Começo do capítulo 8 do FW.




Nós estamos na famigerada página 196 do Finnegans Wake, começo do capítulo 8, o último da parte I. Como se sabe, Joyce não escreveu o Finnegans Wake de forma linear. Até seu lançamento, o nome era "Work in Progress" — e Joyce gostava de fazer charadas com seus amigos (os que se interessavam, claro, pois a maior parte deles não dava um foda-se pro Finnegans Wake) pra que tentassem descobrir o título do livro. No caso do começo do capítulo 8, Joyce o publicou pela primeira vez em outubro de 1925, depois em novembro de 1927 no número 8 da revista Transition e por fim, numa edição em separado, todo o capítulo 8 em 1928.

É difícil falar num enredo pro Finnegans Wake, visto que o livro todo é um sonho de uma pessoa. Especificamente, o livro toma como base uma canção popular irlandesa de mesmo nome, Finnegans Wake, que conta uma história igual àquela do operário do Chico Buarque: o camarada leva um tombo. A diferença é que, no caso da canção popular, o camarada era meio pé-de-cana, no que, quando por acidente tacam uma garrafa de uísque nele, ele ressuscita. No Finnegans Wake, temos no começo um clima meio de torpor com o famoso "riverrun" (que eu tentaria traduzir para algo como "riternna" — mas é assunto pra outra prosa), até que acontece uma queda, representada pela primeira thunderword do livro inteiro. As thunderwords são palavrões de 100 caracteres, compostos de uma penca de estratos de palavras de uma penca de línguas, que representam as transições epocais de acordo com a filosofia viconiana (a commodius vicus of recirculation do trecho inicial): ou seja, pro filósofo Giambattista Vico (1668 - 1744), as eras humanas, ao todo três (dos deuses, dos heróis e dos homens), iam se sucedendo umas às outras, meio que separadas por catástrofes ou grandes eventos, até que, quando chegássemos no final do ciclo triádico, ou seja, na era dos homens, acontecia um reboot, uma vez que Vico concebe a História como espiral movida a engrenagens de corso e ricorso (avanços e retornos): a tendência é a da repetição, mas, na prática, por mais que o climão de uma época Z seja o mesmo de uma época passada A, nós ainda assim podemos dizer que a coisa mudou, embora tenha mudado espiraladamente. As thunderwords representam simbolicamente esses reboot's ou passagens de eras, visto serem um enorme condensamento linguístico e um microcosmos do Finnegans Wake todinho. (Ao todo são 10 thunderwords, a última com 101 caracteres.)

Aí o camarada foi dormir. Esse "foi dormir" é representado no Finnegans Wake pela queda de alguém de um andaime (a primeira thunderword é essa queda), no que essa pessoa entra em coma profundo, digamos assim, até que alguém abre uma garrafa e a pessoa acorda. Como na canção popular. Com a diferença de que a pessoa acorda pro sonho. E aí o pau começa.

Essa primeira parte do Finnegans Wake tem como enredo a história de um tal de HCE que... Tá, eu sei, alto lá. HCE? Sim, HCE. Sempre que você estiver lendo e ver três palavras que começam com H, C e E, é porque o tal do HCE tá em cena. O Joyce facilitou sua vida, olha só que alma bondosa!, e sempre que isso acontece ele colocou em maiúsculas. Mas esse HCE não tem nome direitinho nem CPF. Parece que o nome dele é Humphrey (ou Harold) Chimpden Earwicker, mas não temos certeza. Ele é uma sigla em estado-puro-de-sigla. Ele é um arquétipo-patriarca central. A aparição mais famosa dela é quando ele surge como Here Comes Everybody. O fato é que ao que tudo indica que esse HCE tava na pracinha, de boa com a vida, quando rola um rolo e ele é preso, julgado e jogado no rio. Não sabemos ao certo o porquê ele foi preso, ou não conseguimos entender direito o porquê, de modo que o lance é meio kafkiano. Eu particularmente gosto da leitura que diz que foi algo voltado pro lado sexual, como flertar com quem não deveria, visto que isso remete a trajetória de HCE à trajetória do líder revolucionário irlandês Parnell (1846 - 1891), uma grande inspiração para Joyce: esse Parnell foi acusado de adultério em certa parte da vida (uma acusação falsa, aliás) e isto foi o suficiente para seu descalabro. Aí, como eu disse, o HCE é julguijogado no rio. Claro que existe mais coisa nesse meio. O HCE cai na boca do povo e chegam a compôr, sobre ele, uma tal de The Ballad of Persse O'Reilly. Durante o julgamento do HCE, que, se disse antes que era kafkiano, na verdade não era tanto pois nem o próprio processo kafkiano é tão kafkiano assim (no processo kafkiano e no processo de HCE o réu chega a ser solto numa espécie de liberdade provisória, o que, na processualística penal brasileira aplicada na prática, é algo que acontece só pra quem tem bala na agulha); no meio desse processo, que envolve um tribunal do júri composto por 12 pessoas e 4 juízes, 12 e 4 números evidentemente arquetípicos, a esposa do HCE, ALP, escreve uma carta, com a ajuda de seu filho Shem, que é o escritorzinho da mamãe, acerca do marido. A carta vai parar na puta que o pariu mas não chega onde tem de chegar. Na verdade, ela vai parar num montículo feito por uma galinha chamada Biddy (que é uma personagem da canção Finnegans Wake), e ali fica.

