Duas passagens de Macbeth.
(A recente montagem de Justin Kurzel, com Marion Cotillard e Michael Fasbender.)
As duas passagens que traduzo podem dar um saborzinho do alcance dramatúrgico shakespeariano. A cena do Porteiro, inclusa na terceira cena do segundo ato, e o solilóquio To-morrow de Macbeth, incluso na quinta cena do quinto ato. Uma delas extremamente prosaica e já considerada por alguns até mesmo como inútil, como enxerto, e a outra de um condensamento poético impressionante.
A fala do Porteiro, para localizar o leitor, é dada logo após o assassinato de Duncan por Macbeth e sua esposa Lady Macbeth. Disse que ela já foi considerada como inútil, mas alerto que, numa esfera prática, não é muito difícil entender sua importância. Quem a acusou de ser interpolação foi gente do calibre de Pope ou Coleridge, e eles não tiraram isso da cartola. Macbeth é uma peça esquisita. Muita gente já ficou com a sensação de que tem passagens faltando e outras possuem o dedão de gente estranha. Se ela possui ou não, é algo que não deve causar muito espanto pois o teatro elisabetano era em muitos sentidos um teatro colaborativo, de modo que é possível sim que alguém tenha metido o bedelho na peça. Seja como for, a cena do Porteiro é importante pois ela cria uma pausa, ela dá um tempo. Um tempo pra quê? Oras: os atores que interpretam Macbeth e Lady Macbeht, e em especial o que interpreta Macbeth, precisam de um certo tempinho pra respirarem um pouco, tomarem um fôlego e voltarem pro palco. Assim, a inclusão da passagem do Porteiro é uma passagem importante. Existem vários outros exemplos ao longo das peças de Shakespeare de algo assim. Você falou, falou, falou... um momentinho aí, pessoal. Vamos com calma. Tem que ter um arrego, ora essa.
Claro que a passagem não foi escrita se aproveitando só disto. É uma passagem cômica numa peça que, no geral, não tem muito de cômico. Consigo pensar, por exemplo, no diálogo entre Lady MacDuff e seus filhos na segunda cena do quarto ato, mas o humor desta cena é infantil e extremamente melancólico, pra não dizer no fato de que Lady MacDuff e seus filhos serão brutalmente assassinados: seu filhinho, inclusive, na frente do espectador. O caso da cena do Porteiro é diferente. Nela, o assassinato já havia ocorrido, e o clima é de consternação. Shakespeare, com ela, consegue habilidosamente quebrar o gelo a fim de que a peça consiga se movimentar e o tom pesado não se concentre todo ali. O assassinato de Duncan foi um primeiro passo. Existirão vários outros.
É uma cena, claro, cômica. O Porteiro retrata o castelo como um Inferno, e a impressão do leitor não pode ser outra. Mas aí ele mostra uma certa... uma certa... Bem, o Porteiro tá coçando o saco. Tá à toa. Ele não tem lá muita função pois o mal já havia entrado pela porta da frente e com pompas. Então ele é basicamente uma pessoa avoada, como todo mundo na peça (Duncan é morto debaixo do nariz de todo mundo, afinal), mas que brinca com a situação. Enquanto os nobres depois vão relatar que ouviram um monte de coisa absurda e medonha, o Porteiro faz um teatrinho. Aquele aviso dantesco de que, ao entrardes no Inferno, é necessário que deixeis toda a esperança, no plano total da peça shakespeariana é invertido com a cena do Porteiro: tamanha inocência é um resquício de esperança logo na porta do inferno, como se, justamente por estarmos falando da porta (que é a própria saída), nós tenhamos esperança, não custando lembrar que o Bem se reestabelece é fora do castelo e que só no final ele adentra Dunsinane e passa a rasteira em Macbeth.
