Sobre "Nominata Morfina", de Fabiano Calixto.



Podemos esperar muitas coisas de um livro de poemas, e é maravilhoso quando um só pode nos fornecer muitas delas. Isso não quer dizer, claro, que o bom livro seria somente aquele que oferece muita coisa de uma vez só. Um livro  pode oferecer muitas e algumas poucas realmente impressionarem, pode se arriscar em muitas e nada impressionar, ou pode simplesmente, com uma só coisa, impressionar o suficiente. Quero dizer com isso que ao falarmos do que um livro pode oferecer, nós devemos considerar um eixo de intensidade, para além do fato que, na programação geral da obra, na unidade da construção estética, o que enxergamos como vário pode se unificar e gravar uma só impressão em nosso espírito.

Nominata Morfina (2014, editora Córrego, Pitomba, Corsário Satã), o livro mais recente de Fabiano Calixto, é desses. Muito do que esperamos de um livro de poemas ele vai nos oferecer, mas, precisamente pelo fato de ser um livro muito bem amarrado, esse conjunto maior de coisas que nos é oferecido é atado todo num só feixe que, embora feito de várias cores, nos acerta como um só. Assim, as muitas coisas que podemos esperar de um livro de poemas, e que o livro mais recente de Calixto nos dão, não nos vêm à maneira de uma plêiade; antes, vêm à maneira de uma experiência única que, plural em sua origem, se difunde e ramifica após incindir em nosso espírito. A sensação de pluralidade que o livro nos dá é realmente acentuada e julgo que acima da média dos livros comuns de poesia, mas, ao mesmo tempo, não é nada tão plural assim se comparado com casos mais radicais nem a pluralidade eu enxergo como sendo o escopo final do livro. A dinâmica da experiência, plural em sua origem, que nos acerta à maneira de um raio coeso e que, só depois de nos acertar, se difunde e amplia tanto por sua pluralidade originária quanto por encontrar ressonâncias específicas em nosso espírito (ressonâncias que compartilhamos ou temos condições de compartilhar com o poeta, visto que coabitamos um espaço geográfico de mesma natureza: o urbano); esta dinâmica me parece a mais própria.

Serei mais específico. É um livro evidentemente urbano, e não digo isso tendo em vista apenas uma ambientação urbana direta. Ele recende a uma sensibilidade urbana. Dizer com mais tardar o que seria essa sensibilidade urbana continua sendo um desafio. Calixto é um autor posterior à alta modernidade, o que talvez queira dizer que ele seria o que chamamos de "pós-moderno". É um termo realmente problemático, pois implicaria o fim da modernidade; mas, dado que denominá-lo assim ou assado não me interessa muito, o que quero dizer é, na esteira dos estudos de Marshall Bermann, que já vai longe aquela espécie de indecisão entre o ambiente campestre e o ambiente urbano, de modo que, ao me referir a uma sensibilidade urbana, me refiro às implicações mais basilares que um termo desses quer nos dizer: vida dinâmica, vida em conjunto e, por conseguinte, todos os problemas políticos que daí advêm. É o simples caso, afinal, de considerarmos uma reunião considerável de pessoas que possuem seus propósitos e sua parcela e atuação no jogo de poder, de modo que, num conglomerado tão grande como o da cidade, os laços que atam a sociedade urbana são distintos dos laços que atam uma sociedade rural, esta com tendências mais tradicionais e familiares, ao passo que no ambiente urbano teríamos algo muito mais próximo dos laços econômicos. É aqui que localizo o que entendo por sensibilidade urbana. Uma sensibilidade afeita à pletora de problemas que abafa o indivíduo de forma mais intensa, uma vez que parece representar como que um aprimoramento das formas de enredamento que a sociedade rural apresentava ― o que é razoável de ter ocorrido pois a dimensão e a necessidade política, isto é, de um convívio pacífico, se intensifica e problematiza ― e que, de maneira concomitante, leva o indivíduo ao isolamento, à posição de peça e tão-somente peça dentro de uma engrenagem social maior. Contradições, portanto, que são vistas no âmago da pessoa: seguindo a lógica das relações rurais, o ambiente urbano deveria aumentar o senso comunitário, mas, pelo contrário, dada o emaranhado caótico de problemas que embora ate firme essa sociedade urbana, ao mesmo tempo demonstra uma fragilidade muito grande (sentida em especial nas pontas e margens dessa sociedade), esse ambiente urbano faz com que o indivíduo se encasule ainda mais e vá pelo caminho contrário, reduzindo, atrofiando seu senso comunitário.

Claro que, também como disse, estamos num período posterior à alta modernidade, especificamente como um período posterior à Grande Guerra. Quer dizer que se até então o ser humano mal e mal conseguia ostentar uma unidade de experiência, agora ele se vê diante da fragmentariedade do ambiente urbano e de todas as vicissitudes trazidas, escancaradas e postas como pauta diária: uma maneira de observar isto será se notarmos que mesmo a guerra se fragmentou, e não é, nem de longe, que hoje estamos num período de paz, mas sim que a guerra arrasta seus cadáveres por debaixo dos panos ou longe do que os olhos e ouvidos mais acomodados poderiam enxergar. Mesmo que as condições não sejam tão adversas para o indivíduo comum como o foram na alta modernidade, o grau de insatisfação parece ser muito mais intenso, e, colocando na jogada os avanços comunicacionais como desenvolvimento de um processo de globalização que se consolidou há pouco, o âmbito de alcance desta sensibilidade urbana aumenta de maneira considerável ― e tende a abater qualquer ilusão idílica que ainda reste ― e, como já comentado, num ricochete próprio desta mesma sensibilidade, o isolamento se acentua: o mundo agora cabe dentro do bolso, e, se cabe dentro do bolso, dentro do bolso permaneça.