Mas enfim. ALP. O mesmo esquema com o HCE: seu nome seria Anna Livia Plurabelle. O capítulo 8, que é o que estamos olhando mais de perto, acontece depois do HCE ser julguijogado no rio e traz a figura de duas lavadeiras que começam a fuxicar sobre o causo-HCE. Sabe aquele lance de telefone sem fio? Pois é. A tal da carta, numa certa passagem, é também mencionada, mas o teor é alterado: as lavadeiras dizem que na carta ALP diria que estava cansada de seu marido... O negócio é que fuxico vai, fuxico vem, a noite vai se apossando, vai tudo escurecendo, as lavadeiras vão ficando mudas (uma delas vira uma pedra e outra uma árvore) e o capítulo acaba. Se você achou que o Finnegans Wake era um negócio de doido, calma que só piora. A segunda parte do livro pode ser lida como um sonho dentro de um sonho (o capítulo 8 termina com a palavra "Night"). A era dos patriarcas e das matriarcas acabou. Agora o lance é com os filhos, ou, de certo modo e em muitos sentidos, a história da humanidade, como se a primeira parte tivesse sido uma teogonia. Afinal de contas, HCE, o arquétipo-patriarca central, é jogado num rio, que, no caso, é o rio-ALP, o rio-mãe, o rio que fecunda e move o livro inteiro (não custa lembrar que o final do livro é um monólogo da ALP, mais ou menos como o monólogo da Molly no final do Ulysses, e que esse monólogo, nós sabemos, é cíclico: seu fim é o começo do Finnegans Wake, literalmente). Então é um lance meio de morte, tipo o caso do deus egípcio Osíris, que ao mesmo tempo é um lance de vida.


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Mas olha, não quero me deter mais do que isso. Com isso em mente, acho que dá pra você pelo menos parar de franzir o cenho... tanto. O que significa traduzir o Finnegans Wake, eu pergunto de supetão?

Não é nem um pouco simples traduzir o Finnegans Wake, eu também respondo de supetão, embora seja uma diversão tremenda (digo "diversão" tendo como base as acepções que Guilherme Gontijo Flores pensa quando fala da tradução como diversão: uma espécie de prazer na divergência, simplifiquemos). Para se ter uma ideia da bagunça que o Finnegans Wake representa, é só nos lembrarmos daquela famosa passagem do ensaio A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin, em que Benjamin nos diz que, supondo uma tradução do grego para o alemão, ao invés do tradutor germanizar o grego, ele deveria helenizar o alemão. No caso do Finnegans Wake, como funcionaria algo assim, ora essa, se ele representa uma abertura tão profunda a uma pletora de línguas tão enorme? Você deve pegar, no nosso caso, a língua portuguesa e transformá-la... no quê? Em todas as línguas (o que nos levaria para o status quo, quem sabe...)? Num português cravejado de tudo? Sabemos que a sintaxe do Finnegans Wake é certo modo castiça, e que, na maior parte dos casos, ela segue a sintaxe da língua inglesa; mas, de todo modo, o Finnegans Wake, mais do que ser simplesmente um livro com recursos a muitas línguas, é, em sua essência, uma abertura vocabular profunda. O que Benjamin está dizendo em seu famoso ensaio é a da tradução como forma de recuperação, nem que por um átimo, da situação idílica do Antes-de-Babel, ou seja, das línguas todas unificadas. O Finnegans Wake representa, em certa medida, uma realização e uma subversão de algo assim, no sentido de que ele consegue reunir materiais de uma gama muito grande de línguas mas de tal modo que essa espécie de língua universal que o Finnegans Wake acaba permitindo vislumbrarmos é uma língua não exatamente unificadora, mas que funcionaria como que uma espécie de estágio de confusão primeira dessa língua pré-babélica. Ou seja: tínhamos uma língua unificada e, de acordo com o mito de Babel, rolou uma bagunça que terminou nesse montão de línguas que temos hoje. A língua do Finnegans Wake é justamente esse "rolou uma bagunça". Ela possui um estrato principal ancorado no inglês, e uma tradução em português também o possuirá e em muitos sentidos buscará trabalhar o contorcionismo e limites possíveis que a língua portuguesa dá ao tradutor, mas, como supus, esse fio da meada não exclui o fato de que o que realmente temos numa tradução do Finnegans Wake, caso ela realmente queira ser uma tradução do Finnegans Wake, um texto que representativamente funcione como o Finnegans Wake, um português cravejado de tudo, algo que, a fim de que seja realmente alcançado e a fim de que funcione de tal modo, implica uma abertura vocabular profunda e sob certos aspectos, ilimitada, incontrolável.