As três pessoas que o Porteiro deixa entrar na sua brincadeira são pessoas que cometeram erros que se encaixam bem na estrutura da peça. São icônicos. Um fazendeiro que se enforcou esperando a fartura, e a ganância pela fartura, de certo modo, ou pelo menos a perdição motivada pela fartura, é bem o que ocorrerá com Macbeth; um equivocator, que é uma referência a um tal jesuíta de nome Garnet, contemporâneo de Shakespeare, que participara do Gunpowder Plot e que chegara a mentir durante julgamento graças à teoria do equívoco ("mentir é certo em algumas horas"); um equivocator cuja figura irá desembocar em especial nas mentiras que as personagens de boa índole da peça usarão para sua própria sobrevivência ou então nas mentiras que serão usadas pelas de má índole para manter as caras; e, por fim, um alfaiate que roubou pano de calça francês, uma piada corrente na época que hoje não tem mais graça nenhuma mas que pode contribuir pra que aponte pras tramas de usurpação e roubo da peça. (Não custa lembrar que muitas imagens de Macbeth são de roupas usadas que não servem: ou seja, roupas que foram usurpadas do outro e que não cabem no seu corpo porque não foram feitas para seu corpo.)
No final da fala, o Porteiro diz que estava frio demais e que ali não podia ser o Inferno. O centro do Inferno dantesco, por exemplo, não é quente: é frio. Nem a chama sobrevive ali. É possível que haja em Macbeth um efeito de desolação análogo a este. A peça Hamlet começa com as personagens reclamando do frio, e toda a peça será fria até o quinto ato, que é quando as coisas vão esquentar um pouco. Macbeth, pelo contrário, é uma peça de muita ação, de muitos assassinatos, mas talvez, justamente por envolver tantos assassinatos, é que ela tenda a esfriar: cadáveres são frios.
Tanto é assim que quando chegamos ao quinto ato, que é o ato onde o pau vai comer adoidado, nós estamos petrificados de medo, aterrorizados. A imagética de Macbeth não será mais daquela reticência imiscuída de prudência; será justamente o contrário: ímpeto e imprudência.
Aqui entra o solilóquio de Macbeth ao receber a notícia de morte de sua esposa. Ele é um caso, como disse, de alto condensamento poético. Muitas de suas passagens são memoráveis, e não custa lembrar que um dos melhores romances de William Faulkner recebeu um título advindo desta passagem: Sound and Fury. Qual é o lance com esse solilóquio?
Ele começa dizendo que ela poderia ter morrido depois. Macbeth está se preparando pra guerra. De fato não é muito bom você receber uma notícia numa hora dessas. Isso tira seu foco. Tem que tirar. Pelo menos isso... É. Pelo menos isso. Mas com Macbeth não é bem assim. Ele se torna frio. Não é que ele não ame mais sua esposa; é que ele fez merda no passado e agora tá só se chafurdando cada vez mais. Então é por isso que seu famoso solilóquio To-morrow traz uma boa parcela de imagens de coisas que se protraem no tempo, que são deixadas pra depois ou que demoram a terminar, num arrastar contínuo. Pois veja o leitor a inversão do pêndulo da maldade que existe entre Macbeth e sua esposa. Enquanto no começo quem instigava era Lady Macbeth, uma mulher calculista que em determinado momento pedia pra que os espíritos da noite a dessexualizassem, com o decorrer da peça Macbeth, máquina mortífera (não custa lembrar que no início da peça as personagens relatam que Macbeth era capaz de criar imagens da morte; era um guerreiro exímio e brutal), pura e simplesmente perde as rédeas e não sabe quando parar. Lady Macbeth queria a morte do rei pra que pudesse tocar a vida com Macbeth. Ela era uma vilã mais lúcida e cerebrina. Tinha noção exata de quando colocar um ponto final. Macbeth não. Para ela, era matar, matar, matar. Quem se pusesse em seu caminho, que morresse. O fio da espada era o que bastava a Macbeth. Ele enxerga punhais invisíveis.
