Crítica.


(Alegoria da crítica.)


(01): Criticar: valorar. Entendo que o vocábulo adquiriu significado amplo, chegando ao ponto de se confundir com qualquer interpretação de uma obra literária. Um exemplo desta postura mais ampla é Roland Barthes.

Barthes diz que a crítica é uma metalinguagem, ou seja, uma linguagem voltada para outra linguagem, mas aqui deve-se pontuar que a metalinguagem, para Barthes, está ligada no Plano do Conteúdo de uma relação de significação. O texto é pensado por Barthes como uma escritura, ou seja, um aparato de significação, ou seja, um trambolho linguístico designado a gerar significados e não a trazer significados prontos. Ao ler um texto, não é que o leitor tenha como objetivo chegar ao sentido, como se todos os outros aspectos textuais fossem empecilhos, fossem uma espécie de escada ou teia de aranha envolvendo a arca; na verdade, quando nós lemos nós entramos em contato com a escritura, com o aparato de significação, e esse aparato de significação é ativado e, logo, gera significados graças ao toque fundamental do leitor (o que Barthes caracterizará como o prazer, a fruição do texto: o deleitar-se com a significação e não com o significado). Dizendo com Umberto Eco, o texto é uma estrutura preguiçosa que precisa do leitor pra funcionar.

Desta relação de significação, podemos falar de um plano da expressão (E), referente ao aparato de significação, e de um plano do conteúdo (C), referente ao resultado a que o aparato de significação chega, ambos ligados por uma relação R que equaciona a significação como: E-R-C. Imaginarmos o aspecto conotativo da linguagem é imaginarmos a substituição do plano da expressão por uma outra relação de significação, de modo que a equação fica (E-R-C)-R-C. É o caso dos textos literários, que constituem um idioleto (Eco) ou um sistema modelizante secundário (Lotman). O plano da expressão é o aparato de significação. Imaginarmos uma situação onde esse aparato é ele próprio uma significação é imaginarmos um texto literário, em suma. O caso da relação denotativa da linguagem é o contrário: é o plano do conteúdo que recebe uma relação de significação: E-R-(E-R-C). É o que Barthes chama de metalinguagem. Aqui entra a crítica. Ela sempre se relaciona a um texto prévio mas não de modo a lhe descobrir a verdade ou coisa do gênero. Pensar que assim é seria o mesmo que pensarmos que a escritura se resume a um significado dado, no que, por conseguinte, anularíamos a própria ideia da escritura. Daí a fala de Barthes de que a crítica cria uma linguagem dupla, ela como que cria uma linguagem em cima do texto original. Afasta, portanto, toda ideia de que a crítica está próxima da verdade de uma obra de arte (a tarefa da crítica é erigir validades e não descobrir verdades, diz Barthes), embora o uso do termo "verdade" possa ter lá suas conveniências de uso. Gadamer, por exemplo, também se vale da ideia da verdade de uma obra, mas sempre no sentido de uma fusão de horizontes. Eu, enquanto leitor, com todo meu horizonte interpretativo, o que implica minha carga de experiência e tudo aquilo que eu posso fazer com aquela carga, o texto também com seu horizonte, e, entre nós, um horizonte histórico no qual estamos sempre-já imersos: a tradição.

Mas esta introdução talvez esteja assustando. Crítica, portanto, é para Barthes metalinguagem, e, de maneira geral, com o nascimento da teoria literária (século XX), a posição até então ocupada pela crítica literária, de valoração, parece ter caído em desuso ou pelo menos em desvalor (um exemplo incisivo é o de Northrop Frye, que, numa argumentação certo modo simplista, dizia que a valoração literária servia tão somente à história do gosto). Tomo crítica, neste meu texto, no seu sentido primordial, conforme Victor Hugo: dizer se uma obra é boa ou ruim. Ou seja: valorar. Evidentemente que ela possui sempre um fundo interpretativo, o que, em termos heideggerianos, é um pressuposto básico do ser-no-mundo. Mas a crítica traz, além de posturas interpretativas, posturas valorativas que se articulam e, logo, formam a crítica. Pois de fato, a crítica parte da interpretação e em muitos sentidos o sucesso ou a falha da crítica dependem do sucesso ou da falha de sua interpretação. Mas a crítica possui um algo a mais que é o juízo de valor (na verdade, ela possui uma forma de articulação própria; mas por enquanto nos contentemos com essa ideia da coisa-a-mais). Isso não faz dela melhor nem pior. O tradutor também parte de uma interpretação para chegar no algo a mais, a tradução, assim como o editor parte de uma interpretação pra chegar na obra (embora um e outro se valham de instrumentos e posturas críticas; mas não é uma discussão na qual quero cair).

Será investigando a constituição desse juízo de valor como ligado a um sujeito mas também a uma comunidade de sujeitos e a um percurso histórico que tentarei mostrar como a crítica vai muito além do dedo pra cima, dedo pra baixo.





(02): Meu escopo aqui é o de abordar a valoração literária. Isso é uma coisa. Na verdade, a valoração artística, a valoração estética artística e a valoração estética, de modo mais geral (estético entendido como o ajuizar algo como belo ou não), são coisas distintas. A valoração artística e a valoração estética artística, por exemplo, são distintas pois eu não uso simplesmente do critério da beleza para valorar uma obra de arte: na verdade, eu posso usar outros e outros, boa parte até mesmo entendido como mais confiável e mais objetivo (embora, como argumentarei, isso não seja verdade: são outras sendas igualmente subjetivas).

Minha posição é a de um relativista em matéria estética ou valorativa. Isto é: a valoração depende do relativo ao quê estamos falando; do relativo ao que conceito, à que ideia. Se estivermos, por exemplo, falando da valoração estética do corpo humano, isto é, da beleza humana entendida como atração sexual, então é incorreto chegarmos à conclusão de que a beleza é determinada apenas por aspectos culturais (como muitos, aliás, têm chegado). Incorreto pois existem estudos e mais estudos demonstrando que a beleza do corpo humano, assim entendida, é determinada por aspectos biológicos geneticamente transmitidos. Ou seja: não é só uma questão cultural. Claro que daí não podemos chegar à conclusão de que as sérias e fundamentadas denúncias de um padrão de beleza imposto sejam falsas. O que se deve concluir é: esse padrão não é arbitrário; antes, ele se funda numa beleza humana real, isto é, beleza aqui entendida como atração sexual; mas, apesar de ser real, isso não legitima a forma exacerbada e muitas vezes brutal com que a indústria da beleza influi na vida das pessoas, fazendo desse tipo de beleza um imperativo que excluísse outras formas de encanto (e creio que a palavra chave está aqui: esse padrão de beleza é socialmente imposto como um padrão excludente) e fazendo com que outras formas de beleza, além da atratividade sexual, ou, caso queiramos um termo menos predisposto a ambiguidades, fazendo com que as outras qualidades que a pessoa tem não possam vir a ser valorizadas.

De modo análogo, a valoração de uma série de protótipos de rótulos para uma empresa qualquer também obedecerá a certos padrões, isto é, será relativa a certos critérios estabelecidos. E de fato, muito do que se poderia discutir a respeito da valoração estética, de modo geral, é resolvido se nos lembrarmos que critérios valorativos existem, são operacionais e em muitos casos são desejáveis.

Como, todavia, estou focando um âmbito crítico, em específico o âmbito da crítica literária (embora pressuponha que minhas reflexões sejam extensíveis à crítica de arte como um todo), eu, portanto, passarei a usar por uma questão de comodidade própria (caso contrário terei que ficar fazendo ressalvas toda hora, e, como você verá bem, esse já é um texto permeado de ressalvas), termos como "estético" ou "beleza" me referindo à sua aplicabilidade exclusiva neste nicho. E meu argumento poderia ser posto, no quadro geral de valorações qualitativas no seio de uma sociedade, que, a partir do instante em que pisamos em instâncias críticas, nós estamos falando de uma argumentação que se quer a mais esclarecida possível, "esclarecida" entendida aqui em termos kantianos, isto é, a coragem de seguir seu próprio intelecto, isto é, independência. Não digo independência total, pois, como também buscarei argumentar, a realidade do fenômeno literário possui instâncias críticas externas, por assim dizer, analisáveis num âmbito sociológico, que perpassam a crítica, a localizam, bem como fundamentam valores e posturas da comunidade de leitores como um todo.

Com essas explicações em mente, creio que podemos começar dizendo que a crítica é uma postura valorativa articulada. Quer dizer, de pronto, que a crítica não é um gênero textual, mas sim, como dito, uma postura e, portanto, pode incidir em muitos gêneros textuais. Ela não se confina. E vai até mais além: sendo uma postura, ela pode existir de forma subsidiária em outras atividades relacionadas ao objeto valorado; como estamos tratando de textos literários, ela pode estar presente numa tradução ou no trabalho de editoração, por exemplo. Se digo que é articulada, é no sentido de que a crítica é basicamente argumentação. Ela implica, é claro, uma interpretação e, como implica uma valoração, e como essa valoração não é auto-evidente nem é uma espécie de consulta automática a um catálogo geral de qualidades, ela necessita se articular a fim de que consiga se sustentar enquanto postura e mais: postura valorativa. Afinal de contas, posturas valorativas nós, enquanto leitores, tomamos a todo instante, e isso não só durante a leitura ou na hora de classificar de acordo com as estrelinhas, mas também antes mesmo de comprar um livro, na hora de indicar para um amigo, na hora de colocá-lo na estante... A diferença com a crítica é que a crítica é uma postura valorativa articulada, ao passo que as posturas valorativas que acabo de me referir são inarticuladas, não possuem como fim uma subsistência própria. Se ao indicarmos um livro pra alguém essa pessoa nos perguntar o porquê daquela indicação, nós temos que dar um porquê. Esse dar-um-porquê é que a crítica.

Pois quanto mais desenvolvemos o verbo "ler", mais chegamos àquele estágio em que ler é colocar sua leitura à leitura de outros leitores. Isto é, o leitor passar a ser lido. Claro que é muito difícil pensar em como uma leitura não pode nos afetar enquanto seres humanos, de modo que, de um jeito ou de outro, sempre estaremos externando nossa experiência de leitura, por reclusos que sejamos. Todavia, as formas mais amplas de leitura a que me refiro envolvem uma produção textual ou no mínimo uma articulação de ideias que busca explicitar interpretações. Os resultados podem ser vários, indo do trabalho da tradução ao trabalho da docência e ao da escrita acadêmica. Em muitos desses casos, a valoração não é o fim visado: interpreta-se, estuda-se o texto pelo que ele é e dentro de uma proposta qualquer. Não quer dizer que o leitor não tenha valorado em algum momento, pois, como dito, a valoração é transversal a toda atividade de leitura, afetando inclusive os textos que nós não lemos ainda e os que jamais leremos; quer apenas dizer que, dos fins visados pelo leitor, valorar não é um deles.