Mas isto num âmbito de primeiro mundo. No âmbito brasileiro, falar de uma sensibilidade urbana adquire problemas mais agudos. Pois se for o caso de pensarmos modelos paradigmáticos de sensibilidade urbana, por exemplo o de Baudelaire ― e Baudelaire é um autor com o qual Calixto dialoga com frequência ―, é preciso pontuar que nós estamos no contexto de um país cuja experiência urbana e, numa metonímia que me parece própria, cuja experiência moderna foi periférica, estrutural e mais do que isso ― foi crônica. Mais do que isso pois as profundas disparidades de nossa realidade social ganham esse entrave histórico que parece cercear qualquer maneira de aprimoramento das relações sociais, fazendo de nossa experiência humana um pêndulo nervoso em direção à barbárie e ao retrocesso. Imagine-se uma espécie de muro consistente frente ao qual batêssemos e fôssemos empurrados pra trás de tempos em tempos ― um muro que é mais do que um obstáculo dificilmente transponível. É, em termos mais precisos, o caráter crônico de uma experiência colonial que deixou sulcos profundos em nossa experiência social. Isso faz com que as disparidades e mesmo as contradições vistas na poesia europeia, por exemplo, se possuíam sempre o fundo de uma tradição que se queria áurea e, portanto, um forte sentimento de perda, ou então um jogo de investidas faceiras para com uma hipótese de unificação futura; mesmo estas contradições ainda não possuíam aquele entranhamento e cerceamento que se tornou patente no caso brasileiro ― o que implica tanto um retardo quanto um entranhamento em nossa constituição enquanto povo, fazendo com que mesmo avanços em áreas como a política, a economia ou o direito possuam sempre aquele ranço originário de segregacionismo, de cissiparidade. Se quisermos pensar, por exemplo, o binômio cidade-campo, é o caso de notarmos como somos um país de recente predomínio urbano que, todavia, não deixou de lado características e mesmo uma sujeição rural forte ― pense-se, a esse respeito, no como nosso país ainda padece uma divisão de terras extremamente desigual, de como uma boa parcela de nossa política é veiculada nos alqueires das oligarquias rurais, e no como nós ainda somos os líderes nos índices de violência rural. É difícil controlar o pessimismo quando questões assim pipocam, e podemos até dar a entender que não evoluímos nada, o que, claro, é um exagero, embora, a esse respeito, mesmo considerando que conquistas foram feitas, é o caso de pensarmos em como essas mesmas conquistas ainda parecem longe de estarem realmente consolidadas, ou seja, em como elas sempre se fazem acompanhar de um temor não de todo infundado de que sejam tomadas ou reduzidas, e de como essas conquistas trazem em sua trajetória uma tortuosidade a mais: a tortuosidade de sermos o escambo de um processo colonial predatório.



§



Calixto trabalha muito bem questões assim. Mas não no sentido de trazê-las a seu texto à maneira de uma encomenda. Estou falando de uma sensibilidade urbana e não meramente de uma experiência urbana. Sensibilidade pressupõe interiorização. É um passo além do impacto da experiência no indivíduo e mesmo da constituição do indivíduo enquanto coisa permeada dessa mesma experiência. Sensibilidade já pressupõe isso tudo. É um depois-da-formação, é um estágio onde a experiência urbana, mesmo que não presente, mesmo que localizada numa suposta realidade onde ela deixe de ser materialmente pensável, ainda assim é pensada, sentida. A certa disparidade e plêiade de recursos que a poesia de Calixto se vale deve ser localizada precisamente aí. É algo além de uma utilização que ateste a versatilidade simples. Em muitos poemas do livro nós temos a situação de um eu lírico vagando à noite, posto que o clima noturno é predominante no livro todo, e muitos poemas terminam com a chegada da noite ― para além de um verdadeiro povoamento textual de referências literárias, realmente abundantes e de todos os tipos, e exemplos, casos, causos de pessoas em algum lugar do mundo que de certa maneira afetaram a sensibilidade do poeta. Não se trata de dizer que temos exatamente um procedimento whitmaniano, visto que em Whitman temos uma reação unificante entre a individualidade e a coletividade: eles se mesclam e, por conseguinte, o Eu se agiganta ao nível de abarcar o Eles, formando um Nós genuíno. Está mais pro caso do procedimento baudelairiano, que eleva a uma categoria crucial a figura do flanêur.