Então por isso dizer: que ela morresse depois. Aquela era uma hora muito inconveniente... Depois era melhor. Muito melhor. Agora ele precisa se concentrar. E de fato na primeira metade do solilóquio, ali até a parte da vela que se apaga, ele tenta dar um tom de arrastamento, de chutar a notícia triste pra depois, mas a raiva vai se apossando dele e é como se o afeto que ele não deixou de sentir por sua esposa se convertesse na fúria com que ele fala do ator que se pavoneia e depois de uma hora não é porcaria nenhuma pra nós, ou então do conto dito por idiotas, cheio de som e fúria, que não significa nada.
Mas voltando. Ele disse que era melhor a esposa ter morrido depois. Depois diz que, tivesse sido desse jeito, e aí sim haveria tempo para palavras iguais aquela. Há quem questione que palavras seriam estas que Macbeth se refere. Especificamente, for such a word. Não acho que seja algo lá muito difícil de se perceber: such a word me parece se referir claramente à palavra da morte de sua esposa, de seu suicídio (não temos como ter tanta certeza de que foi suicídio). E é claro: depois, só depois ele poderia digerir o impacto de tal palavra. Se bem que, de tão chafurdado no fundo do poço, é possível que Macbeth não conseguisse, mesmo depois, mesmo hereafter, de fato encontrar um tempo para palavras assim.
O caminhar dos amanhãs é algo que a ideia temporal do haver uma palavra pra tal coisa já indicava. A tripla repetição, no contexto, mostra um delongar que, dependendo da forma como o ator interprete, pode dar o tom geral de dilatação de sofrimento e vanidade. Durante todo o quinto ato Macbeth despreza a vida e a morte. Ele se julga acima do bem e do mal, ainda mais depois de ter escutado os espíritos, na cena com as bruxas, lhe predizerem que ele, Macbeth, não morreria nas mãos de ninguém nascido de mulher. The last syllabe of recorded time é um termo a este prolongamento inútil e demasiado da vida. Daí a imagem brutal de que todo o nosso passado nada mais fez do que guiar tolos ao caminho empoeirado da morte. Esse caminho empoeirado da morte é uma citação bíblica, salmo 22:15.
A ideia da vela se encontra em Jó 18:6. Se o que guia os tolos nesse caminho é o nosso passado e, por extensão, a vida, então a vela pode representar a vida facilmente, visto que, ademais, ela se liga à ideia de alento etc etc. A ideia da vida como uma sombra errante está no salmo 39. O ator que aparece em cena e se pavoneia, faz sua apresentação e um tempo demais ninguém mais reconhece, já estava implícita em shadow, mas, de todo modo, metáforas teatrais são uma constante em Shakespeare, e esta é provavelmente um de seus ápices. Poor player não é exatamente um ator ruim, lembra-nos Kenneth Muir, mas simplesmente um ator digno de pena, caso seja, é claro, para tanto. A vida ser uma história contada está no salmo 40:9. E como o leitor pode perceber, essa fala de Macbeth possui um substrato bíblico muito poderoso, o que não impede seu tom extremamente agressivo de manter-se de pé. Na verdade, grande parte desse tom agressivo decorre justamente de seu subtrato bíblico, a par de suas metáforas que redundam todas em assuntos parecidos (dilatar algo e depois proclamá-lo inútil) mas que não deixam de intensificar as imagens tecidas pelas restantes.
§
A tradução da cena do Porteiro buscou ser prosaica e fluente. E o principal: quis chegar a um resultado que fosse engraçado. Daí os trocadalhos que incluí em algumas passagens e que não se encontram no original, como por exemplo esse "suar pra danar" ou esse "vocacionado", remetendo a equivocador. A exceção foi no caso da expressão primrose way to the everlasting fire, em que, devido à elevação da dicção, tive de acompanhar o original (o que pode ser percebido em especial na escolha do termo "sempiterna").
Quanto à fala de Macbeth, primeiro sobre o To-morrow do original como "À-manhã". Existem edições que grafam To-morrow, existem aquelas que grafam Tomorrow apenas. O in-Folio grafa como To morrow (lembrando que não existem in-Quartos de Macbeth). A edição da Arden Second Series, sob inspeção de Kenneth Muir, grafa To-morrow. Desdobrar "amanhã" em "à-manhã" quis ser uma forma de manter o ritmo de avanço que o original busca incutir.