(03): Depois de Kant, já não podemos dizer que um juízo estético é algo objetivo, no sentido da Beleza ser propriedade do objeto. A empreitada kantiana basicamente se baliza na pesquisa da possibilidade do conhecimento. Juízo, para Kant, é subsumir um particular num universal. Eu pego uma coisa qualquer e a incluo na cumbuca de um número de coisas maior. Por exemplo uma pedra na cumbuca do conceito de pedras. Daí que, como diz Kant na Primeira Crítica (primeira seção da analítica transcendental), o juízo é o conhecimento mediato de um objeto. Mediato pois entre o juízo e a coisa existe um conceito que deve ser aplicado: entre o juízo feito para com a pedra que acho no meio do caminho e a cumbuca de pedras, eu preciso de um conceito de pedra. Assim, o juízo reúne muitos conhecimentos num só. Todavia, quando falamos de um juízo estético, como diz Kant no §1º da Analítica do Belo, na sua Terceira Crítica, a distinção de um objeto como belo ou não refere-se à representação ligada à faculdade da imaginação de um sujeito e ao sentimento desse mesmo sujeito de prazer ou desprazer. Isto é: não se trata de um juízo lógico capitaneado pela faculdade do entendimento. Em termos mais simples e diretos, como o que é belo não possui conceito, então, por conseguinte, o juízo estético não tem como se impôr a outros. O juízo estético se comporta como se fosse um juízo lógico. Quer dizer: a dinâmica do juízo estético (isto é, o-que-acontece quando ajuizamos algo como belo), para Kant, é a do livre jogo das faculdades do intelecto, o que quer dizer que dentro da nossa cachola o Tico e o Teco, frente a um objeto que ajuízam belo, se movimentam como se fossem criar um conceito de Belo, mas só isso, mesmo porque, para Kant, o Belo é o que apraz universalmente e sem conceito. Daí o fato de que ser próprio do juízo estético sua pretensão de universalidade. Embora subjetivo, ele se quer universal, pois ele tem e faz tudo de acordo com os conformes pra expelir um conceituo, mas, como ele envolve a faculdade da imaginação e ao prazer ou desprazer do sujeito, na prática ele não expele: finje que expeliu. Mas o juízo estético, o conceito de Belo, conforme nos lembra muito bem Katia Mandoki, pode ser lido como uma operação linguística: isto é, nós pegamos um adjetivo, belo, que portanto se liga a um sujeito que o emite, a um objeto, a uma circunstância, e o transformamos num substantivo, Belo, que aparece e subsiste por si só. Onde está todo aquele contexto do belo enquanto adjetivo? Some graças a essa operação linguística.

Muitas proposições kantianas, claro, foram problematizadas com o passar dos anos. É difícil dizer, por exemplo, que a beleza é uma finalidade sem fim (um corolário do livre jogo das faculdades do intelecto), ou que a Beleza é tão indefinível assim. Por exemplo, lá atrás eu disse "a Beleza, resultado de um juízo estético". Mas a Beleza só pode ser resultado de um juízo estético? Para todos os efeitos, sim, inclusive os efeitos arqueológicos ou consideravelmente distantes. Mas um olhar sociológico na questão consegue nos mostrar que a Beleza pode subsistir sem um juízo estético por trás, ou seja, sem que o sujeito vá lá e necessariamente ajuíze. Ela pode muito bem ser uma espécie de ideia pré-concebida estruturada e estruturante, o que quer dizer que ela também afeta e ordena, norteia e constitui nossos juízos estéticos. Só que isso tudo num âmbito sociológico, o que tira uma série de ilusões de nossa cabeça, entre elas a de que esse papel estruturante da Beleza seja único, universal, ou de que ele só dependa de aspectos estéticos. Quero dizer, em suma, que, lançando um olhar sociológico, e os estudos de Pierre Bourdieu a esse respeito são seminais, notamos que existe uma concepção de Beleza funcional e modelizante dentro de determinada sociedade, o que não chega a anular o núcleo da descoberta kantiana da subjetividade do juízo estético: a ideia da Beleza como propriedade do objeto segue afastada. É só que essa subjetividade é traspassada e ela mesma balizada por instâncias sociais, uma vez que, mesmo considerando que o gosto muda e que os parâmetros de leitura e autores canonizados também mudam (o que é um forte argumento contra a universalidade e objetividade absoluta do gosto ou da beleza, algo que de resto Hume já atestava antes mesmo de Kant), ainda com Bourdieu podemos nos lembrar que a sociedade não muda de forma aleatória nem constantemente. É dizer: dentro daquilo que Bourdieu chama de capital cultural, de reprodução social, parâmetros de ajuizamento, determinadas formas de cultura e fruição dessa cultura etc são passadas de geração a geração, fazendo com que suas mudanças não sejam tão bruscas nem constantes. Cria-se, logo, uma pervivência para aquelas facetas da cultura que acumularam e acumulam capital cultural. Essa pervivência é sempre apoiada numa realidade externa, com pontos privilegiados de apoio como por exemplo grandes casas editoriais, pesquisas acadêmicas, imprensa, crítica tradicional etc.

Podemos expandir o campo de análise e, ao invés de nos referirmos à Beleza ou ao desprazer, nos valermos de outras categorias de análise que se aproximam da valoração literária certo modo objetivável. Seria o caso de discutirmos a qualidade de um texto sob o prisma dos mais variados parâmetros possíveis, por exemplo a inovação. Aqui o que deve ser notado é que muito do que se diz como critério objetivo de valoração literária se vale mais cedo ou mais tarde de uma valoração subjetiva (de modo que ela só pode se sustentar enquanto coisa objetiva a partir de uma elipse): por exemplo, sob o critério da inovação, a simples escolha da inovação como critério reinante e a escolha de que aspectos textuais poderiam ser considerados determinantemente inovadores. Mas, de todo modo, como direi na seção 11, estes outros parâmetros são amplos o suficiente para que não consigamos chegar a um punhado que se queira universalmente funcional, e isso mesmo que estruturemos com base nas obras reputadas clássicas. Afinal de contas, embora o entendimento do que é clássico entre novamente na ideia de Bourdieu da lógica do capital cultural, nada impede que o crítico possa ter suas próprias referências clássicas que se queiram funcionais e inteligentemente estruturadas, mesmo porque o que se entende por "clássico" numa comunidade de leitores é algo consensual só até certo ponto e em muitos sentidos guiado por aspectos editoriais, econômicos, geográficos etc (e não por uma espécie de "consenso crítico", como grosseiramente se costuma dizer); embora isto, ainda assim um embasamento da qualidade literária guiada apenas pelos clássicos poderia redundar em critérios muitas das vezes opostos por si só, e que portanto necessitariam de uma particularização e de uma argumentação (e uma das minhas propostas neste texto é a de demonstrar que crítica é uma questão de argumentos), para não dizer no fato de que isto iria contra o funcionamento da crítica (que é um funcionamento interpretativo em primeiro lugar e, em segundo, podemos dizer seguramente com Barthes, um funcionamento metalinguístico: ou seja, dizer validades e não verdades), criando, em seu lugar, uma lista que se queira infalível ou qualquer coisa do gênero.

Assim sendo, este seria o básico: a crítica é subjetiva. Trata-se de um postulado básico que possui até mesmo embasamento neurocientífico: basta que se tome nota dos estudos de Semir Zeki a respeito da Beleza e de como o que ajuizamos belo se liga a uma atividade cerebral especificamente localizada na zona A1 do córtex órbito-frontal medial (mOFC, em inglês). Isso, claro, não encerra a discussão, pois uma coisa é que a crítica se embase no julgamento estético, ou seja, no ajuizar se uma obra é bela ou não, e outra coisa é que ela parta de outros parâmetros que se queiram mais objetivos e menos propensos ao "erro". Ponho "erro" entre aspas pois, como argumentarei mais tarde, a crítica, mesmo que lance mão de outros critérios menos subjetivos que a beleza, sempre partirá de um ajuizamento prévio em um momento ou outro e, logo, sempre se calcará em bases subjetivas. Logo, a ideia de que alguns instrumentos de ajuizamento sejam mais objetivos e mais acertados que outro é errônea (para não dizer incompleta, pois, por exemplo, se eu decido aplicar o critério da inovação, ele não é homogêneo nem menos propenso a dissensos que o ajuizamento estético, haja vista que eu posso considerar uma obra como sendo revolucionária dum ponto de vista formal ou conteudístico, pra citar apenas um desdobramento do critério). Assim que lançamos um olhar mais amplo em quais exatamente seriam estes instrumentos (e, como dito no parêntesis anterior, em qual seria o modo de aplicação de cada um desses instrumentos alternativos), nós notamos que eles não anulam a realidade de que uma pluralidade de juízos artísticos é sempre possível.

Uma vez que a crítica é subjetiva, o que pudermos falar de objetivo nessa crítica não se encontra como que incrustado na obra. Antes, o que pudermos falar de objetivo nessa crítica está ligado ao fato de que o leitor está incluso numa realidade histórico-social, de modo que qualquer forma de se analisar a objetividade, se este for realmente o termo escolhido (termo incompleto, diga-se de passagem, pois teria de ser posto ao lado de aspectos intersubjetivos dessa realidade históricosocial), só é viável num viés sociológico. Podemos de fato dizer que um texto possui aspectos que razoavelmente chamaríamos objetivos, mas aqui devo notar que por objetividade não estamos redundando nem de longe na ideia de fim de papo ou mesmo de ausência de controvérsias, visto que tais aspectos razoavelmente objetivos podem depender de uma leitura intersubjetiva ou então de outros aspectos textuais. Um exemplo disto seria a métrica: nós não só podemos escandir um verso de muitas maneiras, como também podemos escandi-lo conforme mais de um sistema métrico, o que no caso lusófono representaria a clivagem entre os sistemas espanhol e francês, ou então podemos lê-lo ritmicamente de maneira distinta se posto em determinados contextos, como o de uma antologia impressa ou uma gravação musicada, ou mesmo podemos discutir essa métrica de muitas formas se formos traduzi-la para outra língua etc: em suma, quero dizer que o que era tido como ápice da objetividade pode ter as cartas mudadas. Além disto, devo notar também que, um texto possuindo características razoavelmente objetivas, seu mero recenseamento ou seu mero reconhecimento não basta para que por conseguinte o juízo valorativo também o seja. (Kant já notava, de resto, que a referência a representações e mesmo às sensações pode ser objetiva, mas não a referência ao sentimento de prazer ou desprazer.)

