Acerca da obra de Nina Rizzi.
I
Este não é um texto crítico. Sempre que posso repito: para mim, aquele texto que não tem como um de seus fins a valoração não pode ser chamado de crítico. O que você lerá está mais para um ensaio, uma análise. Naturalmente, não quer dizer que eu não tenha valorado em algum momento ― na verdade, todo leitor, em algum momento, tomará posicionamentos valorativos durante uma leitura.
Ao falarmos de literatura contemporânea, é peculiarmente perigoso que se escreva, seja lá o quê, seja lá que teor contenha, e não se preocupe em articular-se criticamente, o que envolve, de forma obrigatória, uma articulação argumentativa ― ou seja, explicar as razões de se julgar boa ou ruim a obra ou setores da obra. É um risco que corro, e vou até um pouco além: é também um desperdício de minha parte, uma vez que a atividade crítica, se ligada à literatura contemporânea, envolve um manejo, uma sinuosidade argumentativa salutar. É quando, pra ser sucinto, você vê se o cara é bom mesmo ou quá. Daí que a impressão do leitor mais desavisado de que julgo a obra de Rizzi “canonizada” não está de todo errada. Consinto que ela possui suas bases. Mas devo dizer que não vai direto ao assunto.
Primeiro pois mesmo que me iludisse com esse tipo de frase de efeito, não só seria cedo pra fazê-lo como a coisa não depende de mim nem de ninguém ― a não ser que por “canonizado” estejamos falando de enquadrar num cânone que eu crio, baseado em fundamentos estéticos e argumentos críticos que façam dele uma estrutura inteligente e não um catar-feijão próprio das desavenças dominicais. Segundo pois não preciso, ao escrever um texto crítico, necessariamente querer enquadrar um autor numa concepção restritiva e no geral esfumaçada de cânone. Posso estar falando desse autor com base em modelos, narrativas e parâmetros de análise estética que batem de frente com os que norteiam uma comunidade de leitores ou os modelos canônicos hegemônicos. Terceiro pois preciso não colocar o carro na frente dos bois, ou seja, devo me lembrar que estou falando de um work in progress. A rigor, toda obra está na condição de um work in progress, se nos lembrarmos, com Gadamer, que o processo hermenêutico não se exaure na fusão de horizontes: ele é sempre um processo de abertura de horizontes também. Mas, com alguns passos a mais, a obra de meu contemporâneo é uma obra literalmente aberta: não sei o que pode vir depois. E mais: tenho de ter a consciência de que estou falando de um autor que precisa ser valorado de acordo com parâmetros “proporcionais” que venham de encontro às propostas que, de acordo com o que enxergo e argumento, ele se filia. Isto pode parecer a princípio condescendência, mas alerto o leitor de que é, na verdade, simplesmente um resultado do procedimento básico que subjaz a crítica, ou seja, a interpretação, ou seja, um salto mortal rumo à verdade da obra de arte: e é por isso que usei “proporcionais” entre aspas, posto que aqui não se trata de uma comparação que reduza grandezas e como que arranje um cantinho no aperto dos Clássicos, mas, como dito, de uma interpretação que perca uma perspectiva olímpica em prol de uma perspectiva terrestre e a mais microscópica possível. Não é, portanto, tratar a atividade crítica como a cunhagem de uma lista com a qual bato em cima dos autores que critico à maneira de um mata-moscas. Partir do princípio que posso comparar uma obra com qualquer outra, sob pena de que, caso ela não se sustente, ela no final das contas não é tão boa assim; partir desse princípio é uma simplificação grosseira do fenômeno literário.
Digo que é uma simplificação grosseira pois parto do princípio de que a realidade literária é heterogênea, e que, sempre que se pretende comparar uma obra “com qualquer outra”, nunca se compara de fato com qualquer outra, mas com algumas que são tidas como exemplares pela comunidade de leitores ou pelo crítico em si ― o que por conseguinte envolve a ideia de uma espécie de consenso ou acordo tácito, pois tanto em um caso como em outro essa tal tradição é evocada de uma maneira estática e, repito, simplificada, de modo que o crítico que não se preocupa em articulá-la, isto é, explicitar de que maneira essa tradição reflete ou engole a obra em questão, esse crítico só pode ser então um espantalho. Pois a esse respeito, mencionei que a comunidade de leitores é norteada por alguns parâmetros, posturas, modelos etc. Antes de mais nada, devo notar que falar numa comunidade de leitores no singular é sempre uma forma frágil de tratar o assunto. Essa tal comunidade de leitores é feita de vários nichos, cada qual com suas lógicas particulares, embora, grosso modo, com seus parentescos e com suas linhas mestras de domínio e concepção: ou seja, se contrapormos ao nicho elitista da comunidade de leitores o nicho de uma literatura popular (quem sabe os dois extremos da comunidade), notamos que esse nicho elitista, graças à sua posição privilegiada e certo modo dominante dentro da comunidade de leitores, tem seus influxos, pressupostos e posturas lançados sobre o nicho de uma literatura popular (na prática, sobre todos os outros nichos), de maneira que este último nicho como que se guia e é relegado a permanecer à sombra do nicho elitista (e é também por isso que podemos falar, de forma julgo relativamente segura, de uma comunidade de leitores no singular).
Podemos pensar que a coisa não é bem por aí, e que esse nicho popular possui uma vendagem expressiva que cerceia o espaço editorial para as obras de um nicho elitista. Aqui faço notar antes de mais nada que, quando falo de um nicho elitista, não falo necessariamente de um nicho composto apenas de boas obras: na verdade, uma das coisas que quero dizer, calcado na aporia fundamental de que o fenômeno literário é heterogêneo, é de que as boas obras não se localizam apenas no nicho elitista, e que, considerando dinâmicas distintas dos pressupostos de funcionamento deste nicho elitista, existem obras boas em outros nichos também. Somos coagidos a pensar que não pois, como acabo de dizer, esse nicho elitista faz com que os outros nichos se movimentem à sua sombra... E faço notar também que dizê-lo é uma meia-verdade pois se considera apenas a vendagem imediata, digamos assim ― ou seja, os best-sellers e não os long-sellers. Mas, de todo modo, como estou pensando a faceta crítica e, portanto, valorativa, o gosto da comunidade de leitores, aí sim podemos ver de maneira mais clara que tal é puramente o que se vê quando observamos o que a crítica formula a respeito deste nicho popular, quase sempre de forma discriminatória, e é o que podemos observar no discurso feito pelos integrantes deste nicho popular a respeito de si mesmos, quase sempre na defensiva e, não raro, receosos de estarem fazendo algo de errado.
Daqui, claro, não se segue que todo o nicho elitista é opressor. Em muitos sentidos, ele se compõe de uma apropriação seguida de mecanismos de exclusão. Apropriação não só de obras ou de pontos de mercado, mas também de resultados críticos que são usados como forma de fechar as comportas e encastelar o que deveria ser de livre acesso a todos, coisa, é claro, que ele não consegue sozinho, valendo-se sempre de vias sociais de opressão e da ostracização de tudo aquilo que saia das fronteiras que ele delimita (o que não implica necessariamente na ostracização só de best-sellers, digamos assim: pense-se, por exemplo, no caso das vanguardas). Dessarte, se digo que é ligando-se a estruturas sociais de domínio que esse nicho elitista realça sua faceta opressora, então, correlacionando o que disse sobre as posturas adotadas por esse nicho incidirem sobre toda a comunidade de leitores, não podemos chegar à conclusão de que esta comunidade ser norteada por alguns parâmetros, posturas, modelos etc é decorrência de posicionamentos somente dela enquanto coisa fechada e autorregulada. Isto seria tão só uma meia-verdade. Mais exatamente, estamos diante de uma dinâmica de processos que faz com que nós, leitores e, portanto, membros dessa comunidade de leitores, percebamos alguns nomes como sendo uma espécie de foco de valor, como sendo uma espécie de parâmetro valorativo, ou, pra resumir num só termo, exemplares. Só que tal não se dá apartado da realidade fática do campo literário, onde dinâmicas sociais, de mercado (em especial capital simbólico), de poder, de gênero, de raça etc entram em jogo.
Assim, esses resultados estabelecidos pela comunidade de leitores são extremamente vagos, guardam o ranço da arbitrariedade e não resistem a uma análise mais detida. Parecem ser concretos pois a comunidade de leitores se organiza de modo a legitimá-los, formando como que uma nuvem que nuvem enubla o céu e dá a impressão de inquestionabilidade. Todavia, quando tentamos articular quais seriam tais pressupostos qualitativos e quais seriam tais autores exemplares, aí então nos vemos diante do fato de que isto só pode ser feito de maneira restrita e muito insatisfatória, no geral calcando-se em argumentos que terminam no vazio de um acordo tácito e na necessidade de que realmente se deságue na crítica e não no acatamento de ordens tidas como “superiores”. E digo isso até mesmo se considerarmos simplesmente que são parâmetros resultantes de “tudo” o que a crítica disse até então (o que é uma meia verdade pois, como disse, existem outras dinâmicas em jogo, e entre aspas pois, de novo, jamais se consideraria a crítica toda, mas sim alguma crítica), visto que a esse respeito, é apenas e de novo sob a via da simplificação que poderíamos dizer que um autor é clássico porque existe “consenso crítico”: aqui se ignora a pletora de argumentos que coexistem a respeito de certo autor, bem como os desníveis críticos que sua obra possa ter sofrido com o correr dos anos ou a mudança geográfica.
Dado este esboço do fenômeno literário, vê-se porque a crítica enquanto argumentação é tão importante. Ela rompe o acordo tácito. Ela pega o que é dado como certo e quer fornecer um porquê. Não quer dizer que ela vá conseguir provar algo; ela pode apresentar um argumento forte, mas jamais uma prova. Mas pelo simples fato dela argumentar, nem que seja pra no final das contas reafirmar o que se suspeitava como sendo evidente (o céu nublado), é que ela rompe a lógica esterilizante das verdades dadas: a partir de então, poderemos partir de argumentos e não de um grilhão e um fantasma. Vislumbra-se também porque a crítica é tão necessária no âmbito da literatura contemporânea, visto que, uma vez que a literatura contemporânea não se infiltrou, não se mesclou àquele céu nublado que me referi antes, então as obras contemporâneas que tendem a receber uma atenção maior são aquelas que já nascem próximas das estâncias de legitimação da situação literária do momento: por exemplo, obras próximas de círculos literários tais e quais, obras que ganhem o aval de artistas e críticos consolidados, que refratem em si certas estéticas, que sejam produzidas em determinados espaços geográficos, em determinadas casas editoriais, que sejam veiculadas em determinados jornais, que ganhem certos concursos, que recebam certos prêmios etc etc. É quando entra a crítica, a verdadeira crítica (e não o simulacro de colunismo social), que, argumentando, explicitando, articulando, não só rompe, como demonstra para o leitor a artificialidade naquele céu nublado e derruba o castelinho de cartas.
Mas, apesar dos pesares, não faço crítica. Fosse o caso de fazê-lo e então buscaria, você pode ter certeza, discorrer a respeito do que me desagrada na obra da autora, o que não causa espanto algum: todo autor possui seus desníveis, e para considerá-lo bom eu não preciso creditar bom tudo o que ele tenha escrito. Se falo da autora pra vocês é porque quero crer, e mais ou menos argumentar, que se trata de uma poesia exemplar no cenário nacional. Exemplar tanto pelo resultado estético a que chegou (embora isso, como dito, eu não argumente sobre), quanto pelo fato de conseguir unir subjetividade a análise de reentrâncias sociais e históricas (isso sim eu argumentarei sobre), algo que enxergo na poética de um estrato até considerável de autores contemporâneos (por exemplo Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto, William Zeytoulian, Guilherme Gontijo Flores, Adriano Scandolara, Eduardo Sterzi, Ricardo Aleixo, os poemas mais recentes de Rubens Akira Kuana). E como tal reentrância é algo que tem ocupado minha mente de uns tempos pra cá...
Ao falarmos de literatura contemporânea, é peculiarmente perigoso que se escreva, seja lá o quê, seja lá que teor contenha, e não se preocupe em articular-se criticamente, o que envolve, de forma obrigatória, uma articulação argumentativa ― ou seja, explicar as razões de se julgar boa ou ruim a obra ou setores da obra. É um risco que corro, e vou até um pouco além: é também um desperdício de minha parte, uma vez que a atividade crítica, se ligada à literatura contemporânea, envolve um manejo, uma sinuosidade argumentativa salutar. É quando, pra ser sucinto, você vê se o cara é bom mesmo ou quá. Daí que a impressão do leitor mais desavisado de que julgo a obra de Rizzi “canonizada” não está de todo errada. Consinto que ela possui suas bases. Mas devo dizer que não vai direto ao assunto.
Primeiro pois mesmo que me iludisse com esse tipo de frase de efeito, não só seria cedo pra fazê-lo como a coisa não depende de mim nem de ninguém ― a não ser que por “canonizado” estejamos falando de enquadrar num cânone que eu crio, baseado em fundamentos estéticos e argumentos críticos que façam dele uma estrutura inteligente e não um catar-feijão próprio das desavenças dominicais. Segundo pois não preciso, ao escrever um texto crítico, necessariamente querer enquadrar um autor numa concepção restritiva e no geral esfumaçada de cânone. Posso estar falando desse autor com base em modelos, narrativas e parâmetros de análise estética que batem de frente com os que norteiam uma comunidade de leitores ou os modelos canônicos hegemônicos. Terceiro pois preciso não colocar o carro na frente dos bois, ou seja, devo me lembrar que estou falando de um work in progress. A rigor, toda obra está na condição de um work in progress, se nos lembrarmos, com Gadamer, que o processo hermenêutico não se exaure na fusão de horizontes: ele é sempre um processo de abertura de horizontes também. Mas, com alguns passos a mais, a obra de meu contemporâneo é uma obra literalmente aberta: não sei o que pode vir depois. E mais: tenho de ter a consciência de que estou falando de um autor que precisa ser valorado de acordo com parâmetros “proporcionais” que venham de encontro às propostas que, de acordo com o que enxergo e argumento, ele se filia. Isto pode parecer a princípio condescendência, mas alerto o leitor de que é, na verdade, simplesmente um resultado do procedimento básico que subjaz a crítica, ou seja, a interpretação, ou seja, um salto mortal rumo à verdade da obra de arte: e é por isso que usei “proporcionais” entre aspas, posto que aqui não se trata de uma comparação que reduza grandezas e como que arranje um cantinho no aperto dos Clássicos, mas, como dito, de uma interpretação que perca uma perspectiva olímpica em prol de uma perspectiva terrestre e a mais microscópica possível. Não é, portanto, tratar a atividade crítica como a cunhagem de uma lista com a qual bato em cima dos autores que critico à maneira de um mata-moscas. Partir do princípio que posso comparar uma obra com qualquer outra, sob pena de que, caso ela não se sustente, ela no final das contas não é tão boa assim; partir desse princípio é uma simplificação grosseira do fenômeno literário.
Digo que é uma simplificação grosseira pois parto do princípio de que a realidade literária é heterogênea, e que, sempre que se pretende comparar uma obra “com qualquer outra”, nunca se compara de fato com qualquer outra, mas com algumas que são tidas como exemplares pela comunidade de leitores ou pelo crítico em si ― o que por conseguinte envolve a ideia de uma espécie de consenso ou acordo tácito, pois tanto em um caso como em outro essa tal tradição é evocada de uma maneira estática e, repito, simplificada, de modo que o crítico que não se preocupa em articulá-la, isto é, explicitar de que maneira essa tradição reflete ou engole a obra em questão, esse crítico só pode ser então um espantalho. Pois a esse respeito, mencionei que a comunidade de leitores é norteada por alguns parâmetros, posturas, modelos etc. Antes de mais nada, devo notar que falar numa comunidade de leitores no singular é sempre uma forma frágil de tratar o assunto. Essa tal comunidade de leitores é feita de vários nichos, cada qual com suas lógicas particulares, embora, grosso modo, com seus parentescos e com suas linhas mestras de domínio e concepção: ou seja, se contrapormos ao nicho elitista da comunidade de leitores o nicho de uma literatura popular (quem sabe os dois extremos da comunidade), notamos que esse nicho elitista, graças à sua posição privilegiada e certo modo dominante dentro da comunidade de leitores, tem seus influxos, pressupostos e posturas lançados sobre o nicho de uma literatura popular (na prática, sobre todos os outros nichos), de maneira que este último nicho como que se guia e é relegado a permanecer à sombra do nicho elitista (e é também por isso que podemos falar, de forma julgo relativamente segura, de uma comunidade de leitores no singular).
