Quando um crítico erra?
(Do ensaio Grandma Rocks, 2013, de Jay Hynes. Créditos.)
Pra mim é meio difícil pois retive muito pouco do contato com elas. Por parte de mãe, e ajudado por fotos que só tornam a situação mais alheia, guardo a imagem de uma sábia bolota, num vestido azul escurecendo, com um gorro de natal e uma bengala. Por parte de pai é um pouco mais vívido: nas festividades de final de ano ela havia me dado um cofrinho, só que daqueles bem vagabundos ― daqueles que, dependendo da falta de cuidado com que você abre, o cadeado pode se romper, ou que, se você decidir enchê-lo até o fim do ano, é possível que em agosto tenha que trocar pois ele vai estar podre de ferrugem. Ela me puxou prum canto e disse: "Aí é pra pedir pro papai: papai, põe dinheirinho aqui, tá?"
Por hora envolvo com manta de mistério a razão dessas lembranças tão carinhosas ― minhas e suas, espero.
A pergunta do título pode começar a ser respondida não respondendo. Pois o que seria um erro crítico? A resposta mais comum é a do caso do crítico que julga como ruim uma obra boa. Seria o caso de, seguindo a esteira de Ezra Pound no ABC da Literatura (1934; tradução de Augusto de Campos):
O crítico honesto deve contentar-se em encontrar uma parcela MUITO PEQUENA da produção contemporânea digna de atenção séria; mas deve também estar pronto para RECONHECER essa parcela, e para rebaixar de posto uma obra do passado quando uma nova obra a supera.
O crítico que falhar em calibrar as antenas ― ele erra. Só que é preciso que nos lembremos, com Antoine Compagnon (em O demônio da teoria, 1998), que a maior parte dos textos literários é ruim. Mas continua sendo literatura. Compagnon cita o ensaio Religion and literature de T. S. Eliot, para quem é necessário que não confundamos grandeza literária com literatura, isto é, frente a um texto, devemos nos perguntar se ele é literatura ou não para só depois nos perguntarmos se é boa literatura ou não. Sabe aquela coisa de achar que um livro ruim, por ser tão ruim, deixa de ser literatura ― mais ou menos como confundir que cultura é sinônimo do que se chama de alta cultura? Por exemplo, um piano de cauda ― cultura, claro ― e um baile funk ― cultura? Nem pensar! Aquela velha armadilha do você querer definir algo ― no caso, o que é cultura ou o que é literatura ― e partir de um juízo de valor, quando o juízo de valor deveria chegar pra festa só depois. Só depois.
Transpondo para o dia-a-dia, quer dizer que o crítico que possui engulhos ou dá um piripaque, ou dá um piti e aborda as pessoas na rua pra perguntar se elas já sabem das novas ― "a poesia está em crise, não sabia?" ― o crítico que faz isso quando lê um poema ruim ― esse crítico aí, ó, tsc, tsc. Toda crítica de literatura contemporânea ― vou além: toda crítica, de qualquer coisa ― deve estar preparada para enfrentar textos ruins. E mais: deve estar preparada para que não se limite a simplesmente emitir um juízo de valor, mas, antes, encaminhar suas ferramentas de trabalho sempre rumo a um entendimento maior do fenômeno poesia contemporânea ― a ideia, portanto, de que o crítico não é um um paladino defensor da alta literatura ou um guardião do jardim estrelinhas-do-cânone.
A questão, todavia, começa a ganhar algumas chispas. Note que a estrutura de meu argumento nos dois parágrafos anteriores foi a de partir, digamos assim, de uma constatação ― a maior parte da literatura é ruim ― para, depois, criticar uma postura. A postura exagerada e certo modo vitimista dos críticos que armam um escarcéu sempre que encontram uma obra ruim. Seria o caso de afirmar que o crítico erra também quando adota uma postura?
Esse texto argumentará que, na verdade, os mais graves erros críticos advêm de determinadas posturas pessoais do crítico ― de quando ele, digamos assim, fere alguns dos princípios que nossas avós nos deram ― e daí eu pedir pra que se lembrem de suas avós. Sabe aquela coisa de ser sempre gentil, respeitoso, educado, calmo, paciente, humilde, honesto, sincero? Pois então. O crítico erra quando faz o contrário e deixa sua avó triste ― aqui ou no além.
Naturalmente que existem outros âmbitos de erro. Intercomunicam-se, posto que a maior parte dos erros críticos ― para não dizer todos ― advêm de uma interpretação pobre, o que está intrinsecamente ligado a uma leitura também pobre de reentrâncias históricas e a uma argumentação fraca. Para citar a divisão que Wilson Knight faz na introdução de The Wheel of Fire (1930), importante coletânea de estudos sobre as tragédias shakespearianas ― pois é geralmente nesse tipo de coisa não específica que encontramos verdadeiras joias ―, enquanto a Crítica se correlaciona a uma objetificação do texto tratado e, por conseguinte, à sua comparação com obras similares, a Interpretação é uma imersão nesse mesmo texto (trad. minha):
(...) ela [a Interpretação] tenta, até onde é possível, entender seu objeto à luz de sua própria natureza [do objeto], empregando referências externas, de todo, só como preliminares ao entendimento; ela escapa de discussões de méritos, e, desde que sua existência depende de sua aceitação original da validade da unidade poética que reclama, em certo sentido, para traduzir em raciocínio discursivo, ela não enxerga nenhuma divisão entre "bom" e "mau".