Um liame assim deve ser analisado com cautela. O juízo valorativo estaria se apoiando em aspectos textuais que julgamos razoavelmente objetivos. E só. Não há essa autoevidência que se poderia alardear pois, como disse, a crítica é uma postura valorativa articulada, e o simples apontar e se escorar em características razoavelmente objetivas não é uma maneira de articular essa tal postura valorativa: não basta para mantê-la de pé. O funcionamento básico da crítica sendo o funcionamento comparativo (e posso explicá-lo, num parêntesis de novo mais longo, dizendo que, se adotamos muitas posturas valorativas não só face a textos literários mas também face a realidade de maneira geral, isto pode ser tido tanto como de nossa natureza humana quanto como decorrência do fato do mundo já se encontrar, antes de nosso nascimento, valorado; se assim é, então, dentro do básico de uma postura valorativa, que é se movimentar entre eixos positivos e negativos, temos que a comparação é ínsita a qualquer posicionamento valorativo); o funcionamento básico da crítica sendo o funcionamento comparativo, isso quer dizer, cominado ao que disse de sua articulação própria, que ela deve buscar se manter de pé, só que sem a muleta de uma espécie de tabela exemplar de conquistar e padrões valorativos. Na verdade, ela até pode se valer de algo assim, no que estaria se valendo do raio de alcance que a comunidade de leitores adquiriu; mas, como direi mais tarde, esta espécie de tabela exemplar da comunidade de leitores é uma postura inarticulada e propensa ao jogo de poder, no que a crítica se basear nela, ou, dizendo de maneira melhor, posto não haver tanto problema assim nela se basear (e na prática, dada a inclusão do crítico nesta comunidade de leitores, um apartamento total me parece algo impensável pois se encaminha para um apartamento além do âmbito estético), funcionar sob a égide dessa espécie de tabela, seria um verdadeiro atestado de óbito. O que sustentará a crítica será a sua própria articulação, o que, em termos que passarei a usar daqui pra frente, quer dizer que o que sustentará a crítica será a argumentação. Bons argumentos tenderão a prevalecer ao lado de outros bons argumentos, sem que bons argumentos exatamente anulem outros argumentos. Pode até ser que anulem argumentos ruins, mas isso muito mais pelo fato de que argumentos ruins anulam a si próprios, e pode até ser que anulem partes de outros argumentos, se e somente se, ao falarmos de anulação, estivermos cientes que o que hoje é tido como anulável, com o passar dos anos e, entre outros, mas também especialmente, com o advento de novos argumentos e de novos parâmetros intersubjetivos de funcionalidade, pode amanhã deixar de sê-lo.

Desse modo, ao falarmos em méritos textuais, é preciso que tenhamos em consideração que nós enquanto leitores nos postamos valorativamente frente a aspectos textuais (sejam eles objetivos, sejam eles fruto de nossa interpretação), o que implica um misto necessário de idiossincrasia própria com tomadas de posição, expectativas, valores, bases, referências etc que advêm de nossa posição como membros de uma comunidade de leitores ou mais especificamente de certo nicho de leitores. Dizer que um texto possui méritos próprios é, portanto, sempre uma elipse. Por razoável que seja pensar que um texto que consegue cativar muitos leitores ao longo de muitos anos seja um texto que só pode possuir méritos próprios (e isto, para o leitor comum, que não precisa articular suas leituras, é sem dúvidas um bálsamo, um porto seguro), é preciso diferenciar esta posição exemplar de um texto (que poderemos, nesta circunstância de exemplaridade, chamar de clássico) de um mérito que realmente resida apenas na qualidade intrínseca do texto. O que se enxerga como sendo evidente só é evidente graças a um processo de sedimentação localizada, ou seja, sedimentação subjetiva e intersubjetiva (esta última entendida muito mais no sentido de acumulação de capital cultural) sobre determinados aspectos razoavelmente objetivos de um texto ou determinados vieses interpretativos. É graças a esse processo de sedimentação que se pode afirmar que um texto possui méritos, e uma afirmação assim ser tomada como razoavelmente verdadeira pela comunidade de leitores. Mas é um processo por natureza limitado que, mesmo considerando que o mérito textual realmente fosse uma verdade, não depende só de uma realidade estética. Só algumas obras conseguem algo assim. É literalmente uma questão de privilégio. Adotar uma postura tal para, por exemplo, obras do presente é um verdadeiro absurdo. Se não houver uma argumentação por trás, então a afirmação será baldada... Afinal de contas, mesmo com uma argumentação por trás, o que subsistirá será a qualidade do argumento e não o argumento servindo como uma espécie de prova. A realidade essencialmente subjetiva persiste. O que nos impede de enxergar o mérito textual, enquanto coisa objetiva e evidente, de uma obra contemporânea não é bem uma questão de distanciamento; reside no fato de que o mérito textual não é algo que propriamente exista (ele existe só na base do "praticamente", e só chega nesse "praticamente", como dito, graças a uma mãozinha que está longe de ser apenas fruto desse mérito textual apenas), e que, caso algum dia realmente se queira falar de maneira razoável de um, então será necessário um processo de sedimentação que, de resto, talvez funcione e sirva aos propósitos do leitor comum, a quem basta uma vista larga sobre um punhado simplificado de opiniões. À crítica, onde o que realmente importa é a qualidade do argumento, onde o que realmente importa é sua postura articulada muito mais do que sua valoração, mesmo porque a valoração não existe fora de uma postura e, no caso da crítica, de uma articulação, isso não é algo possível.

Afinal de contas, como dito por Barthes e de certo modo por toda a teoria literária, o texto literário não é uma questão tão só de significados. Ainda que fosse, seria o caso de considerar uma enorme preponderância subjetiva. Quer dizer que o texto literário é, especificamente, um aparato de significação, ou, para usarmos uma terminologia barthesiana, é uma escritura. Por mais que possamos falar em aspectos razoavelmente objetivos de um texto, o texto literário funciona quando entra em contato com o leitor. Como valorar de forma objetiva uma estrutura assim? Pela profundidade, pela funcionalidade dos efeitos causados? Mas como, se estaremos sempre partindo de nós mesmos? Não tem como. Não estamos falando de um tipo textual que não dependa tanto de um impacto subjetivo como o caso do texto literário.

Isto posto, chegamos a: não existem juízos estéticos absolutos. O gosto continua podendo ser debatível, desde que em falar de debate nós afastemos a imposição e a pretensão da prova irrefutável. Kant já dizia que, embora a Beleza não possa ser definida, ela é um conceito que nós todos possuímos, uma ideia que, mesmo que não seja formulada de maneira que valha para todos, é uma ideia a qual sempre recorremos, e, portanto, nós podemos discutir sobre o gosto, embora daí não se siga, nem de longe, que podemos dizer que um gosto é melhor do que o outro. Realmente podemos cair num relativismo sem fim, mas aqui é preciso ponderar dentro da realidade sociológica da comunidade de leitores e da circulação do capital cultural e dentro do fato de que a crítica possui um cerne argumentativo. Criticar é argumentar. Bons argumentos, tendo em vista os argumentos que já foram lançados no passado, exigem que tenhamos uma base de leitura sólida e lúcida.

Quando falo de bons argumentos, de uma boa articulação, estou me referindo tanto a um ponto de vista interno, com argumentos que consigam demonstrar uma ordenação lógica sólida textualmente embasada (o que é importantíssimo de ser ressaltado, pois na crítica não basta simplesmente uma ordenação lógica geral, visto que a obra pode muito bem ser ilógica em muitos aspectos e o crítico pode adotar uma postura, digamos assim, poliédrica frente à obra; antes, seria o caso de dizermos que a crítica, frente a uma obra que lhe exija isto, ordenar-se logicamente de acordo com os instantes considerados da obra); além disso, estou me referindo também a um ponto de vista externo, que considere a sinuosidade e a cardioscopia do texto. Aqui, claro, temos um problema que sempre rondará a atividade crítica e que inclusive lhe impedirá de aceder aos píncaros do absoluto. É o fato de que, como a crítica não fala de um objeto objetivo, ou seja, como ela fala de um objeto que não só depende como se fundamenta no impacto subjetivo, ela precisa criar uma certa coerência interpretativa que, para voltarmos mais uma vez a Barthes, implica a busca de validades e não de verdades. Bons argumentos críticos, ou seja, uma boa valoração crítica não se trata bem daquela que consiga se demonstrar infalível, pois, de resto, como a crítica é toda ela argumentos, então por conseguinte toda ela é criticável; uma boa valoração crítica é uma valoração que consiga se validar com base no texto de que trata e em todas as potencialidades que o texto exprima e que graças a ele possam ser antevistas. Por si só, a valoração crítica parece tombar como certa maneira despicienda, mas aqui é preciso notar que 1) nós, enquanto leitores, sempre buscaremos saber o que outros leitores pensam, e a crítica é sempre um estímulo a respeito disso; e 2) a valoração implica uma ordenação comparada mediada por uma escala de valores, o que, em seu percurso, envolve a consideração de que a obra se avizinha de outras, como se a microscopia da crítica redundasse sempre numa intertextualidade ou, de maneira ainda mais ampla, como se a microscopia da crítica fosse ao encontro, recenseasse, sentisse os entrelaçamentos de todas as ordens que uma obra estabelece (não só, portanto, entrelaçamentos textuais, mas também entrelaçamentos com a realidade, com a História etc). A tarefa da crítica sendo, desse modo, o de realçar o complexo nó górdio que a obra estabelece com a realidade histórica, social, estética etc etc. Não bem o de desatar. Isso não seria possível pois as formas de enxergar e conceber esse nó górdio são sempre profundamente pessoais e historicamente posicionadas. Se realmente houver uma forma de desatar esse nó górdio, ou, pra ser ainda mais preciso, se desatá-lo for realmente o que se busca, isso só será conseguido num âmbito de vários leitores em conversa. De preferência incessante.

