Leitura e conhecimento.

É conhecida a frase de Monteiro Lobato de que quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. Que ninguém saiba ao certo se a frase é de Lobato ou não demonstra, de maneira irônica, a forma como tratamos o conhecimento, dando a entender muito mais um título de nobreza do que de fato uma atividade. Além disso, devo notar que a frase de Lobato dá a entender, pelo menos é o que me parece, dois sentidos: um deles traria a ideia de que o processo de conhecimento está diretamente ligado à leitura e o outro versaria a respeito da ideia de que, se tratarmos de uma leitura ruim, então, por conseguinte, temos todos os efeitos apontados, de modo que a frase estaria preocupada não com os que não leem ou leem pouco, mas sim com os que leem mal.

O primeiro sentido é preconceituoso, pra dizer o mínimo. É um reflexo de uma cultura letrada num país de apego bizantino aos livros, pra usar a expressão do Sérgio Buarque de Hollanda. O que acontece com as pessoas de baixa escolaridade ou mesmo analfabetas? Não possuem conhecimento? Falam mal, ouvem mal, veem mal? Será que toda forma de conhecimento advém apenas dos livros? A consideração da sabedoria popular ou, verdade seja dita, da sabedoria, atesta precisamente o contrário. Dentro de determinado molde de conhecimento, é evidente que esse conhecimento não se encaixa; mas isto só pode se dar graças a uma operação violenta e a uma concepção exclusivista do conhecimento: quem disse que deveria se encaixar? Tudo tem que se encaixar ali, é isso? Oras: isso é, quando muito, uma forma elegante de tratar o conhecimento como um funil, quando ele deveria ser o contrário... Os padrões científicos do conhecimento possuem sua importância inamovível no que tange o fato de que podem ser transmissíveis, algo que simplesmente não ocorre com a sabedoria, visto que ela é basicamente experiência de vida e a experiência de vida nunca é a mesma para duas pessoas, e no que tange fornecerem uma garantia e uma certeza, ou seja, eles são comprováveis. Diferente, portanto, do caso da sabedoria que deve sempre lidar com uma margem de erro e, fosse a única maneira de conhecimento, então é de se admitir que em muitos sentidos nosso mundo tornar-se-ia algazarra. Basta que se faça o esforço de imaginar um mundo em que o conhecimento das leis físicas ou matemáticas não fosse conduzido com o rigor habitual.

É daqui que se tira a conclusão, assim sendo, de que à sabedoria ou ao conhecimento vindo da experiência, descarta-se. Uma conclusão apressada. Primeiro pois ainda precisamos da sabedoria nem tanto para que conheçamos um objeto ou fenômeno e forjemos um conhecimento que se faça universal; precisamos pois, resultado da experiência de vida, nossa ou de outros, ele é um conhecimento diretamente ligado a uma vida melhor. Hoje não estou muito bom com os exemplos, mas creio que uma rápida lembrança de nossos avôs e avós baste. E segundo pois faço notar que a relação entre uma cultura letrada (ou humanística) e uma cultura científica não é absoluta. Nos moldes com que costumamos tratar o conhecimento científico, é muito improvável que consigamos tratar o conhecimento literário. Existem limites para a aplicação dos padrões científicos. Ele não funciona cem porcento quando trata de um objeto tão incerto quanto a realidade humana, por exemplo a do campo literário e toda sua dimensão metamórfica. Daí não se segue, claro, que tenhamos dois campos absolutamente distintos e que um não possa se valer de descobertas do outro. À ausência de certezas absolutas, transmissíveis e comprováveis, não se segue que toda certeza, mesmo que em grau menor e mesmo que em grau ainda assim seguro, deixe de poder ser dada.

Quanto à ideia de que quem não lê, mal fala, mal ouve e mal vê, e aqui eu passo pro segundo sentido da frase, pode até ser que Lobato tivesse em mente um pequeno estrato de leitura, espelhando uma noção gramatiqueira da escrita. Não creio que seja bem por aí, embora deva confessar que não sou um grande conhecedor da obra de Lobato. Pois a questão é que não podemos associar com tanta facilidade o domínio da língua com o domínio de apenas uma variante linguística. É questionável pensar que apenas quem a domina possui acesso ao conhecimento ou uma espécie de raciocínio mais depurado. Desejável que seja o domínio desta variante de maior prestígio, isto é, a norma culta, uma vez que ela se chama de "maior prestígio" tendo em vista que se você a dominar e a usar sem pedantismo ou verborragia, você poderá se comunicar com maior facilidade (se bem que mesmo assim nós simplificamos a questão, uma vez que a constituição do que entendemos por norma culta possui pontos questionáveis, o que não quer dizer que a ideia de uma norma culta deva ser por conseguinte banida); desejável que seja seu aprendizado, daí não se segue que quem não o possua necessariamente caia no que a frase de Lobato nos diz. Pense de novo em nossos avôs e avós. Falavam mal, ouviam mal, viam mal?