"Crítica é um julgamento da visão; a Interpretação é a reconstituição da visão." Knight, no final da introdução, diz também que sua divisão entre Crítica e Interpretação não pretende ser universal nem absoluta. Conforme argumentarei depois, é dever da Crítica partir da Interpretação mais profunda possível. O contrário recairia em absurdos de querer objetificar algo (a Literatura) que, como sabemos, só funciona de verdade quando estamos do lado de dentro e não do lado de fora. De modo que, se a crítica busca um julgamento das tripas, aquela crítica que não é precedida de uma interpretação profunda acaba fornecendo, ao contrário disso, um julgamento da epiderme.
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Levantei a questão do valor, e a ela desejo voltar.
Durante a maior parte da história, o Belo foi considerado como propriedade do objeto. Para não nos demorarmos muito nos exemplos, visto que eles poderiam se estender até o século XVIII, lembremo-nos de Aristóteles no capítulo VII da Arte Poética (aqui, p. 12 do pdf ― que, infelizmente, não cita o tradutor):
Além disso, o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem.
No verso 23 da Arte Poética, Horácio de certa maneira parafraseia Aristóteles (na tradução em prosa de Jaime Bruna): "Em suma, o que quer que se faça seja, pelo menos, simples, uno."
A coisa começou a mudar com Kant ― claro que estou simplificando, pois Hume já atestara a relatividade dos juízos de gosto em Of the Standart of Taste (1757), e, de minha parte, também enxergo um pouco em São Tomás de Aquino (1225-1274), especialmente ao dizer que o Belo se refere à faculdade cognoscitiva e portanto o que agrada na beleza não é o objeto e sim sua apreensão pelo sujeito ― mas, voltando a Kant ― Kant, na sua terceira Crítica (1790), afirma que todo juízo de gosto só pode ser um juízo subjetivo ― a velha frase de que a beleza está nos olhos de quem a vê ― e mais: todo juízo de gosto é um juízo desinteressado. Funciona mais ou menos assim: quando digo que o sorriso de minha amada é belo, isso não é a mesma coisa que dizer que a água que cai do céu é chuva, pois, embora em ambos os casos eu insira um particular dentro da barraca de um universal ― por exemplo aquela chuva que cai e molha minha roupa do conceito geral de Chuva ―, no caso do juízo de gosto, ou seja, sobre o sorriso de minha amada, não existe uma categoria identificável, objetiva do que seja a Beleza. Digo que o objeto é belo e como que faço uma elipse: "[Eu acho que] O objeto é belo." Se Kant diz que o juízo de gosto é desinteressado ― o lance é bem literal, sabem? Não me interessa emitir aquele juízo de gosto. Minhas necessidades físicas não entram de modo algum em jogo. (Naturalmente que, com o passar dos anos, esta proposição kantiana foi atacada até virar peneira.)
Só que aí entra uma coisa interessante. Que é o fato de que o juízo de gosto é, para Kant, uma singularidade universalizável. Eu não digo apenas que o objeto é belo; eu, digamos assim, quero que todos também achem aquele objeto belo. Claro que mais uma vez é preciso lembrar que estamos falando de um juízo desinteressado, ou seja, não tem interesse nenhum por trás ― mas o cerne é esse.
Muitas coisas mudam a partir de Kant. A noção de uma autoridade estética rui praticamente toda ― não toda pois Kant não chega a apregoar bem um relativismo estético. Mas passamos a observar que, no âmbito da crítica, as coisas são um tanto quanto complexas. Seria até mesmo o caso de questionar a validade estrutural da crítica. Se ela é subjetiva, o que sobra? Como dizer que uma obra é boa e uma obra é ruim?
Afinal de contas, crítica é julgar. Vem do grego κρίνειν: decidir. Seguindo a síntese de Victor Hugo, a crítica seria o que decide se uma obra é boa ou se ela é ruim. Mas nunca foi só isso. Como sempre nota João Cezar de Castro Rocha, "crítica" vem do mesmo radical que "crise" (κρίσις): κρίνω, separar, ordenar, inquirir, selecionar, discernir, disputar, julgar, acusar, condenar, criticar.
Com a guinada kantiana, muita poeira foi levantada. A desconfiança para com juízos estéticos supostamente objetivos cresceu, acompanhada da profunda revolução que o Romantismo trouxe no âmbito das artes e resultando, com o passar das décadas, notadamante as do século passado, em enfoques e pilares críticos inéditos. Passando um pouco o carro na frente dos bois, podemos dizer, seguindo Katia Mandoki em Everyday Aesthetics (2007), que o Belo é uma operação linguística. É você pegar um adjetivo e transformar em um substantivo ― o que implica, portanto, que a situação de haver uma pessoa frente a um objeto, num certo contexto e patati patatá, é reduzida a termos de um objeto que parece existir por conta própria. Com Kant, refizemos o caminho da roça e chegamos de novo ao indivíduo. O Belo voltou a ser adjetivo. Mas e se formos mudando os enfoques ― por exemplo, e se olharmos pra biografia do poeta, ou e se olharmos para o contexto, olharmos para as estruturas sociais, olharmos para o gênero (...)?
