Literatura de entretenimento.


(Gráfico retirado de As Regras da Arte, Pierre Bourdieu, trad. Maria Lucia Machado, Cia das Letras, 1996, p. 164)


Raphael Draccon, expoente do que se chama de Nova Literatura Fantástica Brasileira (creio que uma boa apresentação é o Nerdcast 379, aqui), escreveu hoje, para a Folha, um texto opinando ser possível sim viver de literatura no Brasil: aqui. Em 27 de dezembro do ano passado, o mesmo jornal, numa pesquisa informal, tentava entender do que vivem os escritores no Brasil: aqui.

Creio existirem algumas coisas a serem ditas a respeito do texto de Draccon. O cerne principal de seu texto é subverter aquela noção romântica de que o escritor, se se quiser bom, não pode vender muito, tão apartado está da sociedade. Mas querendo se integrar à sociedade. Mas atacando-a. Mas a sociedade o rejeitando. Mas ele se sentindo rejeitado. Mas se apartando da sociedade. (Reboot.) E toda aquela novela que sabemos bem. Existem questões secundárias ao longo do texto, como ― o que enxergo tendo como base os parágrafos três a cinco ― as indiretas de Draccon à recepção literária ― isto é, à crítica. Mas não creio que seja algo que proceda muito, visto que pode redundar na ideia de que a literatura, além de querer vendagem ― alcançar seu público ―, também quer abono crítico ― o que João Cezar de Castro Rocha, em crítica a Geração sub-zero para o O Globo, 21/07/12, aqui, aponta.

Questão secundária, ela ajuda a iluminar comentários que, não surgindo de maneira explícita no texto de Draccon para a Folha, aparecem em outros textos dos integrantes da Nova Literatura Fantástica Brasileira. Não vou nem comentar aquelas pseudocríticas que se limitam a ridicularizar de forma muitas vezes violenta o que tais escritores fazem, como se os defeitos fossem visíveis por si só. Venham a ser visíveis, enquanto críticos é necessário que se faça pelo menos um esforço para demonstrar o porquê dos defeitos. (Colocando de maneira curta e grossa, crítica não é molecagem.) Comento mais no sentido de que ― a Crítica pode estar errada em não enxergar, suponhamos, a qualidade desses autores?

Como diz a propaganda: poder, poder... pode. Mas seria uma espécie de probabilidade vista de longe. Pois a Crítica é, grosso modo, argumentação (usarei por enquanto "Crítica" em maiúsculo pra não virar uma bagunça). Para ficarmos com Wilson Martins, ela não existe ― o que existem são os críticos. A possibilidade de que a Crítica despreze um grande escritor de hoje é sempre possível, mas o escritor que de certa maneira se fia nisso a fim de atacar a Crítica se trata de um contrassenso em muitos sentidos. É como se ele se fiasse numa possibilidade inscrita na ordem do acaso. O que faz com que reavaliações críticas se deem de um período a outro não é um movimento da roda da fortuna: é, como disse, um trabalho de contra-argumentação profundo e árduo que muitas vezes precisa ser sempre reencetado: Sousândrade, 1832-1902, escrevia com a angústia de que só daqui a 50 anos seria lido, e, mesmo tendo sido redescoberto em 1979, até hoje ele não é lido de maneira satisfatória em nosso país! Se em algum momento ou se de algum modo já passou pela mente dos autores da Nova Literatura Fantástica Brasileira que a Crítica está errada e que eles estarão certos no futuro ― ou mesmo que o grande público que os consome está certo e que a Crítica está de elitismo ―, me parece muito mais producente ― tomando como base que, como sugeriu João Cezar de Castro Rocha, queiram o aval da Crítica ― deixarem de lado esse ao-Deus-dará e comecem desde já a movimentar a roda muitas das vezes emperradas dos parâmetros críticos vigentes.

Mas isto, como disse, me parece um aspecto secundário. Voltemos à noção principal.

O que primeiro me vem à mente, como de praxe nessas horas, é a reivindicação de José Paulo Paes no ensaio Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: o mordomo não é o único culpado) (A Aventura Literária, Cia das Letras, 1990, páginas 25 a 38). Aqui José Paulo Paes está trazendo a divisão feita por Umberto Eco entre cultura de massas e cultura de proposta, esta última colocada no lugar do que seria uma espécie de alta cultura ou uma cultura erudita. Enquanto a cultura de massas é via de regra não original, balizando-se pela repetição, ela também não exige um esforço cognoscitivo por parte do leitor. O contrário seria a cultura de proposta, que, fundada na problematização, de certa maneira mina o que não só a cultura de massas hoje tem apregoado como o que a própria cultura de proposta até então pôs em campo.

