por Kai-Kosru, um rei persa bisneto de Kai-Kobad. Os dois irão aparecer em outros rub'aiyat: Kai-Kobad, por exemplo, junto a Jamshyd no IX, aqui traduzido por Fernando Pessoa. O terceiro rub'ai eu comentarei daqui a pouco quando mencionar a tradução de Augusto de Campos. Já o quarto deles ajuda o leitor a ter uma ideia da popularidade da obra: ele foi título de um romance policial de 1942 de Agatha Christie, The moving finger.

Convidei alguns colegas meus da Lira dos Poetas para traduzirem junto comigo. Todos se valeram aqui e acolá de modificações no esquema rímico AABA, o que talvez seja um problema dentro da tradução das versões de Fitzgerald mas que, dentro do rub'ai, como vimos, não é. Pedro Mohallem, que é sempre-super animado com coisas assim, contribuiu com três traduções, e Kleiton Muniz, que resolveu participar quando as comportas já estavam quase fechando, apareceu com duas. O terceiro nome da Lira que entrou na brincada foi Ivan Eugênio da Cunha. Para apresentá-lo aos leitores, o Ivan mora no Rio de Janeiro e é doutorando em Física pelo CBPF. Sua poesia no início possuía uma tônica pós-simbolista um tanto quanto musical (o Ivan toca violino) mas hoje tem se encaminhado para uma construção minimalista instigante. Quem quiser ler os poemas do Ivan pode conferir seu Recanto das Letras aqui.

Geir Campos, Gentil Saraiva Jr. e Jamil Almansur Haddad são os próximos tradutores que trago à baila. Geir Campos numa tradução batata que fez para ilustrar o verbete acerca dos rub'aiyat em seu útil dicionário de arte poética, Gentil Saraiva Jr. num ótimo artigo publicado pela revista Sibila (aqui), onde analisa outras traduções e propõe as suas (esta que selecionei, por exemplo, tem um alcance paranomásico muito bom no segundo verso), e por fim Almansur Haddad, que se valeu de um verso de doze sílabas e de um esquema rímico distinto do de Fitzgerald.

Um dos ru'aiyat que traduzi a partir de Fitzgerald (o XII) foi também traduzido por outros. Nenhuma novidade, visto que, se as versões de Fitzgerald são um clássico da literatura inglesa, o XII costuma estar entre os mais citados. Todavia, não tive acesso a todas as edições dos rub'aiyat traduzidas no Brasil. Tomando como base um texto de 2012 na Folha de São Paulo (aqui), forneço para o leitor a tradução de Luiz Antônio de Figueiredo, que publicou uma edição dos Rub'aiyat a partir da tradução de Fitzgerald pela editora Unesp.

Pra fechar a miscelânea, uma tradução do rub'ai XLV feita por Augusto de Campos, também a partir de Fitzgerald. Além deste, Augusto traduziu o IX e o XXIII. Em todas as traduções ele se esmerou na captação de aspectos formais do texto inglês, formulando uma crítica à concepção saussuriana da arbitrariedade do signo linguístico (usando como argumento a tessitura sígnica dos rub'aiyat traduzidos), o que é discorrido com mais tardar no livro O Anticrítico (Cia das Letras, década de 80). Na tradução do rub'ai LXV, que é uma reescritura do rub'ai XXVI da primeira edição, Augusto enxerga um jogo paranomásico interessante na estrutura do rub'ai, a saber: life-flies no segundo verso, que é um simples rearranjo das letras, e, no próximo verso, um jogo com a palavra lies, que remete a life-flies e guarda a ambiguidade manjada de mentira-jazer. No último verso, há uma cadeia paranomásica muito forte com for ever e flower. Augusto nos diz que, embora não tenha conseguido um resultado muito bom para life-flies, ele se esforçou em conseguir um para o caso de for ever e flower, e de fato sua solução é esplêndida. No meu caso, busquei uma correspondência entre "vida", "esvaída" e "olvida", e, no caso de for ever e flower, entre "for" e "fôr" no terceiro verso (aliterado em F) e indo pra "Afora", "flor" e "aflora" no quarto.

As traduções que pude compilar foram estas, que possuem como objetivo fornecer uma amostragem bastante pessoal. Assim que for tendo acesso a outras traduções, amplio aos pouquinhos a postagem. Quem quiser uma compilação das traduções de Khayyam no Brasil pode conferir esta postagem de Denise Bottman. O leitor pode ler a tradução de Whinfield aqui (texto bilíngue). Pode ler a primeira e a quinta edição de Fitzgerald aqui. A de Toussaint, aqui.

