Qual o âmbito da literatura contemporânea?
O âmbito de atuação da crítica é engraçado.
É engraçado pelo menos se considerarmos o modelão da crítica, que seria o de um texto que fala de outro texto, especificamente de um livro ou de um punhadinho bem determinado, e que tem como fim a valoração, o dizer se é bom ou se é ruim. Digo o modelão pois posturas críticas, ou seja, posturas valorativas articuladas, podem existir dentro de empreendimentos maiores e em graus diversos, indo desde o camarada que pensa um cânone até o camarada que precisa limitar seu campo de pesquisa.
Mas sobre o tal modelão. Ele é engraçado. Engraçado pois atua na ponta da lança e dá a entender que, fora dela, a coisa meio que desanda. Desanda, ou seja, fora do que se considera como sendo essa ponta da lança, a coisa é dada como velha e, portanto, imprópria. Pode continuar a ser procurada, mas entre isto e o ser oferecida depois do tempo de colheita, digamos assim, há uma boa diferença. Pra ser bem claro: é difícil você pensar numa crítica, nesse modelão, que seja em cima de um texto do passado. A crítica costuma falar sobre textos que acabaram de sair do forno. Se vier a ser o caso de um texto passado, aí ou estamos falando de uma reedição, de uma republicação, de uma nova tradução, ou então estamos falando de uma visão sinóptica do conjunto da obra do autor ou até mesmo dessa obra, não tão novinha em folha assim, graças a uma data comemorativa ou coisa do tipo (por exemplo o cinquentenário de lançamento).
Claro que existe uma certa zona meio nebulosa a respeito, e que é "calculada" de acordo com o que a comunidade de leitores achar que vale. Seria o caso de um poeta que publica um livro agora e outro quase que depois (observe-se a vagueza desse "quase que depois"). O limite que separa o pão quentinho do pão amanhecido vai depender do que essa comunidade julga como sendo "próximo", o que, naturalmente e por sua vez, depende de seu relógio interior não só em relação a eventos de uma maneira geral como também a eventos livrescos. Numa sociedade como a nossa, instantânea, uma coisa e outra necessitam ser sopesadas, o que diga-se de passagem inclusive é feito por editores conscientes. Pode parecer que o que estou dizendo é algo que não ocorre muito se pensarmos em casos de artistas normais, que dão um tempinho natural entre um livro e outro seja por ser seu jeito de escrita, seja por peso na consciência ou porque não conseguem engatar um livro depois do outro; mas, se considerarmos os casos de autores que são sucesso de vendas, ou então artistas que possuem produções muito parecidas (e a comparação com a escala industrial é inevitável), esse tipo de noção é muito importante. Não quero dizer exatamente que no nosso caso a tolerância temporal seja igual à das notícias, onde, uma semana depois ou mesmo algumas horas depois (de novo vai depender de que tipo de notícia estamos tratando), o negócio já virou velharia. Não dá pra você ter uma noção muito exata de qual seria exatamente esse limite do "próximo". Não dá pra ter. Ele não funciona com um sistema de travas e alarmes.
Ao falarmos sobre "contemporâneo", por exemplo, não há nem de longe, e também nem de longe deveria haver, um consenso sobre qual seria o âmbito de atuação desse "contemporâneo". Há quem jogue na cumbuca do contemporâneo obras que foram feitas da segunda metade do século XX pra cá. De minha parte, gosto de pensar mais ou menos nisso: que, considerando um tempo de maturidade, algo como uns 20, 25 anos (pois é nesse tempo médio que alguém deixa de lado a juventude e abraça as necessidade da maturidade), esse seria o tempo do que podemos chamar de contemporâneo, visto que o contemporâneo se finca no presente e sai arrastando. Podemos, claro, contradizer minha impressão no sentido de que toda pessoa tem seu senso de contemporaneidade, coincidente, por certo, com sua trajetória de vida (talvez não tão certo, se considerarmos nosso relacionamento íntimo e afetuoso com outras pessoas, por exemplo mais velhas, ou nossa inclusão em territórios culturais). Mas chegaria uma hora em que precisaríamos estabelecer um parâmetro geral e não tão dependente de nossas próprias idiossincrasias para o que seria essa contemporaneidade. O que disse desses 20, 25 anos é considerando um tempo suficiente ou pelo menos razoável para que o camarada consiga atingir uma maturidade intelectual e/ou artística.
