Os contemporâneos publicados no "escamandro" em 2014.
(Foto de Vivian Maier. Créditos.)
Não bastasse a proposta, tão problemática que faço questão de que eu mesmo explique pra vocês o porquê dela ser tão problemática, ligarei o reverse. Trocando em miúdos, pretendo dar prosseguimento à minha tentativa de imergir na anatomia da poesia contemporânea ― "What's inside its structure that makes it move?", pergunta John Jeremiah Sullivan num ensaio sobre Michael Jackson para a GQ, set./2009, aqui, sobre a relação do rei do pop com a música, no que eu adicionaria entender também aonde e por quê ela se move ― e com isso quero dizer que meu objetivo é o mesmo ― e se faço com que Michael apareça é pra aproveitar a deixa e dizer que o funcionamento deste texto será como um moon walk ― meus passos para frente são os passos que me levam para trás, o que você pode ler tanto quanto um embuste de minha parte quanto como um esforço de avançar rumo às origens ― e é por isso que digo que ligarei o reverse.
Embora passe por tal estrada ― o que é uma consequência pura e simplesmente prática ― garanto a vocês que entender o funcionamento interno da revista não encabeça minha lista de interesses. Ela tem seus critérios de seleção que, claro, influenciaram qualquer publicação da revista, mas deslindar quais seriam ― repito: isso não me norteia, conquanto eu tenha sido previamente cuidadoso e já pensado nisto. E repito também: o que pretendo é um pouco mais amplo. Estou usando verbos no infinitivo como se na verdade não soubesse com o que vou topar, e meu texto fosse tentativa de descoberta às cegas ― mas, na prática, acompanho o escamandro há mais tempo e li literalmente todas as postagens publicadas em 2014. Ou seja: eu já sei que vai valer a pena fazer o que estou fazendo ― sei que estarei mais perto da anatomia da poesia contemporânea ― ou pelo menos daquela que julgo que pode contribuir substancialmente a nós enquanto leitores e enquanto seres humanos, o que envolve obrigatoriamente uma realização estética criativa. Portanto, você deverá ler esse texto como uma espécie de esforço em explicar o porquê. Este ato deixará implícito ― ou explícito, quem sabe ― que o conjunto dos poemas publicados é relevante.
Mas relevante não no sentido de só existirem bons poemas. Relevante pois, mesmo falando dos medianos e dos ruins, algo restará na canga e com esse algo poderemos, pra atracarmos de novo em nosso porto seguro, estar mais próximos da anatomia da poesia contemporânea. Isto é: mesmo no caso de estarmos tratando de um poema ruim ou de um poeta ruim ― na verdade, meu juízo se encaminhará no primeiro sentido, pois não posso julgar um poeta como ruim com um espaço amostral tão pequeno ―, o que pude observar é que mesmo nesses casos ainda estamos falando de algo que serve pro propósito anatômico geral. Comentar o poema e tentar argumentar porque o acho ruim não pra que o descarte e descarte tudo o que ele porventura possa trazer ― antes, pra dizer "olhem, acho ruim por isso e isso, mas, antes de se levantarem, olhem só ele nos remetendo a aquilo e aquiloutro."
Tomo literalmente de bandeja o que eles me entregam ― e mais uma vez volta-se àquilo de entender os critérios de seleção ― o que, como disse, eu já o fizera ― com a diferença de que não me preocupo em explicar, ao longo do texto, quais seriam eles, pois a realização estética do conjunto, no geral, que é o que mais interessa, a meu ver sobrepuja as possíveis respostas a essas questões preliminares.
De todo modo, como disse há pouco, nas mãos o que temos é um espaço amostral pequeno. Pois digamos que esse texto é fruto de um esforço por parte de um leitor com renda pessoal modesta. Entende? Não tenho grana pra comprar livros de poesia contemporânea ― na verdade, livros de modo geral, sejam literários ou jurídicos. A coisa tem andado preta. Dia desses fui colocar meu celular no bolso e, uns metros depois, olho pra trás e ali estava na calçada meu pequenino com as vísceras abertas. Sendo assim, o que a revista listou será o que comentarei ― de modo que este meu texto é uma espécie de exercício de leitura cerrada pois não tem outro jeito. Um manancial de possíveis equívocos. Tanto que, se meu texto pode ser visto também como um esforço crítico, tentarei no máximo vestir a carapuça e entender que o que estou avaliando são aqueles textos ali, que foram expostos, e que nada, absolutamente nada impede que os autores do escamandro tenham feito uma seleção prejudicial aos poetas, deixando de selecionar os poemas realmente bons ― ou que o próprio autor tenha feito esse serviço, mandando pro escamandro e o escamandro postando.