Quero dizer com isto que, se no flanêur nós tínhamos um vagabundo que simbolizava um momento de transição entre duas sensibilidades coexistindo juntas, um camaradinha que passava o dia fruindo a cidade, com Calixto nós temos basicamente a mesma coisa só que ainda mais internalizada. O flanêur, já dizia Baudelaire em seu famoso ensaio sobre o pintor da vida moderna, era um artista da metrópole, alguém que tinha na multidão seu habitat ― o flanêur era alguém que tinha na multidão um espelho de si próprio. Um caráter certamente curioso, pois, como nota Walter Benjamin, o flanêur é um solitário que quer a solidão acompanhada. Se digo que com Calixto a coisa se internaliza ainda mais, é no sentido de que seu flanêur de Calixto é como que um depois de feita a flanerie. Nós não vemos muito o eu lírico dos poemas de Calixto andando de fato no meio da multidão, mas podemos pressupôr de forma acertada que ele tem um vasto histórico de flanerie. Um flanêur fora da multidão é alguém como todos os outros ― na verdade o flanêur é como todos os outros ―, com a diferença de que ele guarda dentro de seu espírito a experiência moderna com grande premência e esmero. Podemos, claro, dizer que no estágio atual da experiência urbana o mesmo ocorre a todos; mas com o flanêur sempre foi de forma muito mais intensa. E é a esta internalização que me refiro, pois é nela que conseguimos notar como, dentro do espírito do flanêur, tudo parece encontrar uma ressonância urbana. O flanêur vive e respira a cidade, faz dela mais do que um órgão: faz dela um funcionamento vital. Acontece que nós também vivemos a cidade de maneira intensa. Não tão intensa quanto o flanêur, claro. Mas vivemos. E quando lemos um flanêur tão interiorizado como o eu lírico dos poemas de Calixto, encontramos coisas que repercutem em nós. É aqui que eu localizo a dinâmica do feixe que tratei no começo do texto: o feixe é plural pois sai de um ambiente plural por natureza, isto é, o urbano, mas ele é ao mesmo tempo atado num só feixe pois passa pela sensibilidade acentuada do flanêur. E se esse feixe consegue se enraizar em nós, se, depois de nos acertar, ele se espalha, é porque nossas experiências são as mesmas do flanêur, só que com intensidade menor ― para além, claro, do grau de estranheza que nos causa vê-las sob a ótica do flanêur, o que faz com que no fim das contas vejamos e sintamos a cidade de forma distinta.

Aliás, é significativo isso da profusão de materiais na composição de imagens e metáforas. O autor vai do lixo ao luxo, por assim dizer, ou, tentando ser um pouco mais detido, vai da sarjeta às referências literárias e a uma paisagem natural vista de relance (isto é, ela é mesclada a outras imagens, é posta como parte constituinte da metáfora). Muitos dos resultados são de uma beleza ímpar, uma vez que conseguem dar ao leitor uma sensação completa das paisagens que sensibilizaram o poeta. E não se trata de algo exatamente fragmentário. Podemos realmente pensar que o é, e não é difícil pensar assim. Basta que olhemos para a disparidade de algumas dessas metáforas, quem sabe caracterizando a famosa dissonância que Hugo Friedrich caracterizou como própria da poesia moderna. Todavia, por trás desse encaminhamento dissonante, há, como eu disse, uma sensibilidade urbana forte que consegue unificar tais experiências e fazer dessa disparidade um todo até certo ponto "coerente". Uso aspas pois tenho sérias dúvidas se coerência realmente seria o melhor termo. É a criação de um universo particular, para ser mais exato, com todas as contradições que um universo particular imerso e advindo da sensibilidade urbana pode ostentar (de modo que universo emprestado ou alugado, sei lá, fosse ainda mais preciso...).

Veja-se: "Pois quem já tocou a pele de seda e vidro moído da vida sabe que só o alumbramento vale o vexame de definhar-se, dia após dia, frente às contorções de tantas datas.", de Instruções para compor um folk. Compensa prestar um pouco mais de atenção nesta passagem. A pele de seda e vidro moído é uma contraposição realmente interessante. Consegue unir maciez e aspereza com grande habilidade. Afinal de contas, o vidro moído não é exatamente o caco de vidro. O vidro moído é suportável, e inclusive pode aderir (penso, por exemplo, no cerol). Assim, a ideia da seda e do vidro moído não é tão absurda. Claro que ela alcança um estatuto metafórico quando relacionada à pele da vida, pois, mesmo considerando que a vida realmente tenha uma pele, não esperamos que uma pele seja de seda e vidro moído. Seda e vidro moído, como disse, são imagens que representam a maciez e a aspereza. A meu ver é acertado lermos como os altos e baixos da vida. Segue-se que só quem já tocou nessa tal pele e, portanto, experienciou os altos e baixos, sabe o alumbramento ― termo caro para Manuel Bandeira e que podemos tomar como sinônimo de composição poética, de epifania (Joyce), espanto (Gullar) e por aí vai ― valer o vexame de definhar-se etc etc. Peço que o leitor tome nota de quatro coisas dentre as que se seguem: o alumbramento valendo tudo isso, a ideia do vexame, a do definhamento e as contorções de tantas datas. Na verdade, tudo isso amplia a construção ambígua que já estava presente na seda e no vidro moído. Mas Calixto consegue não só estender de maneira habilidosa a imagem, de modo a não torná-la cansativa ou redundante (embora, já dizia Iuri Lotman, a poesia pode transformar redundâncias em fonte semântica), como também a renova e a espaça bem, para além, claro, da tessitura sonora que percorre a frase, com aliterações em D no início, uma leve aliteração em L presente em "aLumbramento vaLe" que se segue de uma em V ("Vale o Vexame"), outra aliteração em D em "De Definhar-se, Dia após Dia", e uma aliteração em T no final (e tanto D quanto T são consoantes linguodentais sonoras). Assim, para continuarmos com Bandeira, a ideia do alumbramento liga-se necessariamente à vida e aos seus ápices, momentos em que o corpo parece ter encontrado sua plenitude, conforme analisado por Davi Arrigucci Jr. Em Bandeira não é incomum que a ideia do alumbramento se perfaça numa faceta sensual, e, no caso de Calixto, a coisa é bem por aí mesmo, podendo ser corroborada pela construção sonora que percorre o texto (há também uma assonância em A que me parece digna de nota), pela noção de pele da vida e pelas referências macias que percorrem o texto, embora a contraposição com as referências ásperas também ganhem, na frase de Calixto, sua significação (e a sensualidade possui sua faceta macia, relacionada ao erótico, e sua faceta áspera, esta última, talvez, relacionada à cópula propriamente dita), além, claro, dos próprios precedentes textuais: algumas frases antes o autor nos diz que a morte nos dissolverá, e que é necessário que, para compor um folk, façamos uma nova reunião "De versos, de beijos, de amigos, de nãos, de figurinhas da Copa da Espanha." Afinal de contas, "as pessoas a quem se destina o folk estão interessadas exclusivamente em situações inesquecíveis." Tudo isso potencializa, em suma, e é mais ou menos aí que quero chegar, a força do alumbramento, visto que, se formos analisar os termos macios e ásperos do texto, podemos pensar que eles estão meio que em pé de igualdade, ou então que os ásperos predominam (vidro moído, vexame, definhar-se dia após dia, contorções de tantas datas). O que nos faz repensar essa suposta predominância da aspereza se dá justamente graças ao fato de que o alumbramento vale tudo isso, e esse vexame de definhar-se ― o que é algo muito bem dito, pois não se trata apenas de definhar, mas também de se envergonhar de fazê-lo ― acaba sendo compensado pelo alumbramento referido.

