A escalada da crítica.
Entendo a crítica amadorística como sendo aquela que, diferente da profissional, não encontra na crítica uma fonte de renda. Afinal de contas, não se trata de confundir crítica profissional com boa crítica. Ela é, ela não é. Mesmo que consideremos o caso da crítica profissional como sendo aquela que se vale de veículos de informação privilegiados, ou financiados com fins a uma posição privilegiada dentro da comunidade de leitores, ainda assim não estaríamos conseguindo validar a correlação apontada, visto que a crítica feita em jornais de grande circulação, paradigma do veículo de informação privilegiado, se reduz, com frequência (e não sou apenas eu quem o diz), a uma espécie de colunismo social e resumos polvilhados de estrelinhas, o mesmo sendo dito da crítica feita por muitos blogs, vlogs e canais de literatura por aí.
Claro que aos olhos de alguns, toda a crítica que é feita na internet é necessariamente ruim e amadorística (notar o "e"). Tirando o ranço misantrópico que uma afirmação assim costuma ostentar, pois creio que a esse estágio do convívio no ambiente virtual é algo muito mais do que duvidoso a ideia de que a internet corrompe e impede a qualidade textual, pra não dizer no fato de que muitos que o dizem não são lá pessoas muito aclimatadas ao meio; tirando isso, afirmá-lo só pode ser uma meia verdade, mesmo porque quando falo no crítico profissional não estou me referindo apenas ao que ganha dinheiro com suas notas críticas (algo, de resto, muito improvável de ocorrer no campo literário hoje), mas também àquele que, de algum modo associando-se à sua atividade crítica, consiga dinheiro com base nisso. No âmbito virtual, isso fica muito mais claro: são canais literários que, por exemplo, quando muito recebendo livros de editoras, conseguem fazer de seus canais uma fonte de renda nem tanto pela venda ou que o valha de seus textos e vídeos, mas pelos acessos que recebem e pela posição mercadologicamente estratégica que passam a ocupar.
Tornam-se, assim sendo, uma espécie de ponto de investimento: e faço notar que me vali do "tornam-se", ou seja, a lógica do campo literário no âmbito virtual tende a explicitar o fato de que a crítica literária, mesmo tratada apenas sob uma ótica de mercado, de investimentos, não se resume à ideia inocente de que se investe em algum crítico ou em algum veículo de informação, mas, de preferência, em uma rede mais ampla: em suma, na crítica. O que é lucrativo, sendo assim, é algo além de que a editora feche parceria com canais privilegiados; é que, graças à democratização que esses canais representam (o fato de que qualquer pessoa pode abrir um), as editoras virtualmente possam investir em todos eles e, na prática, invistam em muitos, dado que a contrapartida econômica delas é no geral muito baixa: alguns livros enviados de cortesia, quem sabe um dinheirinho colocado para manutenção do canal... É só com o passar do tempo que a coisa pode ficar mais séria, digamos assim, o canal exigindo mais frente à editora. No geral, a concepção dos canais de literatura como amadores não é de todo uma mentira a partir do instante em que temos leitores comuns que não pensam em fazer da crítica uma atividade de renda, mas que, num belo dia, eis que acabam fazendo ou então, no mínimo, acabam ocupando uma posição no campo literário análoga à que a crítica antigamente ocupava (de modo que ocupam, para ser mais exato, um meio termo entre o amadorismo e o profissionalismo). Daí eu dizer que se tornam mercadologicamente estratégicos.
Tornam-se, assim sendo, uma espécie de ponto de investimento: e faço notar que me vali do "tornam-se", ou seja, a lógica do campo literário no âmbito virtual tende a explicitar o fato de que a crítica literária, mesmo tratada apenas sob uma ótica de mercado, de investimentos, não se resume à ideia inocente de que se investe em algum crítico ou em algum veículo de informação, mas, de preferência, em uma rede mais ampla: em suma, na crítica. O que é lucrativo, sendo assim, é algo além de que a editora feche parceria com canais privilegiados; é que, graças à democratização que esses canais representam (o fato de que qualquer pessoa pode abrir um), as editoras virtualmente possam investir em todos eles e, na prática, invistam em muitos, dado que a contrapartida econômica delas é no geral muito baixa: alguns livros enviados de cortesia, quem sabe um dinheirinho colocado para manutenção do canal... É só com o passar do tempo que a coisa pode ficar mais séria, digamos assim, o canal exigindo mais frente à editora. No geral, a concepção dos canais de literatura como amadores não é de todo uma mentira a partir do instante em que temos leitores comuns que não pensam em fazer da crítica uma atividade de renda, mas que, num belo dia, eis que acabam fazendo ou então, no mínimo, acabam ocupando uma posição no campo literário análoga à que a crítica antigamente ocupava (de modo que ocupam, para ser mais exato, um meio termo entre o amadorismo e o profissionalismo). Daí eu dizer que se tornam mercadologicamente estratégicos.