Podemos ver muito mas não podemos ver tanto, sendo assim, quando falamos do Finnegans Wake. Virtualmente ele possui todas as línguas do mundo, e recensear as fontes de Joyce, por mais que seja um trabalho extremamente louvável, não me parece ser um trabalho que esteja sequer perto de "esgotar" o Finnegans Wake (partindo, claro, da premissa extremamente infundada de que recensear as fontes ou o modus operandi de Joyce tenha realmente tais objetivos). Quer dizer que você pode, por exemplo e de acordo com minha visão da mecânica do Finnegans Wake, achar uma referência ou um pedaço de palavra que Joyce não tinha conhecimento nenhum no meio do livro, sem que isso necessariamente soe forçado. O funcionamento do Finnegans Wake é justamente o desta abertura. Naturalmente que uma abertura assim pode redundar numa infinidade interpretativa praticamente ilimitada, e de fato o Finnegans Wake é um caso limite da interpretação textual, mas, como estudado por Umberto Eco, mesmo o Finnegans Wake possui lá seus limites interpretativos, visto que, mesmo se considerarmos cada palavra do Finnegans Wake como um microcosmo em aberto, como de fato creio que elas são, nós precisamos considerar um conjunto maior ou menor de palavras num conjunto maior ou menor de frases e não simplesmente cada palavra tomada por si só —  e mesmo se considerarmos a palavra por si só, ela também estabelece seus limites, pois, embora eu possa ler na palavra "riverrun" uma referência às runas das línguas germânicas, eu não posso ler "alface". O Finnegans Wake se assemelha a um rizoma, mas isso não quer dizer que, por "desordenado" que seja seu crescimento (entre aspas pois rizoma não é crescimento desordenado), ele em algum momento parta de uma espécie de corte em relação aos ramos que cresceram antes. Podendo ser lido como um rizoma, as palavras do Finnegans Wake não surgem no vácuo e desconexas das restantes. Grande parte de sua polifonia verbal é decorrência de seu valor relacional com o todo, o que faz com que referências certa maneira menores, como por exemplo uma referência a um rio qualquer no meio de uma palavra, mesmo que acabe se demonstrando de somenos importância, ainda assim possui uma importância graças à abertura interpretativa que o texto, que o todo representa.

Isto posto, a ideia de se traduzir o Finnegans Wake é também uma ideia de tradução limite. O tradutor se encontra livre em muitos sentidos, mas ao mesmo tempo se encontra sufocado. Ele não está apenas a um passo da paranoia: se ele se meteu a traduzir o Finnegans Wake, ele já está paranoico. Pra citarmos outra passagem do famoso ensaio de Benjamin, é quando o filósofo alemão nos diz que alguns textos parecem pedir e, de certo modo, ao serem lidos, permitem que traduções, mesmo futuras, possam ser antevistas em sua estrutura. É o caso do Finnegans Wake. Ele pede pra ser traduzido. Primeiro porque tradutor é bicho doido. Isso explica porquê tanta gente, por exemplo, já se meteu a traduzir o The Raven do Poe. Explica também porque alguns doidos, de tempos em tempos, no entra-e-sai das novelas das 7, se metem a traduzir o Finnegans Wake, nem que seja um trecho pelo menos. Pois se considerarmos, como o dissera, o Finnegans Wake como o caso de, digamos assim, algo além de um nó górdio de línguas entrelaçadas, ou seja, o Finnegans Wake como um portal intertemporal de onde saem demônios (tipo aqueles portais que aparecem nos desenhos animados japoneses), o que explica o que venho dizendo do Finnegans Wake como uma abertura; se considerarmos o Finnegans Wake assim, uma tradução, que em qualquer caso é um embaralhar as cartas, visto que você muda os instrumentos que são postos em cima da mesa em maior ou menor grau, é um convite múltiplo a que se busque preservar o máximo possível daquele nó górdio sem deixar de lado a tal abertura que venho implicando, mas isso de um modo realmente prazeroso, realmente divertido, visto que em grande medida essa abertura que o Finnegans Wake propõe é pura e simplesmente um algo inesperado.

Ou então, pra colocar de outro modo, é se lembrar que o que faz um nó ser um nó não é a corda, mas o movimento. Portanto, se venho propondo que o Finnegans Wake representa uma abertura vocabular ilimitada e incontrolável, uma tradução do Finnegans Wake, mais do que apenas corresponder aos estratos de sentido do original em nível satisfatório (o que é algo difícil por si só e difícil mesmo de constatação), deve também corresponder e efetuar um movimento que seja igualmente análogo ao nó górdio do Finnegans Wake. Isso implica que como Joyce, nem mesmo o tradutor tem domínio sobre todas as acepções possíveis de seu texto traduzido, e às vezes me pergunto se, analisando simplesmente os ganhos e perdas de uma tradução do Finnegans Wake em relação ao original, nós estamos realmente nos valendo de todas as potencialidades que uma tradução do dito cujo pode oferecer. Voltando ao termo proposto pelo Guilherme, me pergunto se, supondo que eu realmente tivesse como ter controle sobre todas as acepções das palavras do Finnegans Wake, o que, como venho argumentando, não é possível pois a mecânica do Finnegans Wake é a de uma abertura e não simplesmente a de um montão enorme de fontes; supondo que eu realmente tivesse tal controle, será que a diversão tradutória viria mesmo desse palavra-traduz-palavra? Ou será que ela viria de pequenos relances de radicalismos e desvios? Ou então viria simplesmente de uma aposta a qual o tradutor talvez não tenha total controle, mas, deixando-se levar pelo clima geral do livro, pelo que as soluções anteriores parecem ter permitido, ele ainda assim incorra?

