"Ecce Puer", de James Joyce.



Não há imagem mais apropriada para iniciar do que esta. Quatro gerações de Joyce's: James (Jim), sentado; Giorgio, filho de Jim, com Stephen, neto de Jim, no colo; e, no quadro, John. John Joyce. Os embates poderosos que Joyce teve com sua família, facilmente visualizáveis em qualquer um de seus escritos, encontram na figura paterna um ancoradouro de tensões. Bastará nos lembrarmos do fato de que se a figura materna é basicamente pautada pelo signo da ausência no Ulysses, especialmente representado pelo embate hamletiano de Stephen, o mesmo se dá com a figura paterna: Stephen, que se estranhava com o pai, acaba encontrando em Bloom uma espécie de pai e Bloom, que havia presenciado o suicídio de seu próprio pai quando mais jovem, encontra e cuida de Stephen, no final do livro, meio que como um filho.

O leitor pode encontrar a figura de John Joyce nas obras do filho como Simon Dedalus. São passagens, em especial no Ulysses, via de regra hilárias. Em determinada passagem do Retrato, Stephen diz que Simon (na tradução de Lya Luft):

um estudante de medicina, um remador, um tenor, um ator amador, um político gritão, um pequeno fazendeiro, um pequeno investidor, um beberrão, um bom camarada, um contador de histórias, o secretário de alguém, qualquer coisa numa destilaria, um coletor de impostos, um falido, e de momento um elogiador de seu próprio passado.

John Joyce realmente foi muitas coisas na vida; ele era um fanfarrão num nível praticamente lendário. O exagero de Joyce na boca de Stephen não é gratuito. Joyce teve a quem puxar. Uma vez perguntaram a seu pai sobre ele e John respondeu que se colocassem Joyce num deserto, Joyce daria um jeito de criar um mapa.

Claro que até aqui a imagem que o leitor tem de John Joyce é positiva. É fácil nos simpatizarmos com aquele senhor cheio de frases de efeito como "Com a ajuda de Deus e alguns policiais". Mas John Joyce era um beberrão, e enxergava na sua família um certo empecilho econômico para que pudesse continuar a consumir álcool. Era violento. Tentou estrangular a mãe de Joyce, May, dizendo: "Por Deus, está na hora de acabar!" (Eles eram a essa altura uma família numerosa pra caramba.) Quando May Joyce estava agonizando, isso lá em 1903, é comum que o que o leitor traga à mente a recusa, transposta para o plano artístico, de Stephen Dedalus em se ajoelhar e rezar quando a mãe o pedira. No caso de Joyce foi um pouco diferente, pois nem ele nem seu irmão se ajoelharam e pois na verdade quem pediu não foi a mãe (que estava em coma), mas alguns presentes. Pois bem. Nós nos lembramos disso. Mas John Joyce certa feita chegou bêbado em casa, a mulher convalescendo, e exclamou: "Está acabado. Não posso mais. Se você não consegue ficar boa, morra. Morra e seja maldita!"

Em 1932, contudo, era chegada a hora para John. Estava alegre, entusiasmado, apesar de não ver seu filho Jim há muitos anos. Joyce tipo assim... ele fugiu da Irlanda, num exílio que Richard Ellmann chamou de voluntário. John pôde ver os netos Giorgio e Lucia só em 1922, quando Nora, esposa de Joyce, levou os filhos numa viagem meio que brigada com Joyce. Foi um troço meio perigoso... Joyce estava a princípio irritado com Nora pelo fato dela estar indo a Dublin, aquela cidade com a qual ele mantinha uma relação de amor e ódio (tentava manter muito mais de ódio), pelo fato dela não ter se interessado muito no Ulysses, recém-publicado (Nora não se interessava muito na literatura de Joyce; ela era simplória) e pelo fato daquela ter sido uma viagem, como eu disse, perigosa. Em certo momento, Nora e os filhos estavam num trem quando tropas dos dois lados alvejaram de balas a locomotiva. Nora e Lucia se jogaram no chão, mas Giorgio permaneceu sentado. Um senhor lhe perguntou se ele não se iria se abaixar e ele respondeu que não. O senhor respondeu de volta: "Está certo, eles nunca atiram direito."

Fora isso, nenhum outro encontro. Em 1932 era o fim. John dizia que havia vivido mais do que qualquer homem branco, e, momentos antes de morrer, disse: "Diga a Jim que ele nasceu às seis da manhã." Parece loucura de repente dizer isso, mas é que Joyce havia escrito pro pai perguntando a que horas havia nascido, e daí a resposta.

O fato é que o ano de 1932 ainda guardaria outras surpresas. Se péssimas, como no caso da morte do pai (numa carta para Harriet Shaw Weaver, Joyce diz que "Não é a morte dele que me esmaga tanto, mas a auto-acusação", ou seja, o fato dele como que ter abandonado o pai); se péssimas, também boas: em 15 de fevereiro de 1932, Stephen Joyce, seu neto, nascia. E foi tendo em vista a morte do pai no mesmo ano do nascimento do neto que Joyce escreveu este comovente poema que ora traduzo pra vocês, estendendo a comemoração do Bloomsday.