A frase é, portanto, um exagero. Podemos pensar que o brasileiro lê pouco, mas aqui seria de perguntar o quê ele lê pouco: ou seja, se, ao dizermos que ele lê pouco, nos arvoramos em índices anuais de livros físicos, então pode ser que não estejamos espelhando a realidade dos fatos, visto que isto desconsideraria os índices de leitura de jornais impressos ou mesmo de leitura midiática de maneira geral. Afinal de contas, é preciso que, pensando a leitura, não reduzamos nosso escopo apenas ao caso da leitura literária. É preciso chegar a uma concepção mais ampla e articulada de leitura. Não se trata de negar, a rigor, o que a frase de Lobato diz: a cultura letrada e a leitura bem feita são mais do que salutares. Quem parte daí e chega à conclusão de que são essenciais não está errado. O problema é chegar a tal conclusão e, num movimento que só pode se confundir com o espasmo, rechaçar, como vimos, outras formas de conhecimento. É este liame que estou questionando.

Para ir direto ao ponto, é preciso chegar ao fato de que o conhecimento não é algo estático. Ele é dinâmico. Aquela expressão "adquirir conhecimento", que me desculpem, mas não poderia ser mais infame. Não digo nem tanto no sentido de que o conhecimento se tornou uma mercadoria, o que é em muitos sentidos uma imprecisão pois estamos falando menos do conhecimento em si que de meios de conhecimento. Assim, não é que o conhecimento se tornou uma mercadoria, mas sim que os rudimentos ou a possibilidade de adquirir parte dele se tornou. O mesmo digo do conhecimento como fonte de legitimação e, portanto, peça-chave no gerenciamento de capital cultural dentro dos campos sociais que o requeiram: aqui repiso que não é o conhecimento que se tornou, por si só, mercadoria, mas que seus efeitos e determinadas posturas sociais frente a esse conhecimento que se tornaram. Posso citar, a exemplo deste último, o fato de que o posicionamento do conhecimento como peça-chave dentro de um mercado não é uniforme nem muito menos considera todas as formas de conhecimento como de igual valor: é comum que um tipo de conhecimento, no geral uma cultura letrada, ordene a lógica de gerenciamento do capital cultural, pondo à revelia aquelas outras formas de conhecimento como bárbaras, exóticas, não-confiáveis, primitivas etc.

Mas, como estava dizendo, é a possibilidade de se adquirir parte do conhecimento que se tornou mercadoria. Parte. Parte pois me parece claro que com a ascensão burguesa houve uma hipertrofia de algumas formas de conhecimento, marcadamente letradas e científicas, o que não corresponde totalmente à realidade pois, como disse, o conhecimento pode sair de muitas tocas que não essa; e claro que essa hipertrofia foi conveniente para que meios de aquisição relacionados a esses produtos tivessem seu acesso não só facilitado, o que em absoluto é algo maravilhoso, como também fossem tratados de forma sinedóquica, ou seja, a ideia de que apenas ter o livro ou o rudimento é a mesma coisa que ter conhecimento, sendo que é a partir dessa sinédoque que se pode dizer que o conhecimento se tornou uma mercadoria. Algo, como disse, infame, e se digo que é infame, digo-o pressupondo que mensuramos e contabilizamos algo que não poder ser mensurado nem contabilizado. Podemos realmente crer que ler um livro é uma fonte de conhecimento, e que sairemos mais inteligentes após a leitura de um, e não estou querendo dizer que se trata de uma inverdade, pois, se estamos postos no Mundo, ou seja, se existimos, é natural que adquiramos experiência de vida e que essa experiência de vida, se associada à atividade da leitura, gere algumas chispas que com efeito podemos chamar de inteligência. A ideia de que ler é um exercício mental, e mais do que isso: a ideia, comprovada cientificamente, em especial por Keith Oatley, de que ler aprimora nossa percepção social e nossa empatia.

