Terry Eagleton (1943 - ).


Teoria da Literatura. Uma Introdução.
Tradução de Waltensir Dutra.
Editora Martins Fontes, 2003.
Originalmente publicado em 1983, 2ª ed. 1996, 3ª ed. 2008.

A função da crítica.
Tradução de Jefferson Luiz Camargo.
Editora Martins Fontes, 1991.
Originalmente publicado em 1984.

How to read a poem.
Editora Wiley-Blackwell, 2007.

The Event of Literature.
Editora Yale UP, 2012.

How to read literature.
Editora Yale UP, 2013.

A imagem que abre o texto
é a capa de The Gatekeeper,
editora St. Martin's Griffin, 2003.


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The literary work is perhaps a reply less to a question than to a cluster of questions.
The event of literature, p. 175.

Teoria da Literatura: uma Introdução é um livro-base em muitos cursos acadêmicos. Sei que é meio estranho alguém que nunca cursou Letras dizê-lo, mas veja você que, nessa vida querendo entender pelo menos um pouco de literatura, pegava eu as ementas dos cursos por aí afora e resolvia fazer um curso auto-didata: trocando em miúdos, ler tudo o que estava listado lá. Por isso digo que Teoria da Literatura é um livro-base. Comecei com pedaços aleatórios dele há uns dois, três anos atrás, mas foi só recentemente que peguei de cabo a rabo. E não gostei. É um livro deficiente: a impressão que fica é a de que Eagleton se preocupa mais em criticar do que de fato em expôr as correntes teóricas da modernidade ― o que é um pleonasmo pois nós só podemos falar de teoria da literatura na modernidade... Naturalmente que não quero dar a ideia de que é um livro muito ruim. Ruim eu defendo que ele é, mesmo porque julgo muito mais producente que as aulas sejam dadas em cima de antologias ― por exemplo Norton Anthology of Theory & Criticism e The Critical Tradition no caso gringo, ou, no brasileiro, Teoria da Literatura em suas fontes e Do mito das musas à razão das letras. Ele possui seus pontos altos, e algumas de suas explicações são de um didatismo e de uma clareza invejável, por exemplo sobre os Leavis (Eagleton é dos poucos que ressalta a verdadeira importância da Scrutinity), Heidegger, a Psicanálise ou o Pós-Estruturalismo (em especial a observação de que o problema do Pós-Estruturalismo não está nos grandes pós-estruturalistas, mas nos epígonos).

Serei mais específico. O argumento central da Introdução do livro, e em muitos aspectos o argumento que sustenta o percurso do livro, é o de que a categoria Literatura é uma ilusão. Não há nenhuma característica que consiga abranger todos os textos tidos como literários e que consiga ser lógica ao longo do percurso. As tentativas de se definir a tal da literariedade, ou seja, o que faz com que um texto literário seja literário, foram e são baldadas. Cita como exemplo o fato de que ao longo dos séculos o que foi considerado literatura mudou de maneira às vezes drástica, chegando, portanto, à conclusão de que Literatura é apenas um conjunto de textos prezado enquanto tal por uma comunidade. Daí, claro, não se segue que estamos falando de uma coisa arbitrária. Nossa sociedade é mais do que atravessada ― é constituída sobre bases ideológicas, sólidas o bastante para que a classificação ou não do que é literário, bem como a valoração interna destas obras, não se dê apenas graças à subjetividade dos leitores. Afinal de contas, como Eagleton sublinha numa passagem famosa, "Os interesses são constitutivos de nosso conhecimento, e não apenas preconceitos que os colocam em risco. A pretensão de que o conhecimento deve ser 'isento de valores' é, em si, um juízo de valor." (p. 19)

Esta conclusão será importante. Se a Literatura é uma ilusão, ela, por conseguinte, fere a pretensão científica e mesmo constituinte de toda teoria literária. Como é possível teorizar sobre um objeto indefinível? Além do mais, toda teoria e crítica literária, para Eagleton, não possuem metodologias e instrumentos que se possa considerar seus, visto que estudarmos os aspectos sociais de uma obra é na verdade sociologia, estudarmos sinuosidades estilísticas apela a recursos linguísticos etc. Daí a conclusão do autor de que será melhor dissolvermos os estudos literários, coisa aliás, segundo diz, que já era feita na época (década de 80), em prol de uma ressurreição da Retórica. Pode parecer ser um pouco estranho esse tipo de proposta, ainda mais considerando que Eagleton se refere a teorias políticas do fenômeno literário, por exemplo a crítica marxista ou feminista, mas ele tem sua lógica ao dizê-lo. É que a Retórica se preocupava não só com os aspectos textuais. Pelo menos a Retórica clássica, pois, com o passar dos séculos, ela se apartou da vida social prática e se tornou um repertório de instrumentos literários padrões, o que explica seu rechaçamento durante e após o Romantismo. Antes, ela se preocupava com os aspectos textuais num espectro mais amplo que transcendia o olhar cerrado sobre o texto: ela se preocupava também com a feitura textual e com o impacto textual. A rigor, uma guinada retórica seria a mesma coisa da guinada discursiva, dominante na época e ainda hoje muito presente (vide o PCNEM), com a diferença de que Eagleton propõe observemos a relação íntima do texto com a realidade social, não implicando com isso que vamos apenas sair por aí catando referências a pares de sapatos esfarrapados e sabotagens a cada 20 páginas. É mais do que isso: Eagleton defende a dissolução dos estudos literários em prol dos estudos culturais, que abrangeriam o fenômeno cultura de maneira geral e, portanto, não dependeriam da análise de uma categoria ilusória. No livro A função da crítica, um ano mais tarde, discorrendo sobre os primórdios da crítica inglesa (século XVII) até hoje, a crítica tendo perdido toda e qualquer relevância social e cultural, Eagleton também propugnará por uma concepção retórica e culturalmente ativa e situada da crítica, tal como no começo era mais ou menos feito, isto é, o crítico era um articulador do debate (embora um articulador que se mantinha na corda-bamba entre o rompimento com a aristocracia e a manutenção de categorias de teor a um só tempo democrático e aristocrático, em especial a da Racionalidade, ou seja, todos a princípio poderiam ser críticos, mas desde que tomassem para si os princípios da Racionalidade tal como eram concebidos por uma minoria); e, além disso, o crítico era aquele que não se limitava apenas à literatura, percorrendo, antes, todo o espectro cultural.