Vamos ver se o comentário em si consegue ser mais explicativo. Pois nessas horas, vou falar francamente contigo, acho que muito melhor que explicar aonde você quer chegar ou qual o caminho você pretende tomar, é simplesmente ir.
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Deus Hélio saiu pretendendo dar seu rolê habitual, mas deve ter percebido que um dos bois estava, suponhamos, doente, e teve que voltar. Esta me parece uma boa explicação pro clima de hoje, quinta-feira 11. Sabe quando você se contorce todo pra não pisar naqueles rastros de lama que mais parecem borra de café numa xícara? Aí você olha pro céu e imagina que deve voltar a chover daqui a pouco e estiar às 3 da tarde ― só que nada disso acontece e aquele tom meio enevoado continua escondendo a origem das gotas. Tá sendo por aí. E de minha parte, OK. Um dia muito bom para fechar a porteira. Na terça, creio que com tempo parecido (aqui em Goiás as frentes chuvosas pelo jeito devem ser caramujos gigantes que passam e lambuzam tudo), líamos 5 poemas de Leandro Rafael Perez.
Leandro Rafael Perez (1987) é de São Paulo e mora em São Paulo. Não vou me estender muito no comentário biográfico de qualquer um dos poetas. turnê a meio mastro é seu segundo livro de poemas, publicado pela Patuá em 2014. Título interessante. Meio mastro é quando você põe a bandeira literalmente a meio mastro, algo usado em protestos ou em situação de luto. Uma turnê ― todo mundo sabe o que é uma turnê. Então como seria uma turnê a meio mastro? Uma turnê com uma bandeira colocada a meio mastro: algo como espalhar mundo afora esse estado de protesto e de luto? É uma leitura interessante dos últimos tempos, não acha? Pegue, sei lá, 2012 pra cá, e veja o barril de pólvora que o mundo se tornou. Até nosso Brasil, ora essa. Mas pode ser também que a própria turnê seja a meio mastro, e não que a turnê propriamente espalhe esse meio mastro. A turnê ― caso você ainda esteja pensando o que é uma turnê ― é uma viagem internacional artística. Seria portanto uma espécie de jornada artística internacional em estado de protesto e de luto. Deixa de ser um estado geopolítico para ser um estado de arte.
De um modo ou de outro, um livro com tendências políticas. Difícil dizer até que ponto, visto que quando você lê os poemas você parece ver pouco disso. Na verdade, o fato de alguns poemas estarem não-titulados e outros inclusive terem sido retirados de séries maiores (olhe pro "IV" e pro "6") com certeza dificulta a análise, pois, como não temos acesso aos outros, ficamos com a noção de estarmos querendo dizer quem foi o homem a partir do braço achado nos destroços.
Além disso, são poemas com um certo sabor... um certo tempero... pós-moderno. Eita palavrinha mais vazia! Tentarei ser mais claro. Pós-moderno como aquilo que você lê e dá um aperto no coração, pois parece não ter entendido. Não da forma como te capacitam para entender naquelas aulas capengas do Ensino Médio, em que você rabisca o Zeitgeist e parece que só. Você até consegue delinear ou sentir também o que o poeta sente, mas fica tudo muito superficial, fica numa zona meio misteriosa, pois o poeta faz associações esquisitas que te escapam ao entendimento ― é como entrar numa sala escura, ligarem a luz e começarem a te bombardear com balões de água. Às vezes ele até fala de coisas que você também conhece, consome e tem em casa, ou até mesmo acabou de passar na testa, mas de repente tudo se turva e é como se o poeta resolvesse se exibir ― assim: ele faz essas comparações ou inclusão de expressões de maneira muito dinâmica, indo de um extremo ao outro num salto e como que piscando pra você e te dizendo "me acompanhe, se for capaz" ― vamos ser ainda mais diretos ― é como se ele tivesse fumado um tijolo de maconha pra escrever aquela desgraça.