Podemos pensar que a coisa não é bem por aí, e que esse nicho popular possui uma vendagem expressiva que cerceia o espaço editorial para as obras de um nicho elitista. Aqui faço notar antes de mais nada que, quando falo de um nicho elitista, não falo necessariamente de um nicho composto apenas de boas obras: na verdade, uma das coisas que quero dizer, calcado na aporia fundamental de que o fenômeno literário é heterogêneo, é de que as boas obras não se localizam apenas no nicho elitista, e que, considerando dinâmicas distintas dos pressupostos de funcionamento deste nicho elitista, existem obras boas em outros nichos também. Somos coagidos a pensar que não pois, como acabo de dizer, esse nicho elitista faz com que os outros nichos se movimentem à sua sombra... E faço notar também que dizê-lo é uma meia-verdade pois se considera apenas a vendagem imediata, digamos assim ― ou seja, os best-sellers e não os long-sellers. Mas, de todo modo, como estou pensando a faceta crítica e, portanto, valorativa, o gosto da comunidade de leitores, aí sim podemos ver de maneira mais clara que tal é puramente o que se vê quando observamos o que a crítica formula a respeito deste nicho popular, quase sempre de forma discriminatória, e é o que podemos observar no discurso feito pelos integrantes deste nicho popular a respeito de si mesmos, quase sempre na defensiva e, não raro, receosos de estarem fazendo algo de errado.
Daqui, claro, não se segue que todo o nicho elitista é opressor. Em muitos sentidos, ele se compõe de uma apropriação seguida de mecanismos de exclusão. Apropriação não só de obras ou de pontos de mercado, mas também de resultados críticos que são usados como forma de fechar as comportas e encastelar o que deveria ser de livre acesso a todos, coisa, é claro, que ele não consegue sozinho, valendo-se sempre de vias sociais de opressão e da ostracização de tudo aquilo que saia das fronteiras que ele delimita (o que não implica necessariamente na ostracização só de best-sellers, digamos assim: pense-se, por exemplo, no caso das vanguardas). Dessarte, se digo que é ligando-se a estruturas sociais de domínio que esse nicho elitista realça sua faceta opressora, então, correlacionando o que disse sobre as posturas adotadas por esse nicho incidirem sobre toda a comunidade de leitores, não podemos chegar à conclusão de que esta comunidade ser norteada por alguns parâmetros, posturas, modelos etc é decorrência de posicionamentos somente dela enquanto coisa fechada e autorregulada. Isto seria tão só uma meia-verdade. Mais exatamente, estamos diante de uma dinâmica de processos que faz com que nós, leitores e, portanto, membros dessa comunidade de leitores, percebamos alguns nomes como sendo uma espécie de foco de valor, como sendo uma espécie de parâmetro valorativo, ou, pra resumir num só termo, exemplares. Só que tal não se dá apartado da realidade fática do campo literário, onde dinâmicas sociais, de mercado (em especial capital simbólico), de poder, de gênero, de raça etc entram em jogo.
Assim, esses resultados estabelecidos pela comunidade de leitores são extremamente vagos, guardam o ranço da arbitrariedade e não resistem a uma análise mais detida. Parecem ser concretos pois a comunidade de leitores se organiza de modo a legitimá-los, formando como que uma nuvem que nuvem enubla o céu e dá a impressão de inquestionabilidade. Todavia, quando tentamos articular quais seriam tais pressupostos qualitativos e quais seriam tais autores exemplares, aí então nos vemos diante do fato de que isto só pode ser feito de maneira restrita e muito insatisfatória, no geral calcando-se em argumentos que terminam no vazio de um acordo tácito e na necessidade de que realmente se deságue na crítica e não no acatamento de ordens tidas como “superiores”. E digo isso até mesmo se considerarmos simplesmente que são parâmetros resultantes de “tudo” o que a crítica disse até então (o que é uma meia verdade pois, como disse, existem outras dinâmicas em jogo, e entre aspas pois, de novo, jamais se consideraria a crítica toda, mas sim alguma crítica), visto que a esse respeito, é apenas e de novo sob a via da simplificação que poderíamos dizer que um autor é clássico porque existe “consenso crítico”: aqui se ignora a pletora de argumentos que coexistem a respeito de certo autor, bem como os desníveis críticos que sua obra possa ter sofrido com o correr dos anos ou a mudança geográfica.
Dado este esboço do fenômeno literário, vê-se porque a crítica enquanto argumentação é tão importante. Ela rompe o acordo tácito. Ela pega o que é dado como certo e quer fornecer um porquê. Não quer dizer que ela vá conseguir provar algo; ela pode apresentar um argumento forte, mas jamais uma prova. Mas pelo simples fato dela argumentar, nem que seja pra no final das contas reafirmar o que se suspeitava como sendo evidente (o céu nublado), é que ela rompe a lógica esterilizante das verdades dadas: a partir de então, poderemos partir de argumentos e não de um grilhão e um fantasma. Vislumbra-se também porque a crítica é tão necessária no âmbito da literatura contemporânea, visto que, uma vez que a literatura contemporânea não se infiltrou, não se mesclou àquele céu nublado que me referi antes, então as obras contemporâneas que tendem a receber uma atenção maior são aquelas que já nascem próximas das estâncias de legitimação da situação literária do momento: por exemplo, obras próximas de círculos literários tais e quais, obras que ganhem o aval de artistas e críticos consolidados, que refratem em si certas estéticas, que sejam produzidas em determinados espaços geográficos, em determinadas casas editoriais, que sejam veiculadas em determinados jornais, que ganhem certos concursos, que recebam certos prêmios etc etc. É quando entra a crítica, a verdadeira crítica (e não o simulacro de colunismo social), que, argumentando, explicitando, articulando, não só rompe, como demonstra para o leitor a artificialidade naquele céu nublado e derruba o castelinho de cartas.
Mas, apesar dos pesares, não faço crítica. Fosse o caso de fazê-lo e então buscaria, você pode ter certeza, discorrer a respeito do que me desagrada na obra da autora, o que não causa espanto algum: todo autor possui seus desníveis, e para considerá-lo bom eu não preciso creditar bom tudo o que ele tenha escrito. Se falo da autora pra vocês é porque quero crer, e mais ou menos argumentar, que se trata de uma poesia exemplar no cenário nacional. Exemplar tanto pelo resultado estético a que chegou (embora isso, como dito, eu não argumente sobre), quanto pelo fato de conseguir unir subjetividade a análise de reentrâncias sociais e históricas (isso sim eu argumentarei sobre), algo que enxergo na poética de um estrato até considerável de autores contemporâneos (por exemplo Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto, William Zeytoulian, Guilherme Gontijo Flores, Adriano Scandolara, Eduardo Sterzi, Ricardo Aleixo, os poemas mais recentes de Rubens Akira Kuana). E como tal reentrância é algo que tem ocupado minha mente de uns tempos pra cá...
II
Da autora, o texto mais antigo que pude cavucar se chama gestalt. Já apresenta um dos temas que mais irá aparecer na obra ― a formação ― e que depois irá se metamorfosear num verbo ― formar-se ― o que implicará, por conseguinte, uma demanda e um trabalho nunca completo. A autora, recém saída da faculdade, como podemos ler na biografia que acompanha o poema, recolhe os cacos ou, melhor dizendo, se reconhece nesses mesmos cacos. Esmurra o espelho. Mas, ao contrário da imagem clássica de que o espelho demonstra uma imagem falsa ou insuficiente, é preciso ter o cuidado de observar que o espelho que Rizzi retrata demonstra muito mais o que os outros fizeram do eu lírico: “era, de fato, inúmeras. uma pra cada uma. atriz em tempo integral. claro que era amada. conhecia a alma dos que lhe cruzavam e dizia o que esperavam. nunca sobre si.”
Ou seja, o espelho não permite essa multiplicidade ― essa de, falando de si mesma, de repente incluir uma multidão de anônimos que passam e passaram pela vida do eu lírico. O que interessa a Rizzi é o múltiplo ― portanto, a identificação com a turba. É a possibilidade de sair de si mesma e ainda assim se demonstrar íntegra, pois, a partir do instante em que saímos de nós mesmos, nos tornamos impuros: logo, não-íntegros ou íntegros de integridades distintas. Um caminho que só pode ser trilhado se estiver ligado à autonomia, isto é, se nem integridade nem fragmentação vierem como imposição externa, a qual, de resto, busca reduzir as pessoas a um dos dois. Uma coisa é que esmurremos o espelho; outra coisa é que nos esmurrem e nos escorracem.
Nos textos diadorim e ser de sagitário, já encontramos os influxos externos que impedem o casamento da integridade com a liberdade pessoal. Como se Rizzi quisesse nos dizer que para ser livre é preciso ser volátil, fragmentário, é preciso ter lacunas: lacunas, ou seja, tudo aquilo que nos falta e que portanto devemos aprender, ao longo da vida, a lidar com, o que não quer dizer necessariamente no sentido de preencher essas lacunas que carregamos conosco e que nos constituem, mas também no sentido de simplesmente aprender a conviver com elas no sentido de que pelo menos deixem de nos oprimir. Lacunas, a “música gracejadora” a que ela se refere em diadorim e que lhe permite conter dentro de si todas as mulheres (ou o “homoternutismo”). Lacunas, o labirinto exposto em ser de sagitário. E de tal maneira que, a própria pessoa cultivando suas lacunas, ela possa também perceber as lacunas das coisas que lhe cercam. É a dinâmica do texto vozes e visões, bastante estranho por misturar verso, prosa e receitas culinárias. Na verdade, o leitor só vai poder entender melhor este último poema lendo o Caderno Goiabada e daí espiar a ironia das receitas que buscam subverter a imagem da mulher como dona de casa ou exímia cozinheira com a própria imagem da mulher como dona de casa ou exímia cozinheira (ou seja, as armas do opressão usadas contra a opressão). Durante a ditadura, esta foi uma estratégia usada por escritoras como Adélia Prado ou a goiana Yêda Schmaltz: a saber, a de se valer de afazeres tidos como femininos para instituir uma crítica ao patriarcado. Daí se explica o cotidiano, a simplicidade e a delicadeza com frequência denotando sensualidade em Adélia Prado e o uso marcadamente erótico, em Yêda (como antes também em Cora Coralina), de poemas que se valem do formato da receita culinária (em especial os presentes em Baco e Anas Brasileiras).
Mas onde desejo chegar por hora é que a ojeriza ao espelho se dá pelo fato de que o espelho não mostra tudo, como se ele também fosse lacunar, como se lhe faltasse também um pedaço ― todavia, a diferença entre a lacuna que o espelho apresenta e a lacuna que Rizzi parece buscar é que a lacuna do espelho é uma lacuna imposta, ou seja, ela advém daquilo que as outras pessoas constroem sobre nós, obrigando-nos a aceitar aquela construção como a única possível, enquanto as lacunas buscadas por Rizzi são lacunas que só poderão ser preenchidas graças a um trabalho de mútua construção ― lacunas que representam uma possibilidade emancipatória de nós todos. Daí o fato da autora dizer, em notas de verão sobre impressões de inverno, que não lhe basta a poesia menor dado que sua saga “é tão maior e bruta e o que me foge às mãos é um meio de subsistência”. Simplesmente falar de sua subjetividade (ou seja, uma poesia menor) não basta porque essa poesia seria menor e a autora queria algo maior; não basta pois estaríamos nos contentando em retratar a subjetividade que nos é imposta e da qual, atendo-nos tão somente ao que a poesia menor possibilitaria, jamais conseguiríamos fugir.
Mas onde desejo chegar por hora é que a ojeriza ao espelho se dá pelo fato de que o espelho não mostra tudo, como se ele também fosse lacunar, como se lhe faltasse também um pedaço ― todavia, a diferença entre a lacuna que o espelho apresenta e a lacuna que Rizzi parece buscar é que a lacuna do espelho é uma lacuna imposta, ou seja, ela advém daquilo que as outras pessoas constroem sobre nós, obrigando-nos a aceitar aquela construção como a única possível, enquanto as lacunas buscadas por Rizzi são lacunas que só poderão ser preenchidas graças a um trabalho de mútua construção ― lacunas que representam uma possibilidade emancipatória de nós todos. Daí o fato da autora dizer, em notas de verão sobre impressões de inverno, que não lhe basta a poesia menor dado que sua saga “é tão maior e bruta e o que me foge às mãos é um meio de subsistência”. Simplesmente falar de sua subjetividade (ou seja, uma poesia menor) não basta porque essa poesia seria menor e a autora queria algo maior; não basta pois estaríamos nos contentando em retratar a subjetividade que nos é imposta e da qual, atendo-nos tão somente ao que a poesia menor possibilitaria, jamais conseguiríamos fugir.
A subjetividade lírica que Rizzi expõe é uma subjetividade lírica à luz do que Michel Collot caracteriza como eu lírico fora de si. Ao mesmo tempo que o eu lírico da modernidade deu um verdadeiro salto mortal nos precipícios de sua psiquê, naquela longa jornada de interiorização poética pós-romântica, ao mesmo tempo ele se projetou para fora de si pois, afinal de contas, a dinâmica entre o interno e o externo não cessou de mover suas engrenagens: nossa personalidade interna sempre se extroverte de alguma maneira e com alguma intensidade, e tal extroversão é sempre introvertida de alguma maneira e com alguma intensidade pelo Outro. Desse modo, projetando-se para fora de si, o eu lírico consegue entender sua subjetividade de forma mais carnal e concreta, o eu lírico vai de encontro ao Outro e com frequência esmiúça as especificidades histórico-sociais de sua constituição enquanto indivíduo. É aquilo que Rimbaud, na Carta do Vidente, falou a respeito de cultivar verrugas no próprio rosto a partir do desregramento dos sentidos, o que faria com que o Eu do poeta se tornasse estranho para o próprio poeta e, além de simplesmente dizer, como Nerval, que Eu é o outro, chegue-se à famosa fórmula: Eu é um OUTRO. Desse modo, com o advento da modernidade a afetividade do sujeito lírico não pode mais ser separada dos objetos, eventos e todo o mais que incida sobre seu corpo.Fora de si, ele não pode mais negar a si próprio enquanto constituído, constituinte construção.
Voltando ao poema notas de verão sobre impressões de inverno, é bom notarmos os contrários logo no título, certamente um corolário do fato de que sua poesia é maior e bruta e, por isso mesmo, abarca enormes espaços para assim fundi-los na coerência inconsistente do Ser (ainda mais um Ser imerso na rotina, conforme a temática proposta pelo site para os poemas publicados). O penúltimo parágrafo do texto consegue demonstrá-lo bem, onde, enquanto o eu lírico é tratado como cinzas recolhidas em lata vazia, depois “a-guardadas” num bocejo, ela se liga a orações mortuárias astecas, índias, nordestinas. Os contrários dançam na superfície. Indo de encontro à cosmovisão do haicai (forma japonesa que nos convida a aceitemos a transitoriedade de tudo), em quase ha(ra)i k(i)a(r)i a autora, descrevendo a trajetória de uma imigrante nipônica, diz: “descobri há pouco algo que parece neve e que derrete o sangue. faz meus espectadores, e até espectadoras, parecem deuses. você. aí eu que sou a poderosa.”
Podemos presumir que esse algo é a poesia, o texto, e creio que uma interpretação assim pode ser retirada também do fato de que a frase está na terceira parte do texto, escrita em primeira pessoa ao contrário das duas anteriores (e o texto, em três partes, é claro, simula o haicai). Mas podemos também simplesmente dizer que se trata da resistência, pois é nessa parte que vemos o eu da imigrante nipônica rompendo o preconceito e tentando firmar sua individualidade, num processo de imolação que, justamente por ter sido induzido, por ter sido forçado, não possui a naturalidade nem a afirmação de se esmurrar um espelho e se comprazer com seus cacos. Pelo contrário. Temos uma individualidade construída, e esmurrar essa individualidade, esse espelho que parecem colocar à frente de nosso real espelho (ou seja, um espelho que revele nossa carne, nossa poesia nua ― fuga.pa (do) ponto de fuga ―, nossa verdadeira realidade que nos dá consistência, conforme tratado em de esquina, de onde destaco mais uma vez o paradoxo calor/frio e o elogio ao não-duradouro e, por conseguinte, ao que emancipa); esta é uma necessidade muito maior. Também mais dolorosa. Envolve uma série de mudanças que, por sua vez, parecem pressupor em seu bojo a ideia de ciclos, algo também vira-e-mexe presente na poesia de Rizzi.
III
quase ha(ra)i k(i)a(r)i falava de lixo e poder. Me parece claro que Rizzi tomou o sentido literal da coisa: o poder nos transforma em lixo, e daí a opção pelo harakiri. Mas um harakiri sem honra alguma pois somos, justamente, lixo. De que maneira resistir, sendo assim? A busca rumo à integridade e ao múltiplo não é simples, já vimos, e envolve principalmente a liberdade. Mas também vimos que, a partir do momento em que ela é imposta, ela prosterna.
Um dos melhores poemas de Rizzi se chama dos haveres e porquês e pensa tais questões. Restamos restos. Mas não podemos nos prostrar. Nem todos os poemas da autora se proporão um combate tão direto como o travado nesse daqui; todavia, as linhas por ele apontadas nos permitirão entender como o projeto poético de Rizzi (se é que dá pra falar em um, claro) é uma via de acesso à afirmação daquelas lutas, conforme dito na segunda estrofe: “(...) travadas / dia e noite / in(de)finidamente / de classes antagônicas-internas.” Via de acesso também a uma das mais belas estrofes da autora:
porque devemos nos
contentar rotos
(e estou de pés descalços,
mas de pé).