E é importante perceber isso. Muitas vezes reverbera-se a morte da crítica tendo em vista apenas um vazio que os jornais impressos apresentam ou os veículos de grande circulação imediata. Ou seja: aqueles que nós a princípio esperamos que veicule crítica literária. Mas fora deles a coisa é outra, quem sabe tão lucrativa quanto. Se for pra dizer que o crítico profissional é o bom crítico, então, pelo menos tomando como base o que disse a respeito do crítico que faz de sua atividade crítica uma profissão, uma fonte de renda (direta ou indiretamente, como vimos); então, nesse caso, é forçoso admitir que o crítico profissional pode muito bem ser aquele vlogueiro que nesse exato instante publica um vídeo todo apaixonado sobre hábitos de leitura, e isso tanto quanto o professor acadêmico que se aproveita da crítica literária pra amentar o currículo em algumas polegadas ou o jornalista que incarna o modelo clássico do crítico.
Faço esse preâmbulo pois creio que ele nos remete ao fato de que essa espécie de espera padrão por algum tipo de crítica acaba por turvar nossa vista, ou seja, faz com que não prestemos atenção àquela crítica que tem se revelado promissora e, no entanto, é relegada a segundo plano. E não sei se consigo concordar muito com a espécie de impressão que pretere a crítica feita em âmbito virtual ou por pessoas sem a tal da heráldica CNPQ, visto que a esse respeito, mesmo a crítica tida como sacramentada muitas vezes não consegue ser nem um pouco satisfatória, e, para dizer o que mais uma vez não sou o primeiro a dizê-lo, nossa crítica acadêmica é comum que enxugue o gelo do establishment e nossa crítica jornalística é comum que se exaura na paráfrase da contra-capa. Sei que a profusão de canais literários acaba por revelar um maremoto de entusiasmo muitas vezes aparente, e que, fora a beleza de ver tantas pessoas falando sobre literatura e se empolgando, nem que seja de maneira efêmera e passageira, não resta tanta coisa assim, ou seja, muitas dessas opiniões são surpreendentemente conservadoras e mal estruturadas, arvoram-se na mônada do gosto e quase nunca contestam ou pelo menos estruturam de forma satisfatória um argumento; sei que muitos parecem preferir ostentar o galardão infeliz do gosto pela literatura como prova de uma suposta superioridade, o que explica a profusão de TAGs e a preocupação mais em se mostrar como leitor do que em se mostrar leitor; mesmo sabendo disso tudo, devo notar que é precisamente nesse cenário que alguns dos críticos mais promissores de nossa geração têm atuado. Críticos que podem permanecer na obscuridade de craft or sullen art ou que colhem, nem que de maneira mirrada, sua coroa de louros, mas que, de todo modo, têm se arriscado e conseguido o grande feito da atividade crítica: a oxigenação do fenômeno literário.
Restrinjo-me à crítica literária. A crítica cinematográfica, de maneira geral, me parece estar muito melhor estruturada que a crítica literária, em especial pelo fato de que existe uma profissionalização mais ampla e que veículos de grande comunicação "têm dado" espaço a que essa crítica se manifeste (entre aspas pois essa crítica também tem correspondido a tal espaço e pois, claro, o cinema goza grande difusão em nossa cultura: é lógico que o espaço seja dado). Ou, trocando em miúdos, essa crítica assumiu a tarefa básica da profissionalização da crítica, a saber: se você ou se pessoas investem no que você faz, seja consumindo o que você faz, seja injetando capital, então você deve corresponder a esse investimento. Não pode reensebar o dialeto da tribo nem muito menos abalar a difícil relação de confiança com seus leitores. Carpir a falta de oportunidade e espaço da crítica literária em veículos privilegiados é justo, mas daí não se embasa uma atitude irresponsável para com o "mercado". No caso da crítica literária, contudo, é aquele vasto estrato de crítica, que aludi antes, que tem conseguido arejar o terreno, inflamando o coração das pessoas com literatura sem precisar que, para isso, tenhamos de nos sentar nas carteiras da universidade (presumo que às vezes nem assim).
Um exemplo é, a meu ver, digno de nota. E é sobre ele que quero me deter.
O blog Livros Abertos, mantido por Camila von Holdefer. A meu ver, um padrão de excelência. Não sei quantos podem compartilhar dessa minha opinião, mas já faz algum tempo que tenho me alegrado muito mais ao ler uma boa análise literária do que em ler, por exemplo, um bom poema, o que não implica que minha paixão pela poesia tenha esmaecido. E ler os textos dela tem me deixado com frequência alegre, se o critério for só o do meu coração.
Pra rimar: claro que não. Tentarei ser mais claro pra que, caso venham a pensar que sou exagerado, pelo menos não nos reduzamos ao joguete das farpas. Não diria o que digo se não tivesse em mente os altos e baixos. É apenas que avaliar qualquer trabalho continuado por seus piores momentos é de uma incoerência sem tamanho, o mesmo sendo dito de avaliar qualquer atividade cultural sem lançar um olhar mais demorado no contexto e isso de forma contextualizada, o que equivale a dizer um olhar que sopese o uso do ambiente em que a atividade se instala e a consideração da terraplanagem que seus melhores resultados são capazes de oferecer.