Respire.
"casto aroma / de roupagem". Bem claro o que isso quer dizer. Dá até pra sentir o cheirinho. Aquela coisa meio sabão em pó e por aí vai. Observe, dando uma olhada geral no(s) poema(s), que todos são escritos de dois em dois versos, e com versos no geral curtos. Isso dá um certo dinamismo popular e mais leve ao poema. Dinamismo pois a leitura fica mais ágil, e você fica menos tempo numa só linha ― e popular pois a base da poesia popular está nos versos mais curtos, sempre mais propícios às sonoridades que ficam na memória. Daí dizer: "narinas desenhadas / para as curvas da nudez". Qual é, ainda tá fácil. Respire de novo, se for preciso. Uma narina desenhada para a curva da nudez é uma imagem sensual, isso você há de convir. Pense numa pessoa que você gosta. Mentalize essa pessoa. Aí pense no cheiro da roupa dessa pessoa. Aí pense no corpo nu dessa pessoa. Pois primeiro o poeta fala da roupa e depois do corpo nu. Uma coisa distante da outra. Depois diz: "um mindinho contra a coxa / todos os encaixes possíveis". Me recuso a explicar pra você o que isso quer dizer. Seguindo: "para um par nuca-pescoço, / anzol no meio da ração."
Vou tentar ser breve pois um andar mais lento para esse tipo de poema é meio perigoso: esse, e, xis, o + animal. Captou? A metáfora do anzol no meio da ração é meio complicada mesmo, pois o que diabos um anzol tá fazendo dentro da ração? Ração ― cachorro ― comida. Anzol ― captura ― alçamento. Um anzol no meio da ração é uma metáfora pro sobressalto. O poema todo se encaminha, cria esse clima todo sensual pra te arrebatar com essa metáfora. As preliminares e tudo mais e de repente ― créu.
O que deu pra notar, além dos versos em pares, que vão dando um andamento todo compassado ao poema ― e aqui eu gostaria de abrir um parêntesis um pouco maior pois observe que o fato de serem predominantemente dísticos é uma característica até bem explorada pelo autor, pois, se fossem apenas estrofes com um verso, então é provável que a leitura seria pausada demais, mas, se fossem já com três, aí ganharia toda uma carga histórica quem sabe indesejável (pense no haicai e na terça rima só pra começo de conversa) ―; além desses versos em pares, observe que todos começam com minúscula. A maior parte dos poemas começará assim. É como se o poeta observasse todas as palavras possíveis de maneira igual. Além do fato de que, com todos os versos começando em minúscula, o autor pode saltitar nos elísios da liberdade sintática, ou seja, ele pode terminar um verso ou uma estrofe e começar a outra sem necessariamente um conectivo sintático entre ambas ― e sem nenhum peso na consciência. Sem um liame. Bloquinhos à solta no espaço ― a única coisa que os une é o sentido do poema e o matiz sentimental.
No segundo poema, tal ruptura se dá dentro do próprio verso. "uma perspectiva cavalo". Vem cá: esse termo "cavalo" está um pouco deslocado aí, tá não? Como se de repente o leitor tivesse que focar na perspectiva do cavalo, ou tomar a perspectiva que permita focar no cavalo. E tem que ser aquela: daí o "uma". Só que aqui aquelas expressões-, digamos assim, -desafio, aparecem mais cedo. Como é uma próstata em manutenção? Parece dar a entender uma abstinência sexual ou no mínimo um problema grave. Na próxima estrofe ele fala de "anos de antagonia à realidade". O clima de abstinência é intensificado ainda mais, só que esse "20 a precisão" me pegou. 20 a precisão de quê? A precisão da perspectiva apontada no primeiro verso? Isso seria bom ou seria ruim? Ou estamos falando de precisão no sentido de carência?