Pra se ter uma ideia, chegaram até a buscar um meio termo entre o objetivismo e o subjetivismo estético. Compagnon cita os exemplos de Monroe Beardsley (Aesthetics, 1958) e Cleanth Brooks. Este último, no livro The Well Wrought Urn (1947), aborda o poema como um vaso grego extremamente bem feito, capaz de resolver seus paradoxos textuais internos (para Brooks, a linguagem da poesia é a linguagem do paradoxo: "aparentemente a verdade que o poeta expressa pode ser abordada apenas em termos de paradoxos.", tradução minha). Um pouco antes, seria de se notar a argumentação de Edgar Allan Poe, em The Philosophy of Composition (1846), de que, quando os homens falam do Belo, "eles falam, precisamente, não de uma qualidade, como se supôs, mas de um efeito ― eles se referem, em suma, somente àquela pura e intensa elevação da alma ― não do intelecto, não do coração ― sobre a qual comentei antes, e que é experimentada em consequência de se contemplar 'o belo'." (tradução também minha.)
Estes não foram, contudo, os pressupostos críticos dominantes na Modernidade. Por exemplo, para citarmos um contraponto forte à Nova Crítica (que Brooks representa), seria o caso de Northrop Frye (1957), que afirma, na sua Introdução Polêmica (na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos):
Afinal de contas, crítica é julgar. Vem do grego κρίνειν: decidir. Seguindo a síntese de Victor Hugo, a crítica seria o que decide se uma obra é boa ou se ela é ruim. Mas nunca foi só isso. Como sempre nota João Cezar de Castro Rocha, "crítica" vem do mesmo radical que "crise" (κρίσις): κρίνω, separar, ordenar, inquirir, selecionar, discernir, disputar, julgar, acusar, condenar, criticar.
Com a guinada kantiana, muita poeira foi levantada. A desconfiança para com juízos estéticos supostamente objetivos cresceu, acompanhada da profunda revolução que o Romantismo trouxe no âmbito das artes e resultando, com o passar das décadas, notadamante as do século passado, em enfoques e pilares críticos inéditos. Passando um pouco o carro na frente dos bois, podemos dizer, seguindo Katia Mandoki em Everyday Aesthetics (2007), que o Belo é uma operação linguística. É você pegar um adjetivo e transformar em um substantivo ― o que implica, portanto, que a situação de haver uma pessoa frente a um objeto, num certo contexto e patati patatá, é reduzida a termos de um objeto que parece existir por conta própria. Com Kant, refizemos o caminho da roça e chegamos de novo ao indivíduo. O Belo voltou a ser adjetivo. Mas e se formos mudando os enfoques ― por exemplo, e se olharmos pra biografia do poeta, ou e se olharmos para o contexto, olharmos para as estruturas sociais, olharmos para o gênero (...)?
Pra se ter uma ideia, chegaram até a buscar um meio termo entre o objetivismo e o subjetivismo estético. Compagnon cita os exemplos de Monroe Beardsley (Aesthetics, 1958) e Cleanth Brooks. Este último, no livro The Well Wrought Urn (1947), aborda o poema como um vaso grego extremamente bem feito, capaz de resolver seus paradoxos textuais internos (para Brooks, a linguagem da poesia é a linguagem do paradoxo: "aparentemente a verdade que o poeta expressa pode ser abordada apenas em termos de paradoxos.", tradução minha). Um pouco antes, seria de se notar a argumentação de Edgar Allan Poe, em The Philosophy of Composition (1846), de que, quando os homens falam do Belo, "eles falam, precisamente, não de uma qualidade, como se supôs, mas de um efeito ― eles se referem, em suma, somente àquela pura e intensa elevação da alma ― não do intelecto, não do coração ― sobre a qual comentei antes, e que é experimentada em consequência de se contemplar 'o belo'." (tradução também minha.)
Estes não foram, contudo, os pressupostos críticos dominantes na Modernidade. Por exemplo, para citarmos um contraponto forte à Nova Crítica (que Brooks representa), seria o caso de Northrop Frye (1957), que afirma, na sua Introdução Polêmica (na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos):
O juízo de valor demonstrável é a cenoura do burro da crítica literária; e toda nova moda crítica, tal como a moda corrente de análise retórica esmerada, tem sido acompanhada por uma crença de que a crítica delineou finalmente uma técnica definitiva para separar o excelente do menos bom.
Frye quer que a crítica analise a literatura como um todo. Tarefa evidentemente hercúlea, o que Frye fará nos quatro ensaios de Anatomia da Crítica será precisamente oferecer instrumentos para que isto seja feito ― no que desenvolve, entre outros, a Teoria dos Arquétipos literários. Daí o desprezo dele do juízo de valor. Em determinada parte, ele chega até a ridicularizar uma espécie de pingue-pongue de juízos valorativos sobre Milton e Shelley, que dizem, com o passar dos anos, que um é melhor que outro, ou que os dois são ruins, ou que os dois são bons etc. Mais uma vez, é preciso lembrar que Frye olha para a literatura como um todo. É essa a sua concepção crítica. Quem sabe explique a certa simplificação em que recai, pois a substituição de parâmetros valorativos, se vista de forma geral, realmente possui ares de ridículo, mas, quando imergimos nela com mais cautela, vemos que o contato é sempre complexo. Vertentes críticas do passado podem ser obnubiladas para que se ilumine determinado aspecto e, assim, mude-se o cenário da coisa. Mas o fato é que o passado literário, o passado crítico ― o passado por si só ― é dinâmico. Todas as tendências apontáveis por Frye podem coexistir num só momento ou naquilo que ele chama de bolsa de valores literária. Essa não é necessariamente uma característica pós-moderna. Vai depender muito dos argumentos que serão colocados em cima da mesa. Vistos de longe ou de cima, o movimento que faz com que passemos do desvalor de Milton e Shelley juntos, na crítica dum T. S. Eliot, para a reconsideração valorativa de ambos, na crítica dum Harold Bloom, pode ser simplesmente uma guinada que, num esquema retrospectivo, parece o ligar e desligar de um interruptor. Mas vai lá olhar de perto.