Manter-se de pé mas, que fique bem claro, com todo o heroísmo de se manter de pé quando tudo nos empurra pra rendição. Pra que, assim como a autora disse poemas atrás, possamos conter muito mais de nós mesmos, e que as lacunas que compõem nossa individualidade sejam completas com afirmações e não com influxos ideológicos dominantes. Pra que se afirme o indivíduo e que, entre ele e o mundo, só existam ele e o mundo. Por isso os pés descalços, metáfora recorrente na poesia de Rizzi que implica uma união com a natureza não necessariamente de fato, posto que é um fato a necessidade desta união em tempo de restos (como, dois versos depois da revelação dos pés descalços, a autora nos diz, falando dos pneus reciclados por vietnamitas; ou então bastando que se cite a lógica de moldar e ser moldado de um poema como terra, onde destaco a expressão “ello”).
Podemos tentar estabelecer tal diferença no que tange o lacunar e o corroído. O que é lacuna e o que é roto. O que necessita de complementação e o que se desgastou. Enquanto um permite
a voz que brada todas as vozes
[et touts, sylvie]
e todos os pés cansados
e corpos rotos e flácidos
: eu mesma
só posso ser eu mesma
?
O outro vai justamente pelo caminho contrário, sendo a um só tempo corrosão e impedimento, não bem espatifando espelhos e abrindo caminho, mas simplificando e reduzindo a restos o que se encaminha para ser um todo. Os olhos que se enegrecem de conjeturas na quarta estrofe são uma boa metáfora deste processo: as conjeturas apontadas não levam ali, naquela estrofe, a lugar algum, embora o poema todo possua como que uma gama de opções ou, melhor dizendo, de imagens que podem ser substituídas umas pelas outras sem implicar com isso que alguma delas seja supérflua (se bem que pode até ser verdade que na dinâmica da enunciação dada pelo eu lírico assim seja, mas somente o sendo porque o eu lírico teria incorporado para si a certeza de que é feito de restos) ― e, apesar das conjeturas apontadas não levarem a lugar algum, elas por isso mesmo podem levar a todos os lugares, podem dar a possibilidade de que zarpemos com “as cargas de navios clandestinos” repletas de “saudades, inconformismos, / restos de nós” da última estrofe. Ou seja: o movimento de enunciação do fato de que somos feitos de restos, de espécies de nonadas (como uma leitura fônica da expressão “(não) nada” nos permite supor), pouco a pouco vai completando a poeta, vai reconstruindo retroativamente o poema de modo que, ao terminarmos de lê-lo, temos que as reticências da quarta estrofe não são cortes súbitos: são possibilidades de voo; elas representam o infinito e conseguem, em outras palavras, darem um sentido aos haveres e aos porquês.
IV
Nossas lacunas não podem ser completadas com qualquer coisa. Elas tragam tudo o que trazemos. Precisamos de lacunas que aprofundem lacunas, se o que tapa as lacunas porventura vier a se perder, ou precisamos, em outras palavras, que o que preencha nossas lacunas seja tão lacunar e vivo quanto nós.
Precisamos uns dos outros. Precisamos do amor. Precisamos ser, como diz Rizzi no final de poemeto do triste desespero,
sujeito não
substantivo composto
: passatempo
Tema que não só predominará no primeiro livro de Rizzi, ao qual adentramos, como, maneira geral, na poesia contemporânea. Claro que amor e poesia é igual carne e unha. Mas o amor na poesia contemporânea parece ter algumas características diferenciadas. O amor na poesia contemporânea encarna as contradições que Bauman analisa ao falar de relacionamentos líquidos num mundo onde, tão individualizados, libertos, sem amarras, tendemos a ver na figura do Outro um negócio incômodo. O convívio não é algo tão legal assim. O estranho passa, o estranho perturba, de modo que a lógica do encontro entre duas pessoas que se cruzam na rua é a do esvaziamento conteudístico, ou seja, aquele encontro não terá um passado, se resumirá no presente que não quer dizer nada com nada, bem como no fato de que é um encontro que não traça planos para o futuro.
Amando, pra variar, tudo muda. Pois rola um interesse. Mas um interesse de novo fragilizado: a tendência é a de que as relações, mesmo aquelas que realmente querem durar, acabem não durando. O que leva o poeta a ecoar “para-sempre” o lamento de Baudelaire frente à passante. Claro que existem diferenças de lá pra cá, pois, na terminologia de Bauman, passamos de uma modernidade sólida para uma modernidade líquida. Ou, pra sermos ainda mais exatos, estamos passando, pois quando Bauman caracteriza a modernidade líquida, ele não quer dizer que somos inteiramente assim nem que todos os cantos do mundo seguem tal lógica. Em Rizzi, por exemplo, tomando como base o poema in:dependência, temos, desde o título, uma relação ambígua que nos faz encarar os dois lados da moeda ― e se quisermos um ensaio de síntese, podemos tentar o sanguidolente.
Em Rizzi, o amor, como mais uma vez o amor de muitos poetas contemporâneos (por exemplo Alice Sant'Anna, Bruna Beber, Ana Martins Marques, Fabrício Corsaletti, Ricardo Domeneck, Marília Garcia...; um pouco antes, o caso paradigmático é o de Ana Cristina César), é um amor que se ressente do efêmero mas que ao mesmo tempo parece celebrá-lo. A eternidade não é mais posta no amor enquanto estância metafísica. Uma vez que se trata de um amor reclamado pela carne, o que tiver de duradouro nesta concepção amorosa está muito mais próxima da concepção de um Kaváfis ou de um Donne que do arcabouço renascentista, como se fôssemos, certo modo, barrocos frente à imensidão amorosa e não pudéssemos captá-lo senão deixando o pau comer e fingindo não entender; ou como se incutíssemos em todos os sentidos à flor da pele a tarefa de reter o instante amoroso o máximo possível, desincumbindo um pouco a lembrança e o passar dos anos como o responsável pelo que houver de duradouro na paixão. E como a experiência do amor tende a ser muito mais sensória, ela é ao mesmo tempo mais devastadora e deixa um ranço mais vívido em nossa trajetória. De tal modo que, muito mais que completar lacunas, o amor na poesia contemporânea nos transborda menos de amor que de convívio. As três variações contidas na sequência 5 poemas e uma linha reta podem demonstrar bem tal característica, especialmente quando, em variação de intermezzo: impressões da aurora, a autora se refere à pintura corporal como necessária para o “amanheser” (lá pro final do estudo falarei mais sobre os neologismos), ou quando, em architextura, ela pede: “me inventa em iminência.” Verso que, creio, é mais do que claro no que tange a dinâmica entre o efêmero e o duradouro que ronda a experiência amorosa na poesia contemporânea, mediadas pelo corpo, pelo gozo, pelos relances eróticos que, com frequência velados não por serem pudicos, mas por necessitarem estarem velados para que possam transbordar (como se transbordar fosse o fim último), nos fazem lembrar do gosto imortal do amor ― esse gosto que decorre de sua vivacidade e não de sua palidez imperecível ― bastando que se ponha na mesa a fabulosa sequência erótica repertório ao gosto popular.
V
No prefácio de Hercília Fernandes ao primeiro livro de Rizzi, muito do que eu disse é esmiuçado. Cito, por exemplo, a definição precisa da mecânica da obra (p. 12):
(...) Nina Rizzi se lança a um projeto individual e, simultaneamente, de memória coletiva que, sob diversos “quandos”, alcança-lhe as retinas. Seduzindo-a para um “tudos”, nos termos benjaminianos, “saturado de agoras” e, com essa atitude, à rememoração dos “quases” da história.
O livro, a saber, é dividido em três partes, a primeira denominada “quandos”, a segunda “tudos” e a terceira “quases”. Com o comentário de Hercília, podemos notar muito bem como o chão é batido, mas aqui é importante ressaltarmos outras coisas também. A primeira delas é a de que todos os três títulos refletem o múltiplo e o inconcluso, dando a entender uma espécie de completude que, observada mais de perto, é traduzida em carência. Assim, um termo como “quandos” retoma o que discutimos sobre a lógica das suspensões na poesia de Rizzi (e logo mais retornaremos); um termo como “tudos” é ainda mais intrigante pois o tudo já abarca tudo, de modo que no singular ele é completo, ao passo que, no plural, ao invés de se completar ainda mais ou de no mínimo satisfazer, ele rompe com o esperado pois nos dá a entender que o tudo que concebíamos é apenas um tudo (logo, ele faz o contrário: ele não satisfaz pois nos mostra que o álbum de figurinhas está incompleto); e por fim, um termo como “quases” intensifica a lógica do quase, criando um espaço de reticências que, infinitos venham a ser os “quases”, nunca será completo a ponto de se tornar pelo menos um tudo (algo parecido com os “quandos”, que, venham a ser infinitos, jamais terão a consistência de pelo menos um “quase”). Em suma, todos dialogam com uma lógica de cacos, de fragmentos, mas não num saldo necessariamente negativo.
Na trilogia denominada amor, anterior ao primeiro livro, e que forma ela toda um só poema sob a temática “farpas”, “outro lado” e “retrato”, encontramos os termos “tantos” e “tudos” na primeira e na segunda/terceira parte, respectivamente. Trata-se de um poema que parece buscar o amor em meio ao lixo, “um sem-fim de noites-recipiente / : preservados meus gozos em / fingimento. Desinteresse.” O amor vindo do prosaico, um prosaico abjeto, tem uma tonalidade de efêmero diferente de “a rotina pintada / sobre minha mente / mente”. O amor miscigena, bagunça “lençóis e / pelos-pele”. Se antes a poeta “era senão parte da parede que ninguém via e não podia atravessar”, ela termina o poema interrompendo o lixo graças à “melo-dia-voz” e se perguntando por uma totalidade múltipla: já não se pergunta se “tudos passa”; pergunta-se se “tudos quero”. Aquilo que subverte o que nos subjuga será muito bem tratado ao longo do primeiro livro.
Mas antes ainda de chegarmos lá, acheguemos de novo no prefácio de Hercília (p. 12-13):
(...) a representação, ou invenção de si, relaciona-se ao projeto de composição de uma arte dinâmica que não comporta, exclusivamente, a palavra como matéria e ferramenta de linguagem, mas articula-se, igualmente, à pintura, à música e, finalmente, à história.
A expansão sensual e a correlação com a corporificação do arcabouço renascentista também é citada (e que encontra respaldo num poema como a um poeta, destacado por Hercília), seguida da observação sobre as recorrências musicais na poesia de Rizzi e de que (p. 14)
Todavia, da mesma forma que, enquanto essência, o humano se apresenta, na obra, em uma visão totalizante, igualmente se particulariza em fleches, percepções de atmosferas e cotidianos intrínsecos às singularidades de vivências dos sujeitos.
E fecha se referindo à faceta social da poesia de Rizzi e de como ela “Projeta o seu olhar não sobre os feitos heróicos arquitetados pela história oficial, mas sobre aqueles que estiveram à margem dos acontecimentos e que, por isso, constituíram a 'indiferença', 'o peso morto da história'”(p. 15)
Não poderemos entender as raízes histórico-sociais da poesia de Rizzi sem abordarmos um pouco mais a questão do amor ou, num abraço que não deixe alguns filhos de fora, o convívio. A primeira parte, “quandos”, é um encadeamento de condições que esperam o raiar do dia, o “amanheser” que destaquei logo atrás. Citando integralmente o poema chaos,
de onde vim - belezas
destroços, suam intensamente
tudo existe, dorme. até
que doa o útero em desfio
gozam a doer profundamente, verdade
no rasgar das manhãs
Não vale, sendo assim, simplesmente como despertar pessoal, mas também como luta interiormente travada rumo à emancipação do que a poeta é e do que ela representa contra o que representam dela. E é por isso que mais uma vez o convívio se torna imprescindível, posto que une lacunas e retifica lutas. Citando do poema demmens,
o que diziam nossas veredas bifurcadas? uma senda
entre teus nimbos-nimbos e meus cirros. branco, breu.
O poema também trata do estereótipo que tenta se adentrar na esfera amorosa e, logo, preencher lacunas com pré-concepções:
e quando eu parti você me mandou
girassóis mortos pr’eu me contentar e eu
mijei sobre eles, pensando em tua namoradinha
inglesa. e eu sou mediterrâneo-africana.
depois, faminta da tua ausência e miséria, comi, tua
lembrança, intratável.
Claro que se esquecer não é tarefa fácil, e um poema como lastro o demonstra bem. Quando temos nossas lacunas preenchidas, e sabendo que a experiência amorosa é buscada num sentido de transbordamento (veja-se outro estudo pra o silêncio ou versos como “transbordam em mim reminiscências: / águas que me secam, redundâncias de me sentir.” de manoelana), as coisas a nosso redor de repente significam, e a tal ponto que o trabalho com o prosaico, longe de ser mero apontamento de ojeriza ou de escatológico, ou de apontamento de decadência cultural (como nos primeiros momentos modernistas), explicitamento do nojo e da hipocrisia, é tratado até com uma relação de afeto que não tem como não nos fazer lembrar das iluminâncias de Bandeira. Podemos citar, a esse respeito, passagens do demmens como “e tomamos caldo. você verde / eu de cebola. torradas.”, ou então o poema caso apolínea, mesmo ellenía bem como inúmeros outros ao longo do livro que demonstram como o amor povoa nosso cotidiano. Daí o fato de que o amor na poesia de Rizzi, como na poesia contemporânea, é um amor que consegue transcender não por ser da sua essência (os poetas simplesmente não se preocupam muito com isso), mas porque o amor dá todo um sentido especial para a rotina e, por conseguinte, se espraia e se aloja por ali.
O amor transforma os detritos em atritos. Claro que me refiro aqui ao detrito sexual que continuará aparecendo das formas mais sensacionais na poesia de Rizzi, como em goiabada para um livro de marianinha (ou o ceciliana). Seguindo, porém, a lógica dos objetos cotidianos que ganham consistência, passamos a roçá-los é bem neste instante, seguindo o metaplágio para o poetinha: “durante a chama e cinza tanto esmero / que ele, lento, trespassará meus arcos.” Daí o fato de que a mulher no poema um gato pra apollinaire não esteja disposta a nos desperdiçar. Ou, caso queiramos mergulhar numa das metáforas mais interessantes na poesia da autora, podemos citar a questão das unhas. Fiquemos com imaginário poético, elogio,
gosto de sentir o cheiro estranho dos homens à janela do coletivo. olhar
as unhas dos pés, compridas dessa doença do tempo, malcumpridas
e até
as encardidas, abandonadas. também coleciono fracassos.
como o sol que rompe os cúmulos, ardo à rebentação de poemas,
a viagem próxima. ligações à uma da madrugada ou da tarde,
tanto faz.
de cheiros e unhas e poemas estou repleta, desperta. e de novo
da mulher que me entrega um lenço azul, a cor mais azul de suas
ternuras.
A unha está entre a sedução, o artificial, o descartável e o renovável. Incutir uma relação de vida a uma coisa que só raramente pensamos nossa é a prova de que a relação de convívio na poesia de Rizzi não pode ser reduzida a termos de uma ode ao lixo acoplada à impotência de elevá-lo ao status de importante. Pelo contrário, diz a autora em sutra pra allen ginsberg,
desde que mijamos e cagamos juntos
tudo me parece mais verdadeiro, menos afetado
- tudo poeticamente real.
Além, é claro, do fato de que a unha é unha e carne com o corpo. Está próxima, dissemos, do descartável e do renovável, está próxima do ritualístico que nos separa, sei lá, do selvagem. Mas a relação com o corpo na poesia de Rizzi é frequentemente selvagem, seja no sexo, seja no chamado do amor. Aqui podemos voltar a poemas anteriores ao primeiro livro como os dois poemas, destacando “o êxtase é um / vê-la / (colados os corpos / sou o seu profundo)” de diversas (além, é claro, dos G's em negrito da última estrofe, vale dizer, a temática da vez era justamente “ponto g”; e, sobre o poema, é bom criar uma ponte entre ele e o composição cor de wiskhi à zero hora do primeiro livro, onde a amada se torna pedra nos rins da poeta) ou a primeira estrofe de oriki pra oiá, “brisa que é chama / porto que é vento”, definição realmente precisa do amor como calmaria e como tormenta (deste último eu também destaco o título que, “traduzido”, seria algo como “chamamento da divindade das águas”). Ou podemos prosseguir no primeiro livro e citar o artaudniana na íntegra,
vou colar rascunhos dadaístas, antropófagos,
pra compor ritmos com o corpo.
me embriagar da palavra, morder o poema a seco,
a cru, em longas talagadas de afogamento,
morte instantânea, bela e breve.
urrar pelos cantos dentro um gozo literário
e fazer um museu de tudo.
que é só poesia que posso
te ter inteiro.
Disse que o “quandos” opera numa lógica de suspensões. Mas se as experiências amorosas são concretas, bem realizadas, não ficaria estranho ainda sustentar uma leitura assim?
Nem tanto.