Se digo que é um padrão de excelência, digo nem tanto tendo como base sua pouca idade, nem tomando como base aquele vasto extrato insatisfatório que discuti antes (a ideia de que ela "se sobressai": sobressair-se hoje em dia não é feito algum, afinal). Digo tendo como base a crítica de maneira geral, seja ela a crítica feita hoje, seja ela a crítica feita no passado. Elenco, mais especificamente, alguns critérios: 1) acuidade da análise e, portanto, acuidade do juízo (um e outro são a meu ver indissociáveis, e o primeiro é muito mais importante que o segundo); 2) versatilidade; e 3) inventividade. São os três combinados que me levam a dizer que ela tem conseguido, como também disse antes, alcançar o grande objetivo da crítica literária: oxigenar o fenômeno literário e não, conforme creem os mais ingênuos, se postar diante dos textos à maneira de um guardião desgarrado. Dizer que o bom crítico é aquele que reavalia a Literatura como um todo, dos primórdios ao hoje, é até como se fosse um pleonasmo, pra não dizer que não precisa ser feito de forma literal. Uma leitura acurada é uma forma de prolongar o efeito da obra de arte em nós, pra me valer das palavras de André Bazin, o que implica por conseguinte que a obra passa a calar fundo na alma do leitor e a um só tempo na alma do crítico, servindo, quanto mais se aprofunda, de um liame entre o crítico e o leitor, de tal modo que assim se pode dizer que toda crítica atua sempre no terreno da contemporaneidade, independente da obra em questão ser de três anos ou séculos atrás.
Tentarei ser mais claro. O ápice é a resenha do Graça Infinita de DFW, denominada Faniquitos Ululantes. Não é a primeira vez que Camila se vale de uma estrutura inusual como esta. Na recente resenha do romance 14, de Jean Echenoz (aqui), dispõe o texto em 14 notações curtas; na resenha de A festa da insignificiância, de Milan Kundera, chamada Do valor da insignificância, usa uma estrutura que lembra o primeiro Wittgenstein; e, na sua contribuição para a Copa de Literatura de 2013, aqui, uma estrutura emprestada de Cortázar. (Existem outros exemplos também; esses são os melhores.)
Cito esses casos pois julgo que é com estruturas assim que Camila consegue seu máximo. Nem tanto no sentido de que a estrutura fragmentária venha a ser uma novidade; no campo da crítica literária, ela de fato é, mas o apreço pelo fragmentário já é pelo menos centenário e, se olharmos para o formato dos ensaios jornalísticos, veremos que não se trata de algo tão estarrecedor assim. Digo tendo em vista a forma habilidosa com que Camila consegue conjurar os fragmentos, combinados não só com a acuidade que apontei antes, ou seja, o fato de que ela vai direto ao ponto e não se perde em generalidades, enfrentando, antes, as agruras da análise, da convivência, da "leitura cerrada" (entre aspas pois um termo assim pode criar uma filiação indesejada); os fragmentos são também combinados de modo a conseguirem formar sempre um todo seguido de uma margem de manobra. Ou seja: sabemos que toda análise quer mergulhar na obra e destrinchar a "verdade" da obra. Uso de novo as aspas pois é improvável que uma obra possua uma verdade universal; ela possui certos focos e cernes de verdade, pontos que não cabem ao leitor deliberar, o que implica por conseguinte que toda leitura possui seus limites; mas, de todo modo, ainda assim existe uma margem de manobra mais do que considerável para que aquela verdade que o leitor capte seja a verdade que ele, leitor, captou daquela obra. Não quer dizer que será grosso modo a mesma que do outro leitor; ambas as verdades possuirão pontos de contato pois estamos falando de um só texto e, como acabo de dizer, o processo interpretativo não é arbitrário.
Assim, toda análise quer ir o mais fundo que possa, o que, dentro do fato de que a obra de arte conjura uma verdade própria com uma infinitude de verdades subjetivas, implica dizer que não "basta apenas que" a análise vá fundo: ela precisa também voltar à superfície e estruturar o que conseguiu coletar daquele mergulho. Uso as aspas pela terceira vez pois não creio que se trate de processos separados; são um só, isto é, a forma de se mergulhar na obra é sempre-já uma maneira estruturante, argumentativa, sempre-já usa-se do instrumental de leitura como maneira de destrinchar a intimidade da obra e conseguir expô-la ao leitor. Expô-la ao leitor, entenda-se: quanto mais se desenvolve o verbo "ler", mais o leitor passa a formular uma leitura que será lida por outros leitores. Como sempre falo cá no meu bloguinho, o leitor passa a ser ele mesmo lido. Assim, a atividade crítica não pode se esconder atrás do paredão do gosto, fingindo que mergulhara de forma profunda na obra mas não conseguira expressar-se. Esta pode ser uma pressuposição válida, é claro; todos nós, como leitores, sabemos que existem aqueles livros que mexem conosco de tal forma que simplesmente não dá nem pra comentar. Mas isso não chega a vir ao caso pois, na perspectiva que trago à tona, trata-se de um estágio pré-crítico. A partir do momento em que se intenta um texto crítico, isso não é mais uma espécie de desculpa. Dizer que se gostou mas não se sabe dizer porquê gostou, ou mesmo no final das contas não conseguindo dizê-lo, é o mesmo que dizer que não se leu com uma profundidade adequada, ou, pra ser ainda mais preciso, que não se leu de todo, visto que ler, independente da profundidade a que a leitura chega, sempre envolve, como vimos, um duplo processo simultâneo de destrinchamento e articulação. É articulando-se que o leitor consegue ir mais longe, ir mais a fundo. Ele não pode pensar que está indo a fundo o bastante e que de alguma maneira chegou a uma zona inominável. Dentro do âmbito da crítica, este é um argumento vazio.