Assim, não é que a crítica deva redundar apenas no sinal de aprovação ou desaprovação; seu encaminhamento argumentativo, que é sempre sua parte mais preponderante, serve para realçar importâncias dentro de uma linha de força intertextual que o crítico enxerga ao ler a obra. Seria, portanto, ao invés de trazer uma lista pré-concebida de obras a serem comparadas, a descoberta de obras que, conforme o crítico argumentar, podem ser antevistas nos recantos da obra, a crítica funcionando como uma proposta de entendimento com base no realce de importâncias. Esse realce, que se fosse tratado como uma lista pré-concebida ou apartada de um mergulho profundo e intertextual na obra, seria meramente um adorno dispensável, adquire, aqui, a característica de engrenagem: ou seja, a crítica, que a princípio pode parecer ser um instrumento avaliativo despiciendo, é, se exercitada com todo o rigor que merece, um ensaio de entendimento parcial do fenômeno literário. Não é que o leitor possa simplesmente analisar a obra e deixar de lado a valoração, pois ela seria uma parte descartável. A crítica é ela própria uma maneira de ler diferente, não só com um a-mais no final, mas também com objetivos próprios e, por conseguinte, com uma movimentação e uma articulação igualmente próprias. Claro que na prática todas as formas de ler literatura se encontram numa matriz interpretativa maior; mas isto não creio que invalida o que disse.

Daqui se observa que, portanto, o crítico é um tipo de leitor específico. Ele faria parte daquele escalão de leitores que busca articular sua leitura, visto fazer parte de seus objetivos o ser lido por outros leitores. Diferente, portanto, do leitor comum. O que diferencia o crítico do leitor comum pode até ser o cacife, e acho razoável que a princípio o seja, mas não podemos recair apenas no argumento da bagagem, visto que um leitor comum pode revestir a figura do erudito puro e simples, repleto de efemérides na algibeira e sem uma visão sinóptica e funcional do fenômeno literário, e pois o leitor comum pode até ter uma carga de leituras maior do que a do crítico. Quando falo do leitor comum, me refiro àquele leitor que não consegue articular uma opinião de maneira satisfatória, ficando no geral às raias ou do argumento de autoridade (a grandeza sendo medida simplesmente porque é assim ou porque uma outra pessoa disse que o era) ou do impressionismo simples, isto é, a utilização do gosto como uma espécie de escudo ou mônada que tem como objetivo a defesa desesperada de posições pessoais, quando mais adequado e maduro seria o apreço pelo auto-questionamento.




(04): Daqui não se segue que, subjetiva, a tarefa da crítica tomba morta, ou que sirva de forma maniqueísta aos mandos e desmandos da ideologia. Sendo uma verdade que a crítica corre sempre o risco de se obliterar em meio ao jogo de poder, é preciso ter em mente que o fato da crítica ser subjetiva nos leva mais precisamente ao fato de que ela está sempre em estado de crise, o que aliás a etimologia de ambos os termos já o demonstra. É o mesmo que dizer que, se pudermos assentir que a boa crítica é a crítica exigente e que essa exigência decorre da riqueza do fenômeno literário, então é nosso dever também assentir que a exigência dessa crítica não pode ser apenas para com seu objeto, mas principalmente consigo mesma. Esta, aliás, a grande diferença, uma vez que é muito fácil se arvorar numa suposta realidade literária e disparar a esmo pacotes de negatividade em propostas muitas vezes distintas do que se está alegando. Ou seja: a forma como esses verdadeiros cavaleiros do apocalipse agem consiste em abstrair a realidade literária, em todas as suas propostas, em toda a sua heterogeneidade, num quadro de pré-requisitos para a universalidade que, além de sectária, promove a ilusão de um rigor que na verdade não existe, visto que é muito simples adotar uma postura mefistofélica (o espírito que sempre nega) quando se está por trás de camadas e camadas de ficção que tiram da cartola um passado unívoco, pacífico e domado, e, graças a este ato, inventam um desnível e por conseguinte uma crise típicas de quem julga o mundo com base no que sonhou depois do almoço.

Isso quer dizer que a crítica deve sempre questionar seus pressupostos. Pois a atividade crítica possui como mecanismo um certo entendimento do fenômeno literário e um arcabouço de obras a serem comparadas. O ato crítico é, já o disse, em sua estrutura íntima, um ato comparativo. Quanto mais próximo do leitor comum o crítico estiver, mais ele assumirá a postura daquelas crianças que passam o dia inteiro batendo carrinhos ou tentando encaixar um tubo cilíndrico no espaço de uma estrela. Agora se o crítico pretender o melhor trabalho possível, então a construção de um entendimento sobre o fenômeno literário não só incidirá sobre seus parâmetros valorativos, visto que tal entendimento quererá a si mesmo o conluio entre o pormenor e o panorama, como norteará suas atitudes perante o texto.

Naturalmente, o perigo de que um arcabouço assim possa levar o crítico ao esclerosamento é real e com frequência ocorre. Muitos críticos traem a si próprios com o passar dos anos. Outrora brilhantes, hoje parecem ter se encasulado e adquirido um temor misantrópico de que a obra de uma vida venha a ser esfacelada. O que, obviamente, é um verdadeiro absurdo, é uma possibilidade existente apenas no argumento dos leitores desonestos. Não se transforma uma trajetória crítica num castelinho de cartas apenas porque, em determinado instante, uma rusga de discordância surgiu. Além do mais, devo lembrar que quando me refiro ao arcabouço que todo crítico deve trazer consigo, estou me referindo não só a uma espécie de estrutura que se quer sólida para que somente assim seja efetiva. Se disse que crítica é crise, é que também entendo que o bom crítico é aquele que consegue colocar seus pressupostos à prova de maneira a um só tempo firme e arriscada, como se, ao invés de posicionar na orla para apenas sentir a brisa mudá-lo de direção a bel prazer, ele se lançasse no olho do furacão a fim de colecionar destroços. Ao falarmos da obra de um grande crítico, é sempre uma meia verdade nos referirmos à monumentalidade, quando é pelas ruínas que também se mede sua importância.




(05): Subjetiva e essencialmente argumentativa, crítica é preocupar-se em expor. Não no sentido de que, expondo, prova-se, pois, a esse respeito, expor não quer dizer comprovar e sim explicitar o que se está dizendo. Expor é, aliás, uma decorrência lógica da crítica. Crer que existe uma espécie de auto-evidência acerca da qualidade de um texto é fornecer instrumentos para que aquela crítica seja suprimida, pois se é auto-evidente, então ou o leitor não necessita da crítica ou o cargo da crítica passará a requerer como pré-requisito apenas a alfabetização, visto que crítico passará a ser quem chegou lá primeiro e pôde nos relatar o que viu. Mas quando entendemos que não existem auto-evidências ao falarmos de qualidade literária, e que, quando muito, existe um lastro intersubjetivo de valores e expectativas, então entendemos por conseguinte que desassociada da exposição, da explicação, da pormenorização daquilo que está sendo dito, a crítica se dissolve no ar. Claro que nem sempre o crítico possui espaço para que consiga discorrer com mais tardar, mas a esse respeito, dentro do âmbito de uma crítica que se vê cingida por quesitos práticos, podemos reaprender lições valiosas da chamada crítica impressionista, em especial o enfoque e o cuidado que ela possuía em tecer uma trajetória a fim de que, caso não se tenha tempo nem espaço, então que o convívio entre leitor e crítico possa dizer o que aquela nota crítica não pôde. E é com base nisto da crítica não poder se dar ao luxo de dispensar a exposição que se observa o verdadeiro desvario duma frase como "estar abaixo da crítica" ou da postura de quem parece se preocupar só com o sarcasmo e a ironia, redundando, quando muito, numa forma de cinismo contrária à índole da crítica.

Crítica é sinceridade e honestidade. Não faz o menor sentido conceber a tarefa do crítico como a de um arcanjo defensor. Arcanjo defensor não se sabe do quê. Aquelas regras que aprendemos em casa, com nossas avós, se se aplicam à vida toda, é claro que se aplicam também à crítica. Cordialidade e educação não dizem respeito apenas ao fato de que estamos tratando de outra pessoa que, para bem ou para o mal, apenas escreveu um livro. Dizem respeito a nós mesmos. Pois uma vez que a crítica é argumentativa, temos que o que a sustentará não será o fato de dizer que determinada obra é boa ou ruim, e porventura "acertar", mas sim o fato de termos um bom argumento ou não. E a esse respeito, não me refiro simplesmente a questões de estruturação lógica, ou seja, no sentido de conseguir amarrar bem o texto e não retirar premissas sabe-se Deus de onde, ou chegar a conclusões a que ninguém, a não ser o crítico, chegaria, mas sim à vastidão e profundidade dos instrumentos que são postos em cima da mesa, e que posso tentar resumir como acuidade do texto crítico, bem como, repito, à sinceridade, honestidade, cordialidade e educação que o crítico a todo instante demonstrar, evidenciando que, mais do que ter porventura "acertado", ele se dedicou.

Pois a crítica pode ser lida também como um ato de amor. Um ato de amor à literatura. A sobriedade de não se deixar levar pelas preferências pessoais ou pelos giros do círculo de amizades anda de mão junta à sobriedade de não se deixar tragar pela violência do juízo, no geral defensado das formas mais defasadas possíveis.




(06): O funcionamento da crítica é, basicamente, o de especificar para depois valorar. Em outras palavras, quer dizer que primeiro precisamos interpretar da forma mais acurada possível para só depois emitirmos um juízo de valor.

Decorrência certo modo lógica do que antes expusera. Veja: a crítica sendo uma postura valorativa articulada, tem-se que esta postura deve se manter de pé, mas, a partir do momento em que ela é uma postura valorativa que, para dizer com Barthes, se funda num discurso metalinguístico, temos que a crítica não pode prescindir de uma interpretação que se queira a mais acurada possível. Não se trata bem de dissolver as especificidades da crítica dentro de um caldeirão maior e certo modo abstrato chamado de "interpretação", mas, como também dito, uma vez que a crítica possui uma forma de articulação própria, trata-se de mostrar como uma concepção da crítica que se queira guiada por tabelas valorativas universais ou, o que em larga escala dá na mesma, por critérios valorativos que se queiram objetivos; trata-se de mostrar como eles não vão a lugar algum.