As várias referências bíblicas da passagem buscaram ser condensadas numa só: The way to dusty death traduzida como "Ao vale da sombra da morte". Enquanto no original temos uma referência ao versículo 15 do salmo 22, "e me puseste no pó da morte", decidi fazer aqui uma referência ao versículo 4 do salmo 23. É uma referência que me pareceu mais palpável e direta que a do salmo 22, ou seja, o leitor, entrando em contato com ela, me parece mais propenso a reconhecer sua origem bíblica. Foi por isso também que, na passagem Life's but a walking shadow, disse que a vida é "vulto" (e não "sombra") errante: se pusesse que a vida é "sombra errante", o leitor talvez se confundiria com a sombra da morte, um verso antes, e a vida como sombra.
Na passagem que diz que o pobre ator struts and frets, tive que contrair para apenas "exibir-se", que pode ter o sentido de simplesmente exibir-se em palco ou então ostentar com vaidade. Creio que veio bem a calhar. No final, transformei o signifying em "denotando". Uma leitura semiológica e anacrônica de minha parte, que, é claro, não deixa de ser um problema que eu conscientemente incorro. O verbo denote, conforme consta no OED (acepções 2a e 3a, respectivamente), no sentido de realçar já se encontrava em The Merry Wives of Windsor (IV, vi, 38) e, com o sentido de indicar algo exterior (um sentido sígnico, portanto), em Romeo and Juliet (III, iii, 109). De todo modo, a solução que usei também aproveita a aliteração em N e D entre "denotando" e "nada". Mas não creio que isto apazigue o perigo, repito, que incorro. Sobre este "nada", aliás, eu me esforcei em deixar sozinho no final do trecho, aumentando sua ênfase dramática.
Tive, todavia, que me valer de um forte cavalgamento para chegar lá, e tenho a impressão que minha tradução possui mais cavalgamentos que o original, o que é certamente um defeito. Por fim, busquei manter o mesmo número de versos do original.
Ato V, cena III.
PORTEIRO:
Ah, mas aí batem mesmo! Se o cara fosse porteiro do inferno, caducava de tanto girar a chave... [Batidas vindas de dentro.] Toc, toc, toc! Quenhé, em nome do Demo? Olha só, um fazendeiro que se enforcou esperando a fartura: entra, veio a tempo; pega uns lenços aí; você vai suar pra danar. [Batidas vindas de dentro.] Toc, toc! Que diabo, quenhé? Deus do Céu, um equivocador, vocacionado pra pender pelos dois lados da balança, só que pondo um contra o outro; que traiu demais da conta em nome de Deus, e que nem por equívoco entrou no céu: Ah, vem cá, seu equivocador. [Batidas vindas de dentro.] Toc, toc, toc! Quenhé? Deus do Céu, um alfaiate inglês, aqui!, por ter roubado pano de calça francês: entra aí, alfaiate; o inferno dá pano pra manga. [Batidas vindas de dentro.] Toc, toc; não para nunca! Mas este lugar tá frio demais pra ser o inferno. Vou ser porteiro do inferno mais não: acho que deixei entrarem umas profissões aí que saltitam da prímula à fogueira sempiterna. [Batidas vindas de dentro.] Já vai, já vai! E ah sim: favor se lembrar do porteiro.
§
Ato V, cena V.
MACBETH:
Que morresse depois... e iria haver
Tempo para palavras iguais essa.
À-manhã e à-manhã e à-manhã,
Rasteja neste passo dia a dia
Até a última sílaba do tempo
Inscrito, e nossos ontens guiam tolos
Ao vale da sombra da morte. Apaga,
Vela efêmera! A vida é vulto errante,
É um pobre ator que exibe-se em uma hora
E não mais se ouve: é conto de idiotas,
Cheio de som e fúria, denotando
Nada.