§

P.S.: Seis horas após a postagem, já recebo algumas contribuições. É muita felicidade, gente. A primeira delas, um rub'ai na tradução de Octavio Tarquinio de Souza, que, segundo consta no prefácio, se baseou em versões inglesas e francesas (francesas, nominalmente Toussaint). Agradeço a Luis Fernando Pinheiro, Calib, pela foto. A segunda contribuição a encargo de Bruno Oliveira, um velho amigo de tempos do saudoso fórum Meia Palavra, onde discutíamos Borges num clube de leitura clandestino (assim o chamávamos) com um afinco inesquecível. A versão de Bruno é uma tradução de uma tradução de uma tradução, ou seja, uma tradução³. É assim: ele pegou a tradução do Kleiton Muniz para o rub'ai XII, que, como todas as outras traduções aqui, já é uma tradução. Só que ele pegou essa tradução do Kleiton e traduziu-a pro inglês. Daí ser uma tradução³. A terceira contribuição foi uma lembrança de Bruce Torres, dono dos blogs Demais Considerações Literárias (aqui) e O Básico em Letras (aqui), que me indicou a versão de Alfredo Braga, aqui. Eu já havia lido alguns rub'aiyat na tradução de Alfredo há tempos atrás, mas não sei porque não me lembrei de incluí-lo na seleção. Fiquemos com o rub'ai 23, um bom representante da filosofia de vida do poeta persa.

Todavia, não tive como adicionar ao leitor os originais das versões de Octavio Tarquinio e Alfredo Braga. No caso de Tarquinio por não ter conseguido achar um correspondente em Fitzgerald ou Toussaint (parece que ele tirou esse rub'ai de outra fonte) e no caso de Alfredo por ele não ter deixado claro se sua tradução foi do original persa (creio que não, haja vista o título da postagem), se foi do inglês, do francês, se foi a partir das versões de Tarquinio...



(Por Augusto de Campos, incluso em O Anticrítico, p. 96)


468.
trad. eu a partir de Whinfield.
Amor!, antes do portal derradeiro,
Antes de nos tornarmos, para o oleiro,
Matéria-prima, enchei os nossos cálices
De vinho e acompanhai-me, companheiro!

§

trads. eu a partir de Fitzgerald.

V

Em verdade o esplendor do Iram se passa
E assim Jamshyd e os sete-anéis da taça;
Mas o vinho retém seu rubi ainda
E ainda no jardim o rio passa.

*

XII

Um livro de poemas, um galão
De vinho qualquer, sombra fresca e pão —
Você cantarolando no deserto —
Deserto que me fosse o céu, então!

*

LXV

Inferno ou Céu, só uma coisa é tida
Como certa  que a Vida é esvaída
E o mais que for não fora mais que Falso 
Afora a Flor que aflora e então se olvida.

*

LXXI

O dedo move, escreve e depois move;
Piedade nem arte jamais houve
Que o faça remover só meio verso —
E nem sequer a lágrima o remove.

*

LXXIV

Lua nunca minguante de minh'ânsia,
A lua já se ergueu: com que constância
Se erguendo ela olhará este jardim
              Defronte a mim — em vão!


trads. Pedro Mohallem a partir de Fitzgerald.

V

Iram se foi; com ele, toda a Graça
E de Jamshyd dos Sete Anéis a Taça;
Mas 'inda a Vinha ostenta seu Rubi,
E 'inda há Jardins por onde o Rio passa.

*

VII

Vem, enche a Taça, e no Fulgor da Aurora
Joga o teu Manto de Remorso fora:
A Ave do Tempo faz do seu trajeto
Tão pouco — Vê: já está partindo agora.

*

VIII

Quer seja em Nishapur, quer Babilônia,
Haja na Taça rum, haja peçonha,
Da Vida o Vinho escoa até que suma,
E vão tombando as Folhas, uma a uma.


trads. Kleiton Muniz.

XXII

Um naco de pão sob o pé de imbu,
Um vinho, um livro de poesia — e tu
Ao meu lado cantando no deserto —
E o deserto pra nós é o céu azul.

*

XXXIX

Quanto tempo perdido em longa busca
neste esforço e naquela vã disputa?
É bem melhor sorrir pela fruta que há
do que ser triste por nenhuma fruta.