De fato será melhor observarmos o “quandos” não como um “ainda está por acontecer”, mas como um “quando acontecerá de novo?”. O que, se brincar, nem precisa da mesma pessoa; apenas de outra. É o que dá a entender o ensaio pra transubstanciação, onde, depois da morte (“rimos. morremos.”), “e entro em águas, até senti-la quando.” Certamente que não se trata de uma morte literal; é a morte daquele instante que passou e que precisa de outro instante para manter a lógica intensa de um amor eterno pois está se renovando, está sendo vivido. Importante, não preciso nem dizer, que essa tarefa sempre por-fazer seja sempre-feita pois, de resto, somos bombardeados e corroídos sem folga. O último poema da primeira parte nos diz, intitulado composição em cinza e verde,
cobri o rosto em aço e folhas
que engraçado:
borboleta, cadela, estrela, nunca mais
- isso aqui é um maciço, minino.
Depois de tudo o que comentei sobre o íntegro e o múltiplo, creio que os versos se fazem claros.
VI
Podemos começar alguns comentários formais. O título do último poema da primeira parte é interessante. Qual a sua relação com o conteúdo? É a mais tênue possível, somos levados a crer, pois o cinza e verde do título advém do “em aço e folhas” e só.
Só? Claro que não. A lição não é só esta. Muitos títulos de Rizzi possuem uma função sinestésica. A fonte semântica que deles advém não é a daquela composição arquetípica e até um pouco brega do título como resumo e coerência, chave-pro-coração do poema. Uma vez que o título é vago e não tem conexão direta com o poema a não ser por um sentimento geral que o título não busca desvencilhar, mas antes reforçar, o título em Rizzi é isso mesmo: uma pincelada em cima de pinceladas. Não se deve buscar uma coerência discursiva em seus títulos pois eles guardam uma relação de significados que busca justamente ser a mais tênue possível, recusando não vou dizer nem tanto a lógica fácil o-que-o-poema-disse + o-que-o-título-diz; me refiro em especial ao fato de que, tênue, é dever do leitor olhar para as proposições do título com olhos de poeta ou coisa do tipo, e enxergar na tenuidade do liame uma consistência sentimental. Não implica dizer que o título está lá pra enganar o leitor, pois, a mais das vezes, é possível que se reconheça o liame de maneira até óbvia, como no título composição cor de wiskhi à zero hora que liga as pedras nos rins a uma boemia suposta.
Assim sendo, os títulos de Rizzi nos impelem a sentir mais do que compreender. Lembram a persistência de títulos musicais na obra de Cecilia Meireles, e este não é um paralelo gratuito, dado que a riqueza da sensibilidade lírica de uma poeta e outra, traduzida em especial na capacidade de fazer com que o sentimento se espacialize e se concretize para que seja trabalhado quase que à maneira do oleiro, é um traço característico de suas obras (embora Cecilia seja muito mais musical do que Rizzi, de modo que o uso de títulos musicais por Cecilia é muito mais lógico do que em Rizzi, que dá uma ênfase maior às imagens).
Podemos observar a construção dos títulos em Rizzi, e de certa maneira a concreção de sua sensibilidade, se tomarmos um caso julgo até literal,
o aroma da vodca sobre a neve
os dois olhos de ellena
giram luas luas e sóis,
todo mundo quer cheirar.
ou chorar?
Vamos notar que o que liga o título ao conteúdo é o que dissemos sobre um liame bem tênue que até está presente (nesse caso, ligando o porre da vodca a “giram luas luas e sóis”), mas de tal maneira que o que importa nem é isso, sendo, muito mais, o clima, a sensação. E o mesmo podemos dizer para aqueles poemas que se acoplam à produção poética de outros autores, como
ungarettiana
a minha desarmonia
é quando ele não me toca:
suplício o dois ou um.
Que Rizzi é ungarettiana o leitor pode perceber claramente: vale dizer, a busca pelo poder individual da palavra norteada pela economia expressiva, o que a The Priceton Encyclopedia of Poetry and Poetics muito bem chama de “fragmentos acesos por holofotes intermitentes”, bem como o “obscuro senso de revelação” que o próprio Ungaretti nos dizia ser a finalidade da poesia, fazendo com que o poeta frequentemente se ponha frente ao além de toda apreensão (como no caso de seu famoso Mattina). No âmbito do poema de Rizzi, contudo, o que avulta não é nem tanto o primeiro fator, formal, da poesia enxuta, senão o segundo, de um clima geral e de uma posição em relação ao mundo que ligam o poema à produção do autor italiano.
Tão importante é a sugestão sensorial nos poemas de Rizzi que, com títulos à priori desconexos, a autora quer levar o leitor a que ele também sinta o transbordamento das experiências que sua poesia retrata. Andressa Vieira, analisando o curta Noturnos, de Carlito Cavalcanti e Joca Soares, no site O Chaplin, o define como “sensorial”:
O curta, a saber, foi baseado em alguns poemas de Rizzi, e a impressão de Andressa é acertada a partir do momento em que Carlito e Joca “simplesmente” captaram uma das características mais prementes na poesia de Rizzi. E não é à toa no filme a profusão de cores num ambiente noturno, vez que parece ser justamente no ambiente noturno que estamos mais propensos a aceitar o fato de que zonas de cor se sobreponham ou no mínimo ressurjam, recorrentes, sempre que estamos em frente ao que não nos impõe a tarefa do deslindre e sim a do meandro. Daí, por exemplo, a sutileza dos diretos com um título como “Noturnos”, no plural, bem como nas tomadas de cena que frequentemente misturam frases, ritmos, idas e vindas, a cor e o preto-e-branco, o estático de um gato andando na rua com o dinâmico das palavras digitadas e jogadas na tela. Daí a estética de uma iluminação setorizada no vídeo Projeto Psíquico Um, vídeoarte de Rizzi:
Buscar por um fio da meada em passagens assim é tentativa vã assim como querer deduzir outra resposta que não a de que “É Gente”, ao olhar um prédio à noite e com algumas luzes ligadas, é também tentativa vã. Ou seja: não por ser impossível, mas por não conseguir lidar, tantas vezes lida, com o que tantas vezes é vida.
As três ilustrações que antecedem cada parte do livro podem metaforizar a relação entre as lacunas e o sensório. Veja-se a primeira ilustração:
Todas as três revelam mulheres nuas e pintadas de preto e sem braços. A segunda delas possui uma espécie de fitas de rendas nos tornozelos, além do cabelo em tranças, e a terceira possui, além das fitas de rendas nos tornozelos, um colar no pescoço e uma saia, além do fato de que a imagem colorida de fundo lhe serve de cabelo. É como se elas fossem se definindo enquanto mulheres não no sentido de se tornarem mais femininas, mas no sentido de se localizarem historicamente (pois podemos presumir, pelo traço, que as três mulheres são uma só e que a terceira possui uma linhagem indígeno-africana) e no sentido de se povoarem de outras mulheres, o que as rendas metaforicamente podem representar. Ou, caso não queiramos nos enveredar em interpretações assim, podemos simplesmente dizer que a relação entre essas mulheres, lacunares (não no sentido de não possuírem braços, mas no sentido de estarem todas de preto, de estarem próximas da condição de silhuetas), e o fundo colorido aos poucos ganha um liame poderoso que no final literalmente as une.
Assim, a sequência das três imagens metaforiza a relação sensória na poesia de Rizzi no sentido de que o livro vai se encaminhando do externo para o interno, se encaminha da perda, do que escapa e goteja na condição do “quandos”, rumo ao momento em que a poeta apreende esses “quandos” na condição de “tudos” e os transcende historicamente para “quases”. Pois o “quases”, na lógica do livro de Rizzi, vai além do “tudos” pois povoa as margens da história com o que ainda pode ser. E não se trata simplesmente de uma sequência cronológica, pois a visão histórica que aqui se explicita é plural, de tal maneira que, na dialética total da obra, passado, presente e futuro “fica ali, existindo.” (um eu esfaimado). Descobrir não exatamente onde fica esse “ali” (pois no final nós sempre sabemos onde ele fica: no convívio), mas as formas e formas de tocá-lo: eis como todos os tempos se banham nas mesmas águas, certamente nos remetendo à Tese XIV de Benjamin, de que a História não é um espaço vazio e homogêneo, sendo, antes, um tempo saturado de “agoras”.
VII
“tudos” desventra e começa a mexer o caldeirão. Logo na entradinha temos poemas que dão a dimensão da amplitude do escopo da autora, como no caso de maracatu: “sou grande, todo o largo. / imensa pra qualquer canto.” Faço notar, contudo, que se digo na amplitude do escopo, não me refiro a uma espécie de trato de temas universais ou qualquer outra coisa que se escreva com maiúscula e se respalde, mesmo que nas entrelinhas, numa tradição eurocêntrica. Amplitude do escopo no sentido de buscar aquilo que a narrativa oficinal não cobre: um exercício, sendo assim, de entendimento da estrutura íntima do mecanismo histórico, o que explica em grande parte a facilidade com que a autora consegue bailar entre o passado e o presente sem que para isso tenha de se valer necessariamente do instrumental epifânico, uma vez que essa estrutura íntima do mecanismo histórico não nos ajuda só a compreender o passado, como também nos ajuda a compreender nossa posição frente ao passado e também a persistência do passado no presente, para além do presente como sendo ele mesmo histórico. Pois a esse respeito, convém lembrar, com Gadamer (Verdade e Método I, trad. Flávio Paulo Meurer, 3ª edição, editora Vozes, 1999, p. 448), que “O verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de um e de outro, uma relação na qual permanece tanto a realidade da história como a realidade do compreender histórico.”
Claro que esse enfoque histórico não muda a necessidade do convívio (em muitos sentidos, podemos dizer que a História é convívio no seu nível mais incômodo), e a esse respeito basta citar, de jongo ojo-bo,
Claro que esse enfoque histórico não muda a necessidade do convívio (em muitos sentidos, podemos dizer que a História é convívio no seu nível mais incômodo), e a esse respeito basta citar, de jongo ojo-bo,
lá, às quintas girando, junto do meu homem, da minha mulher
daquele homem no posto, sou uma promessa
de mim. rarefeita, julina. eles, mares, ilhas.
Assim, se observamos a poeta literalmente se agigantar, isso quer dizer: agigantada, há que se desaguar na plenitude descrita em composição em azul pra dona mocinha, da parte passada: “ela não terá a nudez das camélias / os pés descalços dos filhos de ancestrais tribos.” Pois pleno, Rizzi parece nos demonstrar com mais certeza a cada poema escrito, é o que aceita para si a missão do ir ao encontro. Em muitos de seus poemas do primeiro livro e anteriores ao primeiro livro, a poeta afirma suas raízes, raízes afrodescendentes. E aqui basta que observemos a profusão de palavras e referências advindas desta cultura, entre elas, é claro, a n'zinga do título (n'zinga = Ngola Ana Nzinga Mbande, 1583-1663, rainha dos reinos Ndongo e Matamba, depois Angola, de trajetória marcada por guerras e acordos de paz). Pois o que seriam esses tambores para n'zinga? Que o título deixa implícita uma homenagem, isso me parece claro. Mas não se trata apenas de uma homenagem fúnebre, póstuma. Como disse ao fechar a parte passada, o passado, o presente e o futuro ficam ali, existindo, subsistem numa mesma trama eu não direi necessariamente simultânea, mas sim numa teia múltipla que nos faz dançar em meio a tantos fios que, no fim das contas, compõem um chão graças ao fato de que bailamos de lá pra cá. Assim, quando dizemos tambores para n'zinga, podemos ler o título não só como a repetição de um poema-chave do livro, ou como um movimento de encaminhamento rumo ao passado e à História, mas também no sentido de afirmar recorrências que batem em nossa individualidade. Os tambores para n'zinga, além de serem dedicados à n'zinga, repercutem, como que ricocheteiam estas mesmas ofertas que não são meramente direcionadas a quem já se foi, e sim ao legado de resistência que ela nos deixou.
O projétil que alcança os olhos de n'zinga no primeiro verso do poema tambores para n'zinga atinge também os nossos. As fendas em que sua trajetória se deu (“sob o véu da lombra à razão / sob os dedos da turba à cúpula // - bucólica. melancólica. / - erótica. pornográfica.”) ainda são as fendas em que nos resvalamos. E por falar em se resvalar, o movimento de imolação, de aparente rendição nas estrofes seguintes, ainda hoje repercute nas lacunas impostas, vale dizer, nas mutilações que nos são feitas. A diferença é que Rizzi não transforma n'zinga numa criatura passiva, apesar do que podemos deduzir de versos como
muito embora se me abram
oráculos, pegadas, pedras, trilhos
sou a minha senhora e soberana,
deusa, cataclismo, umbigada
do mediterrâneo à áfrica central, o novo mundo
Pois, a bem verdade,
me entrego, sim: às suas lanças me rasgo
às contrárias e o patriarcado, com seus dedos
arranco dos meus ovários teus rosários
O movimento dos possessivos tem o que dizer, especialmente “com seus dedos / arranco dos meus ovários teus rosários”. (O “suas” e “seus” não se referem a alguém em específico, assim como o “se” de “se me abram”, estrofes atrás, também não. É, sendo assim, uma ameaça invisível, maior: o “eles”.) Na condição de trespassada ela angaria forças para contra-atacar. É no contra-ataque, aliás, que vem a força, pois contra-ataque é influxo que usurpa as armas do inimigo para que a emancipação se alastre. Mais completa, entenda-se: as armas do opressor são corroídas por seu próprio uso, tomam de seu próprio veneno. No poema que se segue, flauta pra n'zinga,
pr’essa nêga matamba paranoica não basta dizer:
- está tudo bem.
- eu não ligo.
- vamos seguir juntos.
- há um princípio político [...]
ai, amor, são necessárias rosas de um rosa gritante,
poemas cavalares, históricos,
mais quadrinhas que redondilhos.
É bom que se destaque tanto a ideia de que há um princípio político, e de que ele não basta “pr'essa nêga matamba paranoica”, quanto no detalhe da união de rosas na rosa gritante, bem como nos poemas que afirmam o embate não por serem necessariamente enormes, mas, pelo contrário, por terem seus pés fincados com convicção na ancestralidade. Daí as quadrinhas que suplantam redondilhos. Pois, em verdade, os temas musicais vão simplesmente invadir a segunda parte do livro, e o que comentamos sobre o fato dos títulos terem como objetivo traçar um clima e não emoldurar conceitualmente o poema, pode muito bem ser visto à medida que a poeta mergulha numa tristeza e numa ausência que ferem o que pensamos acerca do “tudos”. Ou nem tanto, pois fizemos questão de mostrar que o “tudos” subverte a lógica do tudo, ou seja, ao pluralizar o que já deveria ser completo, ele adiciona a possibilidade de que um tudo é apenas isso: um tudo.
E é nesse ancoradouro de poemas musicais (vou ser ainda mais preciso: poemas aclimatadamente musicais) que começamos a vislumbrar novamente a ideia de ciclos na poesia de Rizzi. Não preciso esmiuçar muito o que a ideia de ciclos implica, pois creio que se trata de algo muito óbvio: a ideia da morte-reinício, de padrões que se repetem, a correlação ritualística, a temporalidade demarcada... Tudo nos seus quadrantes. Não creio que Rizzi adicione algo de novo dentro da sistemática dos ciclos, à guisa de um Joyce ou de um Eliot. Pelo menos não até aqui. O ciclo em sua poesia parece se iniciar depois de um momento de perda ou próximo da iminência desta. Veja-se, no final do poema fantasia pra jací e cussaruim,“eu te desinverno. te rio, te nuvem, te lua, te verão.” Assim sendo, a ideia de ciclos em sua poesia não é tanto uma coisa externa quanto uma coisa interna, o que Hercília, de resto, já apontava no prefácio (p. 14).
Ela se torna externa dum ponto de vista formal. Pois aí temos todo um padrão de repetições que vão mudando o clima geral dos poemas. Ou, pra ser mais exato um pouquinho, não muda bem o clima dos poemas em-si. Olhando de forma fria, muda alguma coisa no título, criando um tênue liame entre as partes do ciclo. E aqui podemos voltar ao que disse sobre a dinâmica do tênue e do consistente, ou seja, de que, por mais que seja tênue, é nesse tênue que devemos enxergar uma consistência propícia para que habitemos o mundo, de modo que, comparando poemas como pastoral em manhã chuvosa e pastoral em noite de bafo quente, a diferença vislumbrada e a parecência capaz de incutir a ideia de ciclo não decorram simplesmente do conteúdo e de paralelos metafóricos ou sentimentais, mas sim de uma espécie de pressuposto atmosférico que liga um poema ao outro. Se retomo aqui minha sugestão de que o título em Rizzi é uma pinceladas sobre pinceladas, é nesse entrechoque de apontamentos que a ideia de ciclo surge. E tanto que, nesse sentido, é provável que os ciclos em Rizzi estejam mais próximos dos ciclos, por si só considerados, que a construção comumente arquetípica que o acompanha quando em plagas literárias. Pois assim nós voltamos a povoar os ciclos e a pressupor vínculos que não precisam estar lá, simbolizados e feitos patrimônio, se estiverem no poema e depois em nós.