Frye é um bom exemplo pois a partir dele vemos que a crítica moderna tirou muitas coisas da cachola, deixando de se preocupar um tantinho com o critério valorativo (na verdade, ela só eclipsou os esforços em demonstrá-lo). Para Frye, como vimos, critérios valorativos são um verdadeiro absurdo ― e ele parte de uma base kantiana, aliás. Assim sendo, como ficamos? Se os juízos estéticos são subjetivos e não demonstráveis, então como dizer que a crítica pode errar ao dizer que um certo livro bom é ruim? Não estaríamos, no final, tentando sobrepôr duas coisas indemonstráveis ― um livro bom, uma crítica ruim?
O buraco é muito mais embaixo. Podemos tentar argumentar que a relatividade do juízo de gosto não é absoluta, e voltarmos a Kant. No §57 de sua terceira Crítica, ele diz, acerca do fato de que se pode discutir sobre o gosto ― e não disputar o gosto, o que seria uma quimera pois implicaria maneiras de provar o que não pode ser provado, posto que subjetivo (na tradução de Valério Rohden e António Marques):
(...) o juízo de gosto funda-se sobre um conceito (de um fundamento em geral da conformidade a fins subjetiva da natureza para a faculdade do juízo), a partir do qual, porém, nada pode ser conhecido e provado acerca do objeto, porque esse conceito é em si indeterminável e inadequado para o conhecimento; mas o juízo ao mesmo tempo alcança justamente por esse conceito validade para qualquer um (em cada um na verdade como juízo singular que acompanha imediatamente a intuição), porque o seu princípio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode ser considerado como o substrato supra-sensível da humanidade.
Um fundamento em geral da conformidade a fins subjetiva da natureza. Eita! O que é isso? Fundamento em geral, pense num fundamento genérico. Só que um fundamento genérico de uma conformidade subjetiva direcionada a fins. Isto é: pense em algo que é conforme a fins. Virado pros fins. Só que uma conformidade subjetiva. O que faz com que a agulha aponte pros fins é um algo subjetivo. É uma forma complicada de trazer aqui a ideia da subjetividade e do desinteresse do juízo de gosto. Conformidade a fins subjetiva da natureza é essa conformidade que falamos só que da natureza, referente a um objeto da natureza. Só que agora encaminhado para a faculdade do juízo ― o gosto. É sobre esse conceito que o juízo de gosto se funda ― e, portanto, ele só pode ser subjetivo. Indeterminável e inadequado, portanto, para o conhecimento (na verdade essa afirmação é muito mais espinhosa, pois cairia na questão do que é o conhecimento, então já viu). Só que, pelo fato de estar ancorado nesse conceito, é que ele alcança validade para qualquer um ― só que cada um cada um, isto é, não de maneira única para todos, mas como juízo singular que acompanha imediatamente a intuição ― imediatamente, lembre-se, sem mediação. A razão de alcançar validade para todos é que ele pode ser considerado um substrato supra-sensível da humanidade. Ou seja, o Belo ― e o que Kant está nos dizendo, de maneira resumida, é que é possível discutir sobre o Belo. Assim sendo, embora não exista uma autoridade estética, existem argumentos. O que dá uma injeção de ânimo na crítica, fazendo com que ela pare de ser observada como uma disputa e passe a ser encarada como porta aberta à discussão.
Para não dizer, claro, que falei até então das coisas numa estância de fábrica ou que o valha. Quando ligamos o motorzinho da realidade, tudo fica mais complexo. É hora de compreender a crítica como, no mínimo, peça dinâmica dentro daquilo que Antonio Candido chama da literatura como sistema: caldeirão de produtos literários, receptores e mecanismos transmissores. Dificilmente podemos sustentar juízos estéticos desinteressados e, portanto, determinados apenas a partir de estâncias subjetivas.
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Você pode aceitar que um juízo de gosto não é absoluto dada sua composição intrínseca de juízo subjetivo. Você pode não aceitar dizendo que os critérios críticos mudam de época pra época ― algo, é claro, que não se dá num estalar de dedos, mas, precisamente, a partir de uma reconsideração dos parâmetros críticos em voga ― só que em prol de parâmetros que sejam de fato efetivos para avaliar o estágio e as propostas da contemporaneidade, o que envolve, é claro, uma leitura necessariamente histórica dos fenômenos ― fenômeno crítico e fenômeno contemporâneo. Pois o mecanismo básico da crítica é muito parecido com os mecanismos de outras áreas de abordagem literária, da editoração à pesquisa. É praticamente impossível ler e não ligar pelo menos um pouco o juízo crítico, seja em que estágio for, com que fundamentação for, e falo isso da lista de livros desejados à compra e à resenha.