Existem, porém, problemas na concepção central de Eagleton de que a categoria Literatura é uma ilusão. Trata-se de algo que ele problematizará anos mais tarde, numa guinada que surpreendeu Sérgio Rodrigues (aqui) e a mim também. Mas cada coisa na sua hora. Por hora a questão é: se de fato não temos como chegar a um conceito definitivo de Literatura, isso não muda o fato de que a Literatura possa ser pensada de acordo com um esquema de cerne duro e zona esfumaçada (um termo inventado pra dizer: de forma razoável). Ou seja: existem textos e existem características textuais que são esperadamente literárias, e, porventura não servindo para todos os textos, isto não muda muito o fato de que o cerne continua ali. Afinal de contas, se podemos considerar os sermões de Donne como literários, daí não se segue que todo sermão seja literário ou esperadamente literário, o que é o mesmo que dizer que o cerne, apesar de ter sido contradito pela inclusão dos sermões de Donne na esfera literária, continua sendo atuante em nossa mentalidade acerca do que concebemos como Literatura.

Lá na Introdução, que é quando Eagleton expõe sua ideia da Literatura como ilusão, os Formalistas Russos são trazidos à baila, em especial graças ao conceito da estranheza ou desfamiliarização (em russo, ostranenie, остранение). Só que trazidos de forma muito canhestra... Posso apontar como uma exceção quando Eagleton nos diz que concebermos a estranheza é por conseguinte partirmos do princípio que a fala cotidiana é comum, normal, o que, se observado de maneira mais atenta, é uma inverdade: tome-se o caso das gírias ou o fato de que não existe um só artifício tido como literário que não se encontre na linguagem cotidiana (por exemplo a metáfora, que, conforme os estudos, contemporâneos a Eagleton, de George Lakoff e Mark Johnson, atuam diretamente em nossas ações e pensamentos). Ao dizer do enfoque dos formalistas sobre o texto poético, quando formularam a ideia da estranheza, também me parece que Eagleton está no caminho certo: eles não pensaram tanto assim no funcionamento da prosa. Pelo menos a priori, podemos pensar, visto que quando os formalistas pensavam a narrativa, eles pensavam sua estruturação (o termo não é dos melhores pois cria uma proximidade além da já existente entre os formalistas e os estruturalistas, posteriores) em termos distintos da estruturação da linguagem poética, que tendia a ser minuciosa e focada em palavras, aliterações, sonoridades, ambiguidades etc, o contrário, vê-se, da estruturação narrativa, mais próxima de blocos, capítulos, sequências etc. (Digo isso tomando como base o enfoque que, por exemplo, Chklóvski dá à poesia e à prosa ― prosa artística, claro, notadamente a tolstoiana ― em seu arquifamoso A arte como procedimento.)

Mas observe quando Eagleton diz que todo texto, qualquer que seja, se tratado com uma certa atenção pode ser considerado estranho. Bem, quanto a isso, sim, "de fato"... Entre aspas pois uma ideia assim só se validaria a partir de uma absurdidade, o que é uma maneira um pouco estranha de interpretar os fatos. Pros formalistas, o texto literário era um texto de exceção, uma violência para com a linguagem cotidiana, mas daí não se conclui que eles são escritos, lidos ou pensados a partir de absurdidades ou mesmo estranhezas. Eles existem. São até comuns. Não tão comuns a ponto de criarem uma espécie de normalidade alternativa (ao menos não uma que se vincule e substitua a que temos hoje, no sentido de ser uma ameaça). É totalmente o contrário de querer, como Eagleton faz, soltar as rédeas da imaginação frente a uma placa de metrô. Ou seja: não era bem isso o que os formalistas estavam dizendo. É claro que o contexto de estarmos frente a uma obra literária importam. No livro How to read a poem, de 2007, do qual falarei mais tarde, os argumentos de Eagleton melhoram muito. Nos diz, por exemplo, que o objetivo dos formalistas não era tanto encontrar a literariedade e sim estabelecer uma espécie de estética negativa, baseada no desvio para com o discurso corriqueiro. Portanto, a teoria dos formalistas russos era sempre-já relacional: o que pode ser estranho para uns é comum para outros. Daí as problematizações de Eagleton, em 2007, ao se perguntar sobre o quê estava sendo estranhado ou desfamiliarizado (se a ideia, o objeto, a palavra em si etc), e ao se referir à ideia do estranhamento como própria de algumas civilizações, onde a alienação humana passou a ser realidade. (Se bem que Eagleton não dá exemplos de sociedades em que isso não se daria... Aliás, um pouco estranho um marxista negar a utilização secular do homem como instrumento do homem. A hipótese de que a alienação humana sempre foi uma realidade me parece plausível, claro que sem o exagero de pensarmos em massas e massas de rebanho controladas com um estalar de dedos ou uma canetada num papel, uma bateria de comerciais televisivos ou uma oratória dotada de poderes mágicos.)