■
PORTER:
Here's a knocking indeed! If a man were porter of hell-gate, he should have old turning the key. [Knocking within.] Knock, knock, knock! Who's there, i' the name of Beelzebub? Here's a farmer, that hanged himself on the expectation of plenty: come in time; have napkins enow about you; here you'll sweat for't. [Knocking within.] Knock, knock! Who's there, in the other devil's name? Faith, here's an equivocator, that could swear in both the scales against either scale; who committed treason enough for God's sake, yet could not equivocate to heaven: O, come in, equivocator. [Knocking within.] Knock, knock, knock! Who's there? Faith, here's an English tailor come hither, for stealing out of a French hose: come in, tailor; here you may roast your goose. [Knocking within.] Knock, knock; never at quiet! What are you? But this place is too cold for hell. I'll devil-porter it no further: I had thought to have let in some of all professions that go the primrose way to the everlasting bonfire. [Knocking within.] Anon, anon! I pray you, remember the porter.
§
MACBETH:
She should have died hereafter;
There would have been a time for such a word.
To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life's but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.
P.S. (17/01/16): Adicionada a tradução de Jorge de Sena.
Devia morrer mais tarde. Mais adiante
Poderia escutar palavra semelhante.
Amanhã, amanhã, amanhã, avançando
Vão, passo breve, dia após dia e chegando
Do registro do tempo à sílaba final.
Nossos ontens, então, um a um, por igual,
Iluminado têm para loucos a estrada
Que leva ao pó da morte. Esvai-te, ó delicada
Chama! Apaga-te! A vida é sombra passageira.
Um pobre ator que chega, agita a cena inteira,
Diz seu papel e sai. E ninguém mais o nota.
E um conto narrado aí por um idiota,
Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada.
É morta... Não devia ser agora.
Sempre seria tempo para ouvir-se
Essas palavras. Amanhã, volvendo
Trás amanhã e trás amanhã de novo,
Vai, a pequenos passos, dia a dia,
Até a última sílaba do tempo
Inscrito. E todos esses nossos ontens
Têm alumiado aos tontos que nós somos
Nosso caminho para o pó da morte.
Breve candeia, apaga-te! Que a vida
É uma sombra ambulante; um pobre ator
Que gesticula em cena uma hora ou dias,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.
Podia ter morrido em outra hora:
êsse aviso viria em qualquer tempo...
Amanhã, e amanhã, mais amanhã...
vai-se arrastando o mesmo dia-a-dia,
até à última sílaba do tempo
marcado; e os nossos ontens, todos, mal
clareiam a tôla passagem, rumo
ao pó da morte! ― Apaga-te, candeia
efêmera! Esta vida é simplesmente
uma sombra que passa: um mero ator,
que tem a sua vez de gesto e voz
no palco, e de quem nunca mais se sabe...
É uma pilhéria contada por um
idiota, com fúria e escarcéu,
e nada significa.
Há muito que devera ter morrido:
Seria tempo então de tal palavra.
Amanhã, amanhã, mais amanhã,
Pé ante pé vem vindo dia a dia,
Até à sílaba final dos tempos,
E os nossos ontens iam guiando tolos
No caminho da morte. Vai-te! Vai-te!
Ó tão breve candeia, vai-te! Apaga-te!
A vida é sombra andante, um pobre actor
Que no palco gagueja a sua deixa,
E se não torna a ouvir: é uma história
Que um doido conta, toda estrondo e fúria,
E sem sentido algum.
Deveria ter morrido mais tarde. Haveria, então, lugar para uma tal palavra!...O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança em pequenos passos, de dia para dia, até a última sílaba da recordação e todos os nossos ontens iluminaram para os loucos o caminho da poeira da morte. Apaga-te, apaga-te, fugaz tocha! A vida nada mais é do que uma sombra que passa, um pobre histrião que se pavoneia e se agita uma hora em cena e, depois, nada mais se ouve dêle. É uma história contada por um idiota, cheia de fúria e tumulto, nada significando.
Devia
ter morrido mais tarde; então, houvera
ocasião certa para tal palavra.