Pois não se faz crítica com asserções genéricas, muito menos com argumentos de autoridade e fórmulas mágicas. Não se faz crítica dizendo como uma obra deve ser. A crítica encara uma realidade simples: a obra é aquela. É comum que o crítico acabe adotando um vocabulário que dê a entender o contrário, mas aqui é preciso ter um cuidado na hora de diferenciar as coisas. Cacoetes críticos são de certo modo inevitáveis. O discurso não é puro, seja ele que tipo de discurso for. Mas a distância que medeia o crítico como uma espécie de pastor do rebanho e o crítico como um leitor que entende as reentrâncias, que pretende, como dissera antes, considerar o nó górdio em sua plenitude; essa distância é enorme. E afinal de contas, embora o crítico acabe se valendo de alguns cacoetes que deem a entender uma objetividade inexistente, como vimos, que se tente entender esses cacoetes dentro do argumento que foi exposto, independente do grau de verdade a que o crítico aspire. Afinal de contas, a questão, por exemplo, da Beleza, não é uma questão de visão: não é algo que em determinado momento do texto eu posso dizer a meu leitor para que "veja como isso é belo". É o caso, para ser mais preciso, de pedir a ele que considere aquela beleza. Se a crítica é uma conversa, um debate, uma maneira de fazer com que o crítico e o leitor estejam de algum modo privilegiado próximos do nó górdio a que me referi antes, então, mesmo considerando que na prática eu peça para que o leitor veja como aquilo ali é belo, o que realmente acontecerá é que no máximo ele poderá considerar aquela beleza, e o fato de que porventura realmente a veja pode depender tanto da qualidade persuasiva e bem sustentada de meus argumentos, quanto, e ouso dizer principalmente, do fato de que compartilhamos alguns pressupostos em comum, o que em momento nenhum eu reputo como sendo algo necessariamente ruim.

A crítica possui em seu íntimo uma estrutura proposicional. Para todos os efeitos, ela é um ponto de vista. Sua articulação própria não difere muito do que Popper chamou de mundo 3, o mundo do conhecimento objetivo. O estudo literário, e eu com certeza incluo toda forma de articulação crítica dentro dessa cumbuca, faz parte dessa ideia do conhecimento objetivo, ou seja, conhecimento que é objetificado e passa a poder ser debatido, passa a ser moeda de troca. Não estamos falando nem do mundo 1 nem do mundo 2, este último de especial interesse pois se refere ao mundo subjetivo. Toda posição valorativa inarticulada faz parte desse mundo 2, ou seja, um mundo de conhecimento que está ali na cabeça do indivíduo e que, como não temos bola de cristal, somos incapazes de perscrutar (ou que paira sobre a comunidade de leitores e que, como não temos como fazer votações periódicas para medição de qualidade, não temos como precisar de maneira satisfatória). Se a pessoa realmente quiser que esse conhecimento seja debatido, ela deve objetificar tal conhecimento. É uma ideia, essa de Popper, não posso negar, de grande valia, embora eu não esteja totalmente de acordo com a aplicabilidade da concepção evolucionista de Popper, de que esse conhecimento objetivo pode ser falseado ou mesmo substituído por noções melhores. O conhecimento humanístico, o conhecimento advindo ao se pensar questões próprias das ciências humanas, e o conhecimento estético certamente entra neste critério, é um conhecimento que deve ser tratado com uma maleabilidade e uma retroatividade essenciais. Não é que um conhecimento posterior possa, a rigor, refutar o antigo. Ele pode refutar partes. Pode complementá-las. Pode parecer destruí-lo de acordo com a ótica, de acordo com a percepção de alguns contemporâneos acerca do fenômeno estudado (no caso, a literatura). Assim como um conhecimento antes destruído pode voltar a ter sua pertinência redescoberta. Objetificar o conhecimento é uma questão de objetificá-lo para que ele seja, como disse antes, uma moeda de troca. Não para que se encaminhe a ser uma espécie de prova. Como podemos falar em provas ao tratarmos de uma realidade tão sensível às mudanças ínsitas de uma sociedade bem como à sua realidade inescrutável em seu todo?

A proeminência subjetiva da análise literária é uma realidade profunda: nós sempre podemos e nós sempre estamos falando, por exemplo, de uma multiplicidade inerente de validades ao abordarmos o fenômeno estudado, e nós sempre podemos e nós sempre estamos falando de uma retroalimentação desse mesmo conhecimento objetivo, no sentido de que dizermos que hoje lemos melhor talvez seja uma verdade para alguns pontos (se e somente se considerarmos a dimensão argumentativa da crítica e todos os meandros de interconexões e de captação das sinuosidades íntimas da obra, próprios do que se deve entender por "bons argumentos"), mas que, no fim das contas, não nos impede de ler produtivamente uma leitura passada. Por mais que "possamos mitigar" o relativismo de uma concepção assim com as barreiras fáticas da realidade do fenômeno literário, ou seja, uma realidade sociológica (disse "possamos mitigar" entre aspas pois não é que seja um ato nosso; é praticamente um pedido e uma necessidade face à realidade mesma do fenômeno literário); por mais que possamos dizer, com Antoine Compagnon, em um sentido de uma obra (mas só num grau de intuição tênue e sempre de mãos dadas com a razoabilidade aplicada ao debate), isto não muda a realidade de escritura do texto literário, nem muda o fato de que, embora a crítica possua em seu íntimo sempre uma propositura, e que por vezes a escrita, a forma de se expressar do crítico refrate ou, melhor dizendo, deixe de refratar o fato de que seus argumentos não são absolutos mas sim, como dito, propositura, metalinguagem etc etc; embora a crítica assim se expresse, valendo-se da miscelânea de cacoetes, a ordem dos fatores a meu ver não muda muito, e uma maneira tal de se expressar deve ser tratada como um descuidado do crítico ou uma utilização conveniente de métodos de expressão. Afinal de contas, se a crítica é conhecimento objetivo, ou conhecimento objetificado, daí não se segue que esse conhecimento possa vir a ser universalmente válido. Nem dentro apenas de seu âmbito de inscrição e nem numa leitura mais cerrada da epistemologia popperiana as coisas funcionariam assim. Enquanto críticos, enquanto leitores é nosso dever objetificar esse conhecimento da forma mais firme e consistente possível, mas isso não quer dizer nem de longe que estamos nos apoiando em categorias que existam por si só ou que o resto dos leitores deva simplesmente aceitar por ser argumento de especialista, por ser caso encerrado, por ser a+b ou qualquer outra tralha argumentativa do gênero. Não é assim que as coisas funcionam. Venhamos a realmente crer nisso ou transparecer isso em nosso discurso, será irrelevante uma vez que assim não tem cabimento que seja e se, ao fim e ao cabo, o que realmente se sustentar forem bons argumentos. É face ao rochedo destes que a discussão deve se encaminhar, e não à construção de padrões e consensos fictícios, impossíveis.

Isto posto, chegamos a: à crítica cabe dizer que a obra é aquela. Aceite isso. A crítica querendo sempre agir de maneira ativa na cultura de seu tempo, não se deduz que de alguma maneira possua o arbítrio da exclusão ou a cunhagem de parâmetros. Parâmetros, aliás, mesmo considerando que a crítica fosse toda ela uma única corporação com reuniões anuais, não depende só do que a crítica discute ou delibera. Pensar que a crítica possa funcionar de maneira diferente, desconsiderando não só o real funcionamento do fenômeno literário como desconsiderando também o estágio em que a crítica se encontra, tudo isso em prol de uma espécie de clarividência espalhafatosa, só pode ser resultado de uma formação deficiente. É dizer: a partir do instante em que os textos lidos e o entendimento do fenômeno literário malformam-se dentro do leitor, tem-se como que uma corcunda ou uma crosta que, na falta de um melhor uso, acabam servindo de barricada.

Ora: a aparelhagem de leitura do crítico é uma aparelhagem fundamentalmente interpretativa. Formá-la e coordená-la no sentido de captar a obra em seus meandros internos é o objetivo. A intempestividade de dizer que tudo numa obra está ruim ou que tudo está bom é uma atitude contrária ao cuidado de quem se propõe a encontrar a fibra que possibilita o movimento. É uma pretensão praticamente cirúrgica. Daí que o crítico não deve fazer as vezes de juiz literário, valendo-se de um esquema pré-concebido e, não bastasse isso, uma hermenêutica mecanizada. Se disse que o trabalho crítico é essencialmente comparativo, não quis dizer que a carga de leitura funciona como uma espécie de lista de prontidão. A crítica deve entender que cada obra é um fenômeno único, por pior que seja seu juízo a respeito. A carga de leitura funciona como um aparato de mergulho que lhe propicia sobreviver e sair mais rico das reviravoltas que a atividade da leitura por natureza traz. Pode-se elogiar as tonalidades olímpicas com que alguns se revestem, mas a verdade continuará sendo a de que à crítica compete muito mais o exercício das minúcias.




(07): Reviravoltas. É tolo querer escapar delas. Mais tolo ainda é quem se esconde por trás do cânone. Em muitos sentidos, é dentro do cânone que as reviravoltas são mais do que propícias a acontecerem ― elas acontecem com mais intensidade.

O cânone é um punhado representativo de obras representativas. Ou seja: não só obras representativas juntas, mas obras representativas que, juntas, representem um todo. O cânone pode ser pensado num ponto de vista inarticulado ou num ponto de vista articulado. A primeira forma se refere ao que uma comunidade ou nicho de leitores possui como norte, o que implica, por conseguinte, uma concepção necessariamente malformada. Malformada pois não é que os leitores votem periodicamente quais autores entrarão no cânone. De certo modo, eles não precisam, pois, graças a instituições de reprodução e sedimentação cultural, um modelo de cânone é ensinado a todos. Nesse sentido, até, uma dimensão puramente inarticulada de cânone seria impossível, do mesmo modo que querer negar a ideia de cânone igualmente o seria: é preciso conter os excessos relativistas com dosagens sociológicas...

Quanto mais ampliamos o escopo de alcance do cânone a que nos referimos, ou seja, se estamos falando por exemplo de um cânone mundial, então cada vez a malformação e o caráter abstrato desse cânone tende a aumentar. A razão disso é que uma concepção mais restrita do cânone se ancora em instâncias de reprodução e sedimentação cultural, por exemplo a escola, que estabelece um cânone para ser estudado ou simplesmente permite que o grau de concordância entre os membros de uma comunidade de leitores seja maior: como num âmbito mundial, por outro lado, nós não contamos com tais instâncias, então o grau de concordância tende a diminuir e a malformação, o caráter abstrato desse cânone se sobressai, embora não de modo absoluto pois, de resto, mesmo nas escolas nós aprendemos rudimentos do que seria um cânone mundial, o mesmo podendo ser dito de discursos críticos, livros editados, posturas de leitura dominantes etc. De todo modo, uma zona malformada sempre existirá independente do âmbito de alcance desse cânone, o que é melhor visto no caso mais amplo de cânone, isto é, no cânone da literatura mundial. Pois veja o leitor que, nos casos mais amplos de concepção de cânone, nós só podemos assentir em relação ao caráter de universalmente canônico para poucos autores, mas só alguns e por parâmetros que muitas das vezes quase ninguém faz a mínima ideia (em grande parte pois esse estabelecimento canônico não depende só de critérios estéticos, mas possui influências, possui sustentação econômica, social, geográfica, histórica, de gênero, raça etc). Uma concordância que envolva um número maior de leitores e que seja feita de forma eficiente envolve necessariamente o apoio de instituições de reprodução e sedimentação cultural.