O que José Paulo Paes reivindica é, mais especificamente, uma literatura de nível médio (midcult) e não uma literatura de nível popular (masscult). Enquanto a segunda seria o caso daquela literatura fisiológica, isto é, industrializada, digerível e escrita de forma quase que automática, à exemplo dos romances de rodapé de revistaria (por exemplo Sabrina, Perry Rhodan, Coyote, os faroestes da Monterrey etc), a primeira seria o caso dos best-sellers, veiculados numa espécie de nível de industrialização não tão gritante, à maneira dos que são vendidos em livrarias. À maneira da Nova Literatura Fantástica Brasileira, portanto.

Como se pode ver, não é uma apologia à descarga. Pois, como afirma Paes (p. 28):

É em relação a esse nível superior aliás que uma literatura média de entretenimento, estimuladora do gosto e do hábito da leitura, adquire o sentido de degrau de acesso a um patamar mais alto onde o entretenimento não se esgota em si mas traz consigo um alargamento da percepção e um aprofundamento da compreensão das coisas do mundo.

Nas páginas seguintes ele apontará a historicidade dos gêneros da literatura de entretenimento, pois, se se aproveitam de "dispositivos literários consagrados" (entre aspas pois esses dispositivos, seguindo a noção de cultura de proposta desenvolvida, estão sempre sendo colocados em xeque), então é de se pensar que possuam uma origem. O caso, entre outros, do herói do bangue-bangue que se vale do arquétipo do representante heroico que traz consigo o fardo de proteger e perpetuar valores fundamentais.

Se Draccon, a Literatura Fantástica Brasileira ou qualquer um dos autores citados no sétimo parágrafo consegue de fato unir uma boa literatura a uma literatura de vendagem, fica a questão. Pois me parece ser uma inferência a de que Draccon se inclua no âmbito de autores que o conseguem. E, venha a se incluir ou não, venha a conseguir ou não, não me parecem serem aspectos que mudam a lógica do argumento (mesmo porque isso seria criticar o argumentador e não o argumento).

Todavia, algumas coisas devem ser pontuadas.

Não há necessidade alguma de se ter uma espécie de ojeriza a respeito da literatura de entretenimento e mesmo da cultura de massas. Para voltarmos a Umberto Eco de Apocalípticos e Integrados (livro do qual Paes retira suas formulações iniciais), a cultura de massa não substituiu a cultura de proposta. Ela apenas ocupou um espaço onde simplesmente não havia consumo de alta cultura, digamos assim (pois presumir que não havia consumo cultural é um verdadeiro absurdo). Além disso, a cultura de massa contribuiu sobremaneira para o acesso à cultura de proposta, e aqui Eco não está se referindo nem tanto à noção daquilo que Benjamin chamou de reprodutibilidade técnica ― isto é, a obra de arte podendo ser reproduzida em milhares de exemplares e, apesar de tornada produto, sobremaneira democratizada e tornada acessível ― (não está pois a esse respeito, lembra-nos Luiz Costa Lima, não podemos traçar com tanta facilidade uma linha reta causa-e-consequência entre a reprodutibilidade técnica e a cultura de massa, visto que só podemos falar de uma cultura de massa quando houver uma expectativa inconsciente de se encontrar e consumir uma) ―; Eco se refere, por exemplo, à veiculação jornalística da cultura de proposta, o que implicou, é claro, uma verdadeira revolução na própria cultura de proposta, você queira ou não queira. E vou até mais além: provocou uma revolução nos nossos padrões de entendimento, pois aqui bastaria nos lembrarmos das reflexões de McLuhan (o meio é a mensagem) ou de como a cultura de massa representou um dos cernes de raciocínio, pra ficarmos num caso nacional, da vanguarda Concreta.

Se quisermos falar de literatura de entretenimento, força é que ponhamos os pingos nos i's e não caiamos naquela espécie de armadilha de, em definir determinada coisa, partir-se de um juízo de valor. Toda literatura de entretenimento é necessariamente ruim? Ou melhor: o que seria uma literatura de entretenimento? Há de se concordar que não é uma definição simples, e que, mesmo dizendo que literatura de entretenimento é uma literatura feita com o fim exclusivo de entreter, isso não quer dizer que só teremos obras ruins dentro desse âmbito. Os poemas-piada de 22 não entrariam, sendo assim, dentro de tal definição? O Ulysses de Joyce também não?, uma vez que o próprio Joyce constantemente ressaltava sua obra como uma obra humorística (e de fato ela é mesmo!)... Para além, é claro, da ideia de que uma literatura feita apenas com fins de entreter pode muito bem ser uma quimera. Até que ponto o alcance exclusivo de tais fins é possível? E, venha a ser possível, até que ponto a obra que colocamos dentro desse cercado não estaria querendo também outras coisas, por humildes que sejam?