Pois, acerca do que disse do contemporâneo se fincar no presente e sair arrastando, isso quer dizer, noutros termos, que ele não é como um período histórico que podemos demarcar qual seria o início e o término, mal e mal que seja. A literatura contemporânea, o contemporâneo sempre vai existir, ou, até pra ser mais exato, ele sempre está sendo. Não se pode demarcar seu início ou término pois ele é uma categoria da própria percepção temporal. O contemporâneo é um posicionamento relacional. É como se olhássemos para o horizonte. Ou, para me valer de outra comparação que julgo elucidativa, ele é como a cauda de um cometa. Um cometa no qual estivéssemos montados e que passasse pelos fatos, pouco a pouco tornando-os históricos. Esse cometa, noutras palavras, vai se afastando e se imiscuindo ao passado. Só que, claro, o passado é todo ele influxos no presente, e a tal ponto que o passado também é contemporâneo do presente e o próprio presente permite leituras distintas do passado (dizendo com Walter Benjamin, alguns aspectos do passado só podem ser lidos em determinados momentos históricos). Mas não quero chegar muito nessa ontologia do contemporâneo, no que teria, entre outros, que citar Agamben. Onde quero chegar é que é nesse núcleo do cometa do contemporâneo que a crítica se instala. Gosto de considerar que esse núcleo do contemporâneo possui um alcance de 5 anos (o que leva em consideração a vida útil de alguns dos produtos tecnológicos ou tecnologias mais duráveis de nossa sociedade). Posto que a comunidade de leitores, ou seja, o que ela espera ― e uma forma boa de ilustrar isso seria você imaginar o leitor abrindo um jornal: ele não espera e certamente não gostaria de encontrar notícias de cinco anos atrás ―, aí a coisa é muito menor, e esse núcleo se reduziria a algo com no máximo 2 anos.
Parece que escapei pela tangente. Dizia que a crítica possui um âmbito de atuação engraçado, e esse "engraçado" que me referi é o ter como velho ou inadequado algo que talvez nem seja tão velho e inadequado assim. Por exemplo ter como velho, para uma concepção jornalística do que é o contemporâneo, um livro de 6 anos atrás.
O negócio é que mesmo que cheguemos à conclusão de que a crítica é um empreendimento vão, menor ou simplesmente um joguete nos mandos e desmandos do campo editorial e toda sua lógica de poder, o fato é que a crítica é demandada pelos leitores. Quem quiser fazer o esforço de pensar na crítica fora do mecanismo econômico e de poder do campo literário, pode fazer. Mas a base da demanda crítica, além desse posicionamento estratégico, reside também no simples fato de que nós gostamos de trocar impressões sobre uma leitura, e, nessas impressões, nós também gostamos de valorar, o que é, no fundo, uma forma de dizer que alguns livros são importantes para nós e (a partir daqui as coisas ficam bem mais nebulosas) para nossa cultura. A crítica pode até vestir aquela capa judiciária meio abobalhada; mas, enquanto ela guardar pelo menos um pouco de sinceridade, humildade e transigência dentro de si, ela continuará a ser um pontapé nas discussões e uma opinião que valerá a pena parar pra escutar. Pois afinal, tirando um pouco a carga de uma visão tão pessimista do mecanismo do campo literário, ela ocupa um papel importante não só na vendagem de livros ou mesmo na documentação do gosto, mas também na análise da obra. Não é que, chegado um instante, nós tenhamos de deixar de lado o que a crítica da época ou mesmo a crítica de então fala acerca de um livro em prol de análises mais sérias. Dizer que com largas esferas da atividade crítica é assim que se procede é um tanto quanto incompleto, visto que com largas esferas da própria atividade científica o mesmo se dá. Em seus fundamentos, crítica e ciência, caso alguém realmente insista em vê-las como antitéticas, são idênticas: ambas pressupõem uma sólida interpretação da obra artística.
Onde quero chegar é que o crítico se vê ante a necessidade de como que chegar primeiro que todo mundo ― e de fato existem um por-trás-do-pano que dá essa primazia ao crítico ― e comentar o que acabou de nascer. Considerando a evidente dificuldade de uma tarefa assim, especialmente se você para pra pensar no que significa esse afã de pular no olho da tormenta sem o porto-seguro de leituras e análises anteriores, o crítico é meio que um louco de pedra, pelo menos se ele realmente pretender enfrentar as agruras de sua atividade da maneira mais ampla possível. (Se bem que, claro, independente de existirem ou não leituras anteriores, boas ou más, o bom leitor sempre se encaminhará para o olho da tormenta. A diferença é que o crítico faz isso mais cedo.)