Vamos transformar a dúvida em júbilo: não é interessante como o autor, a partir desse verto, une uma coisa e outra? Ele consegue unir a ideia de focarmos numa coisa qualquer à ideia da abstinência, da falta. E segue dizendo que esse 20 a precisão, ou quem sabe todos os 4 versos juntos, nunca lhe pareceu muita coisa. Só que ele já nos traz a imagem do "carteado dos músculos". Não sei com você, mas isso me remete a uma espécie de cassino ou que o valha ― tente trazer à tona o som das moedas cintilando e tilintando. Num clima de faltas, de repente uma imagem de apostas ― apostas musculares ― e a ideia do músculo, do corpo, que se conecta ao cavalo e à próstata, dão uma concreção ao poema. E fecha dizendo que "― Agora sou pidão." Começar com um travessão e em maiúscula opera um rompimento com o resto.
Confesso que esse poema me derrubou. Não sei o que pensar. Se querem saber, me pareceu um pouco bobo. O rompimento final do verso é um rompimento, e, como todo rompimento, inesperado etc e tal. Mas é de uma ironia fraca. Não é o tipo de ironia que ressignifica muito o que foi dito ― você lê, percebe a guinada que o poema deu, e, nesse clima de abstinência, até estranha um pouco o fato do eu lírico se tornar um pidão, visto que pra ser pidão você tem que ser um tanto quanto ativo, insistente. Pedir e encher o saco exige força, não se engane. Só que parece ficar apenas nisso. É possível que o poema ganhe mais se visto ao lado de outros ― mas assim, sozinho, está muito ruim.
O próximo também possui pouco a oferecer ― e a tese de que os poemas de Leandro ganham mais quando colocados em conjunto me parece que vai ganhando corpo (quero crer, pelo menos). O que há pra se notar é a pontuação toda certinha ― maiúscula, vírgulas etc ― o cavalgamento entre o primeiro e o segundo verso, intensificando a tristeza atribuída aos homens (na verdade, há um cavalgamento na mesma posição na terceira estrofe, o que reforça o tom paralelístico e de dependência do poema), e notar que o terceiro verso está separado dos demais e, por conseguinte, indica que a merda que o eu lírico está fazendo é merda mesmo, ou que ela realmente o apartou dos outros (e o fato dele romper com o paralelismo acentua ainda mais). A expressão cantar a capella é cantar algo sem acompanhamento de instrumentos.
Se digo que o poema é fraco, digo que não fossem, é claro, os detalhes formais, e ele naufragaria sem pompa alguma. O que está nos dizendo é uma mensagem irônica ― mas o problema é que se trata de uma ironia em que as arestas saem de um todo mal trabalhado, ou seja, temos o velho contraponto para com algo que não foi tão bem construído assim, fazendo com que o subentendido irônico, o lance de se calar na hora certa e deixar que as caraminholas brotem na cabeça do leitor, subentenda pouco porque foi fornecido pouco ― a ironia de que, quando o eu lírico parar de fazer merda (e se subentende que quem diz o que é merda são os outros), quando ele for mais dono de si, ele canta uma capella pros outros. O que os outros querem é que ele dependa deles. E o eu lírico quer que seja assim: tanto que abre dizendo "Me cerco". Assim, não digo que é um poema fraco pois algo nele está necessariamente fraco ― como vimos, de maneira geral ele está até bem construído. Mas é uma boa construção para uma aparelhagem modesta, e não estou implicando com isso grandiosidade ou extensão de instrumentos. É fraco pois oferece pouco ― pois dele pouco podemos extrair.
O terceiro poema me parece melhor. Picotar papéis observando objetos de cobre pode significar muita coisa. Cobre pesa. As moedas são feitas de cobre. A ideia geral do poema parece ser de uma espécie de dissenso. Fazer algo, estar nalgum lugar ― enfim ― um algo ― que é colocado logo depois em desacordo com outra coisa. Papéis e objetos de cobre ― quanta diferença, não é mesmo? O clima é meio absurdo. Como assim ler eau de toilette? Ler água de banho? Vejam que o poeta não diz ler o rótulo. Podemos pressupor isso pra tentar fazer com que a coisa tenha sentido, mas o negócio é mais doido. Pois a água de banho está numa embalagem escura. Então o cara tá mesmo lendo a água de banho. E água de banho não costuma ser escura. Lê-la numa embalagem escura é, tomando os significados arquetípicos da cor escura e de qualquer outra cor não-escura, ler a pureza (pois a água de banho é pra nos deixar mais limpinhos) num recipiente impuro. (Se você quiser realmente entender os poemas de Leandro, ou os poemas com esse saborzinho "pós-moderno" de maneira geral, muitas vezes é bom que atole os pés na metonímia.)