Não me lembro exatamente se quem diz isso é também Umberto Eco (tenho a vaga impressão que sim), mas, de todo modo, a literatura de entretenimento tem seu espaço em nossos corações. Tem seu espaço na vida daquele trabalhador que, chegando exausto em casa, quer apenas um bálsamo para a labuta. Ou então na vida daquele adolescente que deseja apenas um pouco de escape imaginário para seus hormônios à flor da pele.

Todavia, aqui me parece existir uma espécie de pulo do gato. Se tentamos definir literatura de entretenimento sem partir de um juízo de valor ― ou se, pelo menos, afastamos os excessos, a discriminação preconceituosa ―, um grande passo já foi dado. Mas veja que ainda assim podemos unir uma coisa à outra ― e, surpreendentemente, voltamos a Draccon. Os benefícios da literatura de entretenimento não são traduzíveis no sentido de que tudo pode descer pela garganta. A partir do instante em que essa coisa de entretenimento neutro, isento de influxos externos, não existe, também não podemos permitir que o gozo seja semelhante à ideia da descarga ou do piloto automático. É preciso que se vá um passo além de Paulo Paes e se reivindique, mais do que uma literatura nacional de entretenimento, uma literatura nacional de entretenimento de qualidade.

Pois, com efeito, a noção de uma literatura de proposta, adotada por Paes seguindo Eco, talvez seja uma noção balizada a partir de algumas grandes obras artísticas. É possível, perfeitamente possível, que tenhamos uma grande obra literária que possa servir a propósitos de entretenimento, sem prejuízo algum. Os critérios arrolados por Paulo Paes servem de maneira apenas parcial, e digo isso considerando ambos os lados da moeda apresentada (alta e baixa cultura), visto que as características por ele apontadas da cultura de massas (ou seja, a da repetição e da não-exigência) não me parecem ser estendíveis a todo o conjunto. O mesmo em relação a grandes obras literárias, que, se pensadas dentro de uma vertente moderna de, vamos supôr, contínua exploração de referencialidades externas (à maneira de Joyce, Pound, Eliot), podem validar o que Paes e Eco disseram como sendo cultura de proposta, mas que, se pensadas a partir de poéticas que não exigem do leitor uma bagagem prévia tão elevada e que em certo sentido até mesmo balizam-se por uma facilitação, mudam totalmente o quadro esboçado. Seria o caso de autores como Wordsworth ou Leminski, por exemplo. Leminski, aliás, um excelente exemplo, visto que partiu de uma linhagem um tanto quanto hermética, vista especificamente no Catatau e na sua proximidade às complexas formulações teóricas dos Concretos, e terminou buscando o facilitamento e o acesso ao amplo público, resultando, por conseguinte, no sucesso de vendas que sua poesia reunida representou em 2013.

Isso muda muito a ordem dos fatores. A partir do momento em que derrubamos a conceitualização da literatura de entretenimento como sendo uma literatura necessariamente ruim ou inferior, então a noção da escada de Paes é problematizada. Como ascender se, na prática, o que se deve propôr é que busquemos uma literatura de qualidade ― seja em que vertente ou campo ela estiver?

Tenho em mente, acerca de uma literatura de qualidade, não mais a noção de que se trata de uma literatura que necessariamente requererá, como dito, uma bagagem prévia bem consolidada. Tenho em mente uma literatura que consiga gerar um efeito de leitura rico e que, portanto, nos permita compartilhar leituras e, portanto, experiências, de maneira crítica e ampla. A noção precisamente do debate, a meu ver ínsita a toda literatura mas acentuada na literatura de qualidade: quanto melhor a obra, melhor o debate, em especial pelo fato de que não estaremos apenas compartilhando gostos ou impressões imaginativas, e sim, num passo além, uma leitura de nossas circunstâncias internas e externas, pessoais e universais, individuais e coletivas, históricas e contemporâneas etc.

Por fim, faço notar que a resposta de Draccoon, embora eu a julgue acertada, não vai nem de longe às complexidades da questão. Algumas vertentes de escrita podem dar dinheiro, associadas a alguns centros editoriais e a algumas regiões geográficas, pra não dizer no fato de que, baseado na pesquisa informal da Folha, a fonte de renda dos escritores está longe de ser apenas advinda da vendagem de seus livros...