Na maior parte dos casos ― ou naqueles casos em que se nota um esforço deliberado de articulação do juízo crítico ―, o denominador comum é a interpretação. Um mergulho profundo, um salto mortal. Ler é encarar ― conviver o que o texto diz. Claro que não se trata de ficar à roda apenas do que aquela textualidade, como que num apego literal. A ideia de uma leitura literal é muito questionável ― ela certamente faz parte de uma mitologia, assim como a leitura total. Mas, venha o leitor a aportar no contexto, na história, na biografia, nos precedentes literários... O enfoque no texto, sua imersão nele são imprescindíveis. O crítico não pode, para retornarmos a João Cezar de Castro Rocha, ser um juiz literário, que aplica conceitos preexistentes ― conceitos que ele trouxe de casa à maneira de penduricalhos ― nos textos e que mede a qualidade de um texto pela forma como esse texto desliza suavemente no brinquedo de encaixar. É o convívio com o texto, a imersão nesse mesmo texto ― e, portanto, o ato do crítico de colocar seus pressupostos em crise ― que determinará a verdadeira qualidade da atividade crítica. Sua bagagem de leitura, naturalmente, é de enorme preponderância, embora do mesmo jeito como a autoridade estética ou o paladar aguçado são atributos que não devem ser evocados à maneira de um brasão, do mesmo jeito a bagagem não deve ser tomada num sentido estático e sim num sentido dinâmico de uso efetivo do que foi e está sendo aprendido de suas leituras, supõe-se, vastas e profundas.
Podemos, com base nisso, estabelecer que o crítico erra se não imerge de forma pelo menos satisfatória num texto. A contra-resposta é automática: o que seria esse nível satisfatório. Textos são estruturas polimórficas. Possuem uma textualidade abertura ― ou uma textualidade preguiçosa, para irmos de uma ponta à outra nas afirmações de Umberto Eco. Ainda sofremos um pouco pra tentar afastar tais constatações da radicalidade de dizer que toda interpretação é válida. Existem aquelas que são claramente um absurdo pois existem alguns aspectos textuais ― mínimos ― que são um tanto quanto evidentes, e o crítico que não os detecta ou os contradiz pode estar incorrendo num erro. Sei que pareço estar girando em círculos, e que, tendo em vista que o grande desafio da crítica está na literatura contemporânea ― pois é aí que ela depende muito mais de seu funcionamento originário do que, por exemplo, num juízo crítico sobre um autor de outra época ―, fica difícil dizer o que é evidente e o que não é. Se por um lado não nego totalmente a validade desse caminho ― pois dizer que se trata de uma definição difícil certamente nega uma definição totalizante da coisa, mas não nega uma definição parcial que, ora essa, pode muito bem servir ou ser posta de maneira séria em cima da mesa ―; se por um lado não o nego, no mínimo quero demonstrar pra vocês o quanto ele é complicado. A textualidade frequentemente apontada de alguns poemas, por exemplo, é indissociável da recepção crítica que esse texto foi tendo ao longo dos anos. É como se as leituras se aderissem a esse texto e, de certa maneira, fossem criando aqui e ali pontos evidentes ― mas evidentes muito mais por terem sido reiterados várias vezes do que por serem de fato evidentes. Seria o caso, por exemplo, de falarmos no desnível sentimental operado entre as três partes dA Lira dos Vinte Anos. Hoje parece evidente que a segunda parte é mais soturna ― e o próprio Álvares abre tal parte nos dizendo. Mas até que ponto esse tom soturno pode ser dissociado da recepção crítica que frequentemente atesta tal característica? Afinal de contas, sabemos que nem sempre o que um autor diz é confiável, e que o objetivo de uma leitura não é um jogo de esconde-esconde...
Podemos também afirmar que um crítico erra quando sua crítica é incoerente. O enfoque, portanto, passa a ser lançado para a estrutura do argumento ― sua ordenação. Tentar analisar, por exemplo, de que ponto o crítico parte, se ele consegue demonstrar isso pro leitor, se ele não fica excessivamente em generalidades e por aí vai. Um dos erros mais comuns é o de se fazer crítica no sentido de comentar o poema como ele deve ser. "Fulano de tal diz que poesia é tal, Sicrano estudou que isso e isso e isso, e, portanto (notem o portanto!), a obra falha (...)".
Não, não. O crítico encara a realidade dos fatos. Por bem ou por mal o texto é aquele. Não cabe ao crítico dizer como um texto deve ser. Ele pode ― na prática, não tem outra forma a não ser essa ― comparar o texto que encara com outros textos, antigos ou contemporâneos, às vezes até do mesmo autor. Precisa, em suma, de parâmetros. Não digo necessariamente que o crítico não possa por vezes ostentar um tom normativo aqui ou ali ― a escolha dos parâmetros pode ser normativa, por exemplo. O problema da ideia da crítica que se atém ao que o poema deve ser e não ao que ele é está no fato de que esse primeiro tipo de crítica, a crítica do tipo deve-ser-assim, parte de premissas, citações, argumentos de autoridade e toda uma plêiade de instrumentos que é usada por si só, de maneira pretensamente auto-demonstrativa. A falha estrutural do argumento está aí ― pois o crítico parte do princípio de estar incorrendo num silogismo, ou que a premissa apontada do tipo deve-ser-assim é compreendida de pronto pelo leitor, o que simplesmente não ocorre. São lacunas textuais que advêm de uma interpretação provavelmente inadequada de uma obra, muitas vezes querendo filiá-la a uma linha de força a qual ela provavelmente não pertence ― ou que o crítico não consegue de forma satisfatória argumentar que pertença.