Claro que algo assim é um verdadeiro perigo, e não estou exatamente fazendo um elogio à irresponsabilidade (talvez não tão escancaradamente). A ponte que une esse fugir-pela-tangente que o Finnegans Wake não deixa de permitir, convocar, e esse recenseamento paranoico, é um projeto tradutório firme. Ou seja: o tradutor necessita de um projeto tradutório muito firme caso não queira perder a cabeça. As perdas que existem na tradução do Finnegans Wake não são simplesmente as perdas que o tradutor fatalmente incorreria se tivesse que traduzir, sei lá, o soneto 135 de Shakespeare (o famoso will sonnet). Nós podemos recensear as várias acepções plausíveis da palavra "will" neste soneto, mas existe uma certa estabilidade em relação a isso pois não estamos falando de um neologismo incluso num livro que, mais do que possuir em sua composição um alto número de línguas, possui como funcionamento uma abertura interpretativa fundamental. Pode até ser que daqui, vamos supôr, a duas semanas, alguém descubra mais uma acepção para a palavra "will" no soneto 135 de Shakespeare. No caso do Finnegans Wake, contudo, descobrir mais uma acepção é algo corriqueiro e, como suponho, ilimitado. Se o tradutor ou, melhor dizendo, se o crítico for se preocupar em simplesmente pincelar ausências na tradução do cara, ele vai estar enrolando pelo menos um quilômetro de papel de trouxa. É claro, é óbvio que irão existir faltas. Daí entra a necessidade de um projeto tradutório firme, o que não quer dizer necessariamente expresso por escrito nem seguido à risca ou coisa que o valha, para que nós consigamos de certo modo mensurar um funcionamento e, portanto, possamos ler a tradução à luz de um funcionamento interno que nos permita, mais do que simplesmente ler o que está no papel, imaginar o que poderia estar e o que ali está e que, quem sabe, nem mesmo o tradutor soube (visto que o mesmo princípio interpretativo do Finnegans Wake deve ser também aplicável a uma tradução do Finnegans Wake).


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(Joyce lendo parte do capítulo.)


Vladimir Nabokov chamava o Finnegans Wake de "Punnegans Wake". "Pun": trocadilho. O Finnegans Wake tem trocadilhos de todos os tipos e de todas as procedências. Trocadilhos homofônicos, trocadilhos envolvendo pedaços de palavras, trocadilhos envolvendo palavras de outras línguas, trocadilhos envolvendo duplos sentidos, trocadilhos envolvendo correspondências distantes, trocadilhos envolvendo referências extratextuais... Nem sempre dá pro tradutor manter um trocadilho da mesma natureza que o original. Como diz Caetano Galindo não me lembro exatamente onde, a ideia do trocadilho é meio frouxa uma vez que mais certinho ou exato seria falarmos em instantes onde a linguagem da obra se volta a si mesma e realça a si mesma. Assim, é como se a linguagem do texto apontasse pro montículo que ela ciscou (e que na prática, claro, é ela mesma). Nem sempre pro tradutor, assim sendo, será possível construir um trocadilho de mesma precedência que o original; às vezes ele terá que simplesmente passar por cima, o que é algo muito perigoso mas que num texto como o do Finnegans Wake eu julgo, se nas devidas proporções e dado o mecanismo de abertura da obra, é algo que vai acabar acontecendo mesmo, intencionalmente ou não; ou então ele terá que dar um jeito de fazer com que o texto aponte para algo que pode não ser bem da mesma origem que o que o original mostra, mas que, de todo modo, é um relevo.

Com fins a fazer com que uma via e outra se harmonizem e nós tenhamos um texto que funcione, representativamente, como o Finnegans Wake em nossa língua, o tradutor precisa de um projeto tradutório firme. E quando falo em projeto tradutório, não me refiro apenas a um preâmbulo que o tradutor escreve. Sei que nós podemos chamar isso também de projeto tradutório, mas nem sempre é possível cumprir o que se promete e nem sempre ao tradutor é dado discorrer sobre esse tipo de coisa. Ao falar em projeto tradutório, falo numa espécie de dedução que podemos fazer, tendo em vista os resultados a que o tradutor chegou, de qual era a meta a que o tradutor perseguia ou qual era sua postura frente à sinuosidade da obra. Em termos absolutos, evidentemente, a presunção de um projeto tradutório e a mensuração de seu cumprimento ou não é algo impossível. Mas estamos numa discussão tradutória. Numa discussão humanística. Entre a nulidade e o absoluto existe uma gama de entendimento ampla o suficiente para que a discussão possa ser guiada em termos razoáveis...

A ideia de um projeto tradutório firme norteando uma tradução é uma maneira de manter a coisa nos eixos. Mesmo supondo que o Finnegans Wake pudesse chegar a um estágio onde já soubéssemos tudo a seu respeito, ainda assim seria extremamente difícil conservar tudo e da mesma forma como está no original. Perdas são inevitáveis, mas quando falamos em perdas numa tradução, não podemos falar em termos absolutos. O tradutor pode muito bem compensar uma perda, e a gerência de perdas e ganhos eu também coloco na cumbuca do projeto tradutório. Isto é, esse jogo compensativo encaminha o tradutor a ter um projeto tradutório, ou seja, ter uma ideia, mesmo que vaga, mesmo que inconsciente, acerca do como proceder, do que privilegiar ou do como poder dormir em paz sabendo ter dado o melhor trabalho que lhe foi possível. É a isso que me refiro quando disse que o projeto tradutório deve ser firme ao traduzirmos o Finnegans Wake. Pois se uma tradução evidentemente envolve perdas, isso não quer dizer necessariamente que o saldo total seja negativo. Não quero destrinchar o raciocínio que me leva a afirmar isto; fique dito por hora que, em meio a perdas, um projeto tradutório firme permite ao tradutor e ao leitor a consideração de uma tradução do Finnegans Wake como mais do que simplesmente um resultado: a tradução do Finnegans Wake passa a ser também um jogo de possibilidades assim como o próprio Finnegans Wake, em sua mecânica de aberturas, é.