Aqui, claro, é preciso que se tome uma certa cautela, pois os estudos de Oatley, em conjunto com Raymond Mar e Jordan Peterson (aqui, p. 408), dizem: "While reading fiction, the simulation of social experience that occurs might engage the same social-cognitive processes employed during real-world social comprehension (e. g., mental inference, tracking of goals, emotion recognition)." Não podemos colocar o carro na frente dos bois. Os estudos de Oatley não dizem que ler é a única forma de aprimorar nossa percepção social e nossa empatia, nem que a atividade da leitura se desvincule de, digamos assim, uma vivência social. A esse respeito, embora o enfoque à literatura de ficção, os resultados são, até certo ponto, extensíveis às narrativas ficcionais de modo geral ― até certo ponto pois Oatley, junto com Raymond Mar aqui (um dos textos centrais na carreira científica de ambos), afirma que as narrativas literárias, devido, entre outros, a seu grau de elaboração, diferenciam-se das narrativas de vida (creio que um exemplo destas últimas seriam boa parte dos causos). Assim, histórias ficcionais, para Oatley e Mar, são simulações designadas não para computadores, mas para mentes humanas, o que implica dizer, em termos de neurociência, que ler é em muitos sentidos uma espécie de simulação da vida real... conosco mesmos. Ou seja: imagine que pusessem um CD pra rodar dentro de seu corpo. E seu corpo fosse o computador. Num estudo publicado na NeuroImage em 2006, aqui, por Julio González e outros seis cientistas, mostrou-se, como no título do artigo, que, ao ser ler a palavra "cinamomo", regiões do cérebro ligadas ao olfato são ativadas. Na página 909, os autores dizem: "word meaning is not confined to just meaning-specific brain regions in some left perisylvian areas; rather, it seems likely that semantic representations are distributed in a systematic way throughout the entire brain".

Todavia, não creio que a consideração de todos estes benefícios para a leitura individual negue o que disse a respeito do conhecimento nunca ser estático. Primeiro pois estamos falando de características que são ligadas a uma vivência no mundo e, especificamente no que Oatley e Mar nos dizem, a uma vivência social. Simulações, para os autores, nos ajudam a tentarmos adivinhar o que o outro pensa e sente e a lidarmos com uma complexidade de fatores simultâneos (o velho muita-coisa-de-uma-vez-só). O enfoque que estamos dando à situação de um leitor lendo seu livro, sozinho, trancafiado num quarto escuro, é um enfoque que não condiz muito com a própria realidade do que acontece em sua mente. Para além do fato de que, mesmo considerando que ele adquira apenas uma espécie de quantia X de conhecimento, daí não se segue que essa quantia possa ser tratada como coisa estática: uma vez que está ligada à nossa vivência social e à nossa vivência pessoal, e uma vez que nem um nem outro param no tempo mas estão sempre se aperfeiçoando, então é forçoso dizer que o conhecimento literário, mesmo sob um enfoque individual, não é estático.

Mas não é nem tanto aí que desejo chegar. Também vejo com desconfiança e um pouco de infâmia a ideia de que "ninguém pode roubar" seu conhecimento. Como se fosse o seu tesouro. Resta saber, e é aqui que a meu ver está o xis da questão, como gerenciaremos esse tal tesouro, pois o conhecimento é sempre um risco e precisa sempre estar sendo posto à prova: afinal de contas, a partir do momento em que coexistimos com outras pessoas, esse conhecimento vai ser posto à prova. Como disse atrás, o conhecimento é dinâmico. Não quer dizer que ele pode ser refutado da noite pro dia: e esse binarismo, aliás, me parece que só é possível se concebermos o conhecimento de maneira estática, o que necessita que reponhamos um bloco pelo outro obrigatoriamente. Se estivermos falando, por exemplo, do conhecimento científico, que, como vimos, provém de uma instrumentação capaz de comprová-lo, a coisa definitivamente não é por aí. Quer dizer que ele pode ser complementado, quer dizer que o fenômeno estudado pode ser, com outras descobertas, entendido de forma mais detida. Isso também resulta do conhecimento ser dinâmico. E ele ser dinâmico é o mesmo que dizer: suas mais largas esferas e ouso dizer que suas mais ricas esferas só possuem sentido se aplicadas dentro de uma existência em conjunto, o que envolve a ideia de um debate ― ou uma conversa, se você achar o termo "debate" forte demais. Não se trata, sendo assim, de circunscrever sua experiência de leitura a um pequeno círculo de giz caucasiano e como que protegê-lo para que os outros não o destruam e você consiga mantê-lo saudável para sempre. A partir do momento em que ele é dinâmico, seu sentido é estar sendo construído a todo instante: e isso sim com rigor podemos chamar saúde. Ou seja: você nunca poderá dizer que adquiriu conhecimento pois ele está sempre sendo adquirido. Você pode deixar de se preocupar em se "reciclar". Mas isso é contigo.