O caso de Camila, sendo assim, é paradigmático pois ela consegue ir a fundo e se articular ao mesmo tempo. Só que ela se vale, em seus melhores momentos, como notei, de uma base fragmentária. Ou, trocando em miúdos, uma base de notações. Creio que este termo é melhor pois inclusive nos aproxima do que muitos devem fazer: anotar suas impressões sobre o livro. A diferença é que, enquanto essas notações comuns são desconexas, as de Camila são muito bem estruturadas. Uma diferença fundamental, pois, se num âmbito estético poderíamos ver como defensável que um texto fragmentário quisesse justamente se pautar na não-coincidência total ou pelo menos intentada de suas partes, no âmbito de um texto crítico isto é inaceitável. A coerência da crítica é uma aporia fundamental.
Aí você se pergunta: pois então como posso ainda assim sustentar que os textos de Camila são exemplares, se ela a princípio estaria rompendo com isso? Volto à sua crítica sobre DFW. Note que ela se valeu de um poliedro de Platão. Note que as partes estão interligadas. É um todo. E mesmo se estivermos falando do caso de sua resenha à maneira do primeiro Wittgenstein, seguimos no mesmo caminho: a escrita wittgensteniana pauta-se num processo de, digamos assim, destrinchamentos e retornos. Ele parte de uma premissa maior, por exemplo a que abre seu Tractatus (é no Tractatus em que ele explora tal estrutura, aliás; nos livros posteriores ele passará à estruturação filosófica clássica dos parágrafos, e é muito possível que a formação de Camila, em Filosofia, tenha influído na sua forma de escrita, ou seja, como se fossem parágrafos que vão esmiuçando o assunto mas ao mesmo tempo compondo um todo); voltando, a primeira proposição de Wittgenstein no Tractatus é a de que o mundo é tudo o que é caso, no que se seguem proposições que vão destrinchando e apontando, desenvolvendo a primeira proposição dentro do todo dos aforismos sob número "1". Daí se seguem os de número "2" até o "7", e de tal modo que cada um deles possui como que uma coerência interna que, no final, juntos, formam o todo da filosofia do primeiro Wittgenstein. Assim, no aforisma 1.1 Wittgenstein diz que o mundo é a totalidade dos fatos e não das coisas, o que destrincha o aforisma 1, que já vimos. E assim se segue no aforisma 1.11 a 1.13, que são destrinchamentos do 1.1. Mas aí chega o aforisma 1.2, de que o mundo se resolve em fatos, que como que fecha o grupinho dos aforismas 1.1 e inicia um outro, o grupinho dos 1.2 (que só possui o 1.21), e que, apesar disso, mantém com o grupinho do 1.1 o fato de que ambos pertencem ao grupo maior dos aforismas 1.
Assim sendo, embora os melhores textos de Camila sejam, como vimos, fragmentários, próximos das notações ou da lógica dos parágrafos em obras filosóficas, eles compõem sempre um todo. Eles estão interconectados de uma forma dupla: primeiro pelo fato de que montam, todos, uma só leitura, por mais que, com frequência, muitos das notações possuam dependência interna (o que é melhor visto em sua crítica à maneira de Cortázar: partes 61, 62, 77, 80...), e segundo pelo fato de que a estruturação do texto possui uma intencionalidade, quer chegar a uma forma de escrita que seja ela própria uma fonte semântica, ou, melhor dizendo, seja ela mesma uma forma de analisar o texto. Assim, no caso paradigmático da crítica sobre DFW, o formato do poliedro de Platão é uma maneira de analisar o texto de DFW, que, como sabemos, embora profundamente fragmentário e experimental, possui sua unidade (o que Camila expõe nas notações → e d1). A forma de escrita, portanto, faz parte do projeto de análise dela. Não é algo gratuito; não é exibicionismo. Podemos pressupôr que de algum modo ela se sinta melhor escrevendo assim, mas o fato de ter experimentado formas de escrita que demonstram uma coerência com o texto ― e, o mais importante, essa coerência é argumentada, ela é exposta ― nos permitem notar que a forma de escrita, repito, faz parte de seu projeto de análise, o que possui um duplo impacto: tornam sua leitura mais acurada, pois fazem um uso máximo de todos os materiais à sua disposição, e servem como uma maneira de repensar a crítica, pondo a análise ela mesma à análise num nível ainda mais aprofundado do do leitor encaminhar-se a ser lido por outros leitores. Ou seja: além disso, a forma de ler do leitor passa a ser lida por outros leitores. Daí dizer que é um misto de versatilidade e inventividade, e que ambos contribuem para o estágio a que ela chegou.