O amanhã, o amanhã, outro amanhã,
dia a dia se escoam de mansinho,
até que chegue, alfim, a última sílaba
do livro da memória. Nossos ontens
para os tolos a estrada deixa clara
da empoeirada morte. Fora! apaga-te,
candeia transitória! A vida é apenas
uma sombra ambulante, um pobre cômico
que se empavona e agita por uma hora
no palco, sem que seja, após, ouvido;
é uma história contada por idiotas,
cheia de fúria e muita barulheira,
que nada significa.
Amanhã amanhã amanhã amanhã
Rasteja em passo parco dia a dia
Até a última sílaba do Tempo.
E os ontens, todos, só nos alumiam
O fim no pó. Apaga, apaga, vela
Breve!
A vida é só uma sombra móvel.
Pobre ator
Que freme e treme o seu papel no palco
E logo sai de cena. Um conto tonto
Dito por um idiota ― som e fúria, signi-
Ficando nada.
Teria de morrer alguma vez:
chegaria a ocasião para a notícia. ―
Amanhã, e amanhã, e outro amanhã,
rasteja dia a dia em miúdo avanço,
até à última sílaba da história;
e os nossos ontens alumiaram, todos,
a estrada que nos leva, a nós, ingênuos,
ao pó da morte. Apaga-te, oh apaga-te,
precária vela! A vida é tão-somente
uma sombra que passa; um pobre ator,
que no palco empertiga-se e entedia-se
em sua hora e depois não mais é ouvido:
é uma história narrada por idiota,
cheia de som e fúria que não querem
dizer nada.
Ela devia só morrer mais tarde;
Haveria um momento para isso.
Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã
Arrastam nesse passo o dia-a-dia
Até o fim do tempo pré-notado.
E todo ontem conduziu os tolos
À via em pó da morte: Apaga vela!
A vida é só uma sombra: um mau ator
Que grita e se debate pelo palco,
Depois é esquecido; é uma história
Que conta o idiota, toda som e fúria
Sem querer dizer nada.
Amanhã, o amanhã, outro amanhã avança
Dia após dia, até a última sílaba da memória;
E os nossos ontens deixam para os tolos
A estrada empoeirada da morte. Apague-se, candeia transitória!
A vida nada mais é do que uma sombra que passa,
Um pobre ator que gesticula em cena durante algumas horas
Depois ninguém vê mais. A existência,
Uma desesperada história contada por um louco,
Cheia de som e de fúria,
Significando nada.
Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Mais tarde haveria um tempo para essa palavra. Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco ― faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.
Ela deveria ter morrido mais tarde;
Haveria um tempo para uma tal palavra.
Amanhã, e amanhã, e amanhã
Arrastam-se nesse passo miúdo dia após dia
Para a última sílaba do tempo narrado;
A nós tolos, todos esses ontens iluminaram
O caminho para o pó da morte. Apaga, apaga, lume passageiro
A vida não é mais que uma sombra errante, um mau ator
Que se pavoneia e se aflige no seu momento sobre o palco
E então nada mais se ouve. É uma história
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,
Significando nada.
Amanhã, e amanhã, e amanhã,
Arrasta-se neste passo, dia a dia,
Até a última sílaba do tempo escrito.
E o passado só iluminou, para os tolos,
O caminho da morte soturna. Apaga-te, apaga-te, oh!, breve chama!
A vida não passa de sombra errante, um mau ator,
Que pavoneia e se agita por uma hora sobre o palco;
E, depois, é entregue ao esquecimento. É um conto;
Contado por um idiota, cheio de som e fúria,
Denotando nada.
■
(A passagem, conforme consta no in-Folio.)
A fala de Macbeth na quinta cena do quinto ato é das mais célebres de Shakespeare. Macbeth é, aliás, das peças mais célebres de Shakespeare, e é também uma das mais traduzidas em solo nacional. Compilo aqui todas as outras traduções da passagem que conheço.
§
P.S. (17/01/16): Adicionada a tradução de Jorge de Sena.
§
trad. Artur de Sales.
Macbeth e Rei Lear, editora W. M. Jackson, coleção Clássicos, 1956, p. 121-122.
Devia morrer mais tarde. Mais adiante
Poderia escutar palavra semelhante.