É-se comumente dito que um bom poeta se caracteriza por conseguir se manter de pé ao lado de qualquer outro poeta de qualquer outro tempo, mas este é um caminho extremamente perigoso, valendo-se no geral de uma descontextualização exacerbada ― aquela certeza de que grandes obras transcendem seu tempo e seu espaço, que não é de forma alguma uma inverdade, é, mais corretamente, uma meia-verdade, esquecendo-se que, embora transcendam, não deixam nunca de trazer consigo as peculiaridades de seu tempo ― e é dever da crítica sempre apontá-las, visto que, de resto, já disse que o instrumento maior da crítica é a imersão profunda. Assim, a ideia de que um bom poeta se comunica com qualquer outro não é totalmente correta. Não podemos cair nas corruptelas de criar uma espécie de régua fixa de qualidade literária, pois as propostas de determinados textos e determinados autores às vezes só são comparáveis num nível impalpável de qualidade. Seria o caso de, por exemplo, compararmos um poeta de filiação filosófica com um poeta performático fortemente embasado no erotismo. Chega uma hora em que a comparação abstrata, no geral recorrendo a metáforas de céu da poesia ou do cânone como congregação de gênios, é mais do que insuficiente ― não procede. Parece revelar que o crítico está fazendo as vezes de juiz literário e não de intérprete. A mesma corruptela argumentativa que faz com que, por exemplo, o crítico se valha do cacoete nefasto de chamar uma grande escritora de fulano-de-tal-de-saia. É preciso que o crítico ponha o poeta em seu devido lugar, em sua, digamos assim, devida linha de força. A essa altura do campeonato já deveria ser evidente que as fontes da qualidade literária são variadas, e que, de certa maneira, grandes obras sempre desafiarão parâmetros críticos. Crítica é crise, já dissemos lá atrás. A noção de um rol de nomes e de um embate acalorado de titãs pode servir num primeiro instante ― estímulo? ―; mas, dada a série de ressalvas e a penúria do argumento assim por si só, este não me parece nem de longe um bom caminho a ser seguido.
A inconsistência é um problema realmente grave. Pode também assolar parâmetros críticos com enfoque não necessariamente valorativo. Um enfoque quantitativo ou comparativo, por exemplo ― à guisa de se comparar a obra de um poeta estreante com a de um poeta morto que, portanto, já se encontra em estado-de-antologia, ou seja, teve tempo de construir uma Obra ― daí a ideia da antologia, que pressupõe uma seleção já feita e uma atividade crítica já realizada. É claro que o estreante fica prejudicado. Os paralelos históricos são inevitáveis no exercício crítico, tanto no sentido de que permitem uma análise mais acurada, quanto no sentido de que enriquecem a percepção do próprio crítico. Mas é preciso que sejam feitos em suas devidas proporções. O problema é parecido com o da ideia do escol de nomes que falei no parágrafo passado. Aponta-se um nome de alta patente e, de certa maneira, chega-se até a anular as contradições e desníveis da obra desse artista em prol de uma canonização apaziguante e inconsequente ― uma canonização a mais das vezes mentirosa, talvez fiada na ilusão de que o objetivo de todo artista é um dia estar em paz e não temer mais o bico dos abutres da crítica. Quando, pelo contrário, se a obra é um emaranhado de forças dificilmente estáveis ou harmônicas, então é muito mais correto que se compare de maneira produtiva ― isto é, o pôr-se lado a lado num sentido dinâmico e intercomunicativo, algo que pode parecer a princípio parcial ― colocarmos, sei lá, a obra de estreia com o terceiro livro do poeta passado ― e de fato pode ser ―, mas que, se conduzido com a seriedade e consciência necessárias, são a meu ver uma mostra da lucidez crítica. O mesmo digo a respeito de se comparar um espaço de, suponhamos, dez anos de produção contemporânea com toda a produção de um século. A falha procedimental é clara. E a raiz do erro, a mesma: a redução de um intrincado de forças a uma calmaria que só se sustenta no esvaziamento panorâmico.
Outros exemplos de inconsistências críticas seriam o de uma análise social que, em determinado momento, se valha de premissas insustentáveis ― a ideia, sei lá, de que o pertencimento de classe será refletido de forma tácita e enviesada na obra do artista. Ou uma análise psicanalítica que faça o pulo do gato e fale de um recalque dentro da psiquê do artista que não necessariamente foi tão bem evidenciada. Claro que isso do ser bem evidenciado, pra variar, é muito complexo ― a esse estágio do meu texto já deu pra perceber que essa tal de complexidade é igual erva daninha.
Mas note que não podemos também reduzir tudo à ideia da demonstração lógica. Para todos os efeitos, falando em termos absolutos a ideia de se demonstrar a qualidade de um poema acaba se tornando mesmo aquela cenoura na frente do burro que Frye dizia. O espaço para debate é inerente à noção de demonstrar ― demonstrar entendido aqui não como prova irrefutável, mas apenas como esforço argumentativo, desnudamento de pilares ―, e de tal modo que, repito, crítica é crise. Ela deve conviver com essas lacunas. Numa perspectiva prática, por exemplo, há a questão do espaço. Nem sempre o crítico possui o terreno adequado para que possa, mesmo supondo que ele realmente seja bom na coisa, discorrer com mais tardar sobre o que está apontando. Quem disse que o crítico não é um contorcionista? A convivência do leitor com o crítico, um certo tom de familiaridade e uma continuidade no decorrer de seu trabalho, se hoje parecem coisas alienígenas, em tempos de crítica impressionista, digamos assim, ou de uma crítica que o leitor poderia acompanhar e estar mais perto do crítico, era algo do qual se podia contar ― mais ou menos como um crítico que já é quase que nosso familiar (de tanto que estudamos e convivemos com seus conceitos), ainda que não exponha detalhadamente alguns conceitos utilizados ou não vá até o fim da rua, pode se fiar que o leitor que o acompanha entenderá do que ele está dizendo ou, no mínimo, estará apto a ver as coisas da perspectiva que o crítico apontou.