Mas ainda existe o que se retirar. Pois por mais que uma boa crítica seja profunda, ela não é nunca absoluta, e toda crítica tem de conviver com este fato. O que não quer dizer que ela parará suas máquinas em algum ponto do caminho ou conviverá com uma espécie de incompetência da forma mais humilde possível: se digo que ela tem de conviver com este fato, não se segue que ela não perseguirá o melhor trabalho possível nem que deixe de sonhar com o idílio da Análise Absoluta. Quer dizer, antes, que essa crítica operará, mais do que uma análise, uma abertura ontológica: ou seja, ela se pretenderá debate, ponto incontornável, ordem rilkeana a nós, leitores (tens de mudar de vida etc etc). A estrutura em notações de Camila e a certa liberdade que ela dá a seus leitores acentuam este fato de forma clara, posto que feita em pedaços que juntos criam um todo, embora note que, precisamente por ser feita em pedaços, ela dá ao mesmo tempo uma liberdade ao leitor de poder navegar naquelas notações (pois Camila tem o cuidado de, no geral, fazer com que cada notação funcione como uma espécie de microcrítica, o que, mais uma vez, sua crítica de DFW é exemplar); todavia, isso não quer dizer que quando ela se vale do formato tradicional ela se saia mal. Na verdade, ela também consegue se consumar muito bem nas formas tradicionais de crítica, num texto, sei lá, à maneira desse aqui. Citemos, deste último formato, sua resenha negativa do livro A balada de Adam Henry, de Ian McEwan, aqui, e sua resenha positiva do Americanah, de Chimamanda Adichie, aqui. Em ambos os casos, notamos mais uma vez a acuidade da análise e a preocupação de se estruturar de forma consistente, não lançando premissas do nada e sempre conduzindo as conclusões a partir do que o livro nos diz, e não a partir de uma bagagem externa que é imposta ao texto (à maneira do crítico que se vale de uma espécie de tabela de auferimento de qualidade, ou, pior ainda, de sua "autoridade"...).
Onde quero chegar, todavia, é que, em todos esses casos, a crítica se forma de tal maneira que conseguimos, mais do que entender a leitura de Camila, entender seu instrumental de análise, conseguimos conviver com sua maneira de leitura. É um duplo movimento de conseguir chegar a níveis profundos de análise ao mesmo tempo em que se abre para o leitor e, assim, estabelece o diálogo de maneira mais fecunda. Não existe aquilo de chegar a níveis profundos de análise e, de algum modo, não permitir que o leitor também chegue lá, ou que o leitor chegue de forma titubeante, dizendo, no fim do percurso, "creio que deve ter sido isso o que ele quis dizer...". Isso é ridículo. O instrumental de análise de Camila é posto em cima da mesa de maneira clara e honesta; o leitor não apenas consegue com-preender a leitura que é exposta, como também consegue refazer o caminho e entender as posições tomadas. Assim, ela transcende aquela posição charlatã de apenas fornecer uma espécie de fomento para a discussão, que, ao fim e ao cabo, se assemelha a matéria bruta ou escarro, algo que o leitor, sozinho e sem a figura do crítico como um empecilho, poderia chegar; ela fornece uma leitura que se faz efetiva dentro do plano de debate e dentro do plano de leituras posteriores. Pois se entendemos que toda interpretação, para dizermos com Gadamer, se prende à obra, passa a fazer parte daquele horizonte histórico da tradição, então não estamos falando de uma leitura que cai como peso morto logo depois de lançada. Estamos falando de uma leitura que movimenta a obra como um sistema histórico, quer dizer, como a obra em-si e todas as leituras que já foram feitas, não só graças ao fato de que se trata de uma leitura que consegue penetrar e alcançar o íntimo de uma obra e não a superfície, espelhando a opinião de outros ou espelhando apenas um achismo; mas também graças ao fato de que ela fornece ao leitor um instrumental para o debate, ela atua de forma profunda não só na obra, mas também no leitor e na tradição em que ambos estão inscritos.
Portanto, exemplar a partir do momento em que encara a tarefa da leitura como algo além da dicotomia entediante de sujeito e objeto, ora lançando toda atenção na mônada do gosto, ora lançando toda atenção no round comentários tácitos. É por isso que o trabalho de Camila deve ser acompanhado e é por isso que digo que ele me entusiasma. Se continuarmos no ciclo vicioso de esperarmos a crítica literária apenas das cumbucas que elegemos únicas, então nosso destino será o de, como diz João Cezar de Castro Rocha, seguirmos declarando a crise da crítica a cada 20, 30 anos. Entender que a crítica é um fenômeno dinâmico e que ela, portanto, se liga às condições materiais da vida e não simplesmente a um desligamento da realidade (que alguns caracterizam como sendo "distanciamento crítico", uma boa desculpa para a atrofia), é anular esse discurso e, mais do que lamentar a decadência pautado numa Idade de Ouro que se colore graças às tonalidades da memória (o gramado do vizinho do século passado era, realmente, esplêndido!), é impedir que se tenha uma visão lúcida, pra dizer o mínimo, nem tanto do que a crítica é hoje, mas do que ela pode ser amanhã, uma vez que a crítica, ao contrário do que pensam os detratores simples, também atua diretamente no futuro.
Um exemplo é, a meu ver, digno de nota. E é sobre ele que quero me deter.
O blog Livros Abertos, mantido por Camila von Holdefer. A meu ver, um padrão de excelência. Não sei quantos podem compartilhar dessa minha opinião, mas já faz algum tempo que tenho me alegrado muito mais ao ler uma boa análise literária do que em ler, por exemplo, um bom poema, o que não implica que minha paixão pela poesia tenha esmaecido. E ler os textos dela tem me deixado com frequência alegre, se o critério for só o do meu coração.