XII
retrad. Bruno Oliveira a partir de Kleiton Muniz.
A piece of bread behind Imbu
A cup of wine, a book and thou
By my side singing in the desert
And the desert for us is all in blue.


trads. Ivan Eugênio da Cunha a partir de Fitzgerald.

XXIV

Igualmente aos que aprontam-se pro HOJE
E aos que têm olhos postos no AMANHÃ,
"Tolos!", clama o muezim na negra torre,
"Onde buscam o Prêmio a busca é vã!"

*

XXVI

Oh, venha co'o velho Khayyam, venha e ouça
O Sábio; uma coisa é certa o Tempo voa.
Uma coisa é certa e o Resto puro Engano;
A Flor que floresce logo vai murchando.

*

LXXIV

ONTEM da Insanidade presente foi fonte;
O AMANHÃ o Silêncio, o Triunfo ou Dor esconde:
Beba! por não saber de onde veio ou porque:
Beba! por não saber porque vai nem pra onde.



trads. Fernando Pessoa a partir de Fitzgerald.

IX

Dizes: cada manhã mil rosas dá
Mas a rosa de ontem onde está?
E este Verão que nos trará a rosa
Yamshyd e Kaikobád nos tirará.

*

LXX

Já muita vez jurei me emendar,
Mas não staria eu bêbado ao jurar?
A Primavera vinha, com as rosas,
E emenda e jura iam pelo ar.

*

rub'ai autoral e incompleto de Pessoa.

Morreste, eu choro, e choro mais pois sei
de que saudade choro e chorarei.
Não é a saudade de tu já não seres:
É a saudade de quanto eu não serei.

É inútil tudo, até o sabê-lo. O dia
conduz à noite, que de novo o cria.
Nas vésperas augustas da renúncia,
tu a mesma renúncia renuncia.

Sábio é o que fecha à chave o que não tem,
para que o nada que é não saiba alguém.
Toda máscara cobre uma caveira,
toda alma é máscara de alguém.

Bebe! O amor pesa, a ambição pesa, tudo
pesa no coração prolixo e mudo.
Bebe, que a vida é um vinho antecipado
e o vinho a vida — — —


100
trad. Manuel Bandeira a partir de Toussaint.
No silêncio desta noite, como o imóvel
Galho queda-me o imóvel pensamento.
De uma rosa, que é a imagem de teu brilho
Precário, uma das pétalas caiu.

Onde estarás, reflito, neste instante,
Ó tu, que me estendeste a copa cheia
De vinho, e por quem chamo ainda, saudoso
E só, no ermo sem fim desta hora morta?

Certo nenhuma rosa se desfolha
Junto de quem agora desalteras;
E estás privada da ventura amarga
Com que eu te saberia embriagar...


LXVI
trad. Geir Campos a partir de Fitzgerald.
Minha alma arremessei rumo ao Eterno,
Para ler o destino em seu caderno,
Mas dentro em pouco a alma tornou a mim
E disse: "Eu mesma sou o Céu e o Inferno!"


VI
trad. Gentil Saraiva Jr. a partir de Fitzgerald.
Calaram os Lábios de Davi; do ninho,
Piando em divino Pélevi, com ‘Vinho!
Tinto Vinho!’ — o Rouxinol à Rosa
Roga: faça encarnado o seu Rostinho.


XXVII
trad. Jammil Almansur Haddad a partir de Fitzgerald.
Eu mesmo frequentei nos meus tempos de moço
Muito Doutor e Santo e, cheio de alvoroço,
Ouvi suas razões sobre o universo para
Pela porta sair por onde eu, crente, entrara.


XII
trad. Luiz Antônio Figueiredo a partir de Fitzgerald.
Um Livro de Poesia sob a Rama Florida,
o Vinho e o Pão, ao lado a Mulher preferida,
cantando no deserto uma Canção singela,
fariam deste areal a Terra Prometida!


XLV
trad. Augusto de Campos a partir de Fitzgerald.
Inferno ou Céu, do beco sem saída
Uma só coisa é certa: voa a Vida,
E, sem a Vida, tudo o mais é Nada.
A Flor que for logo se vai, flor ida.


trad. Octavio Tarquinio a partir de — ?



23
trad. Alfredo Braga a partir — ?
O vasto mundo: um grão de areia no espaço.
A ciência dos homens: palavras. Os povos,
os animais, as flores dos sete climas: sombras.
O profundo resultado da tua meditação: nada.