Todavia, se por um lado os questionamentos mais recentes realmente conseguem se sustentar, na década de 80, em Teoria da Literatura, como estávamos vendo, a coisa não era bem assim. O critério da estranheza ser jogado à solta no espaço é uma ideia muito questionável por parte de quem critica a ideia dos formalistas russos. Pense-se no raciocínio de Jakobson sobre os seis componentes da comunicação humana (emissor, receptor, mensagem, canal, código e contexto) e suas respectivas funções. Jakobson foi claro ao dizer que nenhuma dessas funções poderia ser pensada de forma absoluta, mas, quando muito, no âmbito de uma predominância. Isso faz com que, reconhecendo a função poética (mensagem voltada para a própria mensagem) de um slogan como I like Ike, não se segue que, portanto, estamos frente a um texto poético, visto que temos que considerar também o canal e o contexto, por exemplo, para que cheguemos à verdadeira posição de tal função. O raciocínio de Eagleton, de pegar trechos aleatórios, recortados, picotes de mensagem e jogá-los para o leitor e dizer: "vê? Isso não tem nada de estranho, mas dizem que é" ou "vê? Isso é estranho, mas dizem que não é"; uma ideia assim não está próxima do argumento que, supostamente, estaria contradizendo. Podemos de fato ler um anúncio no metrô e, se estivermos bêbados ou se elucubrarmos demais, lermos como literatura (a situação foi formulada pelo próprio Eagleton); contudo, creio que é um ponto de partida razoável o de que só podemos começar a pensar em literatura partindo do princípio que o leitor está sóbrio. É assim com muitas coisas na vida, aliás. Pois se fôssemos considerar a hipótese do bêbado, então é forçoso dizer que sendo a Literatura uma ilusão, mesmo assim podemos estudá-la com afinco e não dar a mínima, à maneira dos bêbados que beijam o poste e não se importam com a sujeira.

Dois exemplos de leituras tendenciosas por parte de Eagleton são as que faz sobre Northrop Frye e Wolfgang Iser. A impressão que fica é a de que Eagleton não leu ambos os autores com a atenção necessária. Tivesse como princípio maior a exposição das ideias com a maior clareza e honestidade possível, e reservasse os comentários para depois, um apêndice ou mesmo um outro livro, então certo. Não é o que houve aqui. Disse lá atrás, por exemplo, que sua explicação da filosofia heideggeriana é clara. E de fato é. Mas me parece um pouco risível a tortuosidade usada pra chegar à sugestão de que a filosofia estética heideggeriana seria um reflexo de sua adesão nazista... Posso dizer o mesmo sobre as lacunas que o livro apresenta. A explicação que deu à ausência da crítica marxista e feminista do livro não convence. Colocá-las sob o signo de uma teoria política da literatura pode até fazer sentido, mas faltou uma explicação mais detalhada das ideias. O leitor fica com a sensação de que Eagleton selecionou só o que ele queria criticar. Talvez isso explique o fato de que a filologia românica, por exemplo, na pena de um Auerbach ou um Curtius, tenha recebido apenas uma menção passageira, de que, grandes eruditos e humanistas, sua época passou com o advento do estruturalismo.

Sobre Frye, Eagleton nos diz que o autor canadense estava próximo dos estruturalistas no sentido de reduzir fenômenos individuais a leis. Eagleton chega até a comentar que o método proposto por Frye é capaz de classificar obras e colocá-las em seus devidos lugares com a precisão de um programa de computador. Afinal de contas, para Eagleton a obra de Frye apresenta um medo profundo do mundo social e um desgosto pela história propriamente dita, de tal modo que na literatura podemos afastar as sórdidas externalidades da linguagem referencial e dormirmos em paz.

Mas será mesmo?

Vamos dar uma olhada no que Frye tem a nos dizer no Anatomia da Crítica.

O objetivo de Frye é basicamente um objetivo unificador. Nos quatro ensaios de seu livro, ele fornece métodos que não se propõem a substituir os já existentes e sim servirem de novas perspectivas sobre os já existentes. Ele ataca a barreira entre os métodos. Agora, já sobre a alegação de que Frye sacode pra lá a referencialidade externa da linguagem, a impressão que tenho é que a edição de Eagleton, por algum motivo, foi impressa sem o segundo ensaio, Teoria dos Símbolos. Pois para Frye, podemos pensar a dinâmica dos signos a partir de uma perspectiva centrípeta ou centrífuga: se, partindo do signo, vamos para sua estruturação interna e correlação com seus pares, então temos uma perspectiva centrípeta, e, se vamos do signo para os objetos, então, temos uma perspectiva centrífuga. Onde estaria o temor das referencialidades externas da linguagem nisso? Além do mais, não dá pra dizer que pra Frye a literatura é apenas uma estrutura de palavras; ela é, numa definição suficientemente famosa, um corpo de estruturas verbais hipotéticas. Há muita diferença em jogo!

Quanto ao desprezo de Frye pela História, não procede. A imagem com que Frye fecha seu livro é uma das mais belas que já pude encontrar num livro de teoria literária. Retomando a alegoria da caverna, Frye nos convida a imaginarmos as sombras da caverna como o passado e a fogueira que as lança na parede como o presente. A tarefa da Crítica é sempre manter viva essa relação dinâmica e ativa para com o passado. Não dá pra dizer que Frye estivesse se referindo apenas à, vamos dizer, caverna platônica da literatura. Sua visão sinóptica do fenômeno literário é uma visão intimamente correspondente a uma visão unificada da cultura. Eagleton teria percebido isso se tivesse abordado, veja só, a filologia romana... Afinal de contas, é na sua Introdução Polêmica que Frye afirma que, se a crítica é uma ciência, ela é uma ciência social, e, páginas depois, compara a forma de crítica que propõe a uma crítica ética no sentido de servir como uma consciência da real presença da cultura numa sociedade.