A imagem do calendário Ibovespa de 2009 é engraçada ― por que ela confunde o eu lírico? Pense melhor e você verá que um calendário desses confunde todo mundo. Calendário de bolsa de valores... Esse livro que estamos falando é de 2014 ― o anterior é de 2011 ― logo, podemos dizer que é um calendário antigo. Qual o sentido de ler um calendário de uma bolsa de valores... antigo? Só se você for um historiador ou coisa do tipo. O cheiro de dentista que vem de longe ― não dá pra explicar; tente sentir o que esse cheiro representa num poema tão desconexo ― e de modo que, mesmo assim, Cacaso sorria para o poeta numa edição colorida (acho difícil uma edição de Cacaso num consultório dentista, então é uma imagem enxertada ou uma lembrança). Leandro se filiar a Cacaso explica algumas coisas, visto que a obra do poeta mineiro apresentava toda uma irreverência apta a escarnecer de pilares. Qualquer pilar. Era um verdadeiro fanfarrão. Talvez a imagem com que Leandro feche seu poema, de si mesmo com uma caneta na orelha e uma cartola na mão. Um poeta preparado pra anotar qualquer coisa ― quando ela vier ― e com ares de mágico. A união eu não vou dizer de contrários, mas de objetos fora de seu local de origem ou com alguma coisa errada ― o calendário talvez seja o melhor deles, nesse sentido ― isso não seria uma espécie de mágica? Mais ou menos a mágica que Cacaso realizava em seus versos? A mágica de dar ordem num mundo em que parece ter algo de errado, em que parece haver algo de mecânico ― digo isso pensando em especial no lance de ler a água de banho numa embalagem escura ― é o que mais se aproxima do que o turnê a meio-mastro tem a apontar.
Já o último poema apresentado traz a imagística do três. Três é um número que significa tanta coisa!... E contudo, não acho que o poema de Leandro se embeba de toda uma tradição assim. Não é, pelo menos do espaço amostral que esparramamos no chão, um poeta que vai a fundo nos significados arquetípicos das expressões ou das simbologias. Pode até estar olhando para uma simbologia da coisa toda, mas isso de longe. Se diz três vezes, está dizendo algo repetido ― mas numa quantidade que podemos observar ser realmente repetida, isto é, quando chega a três todos já sacam que a coisa tá se repetindo. Dos poemas que lemos, por exemplo, nenhum chegou a três versos por estrofe. Só que o poeta se refere a algo que esteve ali três vezes, embora raro ― e nos diz que foi ele que registrou esse algo "em três lindas fotografias // como a bandeira da França."
Um verso bom ― muito bom. Escrevo isso e já olho pra minha bola de cristal, tentando adivinhar onde esse poema 6 se encaixa: numa espécie de sequência política. Talvez falando de um levante, de um protesto. Pois como assim lindas fotografias como a bandeira da França? Que relação tem a bandeira da França com fotografias? Se você pensar na bandeira da França literalmente, não vai chegar a lugar algum. Vai ver as três listras e só. É preciso que se olhe para a bandeira como um símbolo do país ― e daí presumir o passado combativo e participativo que o país teve. O como ele içou a bandeira a meio mastro. Claro que poderíamos voltar ao lance de Leandro não imergir a fundo em simbologias ou arcabouços de arquétipos; e ele explora essa sua não imersão. Ele não quer que olhemos para eventos específicos da história do país (de um país), mas que observemos a coisa de longe e que nós mesmos façamos esse trabalho de não só imergir, como hastear nossas bandeiras a meio-mastro. Por isso que a questão não é falar de um evento que, raro e repetido três vezes, ficou só por isso mesmo ― é o que a quarta estrofe diz. Um país tornado em símbolo é um país acomodado, renegando seu passado vivo. Por isso que encontrar a quarta aparição ― ou sei lá o quê ― será tão icônico e provará que estão errados: pois não só quebrará a re-ocorrência do três, como romperá com a imagem de um passado reduzido a simbologias dependentes. Pois observem que, se no segundo verso o eu lírico diz que esse algo demora a se repetir, no primeiro verso da última estrofe ele começa com esse "quando" de forma enfática: quando eu achar. Ele vai achar. Não sabe quando, mas vai.