Isso nos leva à concepção de que o conhecimento é sempre social. E é claro que isso é um pouco decepcionante à priori. Se colocado em níveis radicais de análise, pode dar a entender que é uma construção social (termo muito em voga) ou que não conhecemos nada ― e pode ter certeza que não é uma ideia da qual coaduno, pois, como disse, a experiência do conhecimento pressupõe sempre seu lado de coleta individual, coloquemos assim, pra não dizer no fato de que sempre envolve também seu grau de universalidade, melhor visto no caso do conhecimento científico ou, mesmo que estejamos falando do conhecimento humanístico, seu grau de segurança.

Mas aquela meta, a coleta individual, não é a única e está longe de ser a verdadeira meta do conhecimento. O conhecimento é sempre difícil e é sempre uma aventura não só porque ele é difícil de ser adquirido ― afinal de contas é um exercício complexo ― mas porque, dada sua natureza dinâmica, ele precisa estar sempre sendo remodelado para que consiga movimentar os moinhos de dois ou mais horizontes subjetivos em contato. Aí sim nós podemos entender que o conhecimento literário não é totalmente subjetivo pois ele depende, afinal de contas, de uma rede argumentativa mais ampla. Não só a rede linguística a que um leitor faz parte e que lhe impede de atribuir significados aleatórios à língua, mas também o fato de que, formulada uma leitura, ela pode ser posta à prova de outras que podem muito bem ser melhores que a dele, ou tão boas quanto, ou, no mínimo, estabelecerem parâmetros distintos de qualidade. Em suma, não quer dizer que, dinâmico, esse conhecimento será insosso. Ele não só pode como as melhores leituras são sempre concretas; mas daí não se segue que permaneçam estáticas, e o digo não no sentido de que uma próxima leitura substitui a outra, o que a meu ver só existe se estivermos falando de leituras que praticamente se desmancham sozinhas, e sim no sentido de que uma leitura pode se contrapôr a outra e atuar de maneira presente na(s) anterior(es) e também na(s) vindoura(s). Esse é o dinamismo do conhecimento literário: o de que ele nunca estará parado, e que, mesmo pretendendo se ater apenas à obra em si e não a outras leituras, ele ainda assim pode ser posto numa cadeia maior que necessariamente o fará mover-se. Pondo de forma mais clara, toda leitura liga-se necessariamente às outras e é graças ao fato de uma nova leitura entrar na jogada que o todo se move. Não se pode advogar que uma leitura esteja apartada do restante. Isso só seria possível no caso de falarmos não só de uma outra obra, mas de uma outra obra apartada dos demais leitores.

Pois, a esse respeito, é sempre importante nos lembrarmos que quanto mais desenvolvemos as potencialidades do verbo "ler", mais vamos descobrindo que ler não é adquirir conhecimento, mas formular uma leitura que seja posta à leitura de outros. O leitor que se pretende completo é o leitor que quer ser lido por outros leitores. Não basta a convivência embasada na troca histérica e certa maneira cautelosa de impressões. A dificuldade de que hoje se mantenha uma discussão com civilidade é uma decorrência da individualidade exacerbada de nossos tempos, em que a noção do conhecimento como algo adquirido não quer ser posta em prova, e a todo instante nós supomos que, apenas com uma bagagem de leitura maior que a do outro, nós somos por conseguinte melhores e mais aptos a discutir que o outro. Todavia, é preciso observar que não só uma bagagem de leitura não se caracteriza por cifras numéricas, e sim por uma capacidade efetiva de formular e estruturar uma leitura para que, vejam só!, você chegue e se mantenha num estágio amplo de leitura, como que a leitura não te torna melhor que uma outra pessoa pelo simples fato de que o conhecimento sendo dinâmico, ele não está trancafiado apenas no quadrado impávido do livro, antes estando na Vida de maneira geral. A inquietação e a busca incessante não só por muitos livros, como também por muitas e múltiplas fontes de conhecimento, bem como no debate que privilegie a experiência alheia e privilegie o questionamento de nossos próprios pressupostos ― é a partir disso que nós estaremos realmente próximos de uma concepção dinâmica do conhecimento e, portanto, do conhecimento.