Já sobre Iser, os questionamentos levantados parecem querer validar a ideia de que a estética da recepção iseriana seguiria uma ideologia liberal humanista. Daí, para Eagleton, Iser afirmar que o leitor ideologicamente tendente não seria um leitor tão bom quanto o leitor liberal, o que, conforme a argumentação (bem conduzida, devo admitir), criaria uma espécie de disjunção no sistema, pois, para ler literatura de maneira adequada, você precisaria de uma certa predisposição que o texto exigiria e, portanto, você meio que cria um círculo fechado. A crítica é interessante, embora exagere. Ao falar de um leitor com posturas ideológicas, me parece claro que Iser está dizendo fortes posturas ideológicas. Por mais que se possa argumentar que a ideologia se faz presente em nossas vidas e que é uma ilusão, ou melhor dizendo, uma submissão de nossa parte querer negá-lo; por mais que se diga isso, me parece claro que existem pessoas que se deixam submeter com mais intensidade tanto às ideologias prevalecentes quanto às ideologias alternativas. Daí que, para Iser, isso atrapalharia o mecanismo de leitura que ele chama de tema-e-horizonte (theme-and-horizon), ou seja, a ideia de que o leitor, naquele exato momento de leitura, fita um certo tema enquanto possui todo um horizonte de texto já lido, e que a relação entre um e outro é sempre dinâmica no sentido de que podem mutuamente se modificar, lançando luz sobre o passado, o passado lançando sobre o presente e um e outro afetando a forma como esperamos pelo futuro. Uma forte postura ideológica fere o ato da leitura pois o leitor não estaria disposto a abrir mão de suas posições, e não há problema algum em admiti-lo, ou mesmo em admitir que, para que façamos uma leitura que se queira minimamente bem sucedida, é necessário que sejamos flexíveis. O fechamento do círculo hermenêutico que Eagleton enxerga só pode ser um exagero...

O mesmo exagero que faz ao se referir aos vazios que todo texto, segundo Iser, tem. É dever do leitor normalizá-los (e Eagleton, pasme, consegue enxergar um autoritarismo no uso desse termo!), no sentido de que eles estão lá e, como o objeto literário não existe, e como não possuímos meios de descobrir por conta própria (o que, numa situação real, poderia equivaler a perguntar), então temos que manejar os espaços em branco e preenchê-los de forma criativa. Eagleton se pergunta: mas como, afinal, uma ideia assim lidaria com o Finnegans Wake de Joyce? A resposta é: Não tão bem.

Ora, por favor!... O Finnegans Wake é um caso limite. Não existe teoria nem postura alguma que consiga se sair bem frente a ele. É uma pergunta absolutamente sem sentido...

Uma última passagem é quando Eagleton se refere às ideias da estética da recepção como sendo o velho problema do saber se a lâmpada de uma geladeira apaga quando nós a fechamos. Sinceramente, não faço a mínima ideia do que seja isso. Mas o argumento é o de que se o texto é uma série de esquemas esperando serem concretizados pelo leitor, então como discutiremos esses esquemas sem os concretizarmos? A resposta é elementar e pode vir em forma de pergunta, caso queira: como discutir um livro sem ter lido um livro? No final do mesmo parágrafo, Eagleton tenta inverter a lógica da estética da recepção: se, ao invés do texto ser uma estrutura contendo certas indeterminações, então o que seria se tudo no texto fosse indeterminado, dependente do que o leitor construísse? É uma forma, você pode ver, um pouco esdrúxula de problematizar um argumento. Para problematizar algo, devemos inscrever a problematização dentro do círculo do que foi exposto. Problematizar fora disso é cair num jogo de hipóteses que a teoria não tem obrigação alguma de responder. Nem mesmo Eagleton levaria a fundo essa sua ideia de que tudo num texto pode vir a ser indeterminado pois, como ele expõe de forma reiterada (e a meu ver acertada), nós fazemos parte de uma comunidade linguística que, logo, não permite que um indivíduo estabeleça significados de forma arbitrária. Se tudo num texto fosse indeterminado e restasse ao leitor concretizá-lo, a atividade da leitura iria por água abaixo e, portanto, a própria comunicação humana. A estética da recepção, e isso Eagleton parece não ter percebido, no seu afã de enquadrá-la no rótulo liberal humanista, trata da relação entre texto e leitor. A hipótese que ele formulou é como querermos fazer o negativo de uma foto que não tiramos, pois traz à tona uma situação em que o leitor teria voz ativa no ato da "leitura".


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Language is a work of astonishing creativity. It is by far the most magnificent artefact humanity has ever come up with. It even surpasses the movies of Mel Gibson in this respect.
The event of Literature, p. 179.

O novo milênio trouxe mudanças. Pra melhor, muito melhor. Poucos hoje em dia têm demonstrado a complexidade da visão de Eagleton acerca do fenômeno literário. Se disse que seus momentos da década de 80 eram ruins, não posso negar que sempre desconfiei, antes mesmo de entrar em contato com seus livros mais recentes, que Eagleton fosse um dos mais aparelhados críticos de seu tempo, e que, sem todo aquele radicalismo e furor contestativo, aquele homem que se doutorou com apenas 24 anos realmente pudesse chegar ainda mais longe do que já chegara. E ele chegou. Em How to read a poem (2007), sua preocupação é a de fornecer uma espécie de acompanhamento para que retornemos à prática de ler atentamente um texto. Não quer dizer, claro (claro?), que estamos de volta ao close reading da Nova Crítica, mas sim que é necessário prestar uma atenção ao poema antes de atribuir significados a partir de um processo interpretativo que não se sustente. A proposta de pensar a Literatura em termos retóricos continua de pé, com a diferença de que, para que se chegue lá, o que deveria ser uma coisa óbvia mas que, dadas as leituras que andam sendo feitas, não é, então necessitamos nos aproximar do texto. A esse respeito, Eagleton nos lembra que não podemos partir de uma análise formal no sentido de desassociá-la não só do conteúdo da obra, mas também de conteúdos contextuais, o que a priori pode dar a entender que ele dá prosseguimento ao raciocínio de que a forma é inseparável do conteúdo, o que, surpreendentemente, não faz. Antes, julga que podemos falar acerca de ambos com um grau considerável de autonomia, ou seja, o conteúdo como o que o poema diz e a forma o como ele diz. Daí que, para Eagleton, possamos ter casos em que a forma é contrária ao conteúdo ou transcende o conteúdo.