468
trad. E. H. Whinfield.
O Love! before you pass death's portal through,
And potters make their jugs of me and you,
Pour from this jug some wine, of headache void,
And fill your cup, and fill my goblet too!





(Edward Fitzgerald)

§

Abaixo, Edward Fitzgerald.

V
1ª e 5ª ed.
Iram indeed is gone with all his Rose,
And Jamshyd's Sev'n-ring'd Cup where no one knows;
But still a Ruby kindles in the Vine,
And many a Garden by the Water blows.


*

VI
1ª e 5ª ed.
And David's Lips are lock't; but in divine
High piping Pelevi, with "Wine!  Wine!  Wine!
Red Wine!"—the Nightingale cries to the Rose
That yellow Cheek of hers to'incarnadine.

*

VII
1ª e 5ª ed.
Come, fill the Cup, and in the fire of Spring
Your Winter garment of Repentance fling:
The Bird of Time has but a little way
To fly—and Lo! the Bird is on the Wing.

*

VIII
5ª ed.
Whether at Naishapur or Babylon,
Whether the Cup with sweet or bitter run,
The Wine of Life keeps oozing drop by drop,
The Leaves of Life keep falling one by one.

*

IX
5ª ed.
Each Morn a thousand Roses brings, you say; 
Yes, but where leaves the Rose of Yesterday? 
And this first Summer month that brings the Rose 
Shall take Jamshyd and Kaikobad away. 

*

XII
5ª ed.
A Book of Verses underneath the Bough,
A Jug of Wine, A Loaf of Bread—and Thou
Beside me singing in the Wilderness—
Oh, Wilderness were Paradise enow!



1ª ed.
Here with a Loaf of Bread beneath the Bough,
 A Flask of Wine, a Book of Verse—and Thou
Beside me singing in the Wilderness—
 And Wilderness is Paradise enow.


*

XXIV
1ª ed. É o XXVI na 5ª ed.
Alike for those who for TO-DAY prepare,
And those that after a TO-MORROW stare,
A Muezzin from the Tower of Darkness cries
"Fools! your Reward is neither Here nor There."


*

XXVI
1ª ed. É o LXV na 5ª ed.
Oh, come with old Khayyam, and leave the Wise
To talk; one thing is certain, that Life flies;
One thing is certain, and the Rest is Lies;
The Flower that once has blown for ever dies.


*

XXVII
1ª e 5ª ed.
Myself when young did eagerly frequent
Doctor and Saint, and heard great argument
About it and about: but evermore
Came out by the same door where in I went.


*

XXXIX
1ª ed.
How long, how long, in infinite Pursuit
Of This and That endeavour and dispute?
Better be merry with the fruitful Grape
Than sadden after none, or bitter, Fruit.


*

LXV
5ª ed. É o XXVI na 1ª ed.
Oh threats of Hell and Hopes of Paradise!
One thing at least is certain  This Life flies;
One thing is certain and the rest is Lies;
The Flower that once has blown for ever dies.


*

LXVI
5ª ed.
I sent my Soul through the Invisible,
Some letter of that After-life to spell:
And by and by my Soul return'd to me,
And answer'd "I Myself am Heav'n and Hell:"


*

LXX
1ª ed. É o XCIV na 5ª ed.
Indeed, indeed, Repentance oft before
I swore—but was I sober when I swore?
And then and then came Spring, and Rose-in-hand
My thread-bare Penitence apieces tore.

*

LXXI

5ª ed. É o LXXI na 1ª ed.
The Moving Finger writes; and, having writ,
Moves on: nor all thy Piety nor Wit
Shall lure it back to cancel half a Line,
Nor all thy Tears wash out a Word of it.

*

LXXIV

1ª ed.
Ah, Moon of my Delight who know’st no wane,
The Moon of Heav’n is rising once again:
How oft hereafter rising shall she look
Through this same Garden after me — in vain!


*

LXXIV
5ª ed.
YESTERDAY This Day's Madness did prepare;
TO-MORROW's Silence, Triumph, or Despair:
Drink! for you not know whence you came, nor why:
Drink! for you know not why you go, nor where.



XCVII
trad. Franz Toussaint.

Nuit. Silence. Immobilité d'une branche et de ma pensée. Une rose, image de ta splendeur éphémère, vient de laisser tomber un de ses pétales. Où es-tu, en ce moment, toi qui m'as tendu la coupe et que j'appelle encore? Sans doute, aucune rose ne s'effeuille près de celui que tu désaltères là-bas, et tu es privée du bonheur amer dont je sais t'enivrer.