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(Augusto de Campos lendo um trecho de sua tradução. Não, não é do capítulo 8.)


Meu projeto tradutório, pra que eu mesmo forneça lá meu "preâmbulo", se norteou por duas frases de Joyce sobre o Finnegans Wake. Numa delas ele dizia que o Finnegans Wake era pura música. Na outra, dizia que não era bem ele quem escrevia o livro, mas você, você e você. Assim, minha tradução buscou ficar de olho e radicalizar configurações prosaicas e sonoras do original, o que explica, por exemplo, minha expressão "sabe, sôbe". Ou seja: é uma repetição que, no plano textual, de duas lavadeiras fofocando, num esfrega-esfega intenso no começo e brando no final, dá a entender um ir e vir seja das águas do rio ALP, seja do ato de esfregar a roupa. O "sôbe" é versão prosaica de "soube", privilegiando o O que remete ao começo do texto  e de modo geral, toda minha tradução buscou ficar de olho numa assonância em O. Meu uso e abuso de acentos e apóstrofes foi uma maneira de fazer com que o fragmento ganhasse mais vida, ou seja, que o leitor batesse o olho e visse aquela algazarra toda para, assim que se pusesse a ler, percebesse que aquela algazarra lhe é familiar. (Além, claro, de que essa pontuação toda encaminha o leitor aos efeitos que eu quero: ele vai ler uma palavra da forma como deve ser lida no contexto da tradução e poderá, graças às contrações, enxergar de maneira mais clara um trocadilho, por exemplo.)

De certo modo, e em momento algum eu quero negar algo do gênero, reconheço que fui muito mais radical do que o texto exigiria, o que talvez seja uma maneira empolada de dizer que posso ter me empolgado e entornado o caldo em alguns momentos. Por exemplo ao criar neologismos como "Emprétempesteou", uma fusão de "pretear" com "empestear", esta última palavra de valor significativo pois remete à ideia da peste e da mancha que se fará presente ao longo do capítulo. Casos assim foram a forma que encontrei para entretecer a linha prosaica e sonora que privilegio em minha tradução, além, claro, de poder, com a abertura e a segurança que uma teia assim urdida pode fornecer, transpôr algumas partes delicadas do texto.

Alguns exemplos.

Na frase "Ou sei lá o qu'elqui trintaram sabê modois qu'ele fez pra lá do Perque Fálix."

Como notam os irmãos Campos, aqui Joyce faz um trocadilho com os números 2 e 3, o que eles inclusive conseguem transpôr com enorme felicidade ao se valerem do verbo "tresandar". No meu caso ficou uma coisa meio bobinha, em especial esse "trintaram" (três+tentaram) e esse "modois" ("modo de que", geralmente sincopado pra "módique" ou, no meu caso, "módois qu'"), mas o original de Joyce não é lá essas coisas (Joyce usa a homofonia entre "to" e "two", por exemplo). No final da frase, uma referência a "Fiendish Park". No caso da tradução dos irmãos Campos, a escolha por "Duêndix", como explicado por eles, se deu graças ao fato de "Duêndix" reforçar a referência ao número dois. A ideia aqui é basicamente uma correspondência homofônica distante com o Phoenix Park, o local onde provavelmente o crime de HCE se deu. O Phoenix Park realmente é um lugar que existe e fica na Irlanda. Em 1882 houveram alguns assassinatos nesse Phoenix Park, e Parnell, o revolucionário irlandês que já pude comentar, fez uma fala lá no Phoenix Park mesmo condenando os crimes, o que aumentou sensivelmente sua popularidade.

No meu caso, mantive a conotação de crime supra-humano, beirando esferas religiosas, que a situação referente ao Phoenix Park adquire no Finnegans Wake. Ou seja: foi lá nesse Phoenix Park, um lugar de conotações edênicas, onde o peteco com o HCE se deu. Isso explica minha opção pelo "perque Phálix". "Perque" evidentemente se liga a "peque", "pecar", algo que encontra um respaldo no original quando, algumas frases depois, as lavadeiras se referirem às "the gangres of sin in it" ("in it", na blusa de HCE). Existirão outras passagens em que ressaltarei essa ideia do pecado, da perdição que, de acordo com Joseph Campbell e e Henry Motor Robinson, é a engrenagem-mestra do tema de HCE. Assim, por exemplo, "êxujo d' peste", onde minha versão sincopada "d'" não deixa claro se é sujo da peste ou de peste, ou então, logo depois, "sópecando", que pode ser lido tanto como "só pecando" quanto como "sapecando" (além do "Emprétempesteou", que já comentei antes). Já "Phálix" é uma mescla de "Phoenix" e "Falo". A ideia remetente ao "Falo", sexual, é um substrato de sentido sexual que aparecerá inúmeras vezes ao longo do capítulo. Junto das referências hidrográficas, as referências sexuais abundam ao longo do capítulo e de todo o Finnegans Wake. Assim, por exemplo, quando, algumas frases depois, eu traduzir "Animal Sendai" para "Sim-dói, mánadimal", a subversão de sentido encaminhada ao terreno e lascivo é ainda mais brutal: "Animal Sendai" remete, homofonicamente, a "Animal Sunday", um domingo santo dedicado aos animais. No meu caso, combinado com o "enrabô-si-núm" (esse "enrabar-se" remetendo ao "he did a tail" do original), temos um forte sentido sexual, ou seja, alguém se enrabou e sim, isso doeu, mas não foi nada de mal.