Ecce puer quer dizer "Eis o menino". O poema de Joyce mistura um tom de despedida com um tom de acolhimento. A sequência de estrofes divididas em duas frases ajuda a armar a cadência. Embora algumas imagens de Joyce não apresentem nada de mais, por exemplo a dos versos 3 e 4, onde a ideia da alegria e da dor torturarem um coração seja comum, a concisão de cada estrofe, parecendo querer dizer muito mais do que de fato dizem, o tom cantante (que Joyce nunca abandonou) e as alternâncias que aos poucos vão ficando leves (malgrado o fato do leitor observar que são muito intensas, o que a sobriedade dos versos contribui),  todas, todas as três características a meu ver são admiráveis deste que é considerado por muitos o poema mais comovente de Joyce. Afinal de contas, "eis o menino": mas não só o menino que acaba de nascer. "Eis o menino": o menino que conviveu com você, meu pai, e que eu nunca deixei de ser.

Compilei todas as traduções que tive conhecimento.

§

P.S. (18/07/16): Adicionada a tradução de Marcelo Tápia. Tive acesso apenas à segunda versão da tradução, conforme nota na edição indicada. Presumo que a primeira tenha sido publicada na antologia de 92 que Tápia fez em conjunto com Luis Dolhnikoff.

§

ECCE PUER

trad. Lya Luft. [1989]
in: James Joyce, Richard Ellmann, Globo, p. 796.
Do escuro passado
nasceu um menino
"De alegria e dor"
rasgam meu coração.

Calmo em seu berço
faz o que vive.
Que amor e misericórdia
Abram seus olhos!

Vida jovem foi soprada
sobre o vidro,
O mundo que não havia
veio para passar.

Uma criança dorme;
Um ancião se foi.
Oh, pai abandonado,
Perdoa teu filho!

§

trad. José Antonio Arantes. [1994]
in: Homem comum enfim, Anthony Burgess, Cia das Letras, p. 212.
Citado aqui.
Do passado escuro
A criança veio;
De alegria e dor
Partiu-se meu peito.

Tranqüilo em seu berço
O bebê se acolhe.
Possam dó e amor
Descerrar seus olhos!

Sopro em vida jovem
O vidro embaça:
O mundo que não era
Já vem e passa.

A criança dorme:
Um velho partiu.
Pai, que abandonei,
Perdoe seu filho.
§

trad. Alípio Correia Neto. [2001]
in: Poemas, um tostão cada, Iluminuras, p. 75.
Do passado obscuro
Um menino foi feito;
A dor e a alegria
Laceram-me o peito.

Brando no seu berço
Descansa o bebê.
Que lhe abram os olhos
Amor e mercê!

Sopro de vida nova
Ao vidro embaça;
O mundo que não era
Agora passa.

Uma criança dorme:
um velho se foi.
Pai abandonado,
ao filho, perdoe!

§

trad. Marcelo Tápia. [2ª versão: 2002]
em: Junijornadas do Senhor Dom Flor, Olavobrás, 2002, p. 39.
Do passado escuro
A criança veio;
De alegria e dor
Partiu-se meu peito.

Tranqüilo em seu berço
O bebê se acolhe.
Possam dó e amor
Descerrar seus olhos!

Sopro em vida jovem
O vidro embaça:
O mundo que não era
Já vem e passa.

A criança dorme:
Um velho partiu.
Pai, que abandonei,
Perdoe seu filho!
§

trad. Rodrigo Madeira. [2011]
in: Blog pessoal do tradutoraqui.
Do passado escuro
Um menino nasce;
Alegre e sofrido
Meu peito desfaz-se.

Tranquilo no berço
O vivo, à vontade;
Seus olhos que os abram
Amor e piedade!

Nova vida o vidro
Respirada embaça;
O que antes nem era
Como veio passa.

Um velho se foi:
Descansa um menino.
Ó pai renegado,
Perdoa teu filho!

§

trad. Eclair Antonio Almeida Filho
& Josina Nunes Magalhães Roncisvalle. [2015]
in: Belas Infiéis, v. 3, n. 2, p. 167-168, 2014.
Do turvo passado
Uma criança nasceu;
Com júbilo e pêsame
Meu coração rompeu; 

Calmo em seu berço
Repousa o renovo.
Que o amor e a mercê
Descerrem seu olho.

A infância, um sopro
Na vidraça;
O mundo, não havia;
Instante passa.

Um menino adormece:
Um velho feneceu.
Ó, abnegado pai,
Perdoa o filho teu!

§

trad. eu. [2015]
Do passado negro
Um menino veio.
Riso e dor partiram
O meu peito ao meio.

Calma no seu berço
A criança está.
Piedade e amor
Abram seu olhar!

Vida nova assopra
O vidro e o embaça;
Tudo o que não foi
Vem e passa.

Dorme uma criança:
Um velho se vai.
Perdoa teu filho,
Renegado pai!

*
A primeira versão da primeira estrofe:

Do passado escuro
Nasce uma criança.
Torturam meu peito
A dor e a esperança.

Não a acho ruim, de modo que ficará mais na base do palpite escolher qual. Esta nova eu reputo mais fiel e mais sonora, mas enfim. Já quanto a última, em sua primeira versão eu rememorava o Bandeira de Testamento: "Fiz-me arquiteto? Não pude! / Sou poeta menor, perdoai!"

Dorme uma criança:
Um velho se vai.
Ó pai renegado,
Ao filho: perdoai!

§

ECCE PUER

Of the dark past
A child is born.
With joy and grief
My heart is torn.

Calm in his cradle
The living lies.
May love and mercy
Unclose his eyes!

Young life is breathed
On the glass;
The world that was not
Comes to pass.

A child is sleeping:
An old man gone.
O, father forsaken,
Forgive your son!
February, 1932.