Amanhã, amanhã, amanhã, avançando
Vão, passo breve, dia após dia e chegando
Do registro do tempo à sílaba final.
Nossos ontens, então, um a um, por igual,
Iluminado têm para loucos a estrada
Que leva ao pó da morte. Esvai-te, ó delicada
Chama! Apaga-te! A vida é sombra passageira.
Um pobre ator que chega, agita a cena inteira,
Diz seu papel e sai. E ninguém mais o nota.
E um conto narrado aí por um idiota,
Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada.
§
trad. Manuel Bandeira.
Macbeth, editora Cosac Naify, Coleção Dramática, 2009, p. 155.
É morta... Não devia ser agora.
Sempre seria tempo para ouvir-se
Essas palavras. Amanhã, volvendo
Trás amanhã e trás amanhã de novo,
Vai, a pequenos passos, dia a dia,
Até a última sílaba do tempo
Inscrito. E todos esses nossos ontens
Têm alumiado aos tontos que nós somos
Nosso caminho para o pó da morte.
Breve candeia, apaga-te! Que a vida
É uma sombra ambulante; um pobre ator
Que gesticula em cena uma hora ou dias,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.
§
trad. Geir Campos.
Macbeth, editora Civilização Brasileira, Coleção Teatro Hoje, 1970, p. 130-131.
Podia ter morrido em outra hora:
êsse aviso viria em qualquer tempo...
Amanhã, e amanhã, mais amanhã...
vai-se arrastando o mesmo dia-a-dia,
até à última sílaba do tempo
marcado; e os nossos ontens, todos, mal
clareiam a tôla passagem, rumo
ao pó da morte! ― Apaga-te, candeia
efêmera! Esta vida é simplesmente
uma sombra que passa: um mero ator,
que tem a sua vez de gesto e voz
no palco, e de quem nunca mais se sabe...
É uma pilhéria contada por um
idiota, com fúria e escarcéu,
e nada significa.
§
trad. Jorge de Sena.
Poesia de 26 Séculos, 2º volume, Editorial Inova, 1972. Não sei a página. Retirado daqui.
Há muito que devera ter morrido:
Seria tempo então de tal palavra.
Amanhã, amanhã, mais amanhã,
Pé ante pé vem vindo dia a dia,
Até à sílaba final dos tempos,
E os nossos ontens iam guiando tolos
No caminho da morte. Vai-te! Vai-te!
Ó tão breve candeia, vai-te! Apaga-te!
A vida é sombra andante, um pobre actor
Que no palco gagueja a sua deixa,
E se não torna a ouvir: é uma história
Que um doido conta, toda estrondo e fúria,
E sem sentido algum.
§
trad. F. Carlos de Medeiros e Oscar Mendes.
Obra Completa, vol. I, Tragédias, editora José Aguilar, 1969, p. 523.
Deveria ter morrido mais tarde. Haveria, então, lugar para uma tal palavra!...O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança em pequenos passos, de dia para dia, até a última sílaba da recordação e todos os nossos ontens iluminaram para os loucos o caminho da poeira da morte. Apaga-te, apaga-te, fugaz tocha! A vida nada mais é do que uma sombra que passa, um pobre histrião que se pavoneia e se agita uma hora em cena e, depois, nada mais se ouve dêle. É uma história contada por um idiota, cheia de fúria e tumulto, nada significando.
§
trad. Carlos Alberto Nunes.
Hamleto, Romeu e Julieta, Macbeth, Otelo, editora Melhoramentos, 1969, p. 337-338.
Devia
ter morrido mais tarde; então, houvera
ocasião certa para tal palavra.
O amanhã, o amanhã, outro amanhã,
dia a dia se escoam de mansinho,
até que chegue, alfim, a última sílaba
do livro da memória. Nossos ontens
para os tolos a estrada deixa clara
da empoeirada morte. Fora! apaga-te,
candeia transitória! A vida é apenas
uma sombra ambulante, um pobre cômico
que se empavona e agita por uma hora
no palco, sem que seja, após, ouvido;
é uma história contada por idiotas,
cheia de fúria e muita barulheira,
que nada significa.