Pra rimar: claro que não. Tentarei ser mais claro pra que, caso venham a pensar que sou exagerado, pelo menos não nos reduzamos ao joguete das farpas. Não diria o que digo se não tivesse em mente os altos e baixos. É apenas que avaliar qualquer trabalho continuado por seus piores momentos é de uma incoerência sem tamanho, o mesmo sendo dito de avaliar qualquer atividade cultural sem lançar um olhar mais demorado no contexto e isso de forma contextualizada, o que equivale a dizer um olhar que sopese o uso do ambiente em que a atividade se instala e a consideração da terraplanagem que seus melhores resultados são capazes de oferecer.
Se digo que é um padrão de excelência, digo nem tanto tendo como base sua pouca idade, nem tomando como base aquele vasto extrato insatisfatório que discuti antes (a ideia de que ela "se sobressai": sobressair-se hoje em dia não é feito algum, afinal). Digo tendo como base a crítica de maneira geral, seja ela a crítica feita hoje, seja ela a crítica feita no passado. Elenco, mais especificamente, alguns critérios: 1) acuidade da análise e, portanto, acuidade do juízo (um e outro são a meu ver indissociáveis, e o primeiro é muito mais importante que o segundo); 2) versatilidade; e 3) inventividade. São os três combinados que me levam a dizer que ela tem conseguido, como também disse antes, alcançar o grande objetivo da crítica literária: oxigenar o fenômeno literário e não, conforme creem os mais ingênuos, se postar diante dos textos à maneira de um guardião desgarrado. Dizer que o bom crítico é aquele que reavalia a Literatura como um todo, dos primórdios ao hoje, é até como se fosse um pleonasmo, pra não dizer que não precisa ser feito de forma literal. Uma leitura acurada é uma forma de prolongar o efeito da obra de arte em nós, pra me valer das palavras de André Bazin, o que implica por conseguinte que a obra passa a calar fundo na alma do leitor e a um só tempo na alma do crítico, servindo, quanto mais se aprofunda, de um liame entre o crítico e o leitor, de tal modo que assim se pode dizer que toda crítica atua sempre no terreno da contemporaneidade, independente da obra em questão ser de três anos ou séculos atrás.
Tentarei ser mais claro. O ápice é a resenha do Graça Infinita de DFW, denominada Faniquitos Ululantes. Não é a primeira vez que Camila se vale de uma estrutura inusual como esta. Na recente resenha do romance 14, de Jean Echenoz (aqui), dispõe o texto em 14 notações curtas; na resenha de A festa da insignificiância, de Milan Kundera, chamada Do valor da insignificância, usa uma estrutura que lembra o primeiro Wittgenstein; e, na sua contribuição para a Copa de Literatura de 2013, aqui, uma estrutura emprestada de Cortázar. (Existem outros exemplos também; esses são os melhores.)
Cito esses casos pois julgo que é com estruturas assim que Camila consegue seu máximo. Nem tanto no sentido de que a estrutura fragmentária venha a ser uma novidade; no campo da crítica literária, ela de fato é, mas o apreço pelo fragmentário já é pelo menos centenário e, se olharmos para o formato dos ensaios jornalísticos, veremos que não se trata de algo tão estarrecedor assim. Digo tendo em vista a forma habilidosa com que Camila consegue conjurar os fragmentos, combinados não só com a acuidade que apontei antes, ou seja, o fato de que ela vai direto ao ponto e não se perde em generalidades, enfrentando, antes, as agruras da análise, da convivência, da "leitura cerrada" (entre aspas pois um termo assim pode criar uma filiação indesejada); os fragmentos são também combinados de modo a conseguirem formar sempre um todo seguido de uma margem de manobra. Ou seja: sabemos que toda análise quer mergulhar na obra e destrinchar a "verdade" da obra. Uso de novo as aspas pois é improvável que uma obra possua uma verdade universal; ela possui certos focos e cernes de verdade, pontos que não cabem ao leitor deliberar, o que implica por conseguinte que toda leitura possui seus limites; mas, de todo modo, ainda assim existe uma margem de manobra mais do que considerável para que aquela verdade que o leitor capte seja a verdade que ele, leitor, captou daquela obra. Não quer dizer que será grosso modo a mesma que do outro leitor; ambas as verdades possuirão pontos de contato pois estamos falando de um só texto e, como acabo de dizer, o processo interpretativo não é arbitrário.
Assim, toda análise quer ir o mais fundo que possa, o que, dentro do fato de que a obra de arte conjura uma verdade própria com uma infinitude de verdades subjetivas, implica dizer que não "basta apenas que" a análise vá fundo: ela precisa também voltar à superfície e estruturar o que conseguiu coletar daquele mergulho. Uso as aspas pela terceira vez pois não creio que se trate de processos separados; são um só, isto é, a forma de se mergulhar na obra é sempre-já uma maneira estruturante, argumentativa, sempre-já usa-se do instrumental de leitura como maneira de destrinchar a intimidade da obra e conseguir expô-la ao leitor. Expô-la ao leitor, entenda-se: quanto mais se desenvolve o verbo "ler", mais o leitor passa a formular uma leitura que será lida por outros leitores. Como sempre falo cá no meu bloguinho, o leitor passa a ser ele mesmo lido. Assim, a atividade crítica não pode se esconder atrás do paredão do gosto, fingindo que mergulhara de forma profunda na obra mas não conseguira expressar-se. Esta pode ser uma pressuposição válida, é claro; todos nós, como leitores, sabemos que existem aqueles livros que mexem conosco de tal forma que simplesmente não dá nem pra comentar. Mas isso não chega a vir ao caso pois, na perspectiva que trago à tona, trata-se de um estágio pré-crítico. A partir do momento em que se intenta um texto crítico, isso não é mais uma espécie de desculpa. Dizer que se gostou mas não se sabe dizer porquê gostou, ou mesmo no final das contas não conseguindo dizê-lo, é o mesmo que dizer que não se leu com uma profundidade adequada, ou, pra ser ainda mais preciso, que não se leu de todo, visto que ler, independente da profundidade a que a leitura chega, sempre envolve, como vimos, um duplo processo simultâneo de destrinchamento e articulação. É articulando-se que o leitor consegue ir mais longe, ir mais a fundo. Ele não pode pensar que está indo a fundo o bastante e que de alguma maneira chegou a uma zona inominável. Dentro do âmbito da crítica, este é um argumento vazio.