Mas esse alumbramento, claro, só vale realmente por quem já tocou a pele de seda e vidro moído da vida. Quer dizer, noutras palavras, que, se estivéssemos numa binomia blakeana, os poemas de Calixto são Canções da Experiência. É algo importante pois, como disse, a poesia de Calixto incorpora o flanêur. Intensifica-o. Mas, como sabemos, e como tem sido analisado por reiterados autores ao longo dos anos (por exemplo e para aproveitar a menção passada, Walter Benjamin, especificamente pensando a experiência humana enquanto coisa compartilhável, por exemplo em relatos narrativos), a modernidade se fez acompanhar de uma perda da experiência humana. Aqui entra uma das forças da poesia de Calixto: a força de termos um poeta aclimatado e, embora em muitos momentos certa maneira deprimido e com um enfado, um cansaço poderoso percorrendo-lhe os versos, ainda assim um poeta que representa a resistência. Um enterrado vivo que seja, à maneira de Drummond, ele é, antes mesmo de ser poeta, alguém que conhece muito bem os altos e baixos da vida intensificados pela experiência urbana. Isso tem o que nos dizer. Pois essa suposta morte da experiência humana que tantos autores alardeiam talvez seja morte mesmo só se comparada a um padrão burguês de experiência humana ou de compartilhamento de experiências humanas. No campo da poesia, que, da modernidade pra cá, é, por triste que possa parecer a alguns, um campo de proeminência burguesa (como antes fora de proeminência aristocrática, nobiliárquica), e digo isso não no sentido de que a poesia é uma invenção burguesa, mas que, da forma como ela atua de maneira geral hoje, ela é fortemente influenciada pelos resultados de sua apropriação burguesa; no campo da poesia, que refrata experiências burguesas, dizer que a modernidade representou uma morte é talvez falar apenas de metade do sanduíche. Ao mesmo tempo que conseguimos recensear uma imagética da devastação na lírica moderna e contemporânea ― e Eduardo Sterzi tem feito isso recentemente de forma admirável ―, não custa esquecer ― e Ricardo Domeneck, por exemplo, tem bons comentários sobre o assunto ― que existem também cânticos de louvor a essa mesma modernidade e à experiência que ela trouxe. Calixto vê no ato de se sentar à margem do Tâmisa e chorar um ato certa maneira ridículo, posto que pranteia a perda de um padrão de mundo que já havia substituído há muito mais tempo, ou seja, que não precisou tão exatamente assim da Guerra ou da Decadência para acabar; ao mesmo tempo que vê isto, o poeta também vê na adoração excessiva um contrassenso, e, entre um e outro, nesta vereda que a experiência humana no ambiente urbano é capaz de suprir com argúcia e tortuosidade, com seda e vidro moído, ele segue em frente com sua poesia.

Repiques ou tendências pessimistas avultam em muitos instantes, é claro, em especial se considerarmos outras personagens que povoam os versos de Calixto, anônimos que compõem aquela multidão da qual o flanêur tanto se encanta e que o poeta consegue abordar de forma admirável. Digo admirável pois, mais uma vez num movimento de fusão de tendências opostas, lida com possibilidades e possibilidades de construção poética sem que uma tendência necessariamente predomine em relação à outra. Isso até ajuda a ampliar a dimensão da experiência no livro de Calixto, visto que, se estivéssemos apenas esperando um poeta que traz a experiência urbana para seus textos sob a ótica da experiência (ou seja, alguém velhaco), poderíamos esperar um texto onde o escatológico avulte, mas não é tão exatamente assim. Calixto aprendeu com os grandes mestres da poesia-urbana-underground que não podemos simplesmente, por assim dizer, colocar algo que desagrade o leitor para que o leitor apenas se sinta ofendido ou coisa do gênero. Uma estratégia assim talvez funcionasse com a experiência moderna do século XIX, onde uma ambiguidade em relação a tal experiência ainda podia ser antevista. Hoje a coisa não é bem por aí. Já estamos aclimatados ao ambiente urbano, e, choque por choque, espanto por espanto, qualquer sensacionalismo por aí é capaz de paralisar o paladar médio com muito mais eficiência que qualquer poema. Pode realmente ser que nos indignemos com alguma coisa que o artista coloque dentro de seus textos, mas será muito mais em relação às luvas de pelica que vestimos ao ler um poema (esperando algo meio florido, cheio de adornos, mais ou menos verborrágico, permeado de vocativos e adjetivos etc) do que de fato pelo conteúdo em si. O poeta querer denunciar a hipocrisia de seu tempo seria um verdadeiro alçapão se ele não assumisse sua própria hipocrisia ― e aqui podemos, claro, voltar ao chamativo baudelairiano do leitor como um irmão e um hipócrita também.