Seria melhor comentar com um pouco mais de tardar essa complexidade da realidade literária. Lançando um olhar mais detido sobre os números, não parece ser algo tão díspar assim. Tendo em mãos os dados do Retratos da leitura no Brasil (aqui), de 2011, em especial a penetração de leitores por região (p. 269), a princípio parece claro e assombroso o descompasso existente entre, por exemplo, os 6,8 milhões de leitores do Centro-Oeste e os 38 milhões do Sudeste. Mas aí pode-se objetar que não é algo tão assombroso se representa aproximadamente uma proporção de 1 para 5 ― a mesma entre a população das duas regiões, conforme o Censo de 2010 (aqui; 14 milhões e 80 milhões, respectivamente). O número de bibliotecas públicas segue uma proporção de 1/4, conforme o Cultura em números, de 2010, (aqui, p. 90), ou seja, 434 e 1.788. O número de livrarias no país no ano de 2011, conforme a ANL (aqui, p. 6), mostra uma proporção mais díspar, de 1/8 (215 para 1829). Todavia, é preciso que, mesmo com estes números em mãos, se lance um olhar mais questionador frente a tais aspectos. Pois é uma característica clara da literatura de alta vendagem que ela, precisamente por ser de alta vendagem, se espalha melhor ao longo do país, o mesmo não ocorrendo com inúmeras outras editoras que dificilmente possuem uma circulação fora de seu Estado. Não são todos os Estados que, por critérios não apenas demográficos mas também de distribuição econômica (numa proporção, em nosso caso, de 1/5, 55,4% para 9,6% da participação no PIB, conforme o IBGE, aqui), representam um foco de investimentos culturais ― o que implica por conseguinte que padrões de pensamento e mesmo de escrita literária são irradiados para o restante do território nacional, o que o correr dos olhos em qualquer livro de História da Literatura Brasileira atesta. Viver da escrita não é uma realidade em todas as regiões do país. E, mesmo que o escritor venha a estar em outra região que não as regiões polarizadoras, ele terá de estar atrelado a estas regiões caso realmente queira viver da escrita. Ele terá, em suma, de estar ligado a mecanismos de circulação literária ― editoras, livrarias, congressos, jornais etc ― que se fundam em tais regiões polarizadoras ― o que fica muito mais claro quando colocamos em cima da mesa regiões metropolitanas e regiões provincianas.

Além disso, devemos observar que a questão da vendagem não é tão simples assim. Best-sellers são um bom investimento se estivermos falando de best-sellers estrangeiros; no caso de best-sellers nacionais, que é o que estamos tratando, a coisa fica muito mais complexa e sempre envolve uma margem de risco, a não ser que estejamos falando de celebridades ou autores laureados. Todavia, não são as únicas máquinas de imprimir dinheiro, digamos assim. Pierre Bourdieu, em As Regras da Arte, no capítulo 3, O mercado dos bens simbólicos, identifica duas lógicas econômicas do mercado da arte: a da economia anti-"econômica", fundada em obras de arte mais bem trabalhadas (arte pura) de tal modo que faz investimentos a longo prazo, acumulando capital simbólico para, em determinado instante, dar o bote e virar o jogo, e a lógica "econômica", que, calcada em curto prazo, se faz mais próxima do polo comercial imediato e se calca a partir de uma demanda preexistente, segundo a qual ela baliza suas apostas. O gráfico com que abri meu texto é dado por Bourdieu nessa parte. Observe que o texto A possui uma boa vendagem inicial mas depois decresce, o contrário de B, que possui um crescimento relativamente constante, e de C, que, após um começo catastrófico, ergue-se e consegue manter uma taxa de crescimento maior que a dos outros. A curva A representa um prêmio literário da época, a curva B um romance de Alain Robbe-Grillet e a curva C nada mais nada menos que Esperando Godot, de Samuel Beckett.

O que isso nos mostra é que existem os chamados best-sellers e os chamados long-sellers. Long-sellers são livros que sempre serão vendidos, pois representam um acúmulo de capital simbólico a longo prazo. Em sua maior parte, são clássicos. Não totalmente pois é possível que tenhamos um livro não tão bom assim que surpreendentemente ainda é lido e vendido, e é possível que tenhamos um clássico que esteve em baixa e ainda hoje representa um investimento de risco. Um exemplo é o recente lançamento do Cancioneiro de Petrarca pela Ateliê, sob o salgado valor de 150 reais. Além da opção pela impressão de um livro de luxo ― o que certamente aumenta o preço ―, deve-se notar que o que encarece de maneira decisiva o livro é o ato dos editores embutirem o risco de editar um livro desses, ou seja, poucos o comprarão, e, por isso, o preço do risco precisa ser posto lá em cima para que o livro se pague.