Essa primeira forma, cada vez mais inarticulada, pode também se referir ao que nós, como leitores, possuímos como cânone pessoal. É que como leitores, nós nos guiamos a partir de cânones. Só que estou falando de uma concepção de cânone que seja interna, só nossa, que não seja externalizada. Uma ideia que nos habita e que, por conseguinte, permanece num estado incompleto e inarticulado. Uma noção, em suma. A partir do momento em que ela se externaliza, então ela pode ser criticada, ela pode ser lida. Ela tem de se sustentar de pé. É o segundo tipo.

Este segundo tipo traz cânones enquanto estruturas pensadas, estruturas norteadoras de uma concepção crítica, como estruturas que lançam um olhar interpretativo no fenômeno geral como um todo... A conversa é outra. Este segundo tipo de cânone é feito, e pode ir da lista de livros essenciais do jornal dominical ao texto do crítico decano. Independente do resultado chegado, é sempre um ato louvável, visto se tratar de um ato de articulação e principalmente um ato de transparência. O incômodo causado que sentimos quando entramos em contato com uma lista de melhores livros não deveria ser simplesmente o incômodo de não concordarmos com tudo. Deveria ser o incômodo de que em hipótese alguma concordaremos com tudo (e não me refiro só aos livros escolhidos, mas também aos critérios, à análise ou, em suma, aos argumentos), e que qualquer forma de cânone que se pretenda fixa e imutável (o que para alguns é sinônimo de cânone) é por definição impossível. Ela só é possível como uma ideia geral tendo em vista um enfoque para com determinados autores "lidos" sob determinados enfoques: noutras palavras, quando se corta boa parte da conversa e se oferece ao leitor uma versão melindrosamente simplificada. Por exemplo, pensarmos em cânone e falarmos em autores como Shakespeare, Cervantes, Dante ou Dostoiévski, que são tidos como evidentemente canônicos. Mas, oras, não são todos que ostentam esse "evidentemente" logo ao lado. Um pouco de corda a mais nessa conversa e notaremos que alguns nomes poderão surgir que já não são tão evidentemente canônicos. Divergências capazes de mostrar que o buraco é muito mais embaixo e que essa concepção inarticulada de cânone (ou essa articulação que se apoie de maneira excessiva ou exclusiva em métodos de reprodução e sedimentação cultural) deve sempre ceder lugar a uma articulação canônica, o que envolverá uma articulação crítica. E aqui não se trata nem tanto de dizer que estes novos autores trazidos à baila, e que são fonte de divergência, não são autores evidentemente canônicos pois no final das contas realmente não seriam, visto que posso, fundado em bons argumentos, sustentar que esse autor não-tão-evidentemente-canônico pode muito bem ser canônico de acordo com minha articulação crítica. Pra não dizer no fato de que o estabelecimento de autores evidentemente canônicos muda; que ele considera algumas partes de suas obras e com determinados vieses interpretativos (por exemplo ler a Comédia desconsiderando sua preponderância política); que alguns autores tidos como evidentemente canônicos podem não ser tanto assim dentro de bons argumentos (por exemplo Petrarca dentro do paideuma poundiano).

Há quem diga que a empreitada de pensar o cânone, escrever um cânone do segundo tipo é baldada. Não creio que o seja. Se o primeiro tipo de cânone se aproxima da raiz de nossos passos enquanto leitores e enquanto membros de uma cultura, um segundo tipo de cânone surge como a necessidade de não dependermos de algo tão tênue e facilmente deturpável, bem como um exercício de entendimento próprio e de entendimento da cultura a qual pertencemos que, posto que crítico, ou seja, articulado, pode ser compartilhado e debatido por outros leitores, tornando-se, assim, um exercício coletivo. Sei muito bem que no geral essa segunda noção é veiculada em tons que recendem autoritarismo e transparecem intransigência. Mas a proposta é muito mais honesta que crer na existência de um cânone que, se não for realmente articulado por nós leitores, permanecerá como uma noção vaga e afeita a mandos e desmandos muitas das vezes nem sequer literários ou artísticos. Não se trata de realmente chegar a uma verdade, mas, entendendo que o cânone é uma estrutura essencialmente crítica, se trata de, para dizermos com Barthes, chegarmos a validades. A tarefa de escrita de um cânone é uma tarefa mais ampla que a da crítica, e em muitos pontos é muito mais delicada (não digo em todos pois o cânone, se bem escrito, pode andar de pé, coisa que com a crítica comumente dita não ocorre jamais). Ela necessita de um grau de transigência, quase que por definição, ínsito e muito mais acentuado, mesmo porque seu objetivo é justamente a abertura...

É que cânone literário não se faz da mesma maneira como se cata feijão. Cânones literários precisam ser estruturas inteligentes. Devem advir de uma visão crítica profunda ao mesmo tempo que vasta. Isso quer dizer que eles possuem engrenagens que lhes permite andar com as próprias pernas, corrigindo eventuais faltas que possam vir a ter (sempre dentro dos princípios interpretativos que o norteiam, caso contrário redundaremos no esparadrapo) e, mais importante do que isso, instituindo dentro de sua composição uma abertura necessária para que seja capaz de suportar a coisa mais evidente do mundo: o advento do futuro. Adornar um bebê natimorto para o sucesso efêmero de uma lista de 100 livros pra se ler antes de morrer ou de uma chamada jornalística de arromba pode servir como isca, como de resto muita coisa sob o rótulo de crítica hoje em dia se passa, mas é claro que tratar a coisa desse jeito é quando muito caricato.

Além disso, uma obra clássica não é simplesmente uma obra que a partir de determinado instante se demonstrou como evidentemente dona de uma qualidade perene. Não existem autores literalmente universais. Alguns, é certo, se incorporaram de maneira muito vasta à nossa cultura, de modo que é muito difícil pensar em como nossa cultura conseguiria se sustentar sem a influência que exerceram (embora eu deva notar que nem tudo o que exerce fundamental importância em nossa vida ou em nossa cultura recebe o mesmo estatuto monumental: pense-se na cultura negra ou indígena). Mas não só esse espraiamento depende, como parte considerável do que se entende por um clássico é feita do que todos os leitores até então discutiram a respeito. É uma questão, portanto, de inúmeros argumentos dos mais variados tipos, muitos contrários uns aos outros, que consolidam, é verdade, determinada obra, o que não quer dizer que, consolidada, ela se torne invulnerável ou mesmo intocável.

Dentro de uma argumentação, porque não pensar que um livro tido como clássico possa deixar de ser clássico? Isso por si só não faz do crítico um ignorante, e é comum que ocorra. Naturalmente que se este for o objetivo único de sua leitura, o "desancar-autores", dessarte confundido com a iconoclastia, ele muito provavelmente será um, visto que deliberar sobre o esquecimento ou não de uma obra não cabe à crítica: ele é resultado do simples fato de que as pessoas pararam de ler aquela obra. Afinal, é bom que se frise: dentro de uma argumentação. O clássico não é bem aquela obra que revelou consenso por parte dos leitores ao longo dos anos, pois muitas dessas leituras costumam iluminar aspectos contraditórios de uma mesma obra (pra não dizer no fato de que muitas são contrárias umas às outras) e nem sempre essa mesma obra gozou de um reconhecimento constante. Clássico é uma obra de referência. Pode ser em relação à comunidade de leitores como um todo, pode ser em relação a determinados nichos, pode ser, ainda, em relação a determinada concepção crítica de um leitor. Representar um padrão de excelência se liga a uma persistência histórica e a uma satisfação do que tal nicho espera. Essas coisas mudam, mas, como já o dissemos (com Bourdieu), graças à lógica do capital cultural, não mudam aleatória nem constantemente. É razoável caracterizarmos o clássico como aquela obra que nunca se esgota, e creio que a argumentação de Italo Calvino seja especialmente seminal a esse respeito.

Mas aqui é preciso notar que virtualmente toda obra pode receber muitas leituras, e que o fator realmente diferencial do clássico está mais na sua exemplaridade do que de fato nessa espécie de "característica única dos clássicos". Entre aspas, pois, como acabo de dizer, o clássico não é a única obra possível de sê-lo. Sendo exemplar, sendo obra de referência, implica dizer que o clássico é uma fonte de influências e, como também dito, que ele vai de encontro a expectativas e posturas do nicho de leitores como um todo. Mas não há fixidez alguma. Retomando o parágrafo anterior, porventura nadar contra a maré não é sacrilégio. Ser uma obra de referência não anula a necessidade argumentativa: essa posição de obra de referência não é resultado só de méritos do texto. Na verdade, a ideia de méritos do texto grosso modo não existe, conforme disse na parte 03 (nós, no máximo, podemos falar desses méritos de maneira razoável e partindo de uma elipse). O que existe são características textuais que são valoradas por essa comunidade como exemplares (mas valoradas de maneira no geral inarticulada, de maneira abstrata, esfumaçada). Mas não só isso. Há uma sustentação fática, econômica, social, geográfica, das obras tidas como clássicas. Mesmo diante de uma obra tida como clássica, e quem sabe especialmente frente a obras assim, a aventura crítica permanece de pé. Ao se classificar como inabaláveis determinados autores, o que se está fazendo é muito mais afastar aquelas corruptelas críticas que se escondem por trás do gosto como um imperativo categórico ou da iconoclastia terapêutica. Mas aqui, como se pode perceber, o problema não chega nem mesmo a ser crítico. Criar uma fornada de respostas prontas é a mesma coisa de querer prender um organismo vivo dentro de uma armadura a fim de que ele não seja atacado: um verdadeiro absurdo, uma vez que estamos tentando defendê-lo de espadadas que se esfarelam no ar antes mesmo de acertarem o alvo.