E digo isso arvorado em boas críticas que leio e que li: é muito difícil que o crítico em determinado instante não confie que o texto dirá por si só. Que ele, ao invés de se esforçar em destilar, escrever no quadro, esquematizar e tal e coisa, ponha-se ao lado do leitor e peça: "agora olhe pra lá, junto comigo". Por mais que ele fale, é como se não desse pra deixar tão evidente ― é preciso que ele confie que o leitor perceba a mesma coisa que ele, crítico. Naturalmente uma lacuna ― naturalmente que indesejável. Mas não obrigatoriamente causa de insucesso. Tenho a convicção de que, na atividade crítica, existe o espaço para a hipótese, para a demonstração e, por quê não?, para que o leitor consiga ler com os olhos que o crítico incute em sua cara. Entendo que isto não pode servir de desculpa ou passe livre para alçapões. É um passo delicado, muitas vezes usado no sentido da manipulação. Todavia, é um passo. Depende muito do que o crítico disse até então ― do até que ponto aquela crítica ou trajetória crítica é capaz de fazer com que o leitor adote ou entenda de uma maneira sensível o ponto de vista do crítico. É um envolvimento que a meu ver acaba acontecendo, não tem jeito. E, se bem feito, se posto sobre uma estrutura argumentativa sólida e preferencialmente não exclusivista (isto é, o crítico se esforçando sempre em não depender apenas daquele recurso), que mal poderia haver? Tal recurso pode ser enxergado como o resultado de uma posição específica de um enorme jogo de espelhos que dará um enfoque supostamente automático a um ponto do quadro. Uma coisa é que, sem sustentação prévia ― naquele texto ou em seu percurso ―, o crítico julgue que apenas pondo o leitor frente àquela complexa estrutura, pra que o leitor sozinho calibre e encontre o ponto, é o que basta, e outra totalmente diferente é que ele leve o leitor e, de preferência na frente do leitor, vá calibrando os espelhos pra que o leitor consiga observar o ponto desejado.
De todos os problemas críticos ― digamos que os que apontei até agora são problemas técnicos, relativos à escolha dos instrumentos ou à forma de manejá-los ―, aquele que julgo mais grave talvez não esteja nem tanto no âmbito da crítica. Peguem de novo nas mãos de suas avós. Note que tudo o que apontei, de maneira geral, pode ser "desculpável" a partir do próprio funcionamento da atividade crítica ― coloquemos que a crítica no sentido kantiano do termo, enquanto discussão de juízos estéticos. Coloquemos a dificuldade de se analisar a estrutura de um argumento, algo que muitas vezes recai na desconsideração do argumento em si. Creio que o problema seja um pouco mais básico ― portanto mais preocupante.
Para ir direto ao assunto, o problema maior da crítica, encarada aqui em termos práticos, totalmente práticos, é o de quando ela é desrespeitosa. Havendo uma crítica ruim ― vamos colocar ruim em muitos sentidos, e aqui eu peço ao leitor que ou atropele algumas considerações passadas ou que simplesmente ponha a imaginação pra funcionar ―, é mais do que evidente que isso não basta pra que a carreira do crítico como um todo seja jogada água abaixo. Dito assim parece, repito, evidente, mas ― pasme! ― não é o que ocorre. Não vou chegar aos exageros de dizer que um grupinho de poetas faz bullying ou que o crítico é saco de pancada mesmo ― mas o fato é que, o crítico errando, é comum que toda uma trajetória seja supostamente jogada no lixo. O que é um absurdo ― não um absurdo crítico, literário, hermenêutico, epistemológico ou o diabo a quatro. Um absurdo puro e simples.
Se voltarmos à estaca zero daquela afirmação certa maneira simplista ― a crítica erra quando fala mal de um livro bom ―, podemos pensar que, se crítica é debate ― embora o debate tenha se reduzido a um solipsismo generalizado, isto é, um monte de ilhazinhas que parecem rebater a crítica com um simples e imperativo "não gostei!" ― o mais das vezes ancorado em ironias, quando muito provavelmente a ironia está arruinando nossa cultura (David Foster Wallace dixit) ―; se crítica é debate, então um bom crítico que esteja arvorado nas lições mestras e maiores de suas avós poderá reconhecer que errou. Problema algum. Do mesmo modo que ele poderá continuar insistindo em sua leitura. Mais uma vez, problema algum, exceto quando sua defesa mostrar uma persistência que revele um descaso para com os argumentos apresentados ou uma agressividade pura e simples.