Quando me refiro aos grandes mestres, tenho em vista especialmente a figura dos beats. Ginsberg, Bukowski. Esses caras sabiam sair da sarjeta e ir, por exemplo, a um campo de flores. E sem nem precisar sair fisicamente da sarjeta ao campo de flores. Esses caras também internalizaram a experiência urbana de forma intensa. Ginsberg com sua grandiloquência peculiar e Bukowski com o berreiro prestes a abrir. Que Calixto se aproveitou de um e de outro é fácil de mostrar: Calixto é um grande tradutor de um e de outro, ora essa. Em especial de Ginsberg. As versões de Calixto estão entre as melhores que temos. Ele as chama de "transcurtição" (algo que me lembra a recente proposta de Guilherme Gontijo Flores da tradução como "diversão"). Assim, enquanto Ginsberg põe uma referência a Nova York, Calixto muda aquilo e coloca no contexto de São Paulo. Ou então, quando Ginsberg dedica um poema a O'Hara, Calixto dedica a Cazuza. E por aí vai. É algo que tem seu interesse. Tanto porque a poesia de Ginsberg me parece permitir esse tipo de radicalidade sem muitos problemas, ou seja, a poesia de Ginsberg, radicada no âmbito da experiência urbana, é uma poesia que talvez necessite essa atualização para que, mais do que sentirmos o que Ginsberg disse, nós possamos vivenciar e experienciar também o que ele experienciou (e aqui seria interessante lembrar, com Helen Vendler, de que a voz do poema não é a voz do poeta nem a voz de uma função da linguagem, mas sim a nossa própria voz); tanto por isso mas também pelo fato de que Calixto justamente o enxerga e busca trazê-lo para o leitor.

Daí advêm aqueles momentos no livro de Calixto que nos falam de palermas e nonilhões de merda diária até pássaros que vão achar lar nos olhos da amada. Só que Calixto sempre faz isso com uma construção que, no seu caso, tem muito a revelar e a ser explorado. É algo que faz com que consigamos notar de maneira clara o como ele é um poeta cuja experiência urbana calou fundo em sua alma, e não simplesmente um poeta que parece que andou numa viela um dia desses e isso lhe rendeu um poema. Sei que até aqui parece meio abstrato o que estou afirmando, mas note o leitor como em muitos momentos Calixto cria metáforas engenhosas tanto, e principalmente, pelo raio de alcance que elas possibilitam sem que sejam apenas uma justaposição simples de contrários, quanto pela profusão de materiais usados. Como já disse, se o eu lírico vai do lixo ao luxo, e se ele por exemplo fala da seda e do vidro moído numa mesma metáfora, é porque ele realmente viu e viveu a seda e o vidro moído. Mas também faço notar a maneira como Calixto individualiza as personagens e as situações que ele traz. É comum os momentos em que ele traz objetos cotidianos para sua poesia que possuem uma concreção muito maior que a de um termo genérico. Por exemplo, quando ele nos conta de uma mulher de belas pernas que lia uma biografia de Chaplin. Um poeta menos velhaco pararia nas pernas, ou quem sabe ficaria tempo demais nessas mesmas pernas. Aliás, vou citar o começo do poema (Meu pé de laranja mecânica):

O inferno ainda quente aqui na Terra, entre setembro (que se foi) e este outono aceso a fósforo. Meu amigo, entre a décima quarta e a décima quinta cerveja, se divertindo com um comunista da Vila Madalena. A noite nunca acaba. Cerveja nas tripas, Bach em "A Whiter Shade of Pale", Vila-Matas tomando café com Bolaño enquanto falam de cidades fantasmas e da prosa de Alan Pauls. Insurgência. E aquela moça ao lado (belíssimas pernas) que lê uma biografia de Charles Chaplin. O caos é nossa mais bela natureza ― penso, enquanto aguardo o garção de costeleta trazer outra dose de cachaça. A garota de belíssimas pernas mexe com a libido pública. Chega outra cachaça, chega outro tiro no soneto e, claro!, a lista dos melhores mais fantásticos livros maravilhosos brasileiros do século XXI! Lembro das belíssimas pernas da moça. Lembro do fechecler. Lembro de Flaubert:

No que se segue uma citação em que Flaubert fala que preferiria ser um vigilante de colégio do que escrever quatro linhas por dinheiro.

"Meu pé de laranja mecânica" é o título do blog de Calixto. É uma metáfora para sua produção poética. É um título interessante pois traz a referência ao pé de laranja lima e por conseguinte a história do menino Zezé que, pobre, pobre, encontra no pé de laranja lima um punhado de aventuras que o ajudam a fugir da realidade tão cruel, e traz também a referência ao livro de Anthony Burgess e toda a brutalidade e repressão igualmente brutal que ele representa. Duas formas, podemos dizer, de anular o efeito do real em nós, seja por meio da magia, seja por meio da violência ― pois, a esse respeito, não posso deixar de ver na violência, sempre e de qualquer modo que ela seja veiculada, uma maneira grosseira de se simplificar a realidade em tudo o que ela tem a nos oferecer, seja de mais violência ainda, seja de alegria genuína.

O poema pode ser lido como uma espécie de profissão de fé. Arte poética. Coisas assim. Tem muito a nos dizer sobre a poesia de Calixto e a relação dúbia, arraigadamente dúbia que Calixto, um poeta de matriz baudelairiana, mantém com a realidade prosaica. Como dito por Michael Hamburger, quem for recensear as opiniões do poeta francês irá encontrar tanto um louvor da arte pela arte quanto uma repulsa, tanto um prazer em se chafurdar nos podres da vida quanto uma forma de recusa defensada na busca da Beleza. Baudelaire, diz Hamburger, não teria sido o grande poeta que foi se não tivesse tentado unir os contrários. Afinal de contas, não custa lembrar que para Baudelaire a beleza era composta tanto de uma parcela ordinária quanto de uma parcela eterna.