Naturalmente, existem variantes. Creio ter deixado bem claro que o que se entende por proximidade é algo em absoluto maleável, e uma boa maneira de se observá-lo é se notarmos que o que se diz de uma comunidade de leitores é sempre uma simplificação, ou seja, é mais realista falarmos de nichos de leitores. Cada um desses nichos possui lá sua percepção, para não dizer no fato de que possuem lá seus veículos de informação, seus métodos de análise e seus propósitos que mudam sua relação temporal. Se o imediatismo requerido pelos veículos tradicionais de crítica é maior, esse mesmo imediatismo se em relação ao ambiente acadêmico pode mudar. Simplificadamente: dependendo do nicho que estamos falando, por exemplo o acadêmico e o jornalístico, o que se entende pelo raio de alcance do cometa do contemporâneo muda. Ouso dizer que o mesmo se estivermos falando de, por exemplo, um livro inteiro, um conjunto de textos ou um texto separado. O primeiro caso sendo um modelo paradigmático (isto é, uma obra), temos que no segundo nós podemos perfeitamente ter o caso de que, do conjunto de textos, só um ou parte seria realmente recente, os outros podendo ser até esgotados e quem sabe inacessíveis, enquanto no segundo caso, especialmente graças à facilidade de acesso e de reprodução, nós podemos ter um horizonte um pouco maior. Seria, para ficarmos num exemplo, criticar um poema de um livro de quinze anos atrás, quando, de lá pra cá, o poeta já publicou, vamos supôr, outros três. Uma vez que é plausível que se reproduza o poema ao lado do texto crítico, ou que, mesmo não sendo possível, seja muito mais fácil pro leitor correr atrás, então, para os leitores da crítica, aquele senso de estar diante de um produto certo modo datado não será tão gritante quanto no caso de esse mesmo crítico ter porventura resolvido criticar um livro de quinze anos atrás. Simplificadamente: um conjunto de textos, por exemplo um livro, tende a ser afetado temporalmente de maneira mais intensa em relação à atividade crítica do que um texto em separado, haja vista que um texto em separado pode dar ensejo à sua publicação conjunta ao texto crítico, o que poderia aumentar a familiaridade e mitigar (claro que dentro de certos limites) o efeito do distanciamento temporal nesse mesmo texto.
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Suponhamos um escritor qualquer. Até mês passado ele estava na ativa. Até que, de repente... Infelicidade. Bateu as botas. Ele continua sendo nosso contemporâneo?
Disse anteriormente que o passado palpita vivo no presente. Mas aqui nós corremos o risco de cair de novo numa faceta da questão que, como disse no início, não me interessa: a ontologia do contemporâneo. A ideia é simples: há uma tendência forte de que esse autor recém-falecido deixe de ser nosso contemporâneo, como se ele fosse tragado, sugado de maneira muito forte pelo passado até o instante em que ele voltasse à sua, digamos assim, fase áurea (pressupondo, claro, que ela já tenha passado). Afinal de contas, é um fenômeno muito observável o de escritores que com o passar das décadas e a visita cada vez mais próxima da indesejada das gentes, que passam a operar uma queda qualitativa significativa em sua produção, como se continuassem a testar instrumentos que funcionaram há anos atrás mas que hoje respiram graças aos aparelhos da repetição e do respeito. É com base neste fenômeno que eu digo que o passado o tragara: na verdade, se mesmo vivos muitos de nós tendemos a, uma vez chegada a velhice, nos prendermos ao passado e ali vivermos, com os mortos então nem se fala.
Mas a questão não é nem essa. Um morto é um morto; matéria em decomposição. Pode ser que durante mais alguns meses ou anos se passe a falar de sua presença, de modo que ela ainda seria nossa contemporânea, no sentido de ser noticiada, veiculada, posta na boca do povo. Mas chega uma hora em que a coisa cessa, e, mesmo que o autor ainda seja discutido, ele afinal de contas está morto e já não causa tanto rebuliço. Mas falo um rebuliço não necessariamente crítico; me refiro ao rebuliço de que seu nome seja posto à baila num âmbito produtor, ou seja, coisas que ele produziu e que ficaram guardadas na gaveta, ou então coisas que escreveu e estavam fora de circulação, voltam a cair na jogada. É como se, indiretamente, ele ainda estivesse produzindo. Indiretamente pois, é claro, não está, mas também pois ele só o está produzindo graças aos braços vivos de outras pessoas.
É aqui que a meu ver entra a distinção. Uma vez mortos, a produção inédita passa a ser feita de maneira indireta: algo que o artista deixou inédito e que alguém foi lá e resolveu publicar. Ou seja: pé um esforço que depende basicamente desse alguém-ir-lá. Com os vivos, ela é sempre direta, mesmo porque um artista vivo é sempre um artista inédito. Daí o fato de que, uma vez morto, mesmo que apenas há um mês atrás, esse artista tende a ser apagado do âmbito do alcance do contemporâneo, o que não quer dizer em absoluto algo bom ou algo ruim, mas simplesmente algo relacionado à sua consequente incapacidade de manter um status de inédito, o que implica dizer sua incapacidade de acompanhar a passagem do cometa do contemporâneo.