No primeiro caso, gostaria de lembrá-los que o conhecimento não é algo estático ― algo adquirido magicamente a partir do mero contato com os livros, o que, na mente de alguns, é traduzido em versões derivadas do simples ter um livro ― ou uma biblioteca abarrotada ― ou, em metamorfoses um pouco maus sutis, no atribuir valor por si só a uma lista de leituras do ano com três dígitos, ou então na concepção de clássicos como fontes certas de conhecimento ―; além disso, devo lembrar que a leitura não é uma atividade simples. Argumentar não é simples. Você precisa imergir no raciocínio da outra pessoa, precisa, por alguns instantes, suspender concepções suas para que entenda de maneira mais ampla e ouso dizer espiritual possível o ponto de vista defendido pelo outro. Pode ser que esse outro, por exemplo, tenha se expressado mal ou não tenha levado seu argumento às últimas consequências. Alguém provavelmente desacostumado com boas discussões vai achar que isso é uma falha na ideia da outra pessoa a alardeará, com uma dancinha da vitória no final ― pois discussão hoje em dia parece que virou guerra, quando mais sensato é seguir Otelo em I, 4: "Keep up your bright swords for the dew will rust them" ―, a idiotice alheia. Pra quê? Supondo que uma discussão seja como um jogo de xadrez ― acho a comparação meio besta pois discutir não devia ser vencer, mas compartilhar ―, o máximo que você ganharia com isso seria um movimento perdido, pois logo depois a pessoa deixará mais claro o que disse e vocês voltarão à estaca zero. Isto é: você não contra-argumentou; você se refestelou em cima de uma falha suprimível, caso houvesse mergulhado no argumento do outro. Claro que aqui existem limites, e não estou apregoando que usemos uma bola de cristal em toda e qualquer discussão nem que passemos a querer analisar o que o outro quis dizer em cima do que ele de fato disse ― antes, proponho que se entenda na argumentação e na leitura um salto rumo à alteridade e que não se prenda aos limites da textualidade, mas que, a partir da textualidade, se possa ter uma compreensão mais completa possível da experiência do outro, visto que, como disse, discutir pra mim é compartilhar.
Agora já quanto ao caso da agressividade, aí complica mais ainda. Pasme novamente, mas existem textos críticos que chegam ao absurdo de serem racistas, misóginos, homofóbicos... A questão transcende o simples imergir dentro de uma obra. É muito mais podre. Aquele sentido corrente da palavra "crítica" enquanto adjetivo ― "fulano de tal é crítico" ― ou seja, questiona e subverte ― vai por água abaixo quando a crítica reproduz formas de opressão as mais sujas possíveis. Agora percebem porque a questão é infelizmente muito mais nefasta do que falarmos apenas da relatividade do juízo de gosto?
Dentro do tom agressivo o discurso irônico é usado com frequência ― e por si só, problema algum ― mas, pra nos demorarmos um pouco mais no David Foster Wallace de E Unibus Pluram (1993), o problema é que a ironia cria uma zona de coisas não ditas que, no estágio em que se encontra da nossa sociedade, virou uma espécie de cinismo compartilhado. Ela solapa coisas que deveriam ser ditas mas que não são. É quando ― pra usar um exemplo que toca bem na medula, goste você ou não goste ― ironizar a Direita ou a Esquerda políticas basta. Pra quê explicar, desenvolver, argumentar? Muito mais fácil escarnecer, ora essa.
Não preciso nem dizer que isso é de uma brutalidade terrível. Vou parecer um ursinho carinhoso, mas é preciso que espalhemos gentileza por onde passarmos e que deixemos explícita nossa paixão sobre aquilo que falamos. Não estamos em guerra ― ou estamos? ― ou agindo dessa forma mudaremos algo? ― Compreendo que a crítica possa ver determinada situação ― por exemplo a atual ― como preocupante. Mas daí a ostentar uma rabugice e vestir a túnica apocalíptica me parece outros quinhentos. É como se o crítico não acreditasse mais na própria atividade. Em sua capacidade de mudar uma ordem de coisas. A crítica estando desprestigiada ― e sim, ela está ―, não converta você tais problemas, digamos assim, internos, num tom agressivo para com aquilo que se está criticando. Novamente, uma lei da vovó. Faça sempre o melhor trabalho possível. Não é uma questão de se tornar um pau mandado editorial, uma espécie de amendobobo cioso de perder seu espaço e seu ganha pão.
É preciso que se mantenha a sinceridade como estrela-guia e a paixão como fanal. Se a resenha sair ruim e se o autor ou os leitores, os organizadores, tradutores, editores ou o escambau se ofenderem ― e, vamos supor, cheguem até mesmo a escreverem umas coisas bem mal-educadas ao crítico ― que esse crítico se lembre novamente das suas avós e não se rebaixe. Ele estará errando se fizer isso. Ele baniu de seu vocabulário palavrinhas como "imbecil", "idiota", "babaquice", essas coisas. Vovó ficaria triste se o visse falando isso. Pois o que o Crítico Jr. disse foi sincero? Foi de coração? ― Tendo sido, o que há pra temer? Mantenha a classe. Responda de forma serena, desarme a outra pessoa não com outro tapa, defendendo uma espécie de honra inexistente. Vença por sua delicadeza. O lance é ser como aquele sábio que está no mundo só pelo aprendizado ou como aquele espadachim que, ao invés de pensar no fio da espada ― a dele ou a do oponente ―, pensa no chicote dos arbustos da mata fechada.
Repito: é preciso que se mantenha a sinceridade como estrela-guia e a paixão como fanal. Isso não quer dizer que vão botar um cabresto em você. Não existe nada mais glorioso na crítica que a liberdade e a independência. Preze por isso. Se o poeta tiver bom coração, pode ter certeza que ele vai prezar também por isso ― por sua dedicação ― crítica é sempre dedicação. Caso contrário, saiba a hora de sair de cena. Deixe ele lá falando sozinho. Boa sorte na tua estrada, parceiro. Gentileza sempre. Ter carinho não quer dizer abaixar a cabeça e abrir mão. Com a sinceridade como estrela-guia e a paixão como fanal, meu velho, quem disse que o carinho não pode ser um bloco de mármore?
Pois veja que o que estou pedindo não é que cheguem a paragens onde ninguém antes chegou. Que finquem uma bandeira. Que construam um nome. Que façam história. Que varram o quintal. Que se sentem no final da vida e regojizem do bom trabalho.
Estou pedindo que incendeiem os céus com a paixão que vocês sentem.