Estou me adiantando. O esforço dele é tão notável que chega até a dar uma definição de poesia: "Um poema é uma declaração ficcional, moral e verbalmente inventiva em que o autor, ao invés do editor ou do programa de edição de textos [word processor], é quem decide onde as linhas devem terminar." (p. 25) Isso permite um olhar mais amplo do fenômeno poético, ressaltando sua importância em tempos de morte da experiência, ou seja, hoje nós já não consumimos objetos ou eventos, mas a experiência que temos deles, como se ela fosse uma espécie de pizza. É quando diz, num insight acuradíssimo: "Nós experimentamos o presente no futuro perfeito. É o ato de ter tido a experiência que importa, o que nos remove da realidade duas vezes. O que é importante sobre o evento é o seu depois." (p. 18) Num mundo assim, portanto, é claro que perdemos a experiência também com a linguagem, e, tendo em vista que a poesia é uma espécie de fenomenologia da linguagem, uma relação entre palavra e sentido mais acirrada que na linguagem comum, então a poesia pode servir como um retorno a que voltemos a experimentar a linguagem: "O sentido de suas palavras [poéticas] liga-se de perto à experiência delas." (p. 21)

Mas, voltando à definição de poesia, deve-se notar que Eagleton não faz referência alguma a instrumentos como a rima, metro, imagética, simbolismo, dicção e por aí vai. São coisas que encontramos em textos não-poéticos também. Unindo três critérios, digamos, valorativos, ou três critérios que dão um pano pra manga bom, ou seja, o critério ficcional, moral e verbalmente inventivo, a definição termina se referindo ao corte das linhas intencionado pelo autor. Podemos pensar que esta última parte sirva apenas para a poesia em versos e não para a em prosa, mas não acho que seja muito correto pensá-lo visto que, no poema em prosa, ainda assim é por deliberação do poeta que a linha não seja cortada. É diferente da prosa, em que realmente tanto faz. Pense-se no caso de um poema em prosa como o Soneto, do Rimbaud da última fase (Iluminações). Apesar de disposto em prosa, é de se notar que ele tem 14 linhas, o que, por conseguinte, o liga ao soneto, e de tal modo que quem imprimir o poema em mais ou menos linhas que isso não estará fazendo jus ao que o autor de fato deliberou, tal como imprimir um soneto camoniano em 5 versos.

Talvez o que encuque o leitor seja o termo "moral". Eagleton não está pensando em termos de bom ou mau comportamento. Ele toma a moralidade num sentido clássico, ou seja, o estudo de como viver a vida da melhor maneira possível. Daí que moral se refira "a uma visão qualitativa ou valorativa da conduta e experiência humanas." (p. 28) Ou seja, moralidade referente apenas ao comportamento e não ao bom ou mau. Referente à experiência humana sob um enfoque individual, o que traz à baila os valores, fins e intenções que norteiam nossa estada no mundo rumo a uma fruição melhor possível de tudo. Assim, "Poemas são declarações morais, então, não porque lançam juízos adstringentes de acordo com um código, mas porque lidam com valores humanos, significados e propósitos. Portanto, a palavra oposta a 'moral' deve ser 'empírico'." (p. 29) Em The event of literature, cinco anos depois, dirá: "Uso o termo 'moral' tendo em vista o reino das significações, valores e qualidades humanas, mais do que um senso anemicamente deontológico pós-kantiano [deontológico = relativo ao dever ser; pós-kantiano = relativo ao que é apriorístico] de um dever, lei, obrigação e responsabilidade." (p. 59) Naturalmente que Eagleton não pospõe um ao outro com objetivo de mostrar como declarações empíricas são ruins. Ao dizer que o poema se caracteriza por ser uma declaração moral, ele não quer dizer que um poema se faça apenas disto e que não possa conter dentro de si o contrário, nem que o contrário, caso surja, não possui o esplendor da declaração moral, pois, a esse respeito e como ele mesmo diz, declarações empíricas nunca são simplesmente "informativas".

Já ao se referir a declaração ficcional, ele está preocupado não com aquela oposição binária e certo modo entediante entre ficção e veracidade. O poema é o que saiu de seu contexto original e se comunica com uma plateia mais ampla e indeterminada. "Poesia é linguagem tentando significar na ausência de evidências e restrições materiais." (p. 32) Só que daí, claro, não se segue que ele não possa trazer consigo uma contextualidade própria. A conexão entre a poesia funcionar fora de um contexto de leitores originário e a ideia da poesia não possuir contextualidade alguma; são ideias que não possuem uma conexão tão evidente quanto parecem ter, ainda mais quando estamos falando de um livro que se propõe a ler atentamente poemas.

Agora, voltando à ficção, ela não é o oposto de imaginário, pois na medida em que o ficcional segue sua estrada, não importa se o que foi relatado houve ou não, nem, como dito, se refere ao que é factualmente falso. Numa passagem esclarecedora de seu livro, Eagleton dirá que a ficção é uma série de regras a ser aplicadas a alguns textos, à maneira das regras de xadrez que, ao invés de nos dizerem se as peças são ocas ou cheias, se são de grife ou são massinha de modelar, nos ensinam a movimentá-las. "A ficção nos instrui sobre o que fazer com textos, não sobre quão verdadeiros ou falsos eles são." (p. 35)