(08): Imergir numa obra da maneira mais profunda possível envolve também entender que alguns chavões críticos devem ser tratados com cuidado, o que, de resto, faz parte do entender a literatura de forma lúcida. É dizer que se por um lado é uma verdade que grandes obras conseguem se sustentar ao lado de quaisquer outras, daí não se segue que podemos comparar a esmo certas obras nem aplicar critérios valorativos de determinado gênero num outro sem que isso com frequência nos leve ao erro. É, em suma, mais do que buscar captar, situar certa obra dentro de uma linha de força ou gênero que o crítico sustente ela se situe, e de tal modo que, frente ao complexo emaranhado de opiniões do cenário literário, a filiação apontada pelo crítico seja plausível. Pois a esse respeito, não cabe ao crítico o monopólio de uma espécie de medidor de universalidade, visto que, se o primeiro passo seu é o de interpretar de forma acurada uma obra, então, por conseguinte, ele não pode cair na balela de achar que toda grande obra é intemporal e que sua contextualidade é uma espécie de invólucro a ser descartado quando estivermos falando de assuntos mais sérios. É claro que não. Muito mais lúcido é falar numa transtemporalidade da obra artística, entendendo com isso o fato de que ela sempre traz consigo sua contextualidade e que é de fundamental importância que o crítico esteja apto a ler as implicações históricas de uma vinda assim. E o digo mesmo considerando o caso de um texto anônimo, visto que, se é uma verdade que ao leitor comum questões assim são postas de lado em prol do prazer estético (o que não quer dizer que ele efetivamente as consiga colocar de lado, antes apenas ignorando-as, e não quer dizer que exista propriamente uma dicotomia assim, ou seja, empreender um mergulho contextual pode muito bem coadunar com o prazer estético), no caso do crítico esta não é uma opção possível.

Acerca disso, devo notar que toda crítica só pode ser feita envolvendo um senso de contemporaneidade. Quer dizer que ele não só envolve a séria consideração do contexto em que uma obra se formou, não no sentido de ser decisiva para o juízo de valor, mas sim no sentido de ser decisiva para a validade interpretativa, quanto que ela envolve uma consideração do real estágio em que uma literatura se encontra(va). É a noção, em suma, de que, caso queiramos valorar um autor do passado, o que, mais do que plausível, com frequência ocorre posto que os parâmetros críticos não são pensados numa espécie de linearidade evolutiva, e sim numa questão dinâmica que envolve sempre uma reconsideração do passado e do presente e também das expectativas para com o futuro; é a noção de que, caso queiramos valorar um autor do passado, ou seja, caso queiramos escrever crítica sobre ele, então devemos ter um senso ativo de contemporaneidade para com esse autor, tentando, em outras palavras, nos colocarmos enquanto seus contemporâneos. Assim, o juízo crítico que embaralha percepções históricas de forma descuidada (pois, em muitos sentidos, a percepção histórica nunca se desvincula do presente), por exemplo usando critérios contemporâneos para valorar aquela obra ou comparando-a com artistas posteriores, muito provavelmente estará se fundando em bases questionáveis, a não ser que estejamos falando aqui de uma análise sincrônica do fenômeno, de resto sempre perigosa no que tange uma excessiva simplificação contextual.

E sobre isso, se antes me referi a transtemporalidade da obra artística, foi tendo em vista que o contemporâneo não possui algo que se possa chamar, grosseiramente, de contemporaneidade histórica, visto que a convivência de percepções, construções e mesmo historicidades distintas durante um mesmo tempo é um fenômeno real. A história não funciona no sentido de uma espécie de narrativa linear. Essa suposta linearidade histórica pode funcionar dentro de certas narrações, privilegiando alguns acontecimentos, alguns estratos sociais, alguns parâmetros de análise e por aí vai. Não se trata no sentido de que uma narração histórica é impossível; nossa forma de entendimento da historicidade humana é essencialmente narrativa (Ricoeur), mas daí não se segue que possamos com tanta simplicidade dizer que toda a historicidade humana é narrativa, linear, unívoca ou que o valha. A forma como cada cultura se relaciona com seu passado, e a forma como esse passado lança luz sobre o presente são mais do que suficientes para que a concepção da linearidade histórica ganhe, no mínimo, uma dimensão enovelada e tridimensional. Cabe ao crítico entendê-lo, o que, em termos práticos, implica na recusa da historicidade simples e, por conseguinte, como venho dizendo, na recusa da universalidade pensada a partir de uma abstração e supressão de contextos em detrimento de outros. Daí a necessidade de que, dentro da argumentação crítica, ou até mesmo antes: que dentro da interpretação se sublinhe um real pertencimento contextual de uma obra, o que afeta não só sua inscrição literária como também seus meandros internos. Afinal de contas, se podemos dizer que um dos grandes benefícios da literatura é o fato dela nos colocar em contato com a experiência da alteridade, daí não se conclui que qualquer tipo de leitura efetivamente consiga chegar a tal, uma vez que a alteridade literária não se confunde com a revelação ou o binóculo, mas sim com nossa disposição de nos desarmarmos e nos despojarmos. De, em suma, sairmos do nosso quadrado e redescobrirmos as sinuosidades do ser humano.




(09): Referi-me a linhas de força e gêneros. A ideia pode atiçar uma quimera. Podemos criar uma gama enorme de categorias que, sozinhas, seriam capazes de validar qualquer tipo de coisa. Mais uma vez, uma questão argumentativa. Qual o sentido de trazer à baila uma linha de força, filiação, gênero ou categoria para uma obra que, dentro do argumentado, não consegue se manter de pé? A homogeneização do campo literário por trás da categoria do universal apaga o que é por natureza heterogêneo. É contra isto que o ato de situar a obra, mais do que simplesmente jogá-la dentro de uma arena baldia, pretende lutar.

Ressaltar a historicidade do objeto, repito, é um ato fundamental da crítica. É um ato fundante. Diz respeito não só à acuidade do juízo como também à própria seriedade com que o crítico exerce sua função. Como já dito, a própria crítica possui suas reentrâncias históricas, sociais, políticas, ideológicas: contextuais, em suma. Ela não surge do nada. Ela surge após tudo o que a crítica argumentou antes. Idealmente, o crítico perfeito não seria bem aquele que conhecesse tudo o que foi dito antes dele, mas sim aquele que, com a consciência de que muito foi dito, e de preferência com o esforço de se inteirar pelo menos daqueles argumentos que se demonstraram mais sólidos, incontornáveis, abra sua trajetória ao debate.




(10): Somos membros, já o disse, de uma comunidade, especialmente uma de leitores. Assim, é razoável crer que determinadas obras possam ter não bem qualidades intrínsecas (já repisei que algo assim não existe), mas qualidades reconhecíveis dentro de alguns parâmetros gerais que persistem como uma espécie de cerne duro da atividade crítica: estamos falando, noutras palavras, do que se chama "clássicos". Mais uma vez é bom lembrar que não compete à crítica tratar essa espécie de cerne duro como uma tabela periódica, mesmo porque, fôssemos destrinchar o que seria este cerne, nos surpreenderíamos com aspectos por vezes contraditórios e com obras que feririam alguns dos preceitos.

Tentando colocar de forma mais clara, pensemos em critérios como a universalidade, o uso significativo da contextualidade, a criatividade, a profundidade, a coerência, a radicalidade, a intensidade, a complexidade, a simplicidade, a economia. Todos critérios que a crítica com frequência aponta como característicos de uma boa obra. Mas, como se pode notar, alguns desses critérios parecem estar em contradição uns com os outros (e alguns de fato estão). Pois não só uma obra boa necessitaria preencher todos estes critérios (e o fato de supostamente fazê-lo não a faria melhor em detrimento daquela que preencheria apenas alguns), como existem critérios que podem operar a união de contrários (o caso das propostas radicalmente singelas de uma Cora Coralina ou de um Manoel de Barros) e existem critérios que fazem parte de uma zona nebulosa, quando não tida como negativa, que pode perfeitamente vir à tona. Pense-se no fato de que a correção gramatical, um critério valorativo que norteia a muitos, não só pode como foi sucessivamente questionada face, por exemplo, à radicalidade de uma proposta qualquer. É dizer que não existe um critério que por si só e evidentemente faça a obra ruim, pois a construção de um texto sem nexo e beirando a agramaticalidade pode tanto ser sinônimo de má qualidade quanto apontar para o rompimento com a discursividade cotidiana de uma obra de vanguarda. Podemos brincar desse jogo de exceção-à-regra de forma suponho ilimitada: pra citar outros critérios que partem de uma zona de negatividade, temos redundância, implausibilidade narrativa, rompimento de um nexo lógico, cacofonia, uso excessivo de lugares comuns etc ― o mesmo podendo ser dito de critérios tidos como nebulosos, isto é, dos quais não sabemos pertencerem a uma valoração a priori positiva ou negativa, visto estarem ligados ao exagero de critérios positivos (como se fossem uma união de critério positivo + falta de comedimento), no que posso citar o trato excessivo de um tema universal que beiraria o abstrato, ou a criatividade que beiraria a incompreensão, a simplicidade a falta de garbo etc. Aliás, sob certo sentido é como se todos os critérios apontados dependessem do quesito do ser ou não uma fonte semântica, isto é, pensar se a falta de nexo numa escrita ou a falta de plausibilidade numa narração significariam uma fonte semântica para o texto ou não.

Podemos pressupôr que dependerá do crítico argumentar a respeito, como de fato creio que o seja, visto que todos esses parâmetros e reviravoltas só possuem razão de ser sendo. Quer dizer: esse lastro só existe, só é aceito porque existiram obras que o validaram e leitores que o reconheceram e apontaram, e esse lastro só pode ser trazido à tona não como uma espécie de verdade transcendental, mas, da mesma forma como ele se formou, dessa mesma maneira ele deve ser trazido à baila, isto é, tão só num caso concreto e, portanto, tão só dentro de um argumento. Mas não pretendo com isso negar que possa existir uma espécie de obviedade ao tratarmos do assunto, no sentido de que a comunidade de leitores pode enxergar como sendo óbvia a qualidade ou não de uma obra, o que se dá graças a uma sobreposição simples dos parâmetros compartilhados na superfície da obra (para além da sedimentação que me referi partes atrás), algo, não preciso nem dizer, que qualquer crítica que se pretenda séria (leia-se: minuciosa) demonstra como não sendo bem por aí, e nem tanto no sentido de argumentar ser o contrário do que se disse, mas no sentido de dizer que o buraco é muito mais embaixo e que, portanto, essa obviedade que tantos enxergam precisa ser explicada com mais demora, uma vez que os parâmetros usados por uma comunidade, a ênfase e quem sabe até mesmo algumas estruturas argumentativas lacunares e repetitivas mudam com os anos, as regiões geográficas, sistemas culturais, realidades sociais etc (o mesmo que dizer que, ao falarmos desses parâmetros e, mais do que isso, da forma como são pensados e usados, estamos falando de um conjunto de procedimentos e entendimentos muito mais susceptível de se desfazer sob os jogos de poder do que a tarefa da crítica, por natureza encaminhada ao dissenso e, logo, contrária ao que tais parâmetros tendem a representar, por natureza encaminhados ao consenso).