O que me referi sobre a maneira de Calixto compôr pode ser vista muito bem neste parágrafo. Ele faz giros bruscos, consegue abarcar áreas muito vastas de percepção lírica, mas isso sem dissolvê-las num todo meio diluído em fórmulas ou chavões simples. A ideia da terra como um inferno é comum, ainda mais com esse calor todo, mas o "ainda" muda muito a ordem das coisas e a referência bem demarcada ao setembro e ao outono (vide o uso do "este") faz com que aquela ideia que é usada em qualquer conversa de elevador seja posta em nossa frente. Além, claro, da forma como Calixto caracteriza um e outro, pois enquanto setembro se foi, e o "que se foi" está entre parêntesis, como que pra mostrar que ele realmente se foi ou como que pra nos lembrar que ele se foi; enquanto com setembro é desse jeito, com outono nós lemos que ele é aceso a fósforo, e uma metáfora assim consegue nos dar de forma inteligente uma ideia muito vívida do clima.

Pois quando digo que o método compositivo de Calixto consegue aquela espécie de milagre de ser vasto e ao mesmo tempo específico, é com base no fato de que 1) ele sempre se detém em coisas pequenas, detalhes importantes; 2) que esses detalhes são de muitos lugares distintos, são detalhes indo do lixo ao luxo; e 3) que suas metáforas costumam unir contrários num todo harmônico, digamos assim (o termo "harmônico", já o disse, é muito problemático na poesia de Calixto). O poeta começa falando do clima, vai para o bar, e, como vimos, o clima sai de uma constatação geral e vai até minúcias, coisa parecida acontecendo enquanto isso no bar (por exemplo o fato de que o poeta nota que seu amigo estava entre a décima quarta e a décima quinta cerveja: a perícia está tanto no fato dele ter se lembrado mais ou menos o número quanto no fato de ter se lembrado mais ou menos, isto é, ter dado uma margem de erro); depois disso já está trazendo uma plêiade de referências, está falando da mulher de belas pernas que lê a biografia de Chaplin, donde devemos destacar tanto o fato da referências às belíssimas pernas estar entre parêntesis, indicando uma observação que deve ser de todo modo notada (suponho que qualquer outro poeta não teria esse cuidado de colocar a referência entre parêntesis...), e ao fato dela estar lendo uma biografia de Chaplin, o que muda muito a situação, pois faz com que consigamos imaginá-la de maneira muito mais vívida e precisa: portanto, não são belas pernas quaisquer; são aquelas belas pernas, o que Calixto consegue não discorrendo a respeito das pernas, mas se valendo de um detalhe externo, a biografia de Chaplin, pra chegar lá. Aquela não é só uma mulher com belas pernas. Existem muitas mulheres com pernas belas. Mas que, num clima tão infernal, num bar, cercada de figuras ilustres (Bach, Vila-Matas, Bolaño), leia uma biografia de Chaplin... Parece algo até meio surreal justamente pelo fato de ser tão bem caracterizado, e faz com que o que tinha tudo pra redundar no lirismo ébrio simples, na inclusão de pedacinhos de sarjeta no poema a fim de dar a entender que o poeta de vez em quando sai de casa; faz com que o que tinha tudo pra redundar nisso, não redunde e, ao contrário, crie uma cena viva, uma cena que consiga ser, digamos assim, o correlato objetivo da emoção que o poeta teve: a saber, a emoção, a sensibilidade urbana que venho dizendo.

No caso do parágrafo que citei, há que se notar também o certo bailado que Calixto vai fazendo, indo de voltagens lírico-referenciais a voltagens prosaico-eróticas. Ele faz isso muito ao longo do livro, em especial num texto como Delirismo um poema sobre o tempo, que, pelo menos é a forte impressão que tive, faz com que personagens célebres (Baudelaire, Montezuma, Capitu, Barthes, Nicole Kidman etc) apareçam num espaço de tempo mais ou menos compassado (esse compasso depende também da carga dramática do poema, de modo que, perto do final, tais celebridades aparecem com maior frequência). O final do parágrafo que citei o demonstra bem. Ele começa a falar, de forma irônica e agressiva, do tiro no soneto (o soneto, como sempre, representando a poesia engomada) e da lista de melhores livros do século XXI (que também personifica a literatura engomada, a literatura-investimento-certo). Só que depois ele está se lembrando das belas pernas da moça e do fechecler (isto é, zíper). Por quê a mudança? Parece algo arbitrário, e em algumas passagens do livro de Calixto a coisa debanda por aí mesmo, uma referência prosaica que parece servir de contrapeso a uma referência propriamente literária, mas aqui o caso é o de, após lembrada a poesia engomada, lançarmos um olhar mais detido no que realmente importa: as belas pernas da moça na mesa ao lado. Daí a citação de Flaubert. Claro que uma citação assim é uma faca de dois gumes... Ela pode tanto debandar pro lado da alienação artística quanto pode debandar, como em Calixto, pra confiança de que a poesia praticada por ele, com firmes raízes na vida, é muito melhor que essa poesia vendida de sonetos e listas de melhores livros do século XXI, que, como sabemos, costuma se desvencilhar da vida propriamente dita (o "propriamente dito" em Calixto seria algo que pelo menos considerasse o vidro moído e não se detivesse só na seda). Esse certo bailado do poeta tem, pelo menos neste caso, uma lógica própria, e serve para realçar que sua poesia, apesar da citação de Flaubert, propícia a interpretações que podem ir na contramão do que o poeta pretende, é uma poesia que se encaminha para a vida como ela é.