O critério do verbalmente inventivo ganhará de Eagleton uma exposição mais ampla. No livro The event of literature, de 2012 (p. 38), ele nos dirá que o signo poético possui uma característica paradoxal que é a de que quanto mais ele se torna densamente textual, mais ele expande seu poder referencial (torna-se mais pleno de significados) e ao mesmo tempo chama a atenção para si próprio. No caso de How to read a poem, a discussão sobre o verbalmente inventivo será dominante: percorre o final do segundo capítulo, que é quando Eagleton dá sua definição de poesia, chega ao terceiro, ao tratar do formalismo, e termina no quarto. Vimos anteriormente o que o autor dissera dos formalistas. Logo depois, expõe as ideias do semiótico soviético Iuri Lotman, para o qual a poesia era um sistema de sistemas. Assim, pense-se, lendo um poema, no sistema métrico, sistema rímico, sistema rítmico, sistema sintático, pra citarmos alguns sistemas relacionados à forma, e no sistema imagético, sistema narrativo, sistema argumentativo, pra citarmos alguns relacionados ao conteúdo. Cada qual possui seu funcionamento interior, o que faz do texto poético um todo extremamente complexo, alternando entre o bom funcionamento, que leva à redução informacional, à redundância (pense-se no sistema métrico criando um padrão métrico, redundante, para todos os versos), e entre o desvio, mas tudo isso de maneira mútua, ou seja, um sistema funcionando e a um só tempo podendo interferir nos outros. A exposição é importante pois ela fornecerá bases para que Eagleton ataque o que ele chama de falácia incarnacional, ou seja, a ideia de que a forma e o conteúdo do poema entrariam numa simbiose absoluta e que a forma incarnaria o que o conteúdo quer dizer. Eagleton sempre usa o exemplo da aliteração em S que imitaria sussurros, sibilos, roçares e por aí vai. Como vimos em Lotman, são sistemas e sistemas que funcionam em separado mas que podem influenciar uns aos outros. Daí não se poder falar tão facilmente de uma simbiose nem poder se falar num todo harmônico ou mesmo indissociável. Se é verdade que o paradigma poético é o de quando forma e conteúdo incarnam-se, ou quando a inventividade formal entra num forte conluio com frescas visões da experiência humana, isso não é sempre uma verdade. É partindo de tal conclusão que ele, como disse no começo, nos dirá que a forma pode muito bem servir contra o conteúdo ou mesmo transcendendo o conteúdo. Afinal de contas, na linguagem cotidiana a palavra serve, em boa parte dos casos, apenas para transmitir o sentido, o que é algo sem dúvidas importantes pois, caso contrário, caso ela fosse apenas poética, então embriagar-nos-íamos do prazer da linguagem e não iríamos a lugar algum. Para não dizer no fato de que na linguagem cotidiana o conteúdo também pode ser produto da forma...

No quinto capítulo, discute sobre como ler um poema, perguntando-se de toda crítica é subjetiva. Embora possamos divergir sobre aspectos conteudísticos, não podemos tanto assim, visto que, como Eagleton sempre diz (em quase todo livro ele parece que bate nessa tecla; e de fato é um bom argumento), fazemos parte de uma comunidade, a língua é comunitária e, logo, não podemos atribuir de forma arbitrária sentido às coisas. E é justamente graças a isso que podemos dizer que nem toda crítica é subjetiva, e que aspectos como ritmo, simbolismo, conotação, tom ou modo podem muito bem ser discutidos. Pense-se no caso de uma pessoa que triste que, caso queira realmente saber-se triste, deve se valer de conceitos sociais para que compreenda isto: "eu estou triste", e não outra coisa amorfa e sem nome. Além do mais, nossas emoções não são apenas uma coisa privada. Escondê-las do público também envolve complexas técnicas públicas. Nas páginas 109 e 110, ao discutir sobre significado e subjetividade, ele retornará com mais tardar e clareza acerca do necessário conluio entre interpretação e comunidade.

O restante do livro é basicamente um exercício de campo, exemplificando como ler poemas. A gama de textos é ampla e variada. Mas aqui não creio que uma exposição do que foi discutido possa ser producente.

Adiante.

Cinco anos depois, em The event of literature (2012), Eagleton reformulará de maneira radical sua concepção do que é Literatura. De maneira radical mas nem tanto. Ele ainda afirmará que sempre existirá um espaço para uma certa arbitrariedade nossa ao definir o que é Literatura. Antes de chegarmos lá, somos apresentados, no primeiro capítulo, à contenda entre realistas e nominalistas, que, durante a Idade Média, gerou um debate daqueles. Enquanto pros nominalistas os conceitos são posteriores às coisas, pros realistas, à maneira platônica, os conceitos são anteriores. Uma posição intermediária seria aquela ocupada por Duns Scotus, para quem a natureza possuía uma existência fora da mente: mas só podia se dizer totalmente universal quando passasse para o intelecto humano. Será Scotus quem desenvolverá o conceito de haecceitas, isto é, "o excesso de uma coisa sobre seu conceito ou natureza comum  uma especificidade irredutível que pode ser tomada não só pela reflexão intelectual do que um objeto é, mas por uma apreensão direta de sua presença luminosa." (p. 2) O resumo da ópera me parece ser esse: o de que a literatura é um haecceitas. Não podemos apreendê-la apenas com o intelecto, mas precisamos também aprender um pouco com sua luminosa presença em nosso mundo.

É o que nos levará ao parágrafo mais importante do livro (p. 25):

De minha parte, sinto que quando as pessoas, hoje, chamam algo de literário, elas no geral possuem uma das cinco coisas em mente, ou uma combinação dela. Elas querem dizer por "literário" uma obra que é ficcional, ou que lança um olhar significativo sobre a experiência humana enquanto oposta à reportagem de verdades empíricas, ou que usa a linguagem de maneira peculiarmente altaneira, figurada ou auto-consciente, ou que não é prática no sentido de que listas de compras são, ou que é altamente valorizada como uma obra escrita.

A última definição, você pode ver, uma conhecida nossa. Um parágrafo depois,

Podemos chamar esses fatores de ficcional, moral, linguístico, não-pragmático e normativo. Quanto mais estas características forem combinadas numa obra escrita, então é cada vez mais provável que em nossa cultura alguém a reconheça como literária.