Outro exemplo estaria na frase "E nisi prius-quê priuseram-nis jornais dostroç' que fez, o fogos' Humph!-rey, co' ulísques dest'lado e àventuras dôtro."

"Nisi prius" é um termo legal norteamericano que se refere a um julgamento antes que a justiça faça inquéritos. Meio o que acabou acontecendo com HCE. Creio que fui feliz na hora de traduzir a expressão, podendo inclusive colocá-la duas vezes no texto, de frente pra trás e de trás pra frente. A sonoridade entre "dostroç" e "fogos" é gratuita mas significativa. O caso de "Humph!-rey" foi uma maneira de condensar a expressão "King fierceas Humphrey", aproveitando-me do "rey" que já existia no nome e desse "Humph!" que ajuda a dar um sentido de impaciência. Mantive o "fogoso" pela conotação sexual. Já no caso de "ulísques dest'lado", aqui eu adiciono uma perspectiva espacial inexistente no original, ou seja, o original não se refere a esses ulísques e aventuras de um lado ou de outro. "Illysus" é uma mistura de Illisius (o rio), ilícito, Ulysses e uísque ("whisky"). Outra opção que havia pensado era "ithacachaça". A perspectiva espacial que me referi acabou ajudando a manter o "distilling" do original sem muitos problemas. A escolha de "àventuras" para "exploit" foi tendo em vista os significados de "exploit" como ato, feito de grande bravura, ou "exploit", verbo, ligado à ideia de exploração, de promover: daí o "a" craseado, dando também a ideia de ir rumo à ventura, de explorá-la, buscá-la etc etc.

Um último exemplo que dou se refere à última frase do trecho. "Minxing marrage": tanto "mixing", mesclar, quanto mijar mesmo (do latim "minxit"); "marrage" pode ser tanto casamento quanto "mar"+"rage", destruição raivosa, o que "roughty old rappe", na frase anterior, contribui (notar que, um pouco antes, Joyce usara "old reppe"; na tradução não consegui manter a ligeira diferença, de modo que preferi a repetição). "Making loof": "loof" pode se referir à palma da mão ou então à gíria "loo", vaso, mais "loof", que em holandês é foliar, "aloof" e "love". Como o leitor pode ver, um sentido sublime, de um casamento de almas que se mesclam (que encontra ressonância no soneto 116 de Shakespeare, versos 3 e 4), e um sentido prosaico de mijar.

Não consegui encontrar uma solução tão conveniente quanto o "mitrimônio" de Schüler. Por isso optei pelo composto "Uni-urinando", que mescla "unir", verbo próximo de "casar-se", e "urinar". O uso do hífen foi pra facilitar o leitor na hora da leitur. Já o caso de "fézemo" foi para me aproveitar da palavra "fezes" que estaria ali incutida. "Fazer amor" mantém a tonalidade sexual e grotesca da passagem (que, na minha tradução, dá a ideia de uma transa que envolve xixi e cocô), embora perca conotações como "aloof".

Por fim, a questão hidrográfica, certamente uma das centrais ao longo do capítulo.

O capítulo que estamos discutindo tomou de Joyce, como o próprio Joyce costumava dizer, mil e duzentas horas de trabalho. Ele é famoso por possuir muitas referências a rios: 500 ao todo. Só nesse trechinho que traduzi, existem 27. Em ordem de aparição: Cheb (cidade alemã situada sobre o rio Ohre), Went (Inglaterra), Futa (Chile), Repe, Steeping, Stupia, Upa, Heart (EUA), Saale (Alemanha), Duddon (Inglaterra), Battle (Canadá), Moldau (o Moldava, República Checa), Dnieper (o Dniépre, Rússia), Ganges (Índia), Sendai (Japão), Lough Neagh (lago na Irlanda), Nisi, King (Austrália), Fier, Illisius (o Ilísio, Grécia), Tom (Rússia), Till (Inglaterra), Welle (África), Spring (Austrália), Roughty (Irlanda), Loo.

A tradução de Donaldo Schüler foi particularmente feliz nesse quesito. Com muito esforço e me aproveitando do fato de que muitos dos nomes de rios aparecem de forma homofônica e parcial em Joyce, consegui manter também 27 rios: Cuando (África), Aba (Nigéria), Ba (China; também chamado Fiji), Elqui (Chile), Uele (Congo), Imbé (Microbacia no Campo dos Goyatacazes), Nasse (lago entre o Egito e o Sudão), Saale, Esse (Alemanha), Solimões, Upa (República Tcheca), Duddon, Apa (rio paraguaio e brasileiro), Essequibo (Guiana), Amazonas, Ganges, Sinú (Colômbia), Sendai, Lough Neagh, Nisi, Drá (Argélia e Marrocos), Tejo, Içá (Amazonas), Jutaí (Amazonas), Futa (Chile), Repe, Danúbio. O leitor observará que em alguns casos fui um pouco malandro, como por exemplo na antepenúltima frase do trecho: enquanto ela no original não apresenta nada de mais, eu aproveitei pra entupi-la de referências hidrográficas, como que fechando a conta.

Mas acho que já disse demais. Fiquemos com minha tradução, as traduções de Augusto de Campos, Donald Schüler e Dirce Waltrick do Amarante. (Como não tive acesso direto à tradução de Dirce Waltrick para o capítulo 8, cito aqui somente a parte que me chegou ao conhecimento.) Divirtam-se.


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(Aos 22 minutos, Dirceu Villa lê sua tradução.)