Movimento este, não restam dúvidas, dos mais interessantes de serem acompanhados de perto. Ou seja: o como, após um contato mais demorado com a poesia de Rizzi, vamos criando laços com as situações ali descritas. Pois a bem verdade, nota-se que os poemas de Rizzi constantemente chamam um outro, um “você”, e, apesar do saldo geral da parte “tudos” ser mais melancólica que a da parte passada, o que de fato acontece é que “ninguém chega a ser dois nessas andanças.” (samba de mesa pra folclorista, onde também é bom que se destaque a estrofe precedente, “triste é ter tempo gasto no vago, pra tanto mais, suas misérias, / que a luta de classes.”).
Claro também que isso está intimamente ligado à constituição de sua poesia, intimista mas sem ser exageradamente íntima, pois, como tenho apontado, se trata de uma poesia de lacunas, de modo que, naturalmente, o eu lírico também possui as suas para que sejam completadas pelo leitor: e aqui faço notar que não me refiro simplesmente à estrutura do texto literário, que, segundo a Estética da Recepção, marcadamente Wolfgang Iser, é feita de lacunas, e de tal modo que, visto não estarmos numa situação pragmática, em que poderíamos suprir as lacunas do texto por perguntas diretas ao interlocutor ou simplesmente checando nós mesmos, então, por bem do entendimento, é nossa missão preenchê-las ou no mínimo lidar com elas. Um exemplo simples, sem que necessitemos cair no extremo das vanguardas, é a passagem entre o final de um capítulo e outro. Se nos é dito que a personagem foi dormir e no outro capítulo que ela já está no trabalho, não temos como saber o que aconteceu nesse lapso de tempo: lacuna, portanto. Em Rizzi, o que acontece é um passo além: essas lacunas estão presentes no próprio eu lírico, na própria mensagem. Dentro do mapeamento da Estética da Recepção, que se assemelharia a um queijo suíço, as lacunas estão presentes até mesmo onde tem queijo, e não só onde tem buraco.
Pois a mensagem que Rizzi comunica é via de regra uma mensagem lacunar: é uma mensagem de falta ou de ausência, seja essa falta ou ausência a da pessoa amada, seja a da personalidade histórica soterrada na ignomínia da narrativa oficial. Ela como que radicaliza a proposta gadameriana de que toda interpretação é historicamente mediada ― na verdade, até mais do que isso: ela é historicamente constituída, e de tal modo que, para Gadamer, “A consciência histórica que quer compreender a tradição (...) Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade.” (p. 532) É aqui que Gadamer vai um passo além de sua célebre formulação de que o processo hermenêutico é uma fusão de horizontes, isto é, meu horizonte enquanto ser historicamente posto fundido ao horizonte da obra também enquanto historicamente posta, e de tal modo que entre ambos sempre medeia a tradição (como se eu e a obra fôssemos duas bolas de alumínio lançadas dentro do tanque d'água da tradição). O processo hermenêutico opera também uma abertura: “(...) a consciência histórica efeitual vai mais além da ingenuidade deste comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão de verdade que vem ao encontro dela.” (p. 533) Páginas atrás, discorrendo sobre a história efeitual (isto é, os efeitos históricos), Gadamer resume: “Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se.” (p. 451) Isso quer dizer que sempre que vamos discutir sobre a história efeitual, devemos entender que estamos numa situação hermenêutica de tal modo que é um verdadeiro contrassenso afirmar que estamos diante dessa história efeitual, mas, antes, que estamos sempre nela: daí que, sendo nossa a tarefa de iluminar tal situação, nós nunca poderemos fazê-lo de forma total. Por isso nunca se esgotar no saber-se. E é nessa esteira que afirmo que a Rizzi radicaliza os conceitos gadamerianos.
Mas voltando. O fato de ser intimista mas não de modo exagerado é também visto no fato de que a mecânica geral da obra, toda ela em apontamentos e climáticas, favorece a inclusão do leitor não só como “perito” que reconstitua o que de fato aconteceu, senão como xamã que incorpore o frêmito que se alastrara. Ou, citando o improviso pra separação, “ao vermelho que te brotou dos olhos / a doçura da minha língua.”, ou ainda citando o próximo, primeira cantata pra depois do nunca mais,
Claro também que isso está intimamente ligado à constituição de sua poesia, intimista mas sem ser exageradamente íntima, pois, como tenho apontado, se trata de uma poesia de lacunas, de modo que, naturalmente, o eu lírico também possui as suas para que sejam completadas pelo leitor: e aqui faço notar que não me refiro simplesmente à estrutura do texto literário, que, segundo a Estética da Recepção, marcadamente Wolfgang Iser, é feita de lacunas, e de tal modo que, visto não estarmos numa situação pragmática, em que poderíamos suprir as lacunas do texto por perguntas diretas ao interlocutor ou simplesmente checando nós mesmos, então, por bem do entendimento, é nossa missão preenchê-las ou no mínimo lidar com elas. Um exemplo simples, sem que necessitemos cair no extremo das vanguardas, é a passagem entre o final de um capítulo e outro. Se nos é dito que a personagem foi dormir e no outro capítulo que ela já está no trabalho, não temos como saber o que aconteceu nesse lapso de tempo: lacuna, portanto. Em Rizzi, o que acontece é um passo além: essas lacunas estão presentes no próprio eu lírico, na própria mensagem. Dentro do mapeamento da Estética da Recepção, que se assemelharia a um queijo suíço, as lacunas estão presentes até mesmo onde tem queijo, e não só onde tem buraco.
Pois a mensagem que Rizzi comunica é via de regra uma mensagem lacunar: é uma mensagem de falta ou de ausência, seja essa falta ou ausência a da pessoa amada, seja a da personalidade histórica soterrada na ignomínia da narrativa oficial. Ela como que radicaliza a proposta gadameriana de que toda interpretação é historicamente mediada ― na verdade, até mais do que isso: ela é historicamente constituída, e de tal modo que, para Gadamer, “A consciência histórica que quer compreender a tradição (...) Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade.” (p. 532) É aqui que Gadamer vai um passo além de sua célebre formulação de que o processo hermenêutico é uma fusão de horizontes, isto é, meu horizonte enquanto ser historicamente posto fundido ao horizonte da obra também enquanto historicamente posta, e de tal modo que entre ambos sempre medeia a tradição (como se eu e a obra fôssemos duas bolas de alumínio lançadas dentro do tanque d'água da tradição). O processo hermenêutico opera também uma abertura: “(...) a consciência histórica efeitual vai mais além da ingenuidade deste comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão de verdade que vem ao encontro dela.” (p. 533) Páginas atrás, discorrendo sobre a história efeitual (isto é, os efeitos históricos), Gadamer resume: “Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se.” (p. 451) Isso quer dizer que sempre que vamos discutir sobre a história efeitual, devemos entender que estamos numa situação hermenêutica de tal modo que é um verdadeiro contrassenso afirmar que estamos diante dessa história efeitual, mas, antes, que estamos sempre nela: daí que, sendo nossa a tarefa de iluminar tal situação, nós nunca poderemos fazê-lo de forma total. Por isso nunca se esgotar no saber-se. E é nessa esteira que afirmo que a Rizzi radicaliza os conceitos gadamerianos.
Mas voltando. O fato de ser intimista mas não de modo exagerado é também visto no fato de que a mecânica geral da obra, toda ela em apontamentos e climáticas, favorece a inclusão do leitor não só como “perito” que reconstitua o que de fato aconteceu, senão como xamã que incorpore o frêmito que se alastrara. Ou, citando o improviso pra separação, “ao vermelho que te brotou dos olhos / a doçura da minha língua.”, ou ainda citando o próximo, primeira cantata pra depois do nunca mais,
tenho acordado em lágrimas, a pele desfiando
como se tivesse perdido alguém que nunca tive.
venho a me transbordar porquê nada existe.
porisso há tanto
- ser triste.
A busca nessa segunda parte é a do consolo. “doído / é descalçar as nuvens”, a autora diz em barcarola em dó bemol. Posso também colocar na mesa o final de suíte pra cravo em lá menor: “fim de feira, rebelião. // fere, consola? // - ali, é um lugar que não conhecemos.” Creio que mais ou menos a partir da primeira barcarola (“é preciso me afogar de você / como se fosse morrer.”, onde, é claro, destaco o “de”) o livro dá uma guinada rumo ao desconhecido, ao vazio, como que num mergulho metafísico. Não espanta, sendo assim, que precisamente nessa parte a poesia de Rizzi se aproxime da poesia de Hilda Hilst, em especial das Odes Mínimas, onde o tratamento dado por Hilda aos objetos que povoam sua poderosa imaginação alcança o status de metafísico nem tanto pelo fato de serem vagos ou impalpáveis; na verdade, esta é uma correlação pra lá de ruim com a Metafísica; pelo contrário, a partir do momento em que estes objetos encontram-se numa relação corpórea com a poeta, a partir desse momento eis que emerge da superfície uma relação não raro erótica que tem na substantivação um mecanismo eficiente para caracterizar algo e a um só tempo constituí-lo de conceitos e ideias e impressões que, no fim das contas, lhe dotam de uma carnadura, uma verdadeira polpa que recheiam o embate que é metafísico apenas no sentido de encaminhar rumo à essência (seria mais o caso de demonstrar a essência demonstrando a importância do que é retratado: e daí a importância dessa forma de metafísica que parece dar mais valor à polpa que ao sumo).
É bom também que se destaque, não só nesta parte do livro, mas em várias outras do livro como um todo (com a diferença de que aqui, é claro, a necessidade sintética bate à porta), aquilo que venho tentando chamar de concisão elíptica. Contraposta à concisão imagética, via de regra pautada pelo delineamento de um espaço amostral que requererá do leitor uma leitura em foco (o tal do prestar atenção à cena retratada), a concisão elíptica consiste basicamente em fazer com que determinada parte do discurso seja subentendida por ter sido explicitada anteriormente ou por não ter sido explicitada de todo. Assim, ao invés de dizermos “A pois B”, dizemos simplesmente “AB”. Esse “pois”, discursivo, que explicaria para nós a razão de “AB”, é posto de lado pois de algum modo é tido como supérfluo, embora não necessariamente seja. Se pegarmos a poesia de uma poeta como Orides Fontela, reconhecidamente concisa, podemos ver tanto da concisão imagética quanto da concisão elíptica. Na concisão imagética também encontramos o olhar torto em relação ao que se espraia; a diferença, todavia, é que o espaço amostral desenhado bastará, e o objetivo é justamente o de que ele basta. Por mais que exista uma realidade pressuposta por detrás daquilo, o que basta é o que foi desenhado, e, de resto, se quisermos o exercício imaginativo de pensar o que existe além daquela cena captada com maestria, vamos, na prática, generalizar, expandir o espaço amostral descrito ou, no mínimo, cair em inferências mais nossas que de fato do poema. E o poema, de resto, não aceita esse tipo de coisa. O contrário é a concisão elíptica, onde o objetivo é o irrompimento, a explosão, o levar o leitor de encontro ao que não foi dito e não necessariamente ao que não foi mostrado. Pois o que não foi mostrado não o foi porque já foi dito, ao passo que o que não foi dito simplesmente não foi dito, sem querer dizer que ele não possa vir a ser mostrado. O não mostrado porque já foi dito é redundância; o não mostrado porque não foi dito é descoberta. Se tomarmos um poema como tocatta, de Rizzi,
deixo meus olhos caírem
sobre a ramagem que o vento secou
e eles se molham
Ficamos encucados com a razão dos olhos terem se molhado depois do vento os ter secado. Me parece nítido que existe uma concisão elíptica como mola mestra do poema. E a grande característica do uso da concisão elíptica na poesia contemporânea é o fato de que ela empurra o leitor a buscar explicações em si mesmo, leitor. Ela envolve um quesito de impacto que não tem bem como objetivo a fórmula poundiana de poesia como equações matemáticas; ela busca o irrompimento, a explosão, ela coloca tudo aquilo que não foi dito numa área que não é exatamente uma área supérflua, mas uma área emocional em conjunto, vale dizer, ela nos leva a buscarmos em nosso arcabouço emocional humano as razões de AB.
A incursão metafísica com que fecha a segunda parte, extrapolando o “tudos”, pode ser descrita como aquele momento em que a experiência compartilhada, da mais fundamental importância para o funcionamento da concisão elíptica, chega a zonas onde só um dos lados, quiçá nenhum, pode pisar: e aqui voltamos para “- ali, é um lugar que não conhecemos.”, ou, citando o final do poema posterior, sol pra lira e mini-violino turco, “só um gosto malamaiado, doce / das coisas primitivas.” Alguns funcionamentos tipicamente hilstianos estão presente de volta, dado que a construção em sugestões e apontamentos dos títulos em poemas de grande concisão e escalonados em ciclos nos leva àquilo que, na poesia de Rizzi, é o âmago do espaço compartilhado: a História.
VIII
Pude comentar antes o “quases”. Se considerarmos, com Pound (no ensaio Date Line, de 1934), que épico é o poema que inclui a História, faço ecoar aqui o comentário de Paul Ricoeur sobre a questão das narrativas histórias oficiais e a consequente supressão que operam, corolário de sua estrutura narrativa (tradução da tradução de Kathleen Blamey e David Pellauer; Memory, History, Forgetting, editora University of Chicago UP, 2004, p. 85):
(...) a mais-valia [surplus value] que a ideologia adiciona à crença oferecida pelos governados em resposta ao apelo de legitimidade feito pelo corpo de governantes apresenta uma textura narrativa: histórias de eventos fundadores, de glória e humilhação, alimentam o discurso de lisonja ou de medo. É assim que se torna possível explicar os abusos expressos de memória no nível do efeito de distorção pertencentes ao nível fenomenológico da ideologia. Neste nível de aparição, a memória imposta é armada com uma história que se proclama a si mesma “autorizada”, a história oficial, a história publicamente aprendida e celebrada.
A preocupação em permitir que vozes marginais da História ganhem voz é a preocupação presente na faceta social da obra de Rizzi: e por isso que não creio que classificar sua poesia social como “participativa” seria uma boa. Sei que os jargões se repetem de forma inconsequente quando falamos de qualquer obra com ressonância social. Grande parte deles seria extirpado se realmente discutíssemos de forma mais séria a realidade sempre-já social da poesia: ou seja, a partir do momento em que ela se vale da língua, instrumento comunitário, não faz sentido pensar em como ela não seria social. Daí não se segue, concordo, que toda a poesia queira refratar alguma estância social de maneira direta, embora seus posicionamentos sempre guardem dentro de si influxos do social. Só que também não se segue que podemos valorar tais ressonâncias, antes mesmo de sequer começarmos a interpretar a obra, como secundárias, ou então incluí-las todas dentro do papo furado que cria uniões incrivelmente fracas entre termos como “poesia social”, “poesia participativa”, “poesia panfletária” etc. É preciso cuidado. Afirmar que a poesia de Rizzi é participativa ou pode ser simplesmente inócuo, visto que seria impossível para a autora pensar em como não participar, ou então pode ser um movimento que entraria em desacordo com a necessidade de recuo que sua poesia apregoa.
A preocupação a que me referi, de permitir que vozes marginais da História ganhem voz, é uma preocupação que vai de encontro ao que, capítulos depois, Ricoeur identificou como o sentido de morte presente na historiografia, ou seja: “Como, de fato, alguém pode ignorar o simples fato de que na História ele está preocupado com praticamente apenas os mortos de outrora?” (p. 364) Dentro de sua aporia fundamental de que tanto a Memória quanto a História tratam do que já passou e portanto está inacessível, embora, e este é um aspecto que Ricoeur salienta com frequência, um dia tenha sido, não podemos ignorar este chamado, o que não implica dizer que tornamos a escrita historiográfica uma espécie de teatro das sombras. Antes, é necessário considerar “a operação histórica como sendo o equivalente escritural do ritual social de enterro, o ato de sepultar.” (p. 365) O ato do sepulcro não é simplesmente construir um lugar onde como que desovamos os mortos; é um ato contínuo; não é pontual. Citando Michel de Certeau, Ricoeur dirá que a História é o discurso organizado em torno desse “presente que falta”, o que, cominado à ideia da escrita histórica como próxima do sepulcro e à ideia de que o que está morto está morto, mas um dia estivera vivo, resultará na afirmação de que “A ausência é não mais um estado mas o resultado da obra da História, a verdadeira máquina de produzir lacunas [gaps], dando azo ao heterogêneo, o logos do outro.” (p. 366)
Já no primeiro poema da sequência, auto-tempestade nº 1, vislumbramos, com ecos daquele Drummond pequenino e tão grandiosamente histórico, o alcance épico que a poesia de Rizzi de repente chega:
A preocupação a que me referi, de permitir que vozes marginais da História ganhem voz, é uma preocupação que vai de encontro ao que, capítulos depois, Ricoeur identificou como o sentido de morte presente na historiografia, ou seja: “Como, de fato, alguém pode ignorar o simples fato de que na História ele está preocupado com praticamente apenas os mortos de outrora?” (p. 364) Dentro de sua aporia fundamental de que tanto a Memória quanto a História tratam do que já passou e portanto está inacessível, embora, e este é um aspecto que Ricoeur salienta com frequência, um dia tenha sido, não podemos ignorar este chamado, o que não implica dizer que tornamos a escrita historiográfica uma espécie de teatro das sombras. Antes, é necessário considerar “a operação histórica como sendo o equivalente escritural do ritual social de enterro, o ato de sepultar.” (p. 365) O ato do sepulcro não é simplesmente construir um lugar onde como que desovamos os mortos; é um ato contínuo; não é pontual. Citando Michel de Certeau, Ricoeur dirá que a História é o discurso organizado em torno desse “presente que falta”, o que, cominado à ideia da escrita histórica como próxima do sepulcro e à ideia de que o que está morto está morto, mas um dia estivera vivo, resultará na afirmação de que “A ausência é não mais um estado mas o resultado da obra da História, a verdadeira máquina de produzir lacunas [gaps], dando azo ao heterogêneo, o logos do outro.” (p. 366)
Já no primeiro poema da sequência, auto-tempestade nº 1, vislumbramos, com ecos daquele Drummond pequenino e tão grandiosamente histórico, o alcance épico que a poesia de Rizzi de repente chega:
tenho duas mãos, e o infinito escorrendo delas.
se de um lado peço abrigo, d’outro arranho invectivas
me deixo, lanço, largo.
em cada um dos olhos, claridade e escuridão. o óbvio.
e o que ninguém pode ver.
abissal névoa, navalha
Vamos aproveitar e citar o auto-tempestade nº 2:
todo sangue estancado. a ferida, caída casca.
tudo esquecido, fado, riso.
não fosse o menino na calçada, de mãos estendidas
a me lembrar de mim.