Para chegar até aí, Eagleton traz o bom e velho Wittgenstein das Investigações Filosóficas (da proposição 69 em diante). É aquilo de se perguntar o que faz com que um grupo seja um grupo, se, olhando-o como um todo, não parecem existir características universais que o faça indubitavelmente ser um grupo. Wittgenstein cita o exemplo dos jogos: o que une todos num só grupo ou conceito? Pense-se no carteado, no dominó, nos dados... Diferentes demais. A conclusão é a de que não há uma só característica que todos eles compartilhem em comum, mas uma rede complicada de similaridades se sobrepondo e entrecruzando. Paulo Henriques Britto, mais ou menos aos 1:05:00, dá uma boa explicação disso também:




O modelo, segundo Eagleton, serve também pois desconstrói a si mesmo (p. 27), ou seja, ele aponta para além do que hoje contemplamos. Pois afinal, todos os critérios que ele apontou são critérios bagunçados, porosos, instáveis (p. 28), e boa parte do livro Eagleton tentará mostrar exemplos que consigam contradizer cada um dos critérios que trouxe à tona. Assim, por exemplo, Eagleton nos fala a respeito da piada: ela pode perfeitamente preencher todos os requisitos e ainda assim não ser considerada literatura.  Outro exemplo é ao citar Monroe Beardsley, para quem o texto literário era aquele que possuía uma importante parte de seu significado implícita, no que Eagleton redargui dizendo que sem uma quota implícita, nenhuma obra escrita pode funcionar de todo, seja ela uma placa de SAÍDA num estabelecimento (afinal de contas, não fosse assim e todos estavam entrando e saindo da loja...). Um terceiro exemplo interessante é quando Eagleton nos diz que o que é formal e o que é moral num texto literário é certo modo difícil de distinguir (p. 46-47), o que parece ser um retorno à falácia incarnacional. Creio ser possível que Eagleton tenha revisitado suas ideias de cinco anos atrás, mas creio ser ainda mais possível que ele esteja querendo dizer apenas que não podemos pensar os critérios morais como uma espécie de suco que, espremendo o poema, tcharã. O que é moral deve ser pensado ao lado do que é formal (na página 66 ele dirá: "Tais formas de cognição não podem ser facilmente abstraídas do processo pelas quais foram adquiridas.") e até mais do que isso: "O 'estético' é mais cultural e historicamente variável do que muitos desses teóricos tendem a imaginar." (p. 51) Tanto que, na página 57, ele voltará a questionar a ideia de que forma e conteúdo são um todo harmônico, quando podem muito bem estar em pé de guerra.

Um quarto exemplo está quando Eagleton questiona a ideia de que a literatura nos permite ver melhor os outros. "De todo modo, saber o que você sente não me inspira necessariamente a te tratar com benevolência." (p. 61) Entrar dentro de outra pessoa não implicará conhecimento a não ser que, citando Catherine Wilson, não retenhamos nossos próprios poderes de reflexão durante o processo. Eagleton cita como exemplo o estímulo que os vitorianos davam às classes trabalhadoras para que lessem e vivenciassem um mundo fora do seu, numa forma de pacificação de ânimos. Por isso dirá que a moralidade literária é uma forma de práxis, ou seja, de conhecimento ativo, próximo do conceito clássico de virtude, atrelado a um sentido prático mais do que teórico. Será uma discussão que, em How to read Literature, um ano depois, ele retomará ao dizer que o texto literário pode ser visto como voltado a si mesmo em termos de práxis e não de acordo com uma espécie de ideologia filistina ou esteta. Isto é: enquanto pro filistino não é possível que o conhecimento advenha de situações práticas, pro esteta não é possível que a literatura possua qualquer utilidade, quando mais prática! Todavia, se a literatura é uma práxis, se ela é como a virtude, então seus fins são voltados para si mesma, mas no sentido de que é apenas graças à sua performance, à sua existência retórica, à sua existência contextual, que ela consegue alcançar tais fins.

Um quinto e último está quando Eagleton discute a universalidade da obra literária. De fato, a obra literária precisa subsistir na ausência de seu autor, como já citado em livro passado. Ela também se caracteriza por não possuir uma função que possa ser predita, de modo que os textos literários "são inerentemente abertos, capazes de serem transportados de um contexto a outro e de acumularem significados novos durante o processo." (p. 75) Mas nem todos os textos flutuam livres de seu contexto, e alguns inclusive dependem dele, o que não implica dizer que são por isso mesmo piores que outros (pense-se na Ode de Marvell): a esse respeito, na página 80 ele formula uma bela resposta sobre isso, de que "Certas obras escritas continuam a ressoar em nós graças a seu poder peculiar com o qual foram ungidas por seus contextos." Pra não dizer que nem todo texto que consegue ir além de seu ponto de partida é literário...