Os nomes citados na quarta frase (Bach, Vila-Matas, Bolaño, Alan Pauls), mostram de maneira interessante como Calixto lida com suas citações. Gustavo Silveira Ribeiro, sólido leitor de poesia contemporânea, no texto Repertório de Incêndios (aqui), nota como o número de referências nos poemas de Calixto é alto. E realmente. Você tem coisa de tudo quanto é tipo, de Raimundo Correia a Blake. Só que aqui não se trata dos dois processos referenciais comuns do modernismo: a saber, o processo eliot-poundiano ou o processo mooriano, o primeiro pautado na lógica de se manter uma tradição viva ― Calixto possui uma relação dúbia e ouso dizer realista para com a tradição: no mesmo poema Meu pé de laranja mecânica, ele diz: "Recuso-me a pendurar cadáveres de crianças em pinheiros de plástico no meio da estúpida sala para sustentar uma tradição execrável." ― e de, com a referência, no geral advinda de uma citação, evocar todo o contexto e toda a força semântica do poema original, para além de um trabalho sonoro sobressalente (a citação em outras línguas funcionando como um apoio sonoro-intelectivo para aquelas formas de expressão que a língua natal não conseguiria chegar ou que, só graças ao apoio da língua estrangeira, chegaria); se com Eliot e Pound é assim, com Marianne Moore a citação é incorporada no todo do poema, perdendo a carga semântica original e aparecendo no poema como simplesmente uma frase que fora dita de forma tão memorável que, afinal de contas, só podia ser justamente citada dentro do texto, para além da rica profusão de citações que Moore faz, não só de trechos literários como também de sermões, enciclopédias, verbetes etc. Com Calixto não é bem por aí. Em Há uma literatura, o poeta nos diz, seguindo a forma anafórica "Há uma literatura para X", que, no frigir dos ovos, existe uma literatura pra todo mundo. Claro que aqui Calixto se vale do procedimento que me referi antes, isto é, especificar bem o que fala, chegando às minúcias, aos detalhes inesperados, como se, vendo a realidade no microscópio poético do autor, descobríssemos a existência de toda uma realidade até então ignorada, para além de toda uma educação do olhar que a poesia de Calixto é capaz de oferecer. É assim quando ele nos diz, catando exemplos a esmo, que "Há uma literatura para comunistas de Higienópolis" e "Há uma literatura para mulheres de buço fino". O resultado geral, construído de maneira habilidosa pois faz com que o poema não se torne cansativo e guarde seu interesse, malgrado ter sido repisado de muitas maneiras por muitos poetas no século passado e malgrado o fato de poder encontrar seus momentos limites, ou seja, momentos em que nem mesmo a engenhosidade e acuidade da percepção podem salvar a escrita de se tornar enfadonha (desenvolvendo um parêntesis mais longo, esse problema, que o autor realmente incorre em algumas passagens, no geral é contornado especialmente com um novo posicionamento lírico, isto é, o poeta, que até então se postava frente à experiência diretamente urbana, posta-se frente a outras formas de experiência, por exemplo onírica ou natural, tudo isso no geral sempre guiado pela experiência urbana que não só é múltipla o suficiente para conter praticamente todas as experiências possíveis ao sujeito contemporâneo, como também possibilita que o poeta mescle as várias experiências em repiques metafóricos); o resultado geral, voltando à vaca fria, é o de que há uma literatura pra todo mundo. Ou seja, estamos tratando de uma universalização de fato do fenômeno poético, conquista valiosa da modernidade, que desancou a poesia dos píncaros de temas reconhecidamente poéticos e elevados e a trouxe para a sarjeta.

Só que no caso de Calixto isso cria um ricochete interessante. Pois não só a poesia pode ser elaborada com base em materiais de muitos lugares. Ela é encontrada em muitos lugares. É como se o poeta tivesse lido com carinho e paixão seus poetas e artistas preferidos, como todo leitor de verdade o faz, e os levasse, interiorizados, em sua flanerie. Só que o flanêur de Calixto, nós já vimos, interioriza a experiência urbana, e essa experiência urbana ressoa em seus órgãos internos. Se ele vê uma coisa qualquer durante a flanerie, essa coisa qualquer, mesmo que distinta de qualquer relação urbana direta ou mais marcante, é comparada, encontra respaldos urbanos diretos em sua sensibilidade. Só que esse flanêur de Calixto é também um amante de poesia. E a poesia também ressoa em seus órgãos internos. A ressonância, sendo assim, cria uma espécie de música (uma música possível, pra me valer do título de um dos livros de Calixto e remetendo o leitor mais uma vez à leitura de Gustavo Silveira Ribeiro, que ressalta a musicalidade dos versos do poeta). A experiência urbana não só ecoa outras experiências urbanas internalizadas, como também experiências poéticas. Como se pode ver, é algo além de simplesmente encontrar na sarjeta um material de poesia. É aqui que se pode explicar o sistema de referências de Calixto, que funcionam como passagens, versos memoráveis que o poeta se lembra e que ressoam concomitantes à experiência urbana, muitas vezes mesclados à experiência urbana, como se não só a poesia afetasse a forma como o poeta experiencia a cidade, mas também o inverso. Os poetas e artistas que surgem em seus versos podem ser lidos de maneira análoga. Não quer dizer bem que Bach, Vila-Matas e Bolaño estavam literalmente lá no bar. Isso seria absurdo ― e ok que fosse, é uma leitura que, se considerarmos o final do poema, "O bacana no poema é que a gente pode fazer o que quiser.", encontra bom fundamento. Mas não creio que seja bem por aí com Calixto. A questão é que são nomes que calaram fundo em sua alma e que, portanto, passaram a fazer parte de seu cotidiano.