§
trad. Augusto de Campos.
ABC da Literatura, Ezra Pound, editora Cultrix, 1989, p. 197.
Amanhã amanhã amanhã amanhã
Rasteja em passo parco dia a dia
Até a última sílaba do Tempo.
E os ontens, todos, só nos alumiam
O fim no pó. Apaga, apaga, vela
Breve!
A vida é só uma sombra móvel.
Pobre ator
Que freme e treme o seu papel no palco
E logo sai de cena. Um conto tonto
Dito por um idiota ― som e fúria, signi-
Ficando nada.
§
trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos.
Macbeth, editora Círculo do Livro, 1985 (eu acho), p. 120.
Teria de morrer alguma vez:
chegaria a ocasião para a notícia. ―
Amanhã, e amanhã, e outro amanhã,
rasteja dia a dia em miúdo avanço,
até à última sílaba da história;
e os nossos ontens alumiaram, todos,
a estrada que nos leva, a nós, ingênuos,
ao pó da morte. Apaga-te, oh apaga-te,
precária vela! A vida é tão-somente
uma sombra que passa; um pobre ator,
que no palco empertiga-se e entedia-se
em sua hora e depois não mais é ouvido:
é uma história narrada por idiota,
cheia de som e fúria que não querem
dizer nada.
§
trad. Barbara Heliodora.
Hamlet e Macbeth, editora Nova Fronteira, 1995, p. 273.
Ela devia só morrer mais tarde;
Haveria um momento para isso.
Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã
Arrastam nesse passo o dia-a-dia
Até o fim do tempo pré-notado.
E todo ontem conduziu os tolos
À via em pó da morte: Apaga vela!
A vida é só uma sombra: um mau ator
Que grita e se debate pelo palco,
Depois é esquecido; é uma história
Que conta o idiota, toda som e fúria
Sem querer dizer nada.
§
da montagem de Ulysses Cruz (1992).
Amanhã, o amanhã, outro amanhã avança
Dia após dia, até a última sílaba da memória;
E os nossos ontens deixam para os tolos
A estrada empoeirada da morte. Apague-se, candeia transitória!
A vida nada mais é do que uma sombra que passa,
Um pobre ator que gesticula em cena durante algumas horas
Depois ninguém vê mais. A existência,
Uma desesperada história contada por um louco,
Cheia de som e de fúria,
Significando nada.
§
trad. Beatriz Viégas-Faria.
Macbeth, editora L&PM, 2011, p. 113-114.
Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Mais tarde haveria um tempo para essa palavra. Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco ― faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.
§
trad. Rafael Raffaelli.
Cadernos de pesquisa interdisciplinar em ciências humanas, n. 94, FPOLIS, Julho de 2008. Tradução de 2006. p. 109-110. Disponível aqui.
Ela deveria ter morrido mais tarde;
Haveria um tempo para uma tal palavra.
Amanhã, e amanhã, e amanhã
Arrastam-se nesse passo miúdo dia após dia
Para a última sílaba do tempo narrado;
A nós tolos, todos esses ontens iluminaram
O caminho para o pó da morte. Apaga, apaga, lume passageiro
A vida não é mais que uma sombra errante, um mau ator
Que se pavoneia e se aflige no seu momento sobre o palco
E então nada mais se ouve. É uma história
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,
Significando nada.
§
trad. Ivan Eugênio da Cunha.
Recanto das Letras, 27/02/12. Disponível aqui.
Amanhã, e amanhã, e amanhã,
Arrasta-se neste passo, dia a dia,
Até a última sílaba do tempo escrito.
E o passado só iluminou, para os tolos,
O caminho da morte soturna. Apaga-te, apaga-te, oh!, breve chama!
A vida não passa de sombra errante, um mau ator,
Que pavoneia e se agita por uma hora sobre o palco;
E, depois, é entregue ao esquecimento. É um conto;
Contado por um idiota, cheio de som e fúria,
Denotando nada.