P.S. (03/01/16): Adiciono a tradução de Dirceu Villa, inclusa em seu blog (aqui). Recomendo também que o leitor assista o vídeo acima, que é uma excelente introdução à obra de Joyce conduzida pelo próprio Dirceu, que é um dos leitores mais atentos não só de Joyce como de literatura hoje em dia. Com tantas traduções compiladas, certamente que o interesse da passagem residirá muito mais na tradução dos colegas do que na minha pobre tentativa barroquizante.

P.S. (30/07/16): Adicionada a tradução parcial de José Antonio Arantes, inclusa num livro de Anthony Burgess (Homem comum enfim, Cia das Letras, 1994, p. 200) onde o tradutor, todavia, buscou fornecer "aproximações literárias aceitáveis, ilustrativas". Como a tradução não dispõe o texto graficamente conforme o original de Joyce, optei por manter do jeitinho que está. Organizei a compilação por ordem cronológica.

P.S.(26/02/18): Adicionada a tradução de Dirce Waltrick do Amarante, divulgada pelo mallarmagens (aqui) na ocasião de lançamento de uma versão compacta do Finnegans Wake pela tradutora.




Capítulo 8, p. 196

§


trad. Augusto de Campos. [1971]

Ah!
fala-me de
Ana Lívia! Quero ouvir tudo
sobre Ana Lívia. Bem, você conhece Ana Lívia? Mas claro, todo mundo. Fala-me tudo. Quero ouvir já. É de matar. Ora, você sabe, quando aquêle malandro fêz baque e fêz o que você sabe. Sim, eu sei, e daí? Lave com calma e não saalpique a gente. Levante as mangas e solte a língua. E pare — ai! — de bater em mim quando se abaixa anágua. Ou que diabo foi que trentaram duescobrir que êle tresandou fazendo no parque de Duêndix. O grande canalha! A camisa sua, veja! A lama que ela deixa! Tôda a água está preta. E´molhar e malhar a setemana inteira. Já lavei tanto que perdi a conta. Sei de cor os lugares que êle costruma cacolavar, s'sujeito sujo! E eu esfolando a mão e esfomeando a minha fome para tornar a pública sua roupa íntima. Bata bem com a batalhavadeira e limpe depois. Meus pulsos emperrujam de tanto esfregar as manchas de môfo. Que dniepers deumidade e que gangerenas de pecado!


§



trad. José Antonio Arantes. [1994]


Oh me fala tudo de Anna Livia! Quero ouvir tudo de Anna Livia. Bom, você conhece Anna Livia? Mas claro, nós todos conhecemos Anna Livia. Me fala tudo. Me fala agora. Você vai morrer quando ouvir. Bom, você sabe, quando aquele chapa fez tcham e você sabe o quê. Sim, sei, e daí? Lave quieta e não salpique. Erga as mangas eabra a boca. E não trombe em mim — lá vem! — quando se curva. Ou o que quer que tentaram saber o queele tresandou fazendo no parque do Fútex.


§


trad. Donaldo Schüler. [2004]

O
Conta-me tudo sobre
Ana Lívia! Quero ouvir tudo
sobre Ana Lívia. Bem, conheces Ana Lívia? Açai, claro, todos conhecemos Ana Lívia. Conta-me tudo. Conta-me agora. É de morrer o que escutarás. Bem, sabes, quando o velho velhaco fez fiasco e fez o que fez. Sim, sei, adiante. Lava limpo e deixa de fazer onda. Arregaça as angas e abre o bico. Nada de abaeter em mim — ai! — quando te abayas. O que é que Tefé que tresandaram a descobrir o que ele doisdou de fazer no Fuscoix Parque. Trata-se de piolhento pilontra. Olha pra esta tamisa que é dele! Repara a sujeira. Ele preteou todágua Acala em minho. E bota e bate já lá vão dias sete de danúbio a tejo. Tantos tantos que já nem sei quantos. Guardo na mente os saales que de seu gosto emporcalha, esse diacho sujo. Ralo os dedos e rolo de fome pra que sua roupa privada sene em público. Bate bem na batalha pra clarear. Meus pulsos pulsam e moldam e limpam manchas. Com niéperes de lépera e gangerenas de pestemas in illo! Ao fim e ao cabo qual foi o rabo desta alma santa junto ao Sendai? E quanto tempo jouve lugnegado debaixo do lago? Noticiários moselaram o que fez, niesses e preces, o ardente Rei Humphrey com distilações ulíssias, explorações e o resto. Mas tomos o titularão. Sei-o bem. Tempo que não se toma não se detém pra Ninguém. Líquido entra, líquido escoa. O rude raptor! Mijando no mitrimônio e fazendo romance!


§


trad. Dirce Waltrick do Amarante. [2009]

O
Me conta tudo sobre
Anna Livia! Eu quero saber tudo
sobre Anna Livia. Bem, conheces Anna Livia? Sim, é claro, todo mundo conhece Anna Livia. Me conta tudo. Vais cair dura quando ouvires. Bem, sabes, quando o velho folgado falhou e fez o que sabes. Sim, sei, anda logo. Lava aí e não me enroles. Arregaça as mangas e solta a língua. E não me batas — ei! — quando te abaixas. Seja lá o que quer que tenha sido eles tentaram doiscifrar o que ele trestou fazer no parque Fiendish. E´um gradessíssimo velhaco. Olha a camisa dela! Olha que suja está! Ele deixou em mim toda minh'água escura. E estão embebidas, emergidas toduma semana.