O caso de Camila, sendo assim, é paradigmático pois ela consegue ir a fundo e se articular ao mesmo tempo. Só que ela se vale, em seus melhores momentos, como notei, de uma base fragmentária. Ou, trocando em miúdos, uma base de notações. Creio que este termo é melhor pois inclusive nos aproxima do que muitos devem fazer: anotar suas impressões sobre o livro. A diferença é que, enquanto essas notações comuns são desconexas, as de Camila são muito bem estruturadas. Uma diferença fundamental, pois, se num âmbito estético poderíamos ver como defensável que um texto fragmentário quisesse justamente se pautar na não-coincidência total ou pelo menos intentada de suas partes, no âmbito de um texto crítico isto é inaceitável. A coerência da crítica é uma aporia fundamental.
Aí você se pergunta: pois então como posso ainda assim sustentar que os textos de Camila são exemplares, se ela a princípio estaria rompendo com isso? Volto à sua crítica sobre DFW. Note que ela se valeu de um poliedro de Platão. Note que as partes estão interligadas. É um todo. E mesmo se estivermos falando do caso de sua resenha à maneira do primeiro Wittgenstein, seguimos no mesmo caminho: a escrita wittgensteniana pauta-se num processo de, digamos assim, destrinchamentos e retornos. Ele parte de uma premissa maior, por exemplo a que abre seu Tractatus (é no Tractatus em que ele explora tal estrutura, aliás; nos livros posteriores ele passará à estruturação filosófica clássica dos parágrafos, e é muito possível que a formação de Camila, em Filosofia, tenha influído na sua forma de escrita, ou seja, como se fossem parágrafos que vão esmiuçando o assunto mas ao mesmo tempo compondo um todo); voltando, a primeira proposição de Wittgenstein no Tractatus é a de que o mundo é tudo o que é caso, no que se seguem proposições que vão destrinchando e apontando, desenvolvendo a primeira proposição dentro do todo dos aforismos sob número "1". Daí se seguem os de número "2" até o "7", e de tal modo que cada um deles possui como que uma coerência interna que, no final, juntos, formam o todo da filosofia do primeiro Wittgenstein. Assim, no aforisma 1.1 Wittgenstein diz que o mundo é a totalidade dos fatos e não das coisas, o que destrincha o aforisma 1, que já vimos. E assim se segue no aforisma 1.11 a 1.13, que são destrinchamentos do 1.1. Mas aí chega o aforisma 1.2, de que o mundo se resolve em fatos, que como que fecha o grupinho dos aforismas 1.1 e inicia um outro, o grupinho dos 1.2 (que só possui o 1.21), e que, apesar disso, mantém com o grupinho do 1.1 o fato de que ambos pertencem ao grupo maior dos aforismas 1.
Assim sendo, embora os melhores textos de Camila sejam, como vimos, fragmentários, próximos das notações ou da lógica dos parágrafos em obras filosóficas, eles compõem sempre um todo. Eles estão interconectados de uma forma dupla: primeiro pelo fato de que montam, todos, uma só leitura, por mais que, com frequência, muitos das notações possuam dependência interna (o que é melhor visto em sua crítica à maneira de Cortázar: partes 61, 62, 77, 80...), e segundo pelo fato de que a estruturação do texto possui uma intencionalidade, quer chegar a uma forma de escrita que seja ela própria uma fonte semântica, ou, melhor dizendo, seja ela mesma uma forma de analisar o texto. Assim, no caso paradigmático da crítica sobre DFW, o formato do poliedro de Platão é uma maneira de analisar o texto de DFW, que, como sabemos, embora profundamente fragmentário e experimental, possui sua unidade (o que Camila expõe nas notações → e d1). A forma de escrita, portanto, faz parte do projeto de análise dela. Não é algo gratuito; não é exibicionismo. Podemos pressupôr que de algum modo ela se sinta melhor escrevendo assim, mas o fato de ter experimentado formas de escrita que demonstram uma coerência com o texto ― e, o mais importante, essa coerência é argumentada, ela é exposta ― nos permitem notar que a forma de escrita, repito, faz parte de seu projeto de análise, o que possui um duplo impacto: tornam sua leitura mais acurada, pois fazem um uso máximo de todos os materiais à sua disposição, e servem como uma maneira de repensar a crítica, pondo a análise ela mesma à análise num nível ainda mais aprofundado do do leitor encaminhar-se a ser lido por outros leitores. Ou seja: além disso, a forma de ler do leitor passa a ser lida por outros leitores. Daí dizer que é um misto de versatilidade e inventividade, e que ambos contribuem para o estágio a que ela chegou.