Assim, o sistema referencial de Calixto é externalizado porque foi um dia fortemente internalizado. Quer dizer, trocando em miúdos, que o poeta se impressionou tanto com as leituras que fez, que passou a encontrá-las nas várias coisas que encontrou na vida, na cidade. Sim, é algo com uma certa proximidade quixotesca. Não quer dizer que ele, à maneira de Moore, tenda a dissociar a referência de um contexto semântico originário. Pode ser, pode não ser. Com Bach, por exemplo, creio que é, ao passo que com Bolaño não. Posso tentar explicá-lo se citar outra frase do poema: "Baudelaire teria desejado ser alternadamente carrasco e vítima, para saber quais sensações se experimenta nos dois casos." É algo que dá uma concreção a Baudelaire, pois, ao invés de trazer o autor Baudelaire numa perspectiva semântica, sígnica, sei lá, traz a pessoa Baudelaire. Muitas vezes, aliás, Calixto trabalha mais com a biografia do poeta do que com sua obra ― e o exemplo mais dramático e impactante é Poesia. Ele dá vida a suas referências. Elas passam a conviver com o poeta graças ao processo que me referi. E é preciso notar que Calixto faz isso muito bem, pois seus textos propiciam o particular de maneira muito habilidosa, selecionando com precisão e sensibilidade o pormenor que vai ser incluso no texto, e pois ele traz as referências em situações liricamente plausíveis. Ou seja: dado o tom da passagem e dado em especial o que podemos inferir da leitura da obra destes artistas, é plausível que eles apareçam quando aparecem ou que façam o que no poema fazem. O caso da citação de Baudelaire mesmo. Ser carrasco e vítima alternadamente, e é aí que quero chegar, é algo que Baudelaire plausivelmente teria querido fazer. Não é algo gratuito. Não é algo que depende só de Calixto. Se o fosse, ele estaria ou internalizando a leitura de maneira capenga, ou então a externalizando de maneira arbitrária. Mas ele não está. As figuras que ressoam em sua sensibilidade são figuras que mantêm sua particularidade, e este talvez seja o grande segredo da alta voltagem que seu livro conseguiu alcançar. Ele não experiencia apenas cacos, fiapos insípidos. Tudo é vivo. As pernas da moça lendo a biografia de Chaplin são vivas. A conversa entre Bach, Vila-Matas e Bolaño é viva. Outono aceso a fósforo é vivo. Repito: mesmo que o procedimento de particularizar possa se tornar cansativo em algumas passagens, Calixto consegue sopesar de maneira inteligente e não só traz pormenores inventivos, detalhes realmente muito bem notados, como também os alterna com momentos mais gerais, com extensões de um pormenor posto ao lado de outro (mais ou menos como a ideia da pele da vida, seda e vidro moído, foi estendida ao longo da frase que analisamos) e com metáforas unificadoras.

É um procedimento basicamente drummondiano, e digo tendo em vista especialmente o Drummond de Rosa do Povo, com a diferença de que a internalização que Calixto opera não é antevista em todos os momentos da poesia de Drummond. Em Drummond é comum que o processo descambe no exemplificativo, e que o número de pormenores que ele traga a seu texto gire à maneira de um adereço ou coisa do gênero. Isso lhe ajuda, claro, a criar uma concreção urbana interessante e sem dúvidas necessária para o momento que vivia, como se essa profusão de pormenores fosse capaz de reconstruir liricamente a cidade. Mas Calixto também consegue o mesmo com vias certo modo distintas, embora, repito, análogas.



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Sei que eu deveria ter citado mais trechos do livro, ainda mais tendo em vista que, ao que me consta, o livro se encontra esgotado. Considerando que a publicação foi por conta do autor, tinha mesmo que esgotar. Seria maravilhoso que fosse reeditado, mas entendo também que vender a primeira tiragem é uma coisa; vender a segunda é outra totalmente diferente. A primeira conta com os amigos, parentes, essas coisas. A segunda...

Mas este meu texto, que, embora tenha um fim crítico, isto é, valorar o texto de Calixto ― e acho que já deu pra perceber que minha valoração é a melhor possível, pois realmente considero um grande livro, um dos melhores dos últimos anos ―, este meu texto tá meio estropiado, talvez meio desconexo, longe de qualquer arregimentação mais firme. Peço vênia. Não tenho andado num estado de espírito dos melhores e mais constantes para amarrar a coisa como ela mereceria. Espero que na próxima eu possa comentar com mais tardar pelo menos um poema do livro, nem que seja um menorzinho (penso em especial em Santa Cecília By Night), a fim de que o leitor consiga ter uma ideia mais palpável de aonde quero chegar e do porquê valoro tão bem o livro. (Ou então comentar um pouco sobre o título, ou sobre a curiosa construção do eu lírico dos poemas.) Por hora, o que deu pra fazer foi isso daqui. Dentro de uma linha de força eminentemente urbana em nossa poesia, que eu localizaria como próxima de um Mário de Andrade de Meditação sobre o Rio Tietê, de um Ferreira Gullar de Poema Sujo, de alguns dos marginais (penso em especial em Paulo Leminski, que conhecia Curitiba com a palma de sua pica) ou, em âmbito mais recente, nomes como Diego Moraes, Bruno Brum, Pedro Tostes; dentro de uma linha de força assim, o novo livro de Calixto consegue se sustentar muitíssimo bem.