Embora considere já ter dado a resposta, vamos de novo: como é possível que uma poeta tão intimista de repente alce uma voz épica? Dentro dos preceitos clássicos, era necessário se ensaiar na lírica pra que só depois se alçasse a voz épica. Por incrível que pareça, e se digo incrível é tendo em vista que não é algo que se pode esperar encontrar hoje, a poesia de Rizzi internamente possui uma estruturação assim. Nos dois poemas observamo-lo. Já discutimos estas questões. O convívio proposto pela poesia de Rizzi não é um convívio vinculado apenas ao presente. É preciso que se encare as lacunas históricas e os corroimentos recorrentes e impostos que nos moldam a essência. Preciso que se entenda que “a solidão de fora não é maior que a de dentro.” (a noite, invisível, onde destaco esse “invisível” do título que é um belo de um soco no estômago: “o lixo sim: brinquedo, comida.”).
E aqui retomo a homília: quando falamos em poesia social, é preciso primeiramente desacoplar uma série de preconceitos que a enxergam puramente como poesia panfletária. Como se a poesia panfletária fosse por si só um mau... De fato, quando a poesia não cumpre com equações poéticas básicas, digamos assim (reconheço que é uma expressão muito perigosa), ela, no mínimo, perde a chance de ser um discurso ainda mais explosivo do que via de regra é. Todavia, a poesia social continua sendo uma faceta poética tão válida quanto a da poesia amorosa, embora, é claro, praticada com um recato e um temor injustificados. No projeto poético de Rizzi, o que observamos é que existe uma coerência e uma busca que fazem com que a autora baile de um lado para outro com grande felicidade, pois, como se pode notar a respeito da poesia social de maneira mais ampla, ela é tanto maior quanto maior é o conluio entre a questão pessoal e a questão social, e pois também, como pudemos notar, sua constituição individual vai de encontro à figura do Outro por natureza, resistindo contra a indiferença (“o peso morto da história.”, ela diz em tese xv; note-se, a esse respeito, a sutileza que um termo como indiferença tem se nos lembrarmos que o marchar da História parece ser precisamente o de apagar as diferenças e, em suma, revelar que “há um Alegria Contagiante capaz / de viajar ancestralidades, ocupar, resistir, produzir: / a terra, o sonho, um amor camarada.” ― das renascenças). E não só isso, pois, como também vimos, a poesia de Rizzi entende que a aventura do indivíduo não é nem um pouco simples num mundo onde, como ela nos diz em desnotícias, “então era assim, eu não morria, / minguava.”
Podemos observar o impacto da faceta social de sua poesia quando lemos um poema infelizmente tão atual: é impossível dormir com um silêncio desses.
sou pastinina desde que nasci
e há pedaços em mim por todos os lados.
há cacos de mim chovendo em is
rael: gritavam eles. e era um nome. uma criança.
eu era um mapa recortado pelo ismo.
ismo, doente.
dos fados e brados queremo-nos juntar
os puzzles, os filhos, a chuva de mim, deles.
mais mares que ilhas.
Ainda estou guardando o comentário formal para a próxima sessão, mas, de todo modo, é impossível não notar como o corte súbito das palavras vai de encontro à imagem tão poderosa da primeira estrofe. Quando disse que o ser humano em Rizzi deve encarar suas próprias lacunas, também estava considerando essa faceta literalmente triste. Pois aqui o leitor há de se relembrar do poema jongo ojo-bo e da descrição dos outros como mares e ilhas. E de fato: muitos poemas dessa parte irão remeter o leitor a poemas que já lidos. Para citarmos outro exemplo, fiquemos com a tese xiii que, além de se correlacionar com o texto de Benjamin (a marcha do progresso sem vínculo algum com a realidade), se correlaciona com as leituras que fizemos do escatológico na poesia da autora (ou seja, de que o escatológico/prosaico retém o afeto com que povoamos o mundo) bem como com o poema do olho que, jogado na ramagem que o vento secou, molha-se. Ou caso queiramos ficar com mais dois, temos os rins de segundo elogio para catherine day, desta vez sem a amada (“- há cidades trespassando meus rins, / o chão frio, nuvens escuras, pelos.”) e observando o amor infelizmente como uma esfinge (“- tenho todas as cidades pra tirar da tua carne, / enquanto restituo o lábio, a esfinge.”), ou então novamente as partes preteridas do corpo em a saliva, o suspiro: “houve tempo em que só havia por destilado os caninos.”
Relacionar-se com as coisas do mundo, sendo assim, ganha um “novo” significado (entre aspas pois podemos afirmar que é o velho significado de sempre). Podemos dizer que é como se a autora tomasse consciência daquelas coisas que não ocupam seu círculo de afeto (logo, coisas obscuras, sem brilho, como retratadas em rhythm and poetry ou bethoveeniana). Coisas subjugadas, neutras, certo modo indistintas de serem coisas de fato ou seres humanos. Coisas cotidianas, conforme o longo poema dialo(n)go com o gato, subversivo dentro da poesia da autora por ser longo, por ser apático, todo programado de verbos que prescindem de sujeitos, de comparações com máquinas, de ausência metafórica, de violência própria: “: enquadrada. igual. estúpida.”
Ou, voltando um pouco: “tento lembrar que não resta bondade / além das impolutas flores // - amarelas.”, diz em una scatola di sette o cinquanta sterline, quando, um poema antes (estação), chega à síntese: “matéria delicada e bruta, me amam.” E se lembra: “mas eu ainda estou por vir.” Aqui será prudente ao leitor não ler esse “eu” como apenas um “eu”. “mas se adoram a carne em transe, / cospem os lábios livres / me acusam, abjetam, renegam // por que eu sou mulher.”
Podemos, em suma, nos relembrarmos dos pés, tão importantes na caminhada da autora:
não é a terra:
andam estrangeiros
meus pés.
Como no poema 25 de Desterrar, do poeta e prosador americano Paul Auster, é “(...)Como quem diz que / onde quer que estejas / está o deserto contigo. Como se, / onde quer que te movas, seja / novo o deserto, / e se mova contigo.” (trad. Caetano Galindo). Não pretendo voltar a esta citação, mas seria interessante se o leitor pudesse guardá-la. Pois é decorrente dos pés andarem estrangeiros, e não exatamente pelo fato da terra ser estrangeira, que a poeta constata (constatação), “de constelações e pantomimas pálidas encardi minha palavra. / e silêncio.”, antes de fechar o livro de maneira chocha (epitáfio): “aqui / jazz / mim”
Como chegamos a um fim tão melancólico?
Notamos que, a bem da verdade, desde o final da segunda parte a poeta já havia se lançado num perigoso salto metafísico que aparentemente varreu um pouco as reentrâncias cotidianas de sua poesia. Ou, para me usar de uma expressão melhor, é como se ela tivesse realocado o espaço do cotidiano em sua poesia com fins a se embrenhar nos “quases” que habitam seu redor. Daí a leitura marginal da história e daí, pra sair um pouco da ideia do dar a voz a quem não tem voz, a simples percepção da existência de silêncios. Daí a constatação que a autora faz. Daí o fato dela dizer que seus pés andam estrangeiros. Seria mesmo, posso me perguntar, um fim tão melancólico? Não me parece. Rizzi não é uma poeta triste. Em entrevista ao Imaginário Poético, a autora nos diz que tudo é poético, e cita até mesmo a tal da poeira que nos referimos agora pouco. Da mesma entrevista, destaco:
No processo civilizatório acabamos por nos silenciar, nos castrar, como se o sexo fosse uma coisa suja e que deve se esconder nas alcovas.
E
E as artes em geral cumprem também essa função social e de modo muito mais efetivo, porque nos toca e conscientiza através da sensibilidade, do lúdico.
Rizzi está muito mais para uma poética do júbilo e de alvíssaras que de quedas. Pode parecer estranho que, tão mergulhada numa leitura da História que se queira lúcida e em grande medida reparadora, ela encontre a felicidade. Se pro leitor pode parecer estranho, é com a mesma estranheza que lemos as declarações de um poeta como Guilherme Gontijo Flores sobre seu trabalho: a de que a alegria esteja sempre em alta conta. Citando desta vez uma longa entrevista ao Dardo,
As artes têm sim uma função social no mundo contemporâneo dominado pela ciência e tecnologia; a arte sensibiliza as pessoas para os problemas sociais de dentro pra fora, pela sensibilidade, logo de modo muito mais eficaz e efetivo.
E
Na infância tentei me suicidar uma vez. (...) Não tentei mais, sou apaixonada pela vida e nem umas dez me seriam suficientes. Mas talvez eu tenha inúmeras atividades para não sucumbir à melancolia, sim, eu sou muito melancólica, diante das angústias e injustiças do mundo, mas também por razões intrínsecas, e quando estou trabalhando (e aqui num conceito marxista que vai muito além do trabalho remunerado), fujo um pouco dos “passionalismos” e posso ter irmandade com as gentes, como escrito num poema.
Então, por mais que o ponto de partida da poeta seja triste, Rizzi é uma poeta resoluta e, à maneira do Gullar participante, que transformava a bruta matéria bruta de seu tempo em poesia e melhores dias, Rizzi consegue fazer o mesmo e com um processo análogo: o da resistência, o da esperança. Não sendo, desse modo, nem um pouco espantoso o fato de que um livro que começa com uma imagem da poesia enquanto ato doloroso, seja todo ele delicado (conforme já notado por Guilherme Gontijo Flores no escamandro) e termine não simplesmente com um epitáfio: termine com um epitáfio onde as palavras “jazz” e “mim” componham “jasmim”, pra não dizer, claro, na importância que o simples termo jazz tem em sua obra como um todo, tão musical não exatamente por ser melopaica, senão por se valer de todas as possibilidades de encanto que a música dá. Creio que posso explicá-lo melhor se disser que a poesia de Rizzi não me parece tanto melopaica por ser muito mais fanopaica: julgo, aliás, que a autora possui um número até alto de versos cacofônicos. Claro que seria de se perguntar se os versos cacofônicos também não poderiam entrar numa orquestração melopaica, o que, confesso, seria uma possibilidade extremamente interessante; mas não me parece o caso, uma vez que, tendo em vista mecanismos como o dos títulos e a dissolução que operam, a poesia de Rizzi não se encaminha tanto na transformação de um ritmo interior em ritmo propriamente poético, mas sim na transformação desse ritmo interior em andamento metafórico e imagético, criando aquela suspensão poética que me referi antes nem tanto graças à melodia presente em seus versos e sim ao alto grau de sugestão deles.
IX
Nina Rizzi tem algo de uma Emily Dickinson que houvesse passado uma estação no inferno e no paraíso de uma aldeia Massai de tambores quase calados pela TV nas aldeias de mulheres milenares carregando a água para guerreiros preguiçosos e sem ter o que caçar (ou contra quem guerrear) num mundo sem água para os elefantes enfurecidos que, um dia desses, investiram contra aldeias com a fúria sagrada dos animais — aqueles animais cuja solidão nós deixamos de compreender porque estamos ainda mais sós do que eles, entregues a terra desolada do mundo intranscendente para o qual a poesia é, ou deve se tornar, uma coisa “bonitinha” (como os versinhos do Cicero) ou então não é nada.
Comentário pra lá de doido, temos que concordar com Fernando Monteiro no que tange a construção de uma poética feminina num campo claramente masculino (conferir, a esse respeito, algumas respostas de Rizzi em sua entrevista ao Noticiando bem cono no texto A mulher lê, e escreve!, do Caderno Goiabada), bem como na comparação da solidão do animal selvagem na terra desolada com nosso mundo intranscendente. Pois Rizzi é uma poeta transcendental: transcendental e não metafísica (ou metafísica no segundo sentido que demos, de evidenciar a polpa). A comparação feita entre ela e Hilda com certeza é um ponto a mais pra assertiva; mas, afora o final da segunda parte do primeiro livro, não acho que vamos conseguir um liame muito bom entre as duas. O transcendentalismo a que me refiro, repito, não é um transcendentalismo metafísico, ou seja, que trabalha na esfera das essências, visto que a poesia de Rizzi é uma poesia muito mais carnuda, muito mais polpuda. É transcendental no sentido de que transcende a esfera do ser e se encaminha e se fundamenta no Outro. Por transcendental, entenda-se aquela forma peculiar de transcendentalismo que advém do transbordamento.
Mencionamos o tal do transbordamento fazendo uma visita à concisão elíptica. Podemos continuar mencionando-o se observarmos algumas características formais na poesia da autora.
Uma das maneiras é a dos neologismos, que vão desde palavras-valise (neologismos fracos, neologismos classe C) até aqueles que chamo de neologismos médios (classe B), ou seja, palavras que mudam de classe gramatical. Os neologismos mais radicais (classe A), vale dizer, composições que envolvem radicais de palavras, aparecem em menor número (e tanto que eu só consegui detectar “acampanhamento” no título de um dos poemas). Como exemplo de palavra-valise podemos citar “viouvi” de lastro: “a poesia dizia que a gente não ia mais parar / de se olhar. nunca mais, nunca mais. / e eu não li mais nada. quiçá viouvi.” O efeito via de regra é o da justaposição apressada (basta nos lembrarmos que as palavras-valise estão no coração de um livro como o Ulysses; e num poema como demmens, urbano à maneira do Ulysses, encontramos: “caminhávamos, ladoalado caminhávamos e ria”). Como exemplos de neologismos classe B podemos citar o verbo “braillar” de a um poeta: “meu corpo renascentista, fremente, vai / braillando, incendiando como um poema.” Ou então as palavras “quandos”, “tudos” e “quases”, que, apesar de não terem sua classe gramatical mudada, ainda assim são adulteradas à sua maneira, ganhando plurais que até então não existiam (e depois dos quais não podem deixar de existir). Ou o verso “eu te desinverno. te rio, te nuvem, te lua, te verão.” de fantasia pra jací e cussaruim, onde o efeito, além de muito interessante, reforça a ideia de ciclos aludida.
Muito interessante por quê?
Muito interessante porque existe uma ambiguidade nos termos usados. Não se tornaram simplesmente verbos no sentido do “braillar”, ou seja, tanto que foi até conjugado. Tornaram-se verbos por sua posição dentro da frase. E aqui notamos que a característica formal mais importante na poesia de Rizzi é o fato de que, dentro da disposição dos termos em uma frase, ela os embaralha de maneira inteligente, levando o leitor a fazer leituras desatenciosas ou, no mínimo, o levando a estranhar algo que não possui a rigor elementos novinhos em folha.
Por exemplo, na frase citada, não há nada de novo em termos como “rio”, “nuvem”, “lua”, “verão”. Eles ganham um significado totalmente outro ali, naquela posição da frase. É quando são alçados à condição de verbo, o que, por conseguinte, lhes dá uma carga temporal diferenciada, pois passam a ser objetos dinâmicos e correlacionados com o sujeito. Mas, como dito, existe também o exemplo de estruturas sintáticas normais que acabam escondendo armadilhas para o leitor desatencioso. Seria o caso da primeira estrofe de à beira da baía: “às margens do sena, no dezenove de junho / violinistas tocam estrelas pelos meus olvidos.” Não será uma nem duas vezes que Rizzi irá se utilizar dessa brincadeira de trocar “ouvido” e “ouvir” por “olvido” e “olvir”. Um simples L que é o suficiente para transformar a experiência sensória em assunto do esquecimento. Num plano semântico, podemos dizer que esse tipo de alçapões dentro de sua poesia partem, naturalmente, de posições estratégicas e até mesmo de momentos estratégicos, e possuem como consequência direta a desconstrução da familiaridade rumo à reposição de outra familiaridade que não se encontre nem na gramática e nem nos dicionários: a familiaridade subjetiva, algo sem dúvidas difícil de ser alcançado pois, Rizzi houvesse sido uma poeta de neologismos mais radicais (como neologismos à Sousândrade e à Odorico Mendes), e pelo menos o lado da familiaridade iria pro brejo. Dessa maneira, há um espaço compartilhado, há uma competência compartilhada que de repente é embaralhada pelo simples fato de que estamos mergulhando numa subjetividade pra lá de rica. Daí os trocadilhos muitas das vezes simples que desviam nossa leitura mas que ao mesmo tempo não são inteiramente capazes (e nem querem ser capazes) de apagar a semelhança com as opções, digamos, “normais”. Por exemplo, ao trocar “ouvido” por “olvido”, é claro que Rizzi quer manter tanto um significado quanto outro, e ela somente o consegue graças à posição estratégica dos termos; é muito diferente de trocarmos um “olhitáurea” à Odorico Mendes por “com olhar de touro”. Outro exemplo bom desse recurso é o da “rosa gritante” de flauta pra n'zinga, “ai, amor, são necessárias rosas de um rosa gritante”.