Afinal, a partir do instante em que a crítica funciona como particularização seguida de juízo de valor, então temos, mais uma vez, que nenhum desses critérios subsiste por si só, como se representasse uma espécie de verdade evidente. A faceta argumentativa da atividade crítica ainda assim persiste, visto que é necessário que o crítico exponha o porquê de achar que a obra se encaixaria em alguns destes critérios, ou em outros que não fazem parte de um cerne assim, e de tal modo que, mais do que incluir a obra numa generalidade abstrata, ele está contribuindo para colocá-la numa zona propriamente nebulosa que é a dos leitores que sucessivamente lerão aquela obra e, porque não pensar, poderão encontrar outras formas de enxergar a qualidade do texto. Limitar-se a crer que a sobreposição entre o texto e o parâmetro comunitariamente reconhecido basta é muito mais do que pouco: ao dizer que esses parâmetros reconhecidos possuem uma certa objetividade, é claro que não foi no sentido de que permanecerão para sempre. Acho que não preciso dizer que esse nexo lógico é um tanto quanto grosseiro. A tarefa do crítico não é tácita frente a tais parâmetros, não tanto no sentido de ferir o que dizem ou de ir contra eles, mas no sentido de, ao apresentar a especificidade de um texto, ao argumentar sobre a qualidade ou defeito que julga encontrar numa obra, ele concretiza, ele efetiva o que até então permanecia num plano abstrato. E é por concretizar o que antes pairava e dependia de um consenso pressuposto que a crítica como que lança com real efetividade e vivacidade a obra dentro da discussão, ao invés de, escondendo-se por trás de tais parâmetros  como auto-evidentes, ela jogasse esses parâmetros em cima do público crendo de algum modo estar ensinando seja lá o que for, quando, pelo contrário, é em grande parte advindo desse público que esses parâmetros ganham a concretude que têm.




(11): Tentarei ser um pouco mais concreto. Não se trata bem de dizer que a Beleza ou o Mérito Textual não existam. Disse antes que eles existem numa realidade sociológica. E de fato. Das várias características textuais possíveis de serem apontadas, sejam elas razoavelmente objetivas, sejam elas frutos de uma interpretação, uma mescla produtiva e reciprocamente reiterante entre minhas idiossincrasias e meu pertencimento, em suas acepções mais amplas (em especial histórico-sociais), a uma comunidade de leitores fazem com que algumas dessas características, respaldadas em textos que podemos chamar de clássicos graças a sua característica de obras de referência e a pressupostos de maneira geral (vieses interpretativos privilegiados, estudos consagrados, certas formas restritas de percepção social etc), eu posso reputar como possuindo um mérito textual. Como sendo objetivamente belas, objetivamente boas. Não é uma ideia de todo odiosa, e em muitos sentidos não é algo do qual eu simplesmente prescindo. Se com a maior parte dos leitores isto basta, e se com boa parte também dos críticos um recenseamento simples e às vezes tendencioso de algumas dessas características, no geral articuladas, expressas de forma elíptica e setorizada; se é assim com um e com outro, que seja. Com a crítica não pode ser. Postura valorativa articulada, metalinguagem, reiteração de um nó górdio, sua sobrevivência é muito outra... Eu entendo que a princípio podemos pensar que a atividade crítica envolve apenas um leitor e uma obra, mas, a partir do instante em que tanto esse leitor quanto essa obra estão inseridos num contexto, brinco e digo que, com isso, estamos sempre numa situação de com+texto, o que implica dizer que pensar a leitura desvinculada de sua contextualidade é desde já um absurdo. O leitor comum pode, de alguma forma, sublimar ou iludir ter sublimado a contextualidade da obra. Tanto pior para ele, se assim for. À crítica não cabe sonhar com estes unicórnios.

A relação, portanto, entre obra, leitor e contexto afeta diretamente o juízo de valor resultante. Pois se o juízo de valor é em grande parte um juízo subjetivo, não quero com isto dizer que a outra parte é objetiva. A outra parte é intersubjetiva. Quero dizer que ele se vale de um solo em comum que, ainda que depois negado, nunca deixará de ser um ponto de partida. Quer dizer também que, se estamos falando de um lastro intersubjetivo, e se estamos falando do fato de que a crítica é um corolário do fato de que desenvolver o verbo "ler" é chegar no estágio em que o leitor passa a ser lido, então é o caso de considerarmos que a crítica é essencialmente argumentativa, e que o enfoque ao considerarmos seu sucesso ou não está muito mais neste fato do que em seus possíveis acertos ou erros. Erros e acertos, aliás, não sei em relação ao quê. Ao futuro? Oras: o futuro é em aberto. Se for realmente pra considerar que um crítico possa estar certo ou errado a respeito de determinado autor, e que algo assim o futuro poderá julgar, devo notar que, mesmo que o crítico realmente tenha "acertado" e que esse "acerto" seja reconhecido daqui a 100 anos, nada impede que daqui a 500 ele volte a estar "errado" e que daqui a 1000, a estar "certo". O que persiste é o argumento. Que o crítico hoje valore negativamente ou mesmo que ele não dê atenção para um autor que daqui a não sei quanto tempo passará a fazer parte do que se entende por clássico, é algo que simplesmente não lhe compete, mesmo porque o futuro, embora em aberto, não é um salto: ele é um caminho o qual estamos trilhando. Pois que o crítico passe a se preocupar, então, ao invés de ficar jogando pedrinhas na boca do sapo do amanhã, em firmar seus passos. Tanto hoje quanto ontem e amanhã, o que persistem são bons argumentos. A sedimentação de um autor como clássico independe em larga escala do que o crítico sozinho possa deliberar, mesmo porque, quando dizemos, de um crítico do passado, que ele "acertou" a respeito de um certo autor, nós não nos referimos simplesmente àquele crítico que escreveu de forma espúria a respeito.

Esse relacionamento entre crítico e seu tempo nos leva a um ponto nevrálgico da atividade crítica. Em muitos sentidos, a crítica é um ponto de encontro. É inevitável que ela adquira uma certa autoridade dentro do cenário literário. Não só os leitores necessitam se guiar a respeito do que é e foi lançado, como também a crítica cria uma espécie de laços com seus leitores, de modo que a opinião do crítico passa a querer ser lida. Ver o que ela pensa a respeito muito mais do que fornecer uma simples diretriz. Mesmo que a crítica estivesse literalmente morta, a coisa mais simples do mundo seria ela se reerguer: a crítica se funda na coisa mais normal do mundo de acontecer quando falamos de livros: trocar opiniões. Pode-se observar, sendo assim, uma das raízes para o estado preocupante em que a crítica se encontra. Se por um lado temos o caso das rápidas notas em revistas e jornais que na maior parte das vezes se contentam em parafrasear a orelha e fornecer um resumo, preocupadas em gerenciar o cofrinho do leitor, temos, do outro, as notas acadêmicas que se comprazem, jungidas pela ABNT, em endossar o dialeto da tribo e nada mais. Tanto num caso quanto noutro, a crítica perde seu enfoque argumentativo, sustentando-se meramente a partir de um status que, sem uma trajetória, perde a razão de ser: confia-se numa posição estratégica da crítica que, sem existir de fato, ou seja, sem críticos que realmente a coloquem numa posição assim, é a mesma coisa que escrever o nome n'água.

É dentro da raiz essencialmente argumentativa da crítica que afirmo que ela é também uma crítica de seu próprio tempo. Ela vai além, muito além de uma espécie de resiliência mercadológica. Compreendendo a historicidade de ambos os fenômenos (literário e crítico), e pondo de lado a pretensão de que sua atividade se resuma às apostas num páreo (este pode ser um bálsamo qualquer para o crítico, e, se encarado tão só neste prisma, vá lá, que o seja), é que a articulação de suas ideias vai de encontro e parte da realidade em que está inserida. Não se trata de incluir um pigarro social entre o terceiro e o quarto parágrafos, como uma espécie de câncer que se justifica pela benevolência da ideia. Antes, pormenorizando as especificidades que todo texto sempre traz consigo, e fundando seu juízo no funcionamento interno da obra e nem tanto a partir da sua inclusão em órbitas maiores, é que o crítico se vê diante de um fenômeno (o literário) que se quer entendido sempre da maneira mais ampla e lúcida possível, e é a partir deste movimento complementar de microscopia e macroscopia que a crítica imerge em seu tempo. Para me valer da comparação de Walter Benjamin, ao estudar Afinidades Eletivas de Goethe em 1922, é separar o trabalho do crítico do trabalho do comentador, dado que, enquanto o comentador se preocuparia com a lenha queimada numa aleia escura, o crítico, querendo a verdade da obra, buscaria manter viva a chama. (Concepção que, em solo nacional, encontra correspondência direta na crítica funcionalista de Antonio Candido, preocupada em buscar na obra o que de mais significativo houvesse para o espírito de uma época.)

Por isso não podemos perder de vista a ideia da crítica como sendo antes de tudo uma forma de atenção. E a atenção, cabe lembrar, era para Simone Weil a mais rara e pura forma de generosidade. Pressupunha fé e amor, o que, no caso da crítica, não quer dizer nem tanto fé e amor por determinadas obras, e sim fé e amor pela literatura. Afinal de contas, mais, muito mais do que elementar é a crítica envolver seres humanos sensíveis. Mas não aquela pseudosensibilidade do autômato. O "bom gosto". Antes, a sensibilidade de uma película para sempre inclusa, apta a mais do que sentir ― apta a querer entender e, portanto, contorcer e se contorcer numa realidade que jamais deixou de considerar sua.




(12): Os dois reis de Borges nos ensinam uma lição. O labirinto mais intrincado não se iguala ao labirinto que podemos encontrar lá fora. A ânsia de emaranhar um livro num complexo de argumentos não muda o fato de que a obra é sempre mais complexa: ela convida para dentro de si a complexidade de outros leitores. Daí não se conclui, evidentemente, um elogio às armas depostas. As cabeças decepadas se multiplicando dentro da lógica da hidra, então que a crítica seja não o fio da espada, mas o volteio da luz ao atingir a lâmina. Explicitando a analogia, é ler com dedicação e afinco não com fins a alcançar um estatuto absoluto que, quando muito, persistirá no elogio seco dos que nos cercam; é ler com dedicação e afinco buscando avivar a conversa e, como dito por André Bazin, não trazer numa bandeja de prata uma verdade que no final das contas não existe, mas prolongar, na inteligência e sensibilidade dos outros leitores, o impacto da obra de arte.