Tudo isso posto, creio que é o mesmo que dizer que nem mesmo toda literatura de entretenimento entra na pequena casca de noz que Draccon toma como espaço amostral ― tomando aqui, é claro, o termo literatura de entretenimento com todas as ilações que fiz. As coisas não mudaram tanto, afinal de contas: baseado na pesquisa informal da Folha, o número de escritores que vivem de sua vendagem ou, vamos lá, de aspectos quem sabe colaterais (debates, congressos), ainda é baixo. Como se, ao título de Draccon, faltasse dizer que é possível viver de um tipo restrito de literatura.


Reflexão adjacente encontro em A literatura não tem de partir dos clássicos, de Gabriella Rodella, em 06/7/14, para a Galileuaqui. Tenho lido comentários (os famigerados comentários!) que encontram no texto uma apologia ao politicamente correto, o que a meu ver simplesmente não procede. A ideia da escada é a mesma de José Paulo Paes: a literatura de entretenimento ― tomada aqui no sentido de "o que essa molecada lê" ― deve ser uma espécie de catapulta. Ela não vai tomar o lugar ― ela deve, antes, ser usada a favor.

Uma ótima ideia que, é claro, não retira a necessidade de um professor mais ativo na vida do aluno ― e, justiça seja feita, de que um espaço para tal seja dado ao professor, visto que, na lógica empurra-pela-goela do vestibular, o professor se vê de mãos atadas. Pois não creio que seja objetivo do ensino da literatura no ensino médio apenas o contato do aluno com as grandes obras de nossa cultura. É necessário que capacitemos nossos alunos a questionarem quais seriam as grandes obras de nossa cultura (em especial no sentido de entender como essa cultura é balizada e tomada num sentido opressoramente metonímico: a parte imposta para o todo). E além disso, é apetecível que tal contato entre esferas culturais qualitativamente distintas ocorra, a não ser que nos contentemos em dar a nossos alunos uma visão, querendo ou não, parcial do fenômeno cultural, malgrado o fato de porventura rica. Sinceramente vejo com bons olhos a iniciativa de trazer uma literatura de entretenimento ― ainda no sentido "o que essa molecada lê" ― para a sala de aula, pois, além de contribuir de maneira estratégica para que as obras chatas possam vir a ser legais, ela pode aparelhar os alunos para que encarem aquela outra faceta cultural muitas vezes elidida de forma violenta (sob a ideia peremptória e sem explicações de que é "literatura ruim", sem nenhuma explicação por trás) e, portanto, se tornem leitores com instrumentos mais amplos ― no caso, um instrumento de distinção crítica. Afinal de contas, a questão aqui é que nós mudamos a ordem dos fatores pois temos a mediação de um professor. Não se trata do esquema, digamos assim, anárquico da escada literária de Paes, que pressupõe leitores sem vínculo com um alguém que o pegue pela mão. A relação uma vez instituída como bilateral e não unilateral, unilateral como muitas vezes o ensino dos clássicos nas mãos de professores despreparados e de um sistema de ensino desestimulante, e então temos por conseguinte um ambiente muito mais propício para o debate e para o enriquecimento mútuo.

Claro que, a meu ver, as potencialidades de tal ideia só irão realmente se configurar se essa literatura de entretenimento não for tratada apenas como um anzol. É necessário que o professor aproveite esse fato para não só captar a atenção do aluno, como também para discutir com ele e fornecer instrumentos básicos para que o aluno consiga dar seus próprios passos enquanto leitor ― entendido aqui em acepções mais amplas, vizinhas à atividade crítica e similares, ou seja, leitores capazes de formularem leituras e serem, portanto, lidos. Caso contrário, estaremos desperdiçando uma excelente oportunidade em prol daquela visão certa maneira deslumbrante de que a finalidade última do ensino da Literatura é o contato do aluno, repito, com as grandes obras de nossa cultura ― o que não digo que seja uma inverdade, mas sim que é um caminho que não traz consigo todas as potencialidades que enxergo no ensino conjunto de grandes obras postas ao lado de obras que, servindo de estimulantes iniciais, se bem conduzidas podem servir também de instigantes e aparatos de formação crítica.