Ainda acerca dos neologismos, pois a discussão dos neologismos está próxima da preocupação com a familiaridade na poesia da autora (por exemplo, veja-se o caso de “amanheser”), disse que neologismos de classe A são pouco encontrados na poesia de Rizzi. Reafirmo o que disse. Mas é importante notar que a poeta possui um apreço especial com o desmantelamento das palavras, mais uma vez buscando a familiaridade subjetiva a que me aludi: ou seja, a possibilidade de que ela possa nadar na corda bamba e permitir tanto uma interpretação quanto outro. Na trilogia amor, líamos:
o lixo interrompido pela melo-dia-voz
: como não dizer
que tudos quero?
O processo à priori foi pouco usado no primeiro livro, apesar de que, nos poemas anteriores, ele tenha sido usado com inteligência (e só me resta lamentar o fato da autora não se enveredar mais por seu uso). A ideia aqui é clara: desmantelando palavras, mostrando seu esqueleto, a autora cria uma etimologia inventada que ganha coerência no plano poemático. Cá e lá ela consegue resultados verdadeiramente surpreendentes com um esquema assim, pois permite enxergar palavras dentro de palavras, como em (é impossível dormir com um silêncio desses):
eu era um mapa recortado pelo ismo.
ismo, doente.
O segundo verso, caso o leitor não tenha captado, tem que ser lido de trás pra frente (leitura respaldada na lógica do poema, de pedaços pra tudo quanto é canto): ismo, doente; doente+ismo = doentismo.
Minúsculas iniciando os versos é algo que, quando muito, aponta sua filiação a um tipo específico de verso livre que remonta a Carlos Williams, Gullar. Tipo de verso, diga-se de passagem, de grande apreço por muitos poetas contemporâneos, embora em Rizzi ele não possua a fragmentariedade inerente destes autores: ou seja, é um verso livre que tende à concisão e não à expansão dos momentos originários do verso livre (a raiz whitmaniana). Mas na poesia da autora não há muito o que se destacar de tal uso. Provavelmente o significado direto desse tipo de composição que consiste numa espécie de democratização de termos. Assim, tendo em vista que a poesia de Rizzi baila em muitos registros linguísticos, desde os advindos de culturas específicas (especialmente a africana) até os registros técnico-científicos (o “esternoclidomastóideo” de flauta pra n'zinga) bem como os sociais (o “minino” de composição em cinza e verde, ou o uso reiterado de síncopes como “pra” ou “co'a”), a composição em minúscula coloca todo mundo em pé de igualdade. Até o título. Até os nomes de lugares (“shakespeare company”, “musèe d’orsay” de rhapsodie pour cécilien). Até as palavras estrangeiras (“chiaroscuro” de acampanhamento pr'araim, em lugar de conto).
Na poética lacunar da autora, essas coisas de familiaridade subjetiva nas estruturas sintáticas, nitidamente calcadas em aberturas feitas por um troca-troca de palavras, bem como essa ideia de peso igual pra todo mundo, são coisas que ajudam sobremaneira na hora de escrever poesia, vale dizer, linguagem ligada à sua máxima voltagem, vale dizer, fontes semânticas até os poros. Mas é bom também que se note o fato de que, apesar de estar em versos livres, os poemas são bem pontuados sintaticamente (abandonando, sendo assim, aquela espécie de suspensão sintática que muitos tipos de verso livre possuem ― como os de Williams e Gullar ―, fazendo de cada verso uma espécie de estrutura sintática à solta no espaço), certamente que já prevendo o momento certo pra dar o bote no que tange o troca-troca de palavras, bem como no posicionamento da vírgula em muitos poemas, análogo ao posicionamento mais uma vez de Hilda Hilst, ou seja, a frase se desenvolve toda e, lá no final do verso, a vírgula é usada geralmente pra incluir mais um adjetivo que ajuda na caracterização da frase como um todo (funcionando como uma espécie de característica atrasada que se aproveita da carga de significados que foi se desenvolvendo ao longo da frase, sendo, por isso mesmo, mais carregado que se fosse incluso lá no começo ou no meio), e ajuda também a deixar o final do verso mais pesado, aumentando a carga dramática de uma maneira quase que essencial para alguém que calca sua produção poética majoritariamente em poemas pequenos, epigramáticos, de curto alcance. Veja-se, por exemplo, o funcionamento da palavra “diáfana” em outro estudo pra o silêncio
a perene lembrança do teu nome deságua, diáfana
nas nascentes do meu rio mais comprido.
Como a vida do poema curto é uma aposta na sua singularidade e na sua força, na possibilidade de que ele seja o bastante em fazer com que falemos mais do que ele de fato diz, o recurso da vírgula e do adjetivo é quase que uma saída de emergência. Claro que no exemplo citado o “diáfana” introduz também um cavalgamento que, de resto, é raro de aparecer em poemas curtos, mas que acaba dando um ritmo entrecortado interessante para o poema. O poema posterior, lastro, se vale muito de efeito parecido, sem, contudo, o recurso ao adjetivo no final.
Por fim, faço notar o uso do dois pontos e do travessão no começo de versos. Aqui o que vale ser notado é que travessão e dois pontos acabam tendo significados mais ou menos distintos. Os dois pontos são a maior parte das vezes usados em situações de exemplificação, ao passo que o travessão é usado em situação de retificações. No caso dos dois pontos, às vezes eles estão simplesmente deslocados: ao invés de colocar, por exemplo, os dois pontos no final do verso 1, ela os coloca no começo do verso 2. Vejo exemplos desse tipo nos poemas anteriores ao primeiro livro, mas, no primeiro livro, você pode observar o processo em dialo(n)go com o gato. Como o poema todo é feito de comandos que partem sabe-se lá de onde (e nós não precisamos saber de onde eles partem, pois, dentro do título, temos um dia longo pela frente), a ideia é de que a premissa que fundamente o antes aos dois pontos se perca, de modo que, por exemplo, analisando os primeiros versos (“: arranjar algum dinheiro. / rasgar os contratos. / ... escrever a carta.”), o que temos logo de cara é a perda do que explica o fato da poeta querer arranjar algum dinheiro, rasgar os contratos etc (o mesmo é também feito, claro, pelas reticências do verso 3). No âmbito dos travessões, a preferência é que eles sejam usados no começo dos versos, servindo ou de retificações ou então de ancoradouro, isto é: aonde deságua o verso. Reobservemos, por exemplo, de sutra pra allen ginsberg, “desde que mijamos e cagamos juntos / tudo me parece mais verdadeiro, menos afetado / - tudo poeticamente real.” Mas, pra citar aquele que a meu ver é o exemplo de melhor utilização do travessão na poesia da autora, reobservemos, de tambores pra n'zinga,
um projétil me alcança as retinas
sob o véu da lombra à razão
sob os dedos da turba à cúpula
- bucólica. melancólica.
- erótica. pornográfica.
O uso dos travessões estrategicamente posicionados impele o leitor a, no mínimo, permutar suas leituras. O que, no âmbito do poema, provavelmente o fará ficar com a triste descoberta de que tudo no final dará na mesma.
X
Enfim chegamos ao título do segundo livro de poemas da autora: a duração do deserto (editora Patuá, 2013).
Como assim “a duração do deserto”? Qual seria a duração do deserto? Como falar de deserto numa poesia tão vívida como a de Rizzi?
Seria o caso de, à guisa de Micheliny Verunschk, falar da geografia íntima do deserto? Poderia até ser, com a diferença de que, enquanto Verunschk possui uma filiação cabralina, Rizzi já faz parte daquela espécie de leva de poetas que, nos dizeres de Paulo Henriques Britto, pela primeira vez está conseguindo se desvencilhar do nome do pernambucano. Assim, se uma das estratégias comuns a Verunschk é a do que sua voz seja uma voz contida, ou a de que ela tenda a uma poesia permeada de descrições, em Rizzi, como vimos, à maneira de uma linhagem ceciliana (condimentada, digamos assim, com a relação tortuosa que se pode ver na poesia de Ana C.), o trabalho do sentimento tende ao transbordamento e ao seu manuseio e amoldamento.
Poderíamos também, ao falar do deserto, tomar como base o deserto dos tártaros, a duração é a de uma vida inteira. E mesmo que seja a de apenas alguns instantes, presume-se que estar num deserto é dose pra elefante: a duração é insuportável. Então, como fica? No comentário de Fernando Monteiro, ouvimos falar de terra desolada. Não se referindo à poesia de Rizzi, é claro, pois, em ser poesia da salvação, é à terra desolada que ela se opõe. Se bem que...: “é claro”? É tão claro assim? Se voltarmos ao clima de desolação dos últimos poemas do livro anterior, que tal revivificarmos uma imagem de Rizzi como poeta triste? É o que ela se torna com um título assim, não acham?
Vamos direto ao ponto: a duração do deserto quer dizer, precisamente, vislumbres do deserto. Miragens de cabeça pra baixo, onde, ao invés de oásis em solo dourado escaldante, temos solo dourado escaldante de repente visto num oásis, o que torna a poesia de Rizzi numa poesia de vislumbres, uma poesia que retira os vários e vários véus interpostos a nosso contato com a realidade. A esse respeito, é bom nos lembrarmos das reflexões de Slavoj Žižek em cima da frase de Morpheus em Matrix (“Bem-vindo ao deserto do real”, quando Neo acorda numa cidade arrasada, fora da realidade artificial) e do 11 de setembro: explicando resumidamente, o 11 de setembro foi também uma forma de dizer “bem-vindos ao deserto do real” a nós, consumidores da belicosidade apocalíptica da indústria cultural. Foi uma forma de colocar nossos pés no chão. E esta é a duração do deserto: a de que ele está escondido e a de que ele dura. A de que a realidade é dura (e eu não duvido nada que Rizzi tenha pensado nesses termos).
Isto posto, que se trata de um livro de fatura muito mais negativa é algo que só vai ficar mais claro. Senão vejamos, do prefácio de Jota Mombaça:
Eu disse a N. [Nina Rizzi] que este livro, lateral ao tempo e à História, resultado de sua dissociação radical em relação ao regime de luzes e à trama de invisibilidades que conforma realidade ao mundo, descrevia um esvaziamento (…) Que a carne destes poemas era a contranatureza precariamente viva que se impunha à duração do deserto, ousava existir o vácuo, a morte, o desespero e o isolamento para aprender a habitar catástrofes, atravessando-as (…)
Não resta muito o que ser complementado. O livro é feito de um poema-prefácio e três partes intituladas: alvorada, sol a pino e ocaso. O percurso do dia, é claro. O que talvez explique algumas características estruturais do livro como um todo se nos lembrarmos do fato por todos conhecido de que o deserto de dia é quente e de noite é frio.
O poema-prefácio parece ser uma espécie de contra-resposta. Difícil dizer a quem. E no final não importa muito. O que será bom de acentuar é os pontos a que ele chega, especialmente:
Minha antimatéria, tão pobre e lamentável
― a busca de profecias na noite perturbada
(…)
e esse desejo tão puro de uma delicadeza terrível,
um silêncio que se abra no poema.
Basicamente o que o poema quer dizer é: deixem que eu faço como estou fazendo; não me venham mandar enxertar coisas em meus poemas (as “palavras gordurosas”) nem colocar o escatológico apenas por colocar (o “chevrolet gosmento”) ou simplesmente aplacar, digamos, a musa canora (o “rivotril com água”). Quando Rizzi define sua antimatéria como profecias na noite perturbada, é como se ela nos dissesse que sua matéria poética é tida como antipoética não por ser ímpia; é antimatéria pois, ao contrário da matéria poética comum, advinda de um poeta que sobrepõe sua voz em relação às coisas, a poesia de Rizzi faz o inverso, nos impelindo a escutar esse silêncio que se abra no poema, vale dizer, que escutemos o que a princípio não podemos escutar pelo fato de que, em tese, não temos acesso. Pondo de maneira mais clara: Rizzi nos convida a escutar aquilo do que ela fala, e não que apenas escutemos ela, Rizzi, falando daquilo. Daí a impossibilidade a princípio de que a tarefa seja feita e redunde em silêncio, pois eu não posso escutar o que Rizzi fala a respeito: na verdade, apenas um círculo muito reduzido de pessoas o poderiam.
Só que as coisas não são bem assim. Quando Jota Mombaça diz que o livro de Rizzi é lateral ao tempo e à História, ele quer dizer que a rigor nós também podemos escutar o material poético que Rizzi nos convida a ouvir (pois estamos no mesmo fluxo histórico, embora, segundo Mombaça, Rizzi esteja lateral ao mesmo, não implicando com isso que ela esteja apartada). Trata-se de um convite que, para nomearmos apenas dois predecessores, vai de encontro ao uivo de Ginsberg e às caminhadas totalizantes de Eugénio de Andrade (como a de Passamos pelas coisas sem as ver). Isto é: podemos ouvir os tambores para n'zinga? Se o entendermos de maneira literal, certo que não. Mas se entendermos não só a percussão de si próprios, como também a repercussão do que representam, a resposta, de repente, é afirmativa.
Isso, é claro, faz com que escritor e leitor fiquem em pé de igualdade. Ou, para nos valermos da citação com que Rizzi abre a primeira parte da obra: “Onde não somos nós dois mas só um mesmo”, do poema No Deserto, de Sophia de Melo Breyner Andersen. Interessante, aliás, a escolha de Rizzi por um poema de Breyner Andersen, ainda mais tendo em vista que a autora possui uma obra predominantemente marítima (muitas passagens desta primeira parte serão igualmente aquáticas, como ao comparar seu útero a um polvo, “metade polvo, agarro as pessoas, desejo”, de I take care, I fit, come to me, come ye, jot, o “eco entre as águas” de pedagogia da oferenda, 1, bem como no posterior, chamamento pra transubstanciação etc). Quando o deserto aparece em seus poemas, Breyner Andersen segue o arquétipo do deserto como desolação, embora tal desolação sempre pressuponha uma outra figura que ou se perdeu (como no caso de Ausência) ou que ajudará a voz lírica a percorrer esse mesmo deserto e, por conseguinte, encontrar a si própria (é o caso de Para atravessar contigo o deserto do mundo).
XI
Bastará observarmos aurora simultânea sobre santa maría de onetti e grodek para notarmos como o deserto referido é o deserto a nosso redor. A bem da verdade, bastaria que olhássemos pra trás e víssemos de novo os “quases” do livro anterior. Aqui a coisa muda um pouquinho mais pois temos dois escritores que representam o imaginário (você pode ler mais sobre a cidade Santa María do contista uruguaio Juan Carlos Onetti aqui) e a crueza do real soterrada pelo soturno das metáforas (no caso, o poema Grodek de Georg Trakl, um de seus últimos, em tradução de João Barrento aqui). (Caberia também incluirmos o nome de Pound, pois a epígrafe do poema é o final dOs Cantos...) O resultado é o de um poema progressivamente escuro (favorecido não só pelas referências à cor negra mas também às reiterações do nome de Trakl, que tem um valor onomatopaico também) num poema que anuncia uma aurora simultânea. Um aparente paradoxo que pode ser resolvido se nos lembrarmos que, no final do livro passado, a autora nos revelara que encardia suas palavras de constelações, pantomimas pálidas e silêncio. No aurora simultânea, lemos: “e somos tão sujos / e tudo é tão poderoso”. Nesta poética de vislumbres, será precisamente no silêncio que seremos capazes de escutar as vozes a nosso redor, assim como será na escuridão dos penhascos e nas pantomimas pálidas que enxergaremos a aurora não só raiando, como raiando simultaneamente em duas partes apartadas do globo, o que, por conseguinte, nos permite supor que o Sol nascerá para todos.