§


trad. Dirceu Villa. [2009]

Ó
me diz tudo da
Anna Livia! eu quero saber tudo
da Anna Livia. Bom, cê conhece a Anna Livia? Sim, é claro, todo mundo sabe da Anna Livia. Fala agora. Põe pra fora. Ai gente é de morrer. Bom, cê sabe, quando o velho safoda saiu e fez o que cê sabe. É, eu sei, vai. Lavaí e não menrrola. Regaça as manga e solta a língua. E não esbarra nada — gaah! — em mim. Ou o que quer que eles trentaram entremder dois que ele fez no Ofêndix Park. Ele é um velho muito sacôna. Olha essa blusa que é dele! Olha que suja essa dele! Impregtou toda minha água. E de molho e de malho dês desse dia semana passada. Quanta água ainda agüenta? Sei de cor os lugar que fazem ele saalevar, mardito antejo! Esfolando a minha mão e esfomeando a minha fome prele pôr o linho privado em púbico. Soca bem limpo e põe junto com as bronhas. Meus punhos se emperrujam de esfregar estigmanchas. E as dnilépras de umidade e as gangênas de pecado ali!


§


trad. eu. [2015]

Ô
conta aí
dAnna Lívia! Tô afim
douvir dAnna Lívia. Ôxe, cê sabe, cê sôbe dAnna Lívia? Ôxe, se sei, se sôbe, nóis sabe, nóis sôbe dAnna Lívia. Conta aí. Ô, conta aí, ó. Cê vai ter um tróço cuando ouvir. Ôxe, cê sabe, cê sôbe, quand'ele desabô-se e o véio veio a, cê sabe, cê sôbe. Tá, eu sabe, eu sôbe, toca. Ó lá, ó, a-ba o bico, nã livia. 'Reganha a manga e chupa 'sa manga. Mas se não manja — se arranja! — e num zanga. Ou sei lá o qu'elqui trintaram sabê modois qu'ele fez pra lá do Perque Fálix. Uele é um troç'atroz. Ó só pas rôpa dele! Ó só pas rápa dele! Emprétempesteou a água tôda. Nóis empápa e imbébe dês'dantônt'. Dêsdoquê lavei nãssei quantas vêz. Sei de cór e sorteado a sorte de lugar que ele saale pro esfrega, êsse êxujo d' peste! E eu sópecando as mões nessa solimões toda pra lavar r'upa suja. Pó pó força duiddado no tar do tái. Meu punho apanha de esfreguinhá êssesquibolôr. E as-manzona de curpa gi-ganges nele! É mêmo que ele enrabô-si-núm Sim-dói, mánadimal? Êle ficô quantemp' lá lonch, o nêgh? E nisi prius-quê priuseram-nis jornais dostroç' que fez, o fogos' Humph!-rey, co' ulísques dest'lado e àventuras dôtro. Mas tômos o tómam bom. Sei drás dele. Ninguém tampa o trampo do tempo. Tej'o broto lançado içá vuvê jutá futas de reapente. Ô troç'atroz! Nós nus uni-urinando e fézendo amô.


§


trad. Dirce Waltrick do Amarante [2018]

Ô
Me conta tudo sobre
Anna Livia! Quero saber tudo
sobre Anna Livia. Bem, você conhece Anna Livia? Sim, claro, todo mundo conhece Anna Livia. Me conta tudo. Me conta já. Cais dura se ouvires. Bem, sabes, quando o velho folgado falhou e fez o que sabes. Sim, sei, anda logo. Lava aí e não me enrola. Arregaça as mangas e solta a fita. Ou seja lá o que quer que tenha sido eles trestaram doiscifrar o que ele trestou fazer no parque Fiendish. É um grandessíssimo velhaco. Olha a kammisa dele! Olha que suja que tá! Ele fez em mim toda minh’água excura. E estão embebidas e emergidas toldo uma semana. Quanto tanto queria saber já lavei isso? Sei de cor os lugares que ele gosta de manchar, suujeito suujo. Esfolando minha mão e esfomeando minha fome pra lavar sua roupa surja em público.Tava nos jornais o que ele fez, do nascimento ao sacerdócio, o Rei violento como Humphrey.




 O
tell me all about 
Anna Livia! I want to hear all 
about Anna Livia. Well, you know Anna Livia? Yes, of course, we all know Anna Livia. Tell me all. Tell me now. You'll die when you hear. Well, you know, when the old cheb went futt and did what you know. Yes, I know, go on. Wash quit and don't be dabbling. Tuck up your sleeves and loosen your talk-tapes. And don't butt me — hike! — when you bend. Or whatever it was they threed to make out he thried to two in the Fiendish park. He's an awful old reppe. Look at the shirt of him! Look at the dirt of it! He has all my water black on me. And it steeping and stuping since this time last wik. How many goes is it I wonder I washed it? I know by heart the places he likes to saale, duddurty devil! Scorching my hand and starving my famine to make his private linen public. Wallop it well with your battle and clean it. My wrists are wrusty rubbing the mouldaw stains. And the dneepers of wet and the gangres of sin in it! What was it he did a tail at all on Animal Sendai? And how long was he under loch and neagh? It was put in the newses what he did, nicies and priers, the King fierceas Humphrey, with illysus distilling, exploits and all. But toms will till. I know he well. Temp untamed will hist for no man. As you spring so shall you neap. O, the roughty old rappe! Minxing marrage and making loof.