No quarto capítulo da obra, Eagleton discute a respeito da ficção. A citação passada que fiz sobre o assunto, remetendo ao jogo de xadrez, será extremamente esclarecedora pro leitor que se propuser a ler este capítulo, que a meu ver ficou um tanto quanto inconclusivo. Nele, Eagleton basicamente toma uma série de pontos de vista acerca da relação entre ficção e realidade para mostrar como a ficcionalidade é muito mais uma movimentação própria do que a representação do objeto e seu correlato teste de veracidade. Assim, por exemplo, textos podem se mover do estatuto de ficcionais ou não ao longo do tempo, como a Bíblia; ou textos ficcionais podem possuir declarações verídicas; ou então você pode fazer-de-conta algo que sabe ser verdadeiro; a realidade pode ser objeto de fantasia e ainda assim permanecer realidade; a ficção é parte da realidade; é possível que se emocione com algo ficcional sabendo que aquilo é ficcional etc. A parte mais próxima de uma concepção propriamente dita do fenômeno ficcional (e não uma descrição dele, como até então fora feito) é quando Eagleton se refere à teoria dos atos da fala (p. 131 e 132, em especial). Os atos da fala literários fazem parte dos chamados atos performativos, que, ao invés de descreverem o mundo, conseguem algo apenas dizendo. Por exemplo, dizer "eu prometo" já é prometer. O sentido se incorpora ao ato, tal como na obra ficcional, em que as realidades enunciadas não possuem outra realidade que não a do próprio ato enunciativo. Daí também a conclusão de que atos ficcionais, tais como atos performativos, não podem ser submetidos a valorações de verdadeiro ou falso, posto que não são propositivos: não dá pra dizer que agradecer, amaldiçoar ou negar são verdadeiros ou falsos. Claro que daí não se segue que atos performativos são totalmente apartados de atos constativos (que constatam algo), pois todo ato performativo sempre envolve uma questão de como as coisas são. Um dos exemplos de Eagleton a esse respeito é o ato de prometer de Natal um lagarto de pintas roxas. Se esse lagarto não existir, então não faz sentido prometer. Páginas depois (p. 135), Eagleton irá comparar a literatura a atos sacramentais, em que os fins são alcançados apenas pelo ato de que sejam evocados.

Assim, a ficção é fundamentalmente sobre si mesma, o que não quer dizer que ela não traga elementos factuais para dentro de si (p. 138). "Dizer que uma obra ficcional molda a si própria, então, não é sugerir que ela é desalgemada. Como argumentamos antes, ela se restringe, por natureza, a seus materiais (não menos se for uma obra realista), assim como por fatores formais, genéricos e ideológicos. E contudo, a arte é matéria de internalizar tais restrições, incorporá-las a seu corpo, torná-las no material de sua auto-produção e assim restringir ela mesma." (p. 142) 

No último capítulo, Eagleton desenvolve sua teoria-para-todas-as-teorias. É realmente interessante ver como ele mudou. Todas as teorias, ele diz (p. 167), possuem em comum o fato de irem contra o impressionismo. Este se advoga a qualidade de não depender de teoria nem de abstrações parecidas, o que é um tanto quanto questionável se nos lembrarmos que sempre estão se valendo de conceitos tais como métrica ou ritmo, pra não dizer no fato de que muitos desses textos não se preocupam em lançar olhares críticos sobre a ideologia do texto posto à luz. A TOE (Theory of (almost) Everything) formulada por Eagleton, que pretende chegar a um aspecto em comum de todas as teorias literárias, diz que todas elas tratam o texto literário como uma estratégia. No caso, é preciso pegar as correntes todas e tentar aplicar a ideia de se enxergar o texto como uma estratégia. Para a Nova Crítica, por exemplo, podemos pensar na estratégia de resolver as ambiguidades e contradições apresentadas ao longo do texto; para os marxistas, uma série de estratégias envolvendo a realidade social de classes etc. De minha parte, julgo a ideia promissora. Mas não creio que uma exposição dos meandros do texto de Eagleton possa ser producente aqui, de modo que encerro.

Um terceiro livro que gostaria de trazer à baila, sobre a guinada que a obra do crítico inglês recebeu neste novo milênio, é How to read Literature. Ao que me consta, Denise Bottman o traduziu recentemente, mas não sei se está ou não no prelo. Ou mesmo se já saiu. Em sua maior parte, a obra consiste numa espécie de manual, à maneira de How to read a Poem (mas com um número bem menor de digressões teóricas), de modo que discutir o que a obra aborda acabaria sendo discutir o que já expus ao longo deste texto. Para quem gosta de Harry Potter, por exemplo, o final do quarto capítulo pode ser de algum interesse. Talvez o melhor capítulo do livro, este quarto, pois é nele que se é argumentado acerca da nossa já conhecida questão do nem toda interpretação ser subjetiva. A diferença é que agora Eagleton o faz numa perspectiva interna e não externa. Ele traz à tona a ideia de que uma interpretação pode se valer, de forma excessiva, de um aspecto textual que não suportaria tamanho enfoque, tamanho exagero, ou que um enfoque tão grande assim num aspecto pode se seguir da desconsideração de outros. Daí concluir que: "Dizer que minha construção do poema é inconvincente é dizer que ela ofende o sentido que habitualmente fazemos das coisas, um fato que não pode ser deixado de lado." (p. 141) Claro que páginas depois ele retornará à sua posição habitual (p. 144-145), mas não deixa de ser um enfoque digno de nota. No último capítulo, sobre o valor, continuando a afirmação de que o sentido não é puramente subjetivo, nos diz que existem critérios, públicos, de valoração, e que é com base neles que a crítica literária subsiste. Claro que não quer dizer que ela toda seja uma massa amorfa de concordâncias; ainda assim há grande espaço para dissensos e contradições. O restante do capítulo é o modus operandi comum de Eagleton: complexificar nossa concepção do fenômeno, dizendo, por exemplo, que nem toda obra complexa é boa, que nem toda literatura profunda é boa ou que nem toda literatura é coerente etc.


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Fecho com uma passagem bela de How to read a poem:
A linguagem é a mediadora em que tanto a Cultura e a cultura ― a arte literária e a sociedade humana ― chegam até a consciência; e a crítica literária é assim uma sensibilidade para com a espessura e a complicação do meio que nos faz sermos o que somos. Simplesmente em prestar atenção a seu objeto distinto, ela possui implicações fundamentais para o destino da cultura como um todo.

Enquanto muitos críticos, com o passar dos anos, se tornam seus piores inimigos e operam uma notória queda de qualidade e percepção crítica, como se a última descoberta de suas vidas fosse o esclerosamento ou a rabugice covarde, Eagleton é o contrário. Com revisitar seus pressupostos, com sua habitual argúcia em lançar olhares práticos e problematizantes sobre o fenômeno literário, sem dúvidas merece o alto posto que ocupa nos quadros da crítica literária contemporânea. É, no mínimo, revigorante.