Mas ainda existe o que se retirar. Pois por mais que uma boa crítica seja profunda, ela não é nunca absoluta, e toda crítica tem de conviver com este fato. O que não quer dizer que ela parará suas máquinas em algum ponto do caminho ou conviverá com uma espécie de incompetência da forma mais humilde possível: se digo que ela tem de conviver com este fato, não se segue que ela não perseguirá o melhor trabalho possível nem que deixe de sonhar com o idílio da Análise Absoluta. Quer dizer, antes, que essa crítica operará, mais do que uma análise, uma abertura ontológica: ou seja, ela se pretenderá debate, ponto incontornável, ordem rilkeana a nós, leitores (tens de mudar de vida etc etc). A estrutura em notações de Camila e a certa liberdade que ela dá a seus leitores acentuam este fato de forma clara, posto que feita em pedaços que juntos criam um todo, embora note que, precisamente por ser feita em pedaços, ela dá ao mesmo tempo uma liberdade ao leitor de poder navegar naquelas notações (pois Camila tem o cuidado de, no geral, fazer com que cada notação funcione como uma espécie de microcrítica, o que, mais uma vez, sua crítica de DFW é exemplar); todavia, isso não quer dizer que quando ela se vale do formato tradicional ela se saia mal. Na verdade, ela também consegue se consumar muito bem nas formas tradicionais de crítica, num texto, sei lá, à maneira desse aqui. Citemos, deste último formato, sua resenha negativa do livro A balada de Adam Henry, de Ian McEwan, aqui, e sua resenha positiva do Americanah, de Chimamanda Adichie, aqui. Em ambos os casos, notamos mais uma vez a acuidade da análise e a preocupação de se estruturar de forma consistente, não lançando premissas do nada e sempre conduzindo as conclusões a partir do que o livro nos diz, e não a partir de uma bagagem externa que é imposta ao texto (à maneira do crítico que se vale de uma espécie de tabela de auferimento de qualidade, ou, pior ainda, de sua "autoridade"...).
Onde quero chegar, todavia, é que, em todos esses casos, a crítica se forma de tal maneira que conseguimos, mais do que entender a leitura de Camila, entender seu instrumental de análise, conseguimos conviver com sua maneira de leitura. É um duplo movimento de conseguir chegar a níveis profundos de análise ao mesmo tempo em que se abre para o leitor e, assim, estabelece o diálogo de maneira mais fecunda. Não existe aquilo de chegar a níveis profundos de análise e, de algum modo, não permitir que o leitor também chegue lá, ou que o leitor chegue de forma titubeante, dizendo, no fim do percurso, "creio que deve ter sido isso o que ele quis dizer...". Isso é ridículo. O instrumental de análise de Camila é posto em cima da mesa de maneira clara e honesta; o leitor não apenas consegue com-preender a leitura que é exposta, como também consegue refazer o caminho e entender as posições tomadas. Assim, ela transcende aquela posição charlatã de apenas fornecer uma espécie de fomento para a discussão, que, ao fim e ao cabo, se assemelha a matéria bruta ou escarro, algo que o leitor, sozinho e sem a figura do crítico como um empecilho, poderia chegar; ela fornece uma leitura que se faz efetiva dentro do plano de debate e dentro do plano de leituras posteriores. Pois se entendemos que toda interpretação, para dizermos com Gadamer, se prende à obra, passa a fazer parte daquele horizonte histórico da tradição, então não estamos falando de uma leitura que cai como peso morto logo depois de lançada. Estamos falando de uma leitura que movimenta a obra como um sistema histórico, quer dizer, como a obra em-si e todas as leituras que já foram feitas, não só graças ao fato de que se trata de uma leitura que consegue penetrar e alcançar o íntimo de uma obra e não a superfície, espelhando a opinião de outros ou espelhando apenas um achismo; mas também graças ao fato de que ela fornece ao leitor um instrumental para o debate, ela atua de forma profunda não só na obra, mas também no leitor e na tradição em que ambos estão inscritos.
Portanto, exemplar a partir do momento em que encara a tarefa da leitura como algo além da dicotomia entediante de sujeito e objeto, ora lançando toda atenção na mônada do gosto, ora lançando toda atenção no round comentários tácitos. É por isso que o trabalho de Camila deve ser acompanhado e é por isso que digo que ele me entusiasma. Se continuarmos no ciclo vicioso de esperarmos a crítica literária apenas das cumbucas que elegemos únicas, então nosso destino será o de, como diz João Cezar de Castro Rocha, seguirmos declarando a crise da crítica a cada 20, 30 anos. Entender que a crítica é um fenômeno dinâmico e que ela, portanto, se liga às condições materiais da vida e não simplesmente a um desligamento da realidade (que alguns caracterizam como sendo "distanciamento crítico", uma boa desculpa para a atrofia), é anular esse discurso e, mais do que lamentar a decadência pautado numa Idade de Ouro que se colore graças às tonalidades da memória (o gramado do vizinho do século passado era, realmente, esplêndido!), é impedir que se tenha uma visão lúcida, pra dizer o mínimo, nem tanto do que a crítica é hoje, mas do que ela pode ser amanhã, uma vez que a crítica, ao contrário do que pensam os detratores simples, também atua diretamente no futuro.