Duranta primeira parte a impressão é realmente por aí mesmo. Há um clima lírico inclusive mais intenso que no livro anterior, se notarmos que as aliterações e rimas aparecem com frequência. Todavia, o que desde já deve ser notado é que, a união venha a ser feita, e quando falo em união volto aos sentidos carnais do livro anterior, ela possui um fundo de escorraçamento implícito, o que o final de cantata ao namorado poderá confirmar: “e fiquemos pois amassados / e esquecidos ― em nossa sta. maría / calados como quem gane”; ou então são poemas calcados na ausência, na falta, na convivência com as próprias lacunas que os poemas anteriores ao primeiro livro se referiam, no que poderíamos citar “imaginário, onde nada é estrangeiro / como tudo; e guardo teu silêncio / minha língua, angústia e fim”, de I take care, I fit, come to me, come ye, jot.
Mas, como dito, a impressão na primeira parte é positiva. E reafirmo que certamente a construção marcadamente lírica dos poemas o contemple, visto que o que comentamos acerca dos títulos trabalhando mais um efeito que de fato um nexo causal ou coisa do gênero ― tal característica continua presente, sempre envolvendo uma espécie de mística que podemos observar nas sequências merindilogum pra vaqueiro e merindilogum pra barqueiro (merindilogum = jogo de búzios). Um pouco mais pra frente, a presença de Manuel Bandeira será marcada graças às sequências de “bandeirianas”. Aqui, claro, devemos ir de encontro aos alumbramentos do poeta e tudo o que eles implicam privilégio e plenitude: privilégio de um momento, de um conjunto de coisas em relação ao todo, e plenitude que aquele momento ou conjunto de coisas é capaz de causar na voz lírica, não raro trazendo consigo um turbilhão que se dê às margens da sensualidade (como seria o caso de um poema como o Maçã, conforme comentado por Davi Arrigucci Jr.). Daí a síntese do final de o quereres, “o poema comunica / o incomunicável // [a alma de bandeira]”.
Já será bom comentar o que os colchetes podem significar neste livro de Rizzi, bem como no papel que os pronomes oblíquos átonos possuem a essa altura do campeonato. O caso do artigo definido no título o quereres não possui nenhuma importância a meu ver estrutural, afora, claro, que ele substantiva a ação verbal do “tu” implícito ― e sobre essa tal substantivação vou comentar logo em seguida.
Vimos que a mescla de vocábulos é uma constante na poesia da autora, de modo que aqueles estratos de significado advindos de culturas relegadas ao exótico ou ao subterrâneo, à efeméride de serem simples fornecedores de radicais, contribuem para que exista uma espécie de suspensão mágica ao longo dos textos, o que é corroborado inclusive pela postura que a voz lírica assume em muitos casos (de feiticeira, vidente, poderosa, empoderada à maneira do canto de Alfesibeu na oitava bucólica de Virgílio). A desarticulação em prol das multiplicidades e de um universal que não negue seus pontos de partida é também um esteio para que se chegue a tal efeito, no que poderia citar o final de chamamento pra transubstanciação, “quase / como antes tempo-quando”, em que a suspensão temporal é literal, ou “- quando eu te amo, venta // e nunca mais parou a ventania”, de pastoral de yansã e a mulher que não sabe, no que tange essa universalidade caracterizada pelo que transborda. Deste último poema, cumpre citar a mecânica dos títulos e uma espécie de navegação em estados de desconhecimento ou carência que, sem espanto algum, comumente deságua em referências míticas (o caso, dentre outros, de outra pergunta retórica).
Dentro de uma lógica assim, que certamente vai de encontro pelo menos aos momentos de nossa história literária em que os acima aludidos estratos de significado advindos de culturas historicamente invisíveis foram elevados a princípio constitutivo do texto, como no caso do Macunaíma ou Grande Sertão: Veredas, ou ainda, para irmos um pouco mais a fundo, os encantos da prosa poética de Iracema, o Tatuturema de Sousândrade, os lundus de Caldas Barbosa, as descrições do Canto VII do Caramuru, passagens de Gregório de Matos etc (trabalhados das formas mais diversas, do exotismo simples ao interesse genuíno) ― é dentro de uma lógica assim que o uso de um procedimento como o dos pronomes oblíquos átonos pode por si só ganhar capital significância. Pois, com efeito, se notarmos exemplos como a barcarola lusobaiana, a bandeiriana, pensando em ratzel ou o noturno da avenida jaguarari, temos que uma inclusão assim fornece novas fontes semânticas para a acoplagem da partícula ao verbo, mesmo que a ocorrência seja correta gramaticalmente. De barcalarola lusobaiana, seria o caso do “foi-se”, que, à priori sem apresentar nada de mais, se inscreve na tessitura do poema e permite um contraste inteligente: “antónia tinha a cara imberbe, atônita quando foi-se / e nem mais nada se moveu”: isto é, de partícula servindo para realçar o sujeito, sem função sintática, a pronome reflexivo. É também na linha de referências ao sujeito que se localize o pensando em ratzel, de maneira que a referência ao criador do conceito de Espaço Vital se reflete no excesso de pronomes reflexivos que demonstram a ocupação sintática dos espaços ou justamente a sua exclusão, se lembrarmos do contexto (“entrei no salão // corte-me as unhas / há um rasgo profundo em seu meio”). Por fim, em noturno da avenida jaguarari temos um exemplo bem acabado da inventividade já aludida da autora, em especial no que tange sua preferência por criar uma tessitura que, aparentemente normal ou sem transgressões que terminem num estado novo de coisas, antes num interstício, dá complementos a um verbo que não necessita de complementos, “ser” ― isto é, prova que o pronome não é simplesmente uma referência externa, mas, talvez justamente por sê-lo, chega àquelas raias da existência em que ser é ser dirigido a um outro: a lógica lacunar que também já apontamos, em suma.
Acerca dos colchetes, me parece claro que eles representam uma intromissão dentro do plano poemático à guisa de uma nota de rodapé ou de um enxerto lembrado de última hora, tornando o que nos é enunciado em algo passível de uma espécie de fluxo da consciência. Se este nunca foi exatamente uma novidade na história da poesia, dentro do percurso da obra de Rizzi parece apontar no mínimo para um encasulamento que, vimos, é fatal para a poeta, dada sua necessidade de se sentir percorrida pelas tramas que a traspassam: ou, em cartas pedagógicas, “fecho o livro. e tudo. / o farfalhar das páginas, meu duplo.”
XII
Em alguns momentos do livro é possível que a impressão do leitor seja a de mais do mesmo, com a diferença, claro, de que o tom aqui perde muito do festivo ou da sensualidade tão latente do livro anterior. Os versos finais de casida a árbol de diana, creio, podem demonstrá-lo bem, ou, caso queiramos um exemplo a meu ver também ilustrativo,
desde a terra mais estranha ao inferno musical
todos os dias a acorda um poema no silêncio. o silêncio,
sempre, as moedas de ouro do sonho... ali, ébria de mil
poemas, fala. para saber que está debaixo dos meus olhos.
Em nouvelle vague, revela o que já sabíamos: “do que sou feita, mosaico.” Ares análogos é o que sentimos na dialética explícita de montagem dialética (compare-se: “tantas dimensões // como ser precisa?”, e deste eu destaco a ambiguidade mais uma vez do termo “ser”, com o livro de Akhmátova no colo), no escoadouro “os meus adereços / o desespero” de esculpir o tempo, no já citado pensando em ratzel, no começo de candomblé pra nanã: “as coisas continuam a me morrer”. Trocando em miúdos, vemos a voz lírica falecer na nossa frente, e o porquê certamente está na escolha, ou na própria escolha em si, de O candomblé de Flora:
Como ser verdade, representação? Gania
através o véu – um filho e o peso da crucificação.
Antes, girou para o mundo, ayè
ancestral de si
Vale citar o próximo poema na íntegra, onde destaco o último verso (o “entre” é também a espinha dorsal de pelo menos outra poeta contemporânea, Marília Garcia):
cantata pra deleuze e berkeley
quando ontem papai ligou
se abatiam meus pés as estradas velhas
era dia de véspera, a arder o oco do mundo
ainda agora mergulho o nada e a náusea
submundos, paraísos artificiais, o terrivelmente real
chegar entre
Já no final da primeira parte a poeta relatava, em terceira cantata pra depois do nunca mais, “brotou-me também um vermelho dos olhos / possível anunciação de que nada passará / do quase início, o nunca ter sido”, seguido do já citado cartas pedagógicas e, depois, de constatações lúgubres tal qual “Só o oco do mundo em lugar de nome e habitat.” em O segundo fragmento da flor e “Foi num doismilidoze que o mundo acabou / eu também morri.” de Mots sur la Page, o último da primeira parte. Certo, certo: deste último temos um final positivo:
Mas amanhã, eu viverei novamente
meu coração batendo ao ritmo do seu nome
o nome-mundo que habita
quando te crio verdade, poema.
Que a perda desse poder ocorra nas duas outras partes, ou que sua simples aplicação no final das contas não baste ― isto explicaria o tom negativo dos poemas seguintes, assim como “e já não há nada dorido em meus olhos / se pareço chorar fácil, é verdade / diante do que de fato importa”, de aurora sobre o rio angicos, primeiro poema da segunda parte, também explica muito. Na verdade, é provável que explique mais, pois, se entendemos que a lógica da duração do deserto seria a de vislumbres às avessas, temos que só diante do que de fato importa podemos explicar “the reason of why”, para citar o final de clouds above the ground, bem como só assim para podermos explicar a dialética entre a presença e ausência em otra casida a árbol de diana: “uma voz no silêncio da negra noite se insinua / silêncio presença que se embosca em minha letra-lembrança.” Daí “as coisas continuam a me morrer” em candomblé pra naná.
Isto posto, a terceira parte do livro imerge no círculo histórico-social à maneira da parte anterior, inclusive com notas e procedimentos parecidos, malgrado o tom francamente pessimista que a autora adota aqui, frequentemente se incutindo enquanto sujeito no cenário e não “se limitando” a descrições marcadamente subjetivas do que seus olhos presenciam. Os olhos de Rizzi, sabemos do final da parte passada, “não arriscaria ao mundo um olhar mais doce, menos / poético.”, o que equivale dizer também uma visão mais uma vez menos lírica e mais épica, isto é, uma visão que parta do princípio de adesão a um Nós. E não se trata simplesmente de um Nós que favoreça ou parta de princípios tidos automaticamente como universais; à guisa do que Luiz Filipe Castro Mendes, epígrafe desta terceira parte, cumpre olharmos para os poetas esquecidos e, por metonímia, para os esquecidos de madeira geral (“Ficaram pelo caminho. / Fizeram seu tempo.”), vez que a poesia de Castro Mendes é, como diz Francisco Ferreira de Lima, essencialmente dialógica, e vez que estamos a sós e esperando o fogo passar por nós (conforme Castro Mendes retrata em Que dúvida tinhas que o fogo passaria por ti?).
Será essa dialética do olhar, mais uma vez repito em tudo análoga à dialética exposta no livro passado, é que levará Rizzi a dizer, entre outros, “o homem que não me reconhece, o olho / do peixe morto. a arte, invisível.” (f2), e a completar espaços. Afinal, completar espaços, lacunas históricas estanques na base da paulada (veja-se “nada que se ajuste ao deserto dentro.”, em o tigre ama carne seca e “preciso dessa dor que me atravessa os idos / e o invisível, me rasgando a carne, até o levitar // dos ossos com a terra, esvaziar-se, des- / ser.” em outra variação pra atravessamento, contraposto, é claro, à transubstanciação de parte passada, e ambos demonstrando de maneira admirável o que estou apontando); tal ofício de preenchimento será um dos procedimentos chave da autora nos poemas que se seguem, não querendo dizer que ele será bem-sucedido. Pois o leitor não deve estranhar o trato de temas como o do massacre palestino que reverbera em Film, 1959 ou canção às proletárias de guerra ― ainda mais se ele se puser a observar que os veios do holocausto se confundem com o fluxo histórico rente à trajetória do míssil.
Os procedimentos formais da autora não mudarão: antes, buscarão ser reconfigurados para expressar o turvo. Veja-se a ênfase dada às partículas que compõem a palavra, que, se em partes anteriores buscaram privilegiar o que se guia em direção ao outro, aqui repercutem tons sombrios: “leio o que na estrada se prefixa em a, in, des”, do já citado f2 (o verso quer dizer: os prefixos citados são todos prefixos negativos), veja-se o abandono das minúsculas em prol das maiúsculas em estado normal, coloquemos assim, de poemas como POEMA SÓ PARA M. E YEATS, ou das maiúsculas postas em cada início de verso, como em AS IGREJAS DE LÁ SÃO AS MESMAS QUE DE CÁ, e veja-se as suspensões poéticas que, se até aqui costumavam ser trabalhadas no sentido de resistirem, de repente parecem se conformar, como no caso dos invernos pintados pelo aluno de aline em o inverno colorido (se bem que o poema suporta uma leitura contrária) ou no caso do maravilhoso O aroma do barro sobre a neve: “Chora, feliz: / quando estancar o sangue não / sobrará essa cor de menino carvoêro”.
de baldo à cidadela que me abriga os pés
a cidadela e baldo são a mesma e única
travessia, não-lugar.
É como abre die hochzeit, allee 4. A imagem dos pés, tão fundamentais pra que a caminhada prosseguisse e, à maneira do Ferreira Gullar que abria a Luta Corporal com seus pés inventando o caminho que pisarão, passasse a aceitar uma tarefa de trilhar e a um só tempo inventar o trajeto. Não será, quando percebemos um declínio de ares gozosos tão evidente, com espanto que leremos “vi um cachorro a devorar um gato estraçalhado / feito essas cenas que se repetem” em polaróides urbanas, nem que a autora aparentemente se renderá ao sem sentido de sem título por falta de sentido (digo “aparentemente” pois, compreendido sua inscrição histórica, o que pode ser visto num poema como FRAGMENTOS PISADOS DE UMA URNA GREGA, e compreendidas as reentrâncias de um verso como “e a realidade se transfere aos idos da memória.”, vemos que a falta de sentido não é um encaminhar-se ao nonsense, mas, pelo contrário, à brutal retirada de sentido, isto é, à condução ao desnorteio).
É quando surge escrita aos ímpares, que, além de ser o melhor poema de Rizzi, é o poema que consegue nos dar a dimensão maior da duração do deserto. Inclusive nos encaminha para uma reinserção da realidade que nos permita chegar à normalidade previsível, vale dizer, que, ao invés de enxergamos vislumbres de deserto no oásis, enxerguemos oásis no deserto, vez que nesta terceira parte o deserto finalmente se torna a regra. Pois uma vez que o deserto dura dando a entender que é para sempre, tão logo o vislumbre ocorra, a duração do deserto acaba em prol da duração de um momento de fecundidade maior,
É Gente.
De frio e escuro e solidão.
E pode ser Grande.
Se o que expus neste estudo foi suficientemente claro, não creio que haja muito o que comentar sobre o poema. Pois, à guisa de observarmos a capa do livro (feita por Leonardo Mathias, presumo), os borrões e as silhuetas que nos parificam de repente ganham um contorno vago, um convite à sensação, um convite a que desçamos mais e mais até que, de repente, sejamos capazes de nos re-conhecermos. Pois se a poeta nos diz “- Tenho me aperfeiçoado em ausente.” em SEGUNDA, ESVAZIAMENTO: ELOGIO, versos depois dirá: “- Sozinho, desolo-me; acompanhado, um oprimido.” Advirto, todavia, ao leitor que a segunda parte da expressão deve ser lida ao lado da agonia do insuportável em contrapoema ao homem do meu tempo, onde a atividade da opressão se deteriora quando a mensagem da autora no livro é a de que, para que vençamos a duração do deserto, é necessário que o façamos juntos, pois, conforme dito em ZONA PROIBIDA DO SER,
... Eu existo.
Basta um espelho para escarnecer o mundo-dentro.
Pequeno-mundo, a verdade se deita ao monstro do
nada
Compreendê-lo é compreender o motivo da autora fechar seu poema com um PRÓLOGO, aqui citado na íntegra para que o leitor consiga vislumbrar aonde o livro deságua:
Escavo o ancestral impossível – o Belo, o Sublime, a Verdade -
delicadezas em meio a um espólio de ruínas.
Contemplo o amontoado do passado, do que sobra
o real é o que não se pode ver, a não-adequação;
A constatação do absurdo:
A vida tem a duração de uma tragédia
começa pela manhã, termina com o dia.
De olhos bem fechados, lembro: deserto é esperar.
deserto é desesperar. deserto é dentro. deserto é o melhor jardim.
Silêncio. A duração do Deserto.
É por ter mergulhado tão profundamente na solidão e na desolação que a mecânica do segundo livro de Rizzi pode ser posta em correlação com o já citado escrita aos ímpares. Quando Cid Ottoni Bylaardt diz “Eis o deserto, a solidão fascinante da linguagem, a ameaça constante do desastre”, é certo que ele aproveita e chega ao ponto nevrálgico do desertificado que a autora expõe ao longo de seus poemas, embora seja de igual importância ressaltar que a ameaça constante do desastre é advinda menos de um perigo que de uma realização atordoante, traumática, fatídica, e que a suposta solidão fascinante da linguagem, como inclusive complementado por Bylaardt, é acompanhada de uma profusão não só de poetas (a intertextualidade que quase todos os comentaristas têm assinalado), como de indivíduos “(...) que se pega de repente com a mão: puro susto e horror.”
Mas também o contrário.