Este último, pra mim, o melhor poema dos cinco listados.
§
Casé Lontra Marques, 1985, Volta Redonda ontem, hoje Vitória. É um dos melhores poemas de 2014.
Não sei dizer pra você a razão de ser o sexto reinício. E o complicado é que o seis não me parece ser um número lá muito simbólico... Seis é o número de dias da criação. Seis é o número imediatamente depois da metade da perfeição. Quando você se encontra nel mezzo del cammin, dá um passo a mais e chegou no seis. Seja como for, sexto reinício é um bocado de chance. Você precisou de outras cinco?! Poxa vida, tá pior do que eu na prova de auto-escola...
A estrutura do poema simula o reinício. Versos longos seguidos de versos extremamente curtos. Como se fosse um tropeço que depois é seguido do trote normal. O fato da maior parte das estrofes possuir três versos talvez se ligue ao número seis do título, quem sabe. Todo ele é feito de apenas uma única frase ― e diga-se de passagem uma baita de uma frase, cheia de sinuosidades de todo tipo: dois pontos, ponto e vírgula, travessões, vírgulas, quebras de estrofe, espaçamentos... E não termina com ponto final. Isso é importante. Pois o poema começa com maiúscula, tudo certinho. Então o lance da ciclicidade não existe. O que temos é um poema que dá a impressão de que não acaba ― ou seja, de que ele pode continuar. E esse é o tema central do poema: a continuidade. Se ele fala em reinício, pressupomos que acabou e estamos começando de novo, mas o que o poeta nos diz é que a coisa era pra terminar, mas não terminou e estamos só dando prosseguimento. Este o tal reinício, independente dele ser o sexto ou sexagésimo.
Essa série de reinícios não deixa o eu lírico impune. Quando Casé fala de reinício, ele está falando de levantes. O tema político do protesto continua presente. A diferença é que o eu lírico vai tipo se incorporando ao meio. Reiniciando tantas vezes pressupõe com isso um certo desgaste ― e esse certo desgaste vai fazendo com que o eu lírico passe a se compôr daquilo que supostamente o derrubou. O primeiro verso, por exemplo. "Pelo tempo de possuir aquilo que renasceu". Julgo ser possível ler a expressão "pelo" no sentido de "em prol de" e no sentido de "mais ou menos por aí", "mais ou menos por essa época". Mas o que quero que se note é o pronome demonstrativo "aquilo", indicando algo ainda longe, que aos poucos vai se aproximando do eu lírico, o que pode ser visto nos versos 3 a 5: "que vemos na areia do vidro a vibrar / rente / às retinas (...)". A aliteração em R, em V e a expressão paranomásica "vidro-vibrar" ― tudo isso está muitíssimo bem colocado. A sonoridade do poema está espetacular. Os versos de tamanho menor, muitas vezes já aproveitando o cavalgamento, são trabalhados com toda uma preponderância sonora para que o ritmo da leitura se acelere e, com isso, o poeta possa levar o leitor, quem sabe, ao tombo. Como se Casé quisesse que nos reerguêssemos.
Nesse começo, o poeta vai acelerando a leitura e do âmago de um objeto vai retirando outro. Começa falando daquilo que renasceu, e aí tira disso a metáfora do vidro a vibrar rente às retinas, depois dá a entender que os cacos de vidro foram colhidos pelo espanto ― e isso tudo antes que alcancemos "o desperdício, aquilo que repartimos porque / ainda / questionamos o que percebemos" etc. As enumerações se seguem e é como se contemplássemos uma torrente de objetos florescendo à maneira de fractais. Mas observe a terceira estrofe:
porque ainda abrigamos, como parte do braço,
do fêmur, como parte do baço,
do silício,
do aço em nosso fígado,
O que disse da forma como o ambiente exterior se mescla à interioridade do poeta pode ser observada aí. E todavia, faço notar que a profusão de imagens é entrelaçada sonoramente pelo poema, criando um clima de dependências que nos faz igual baratas tontas no plano poemático. O poeta nos diz que abrigamos ― e quem abriga abriga algo ― no caso, abrigamos como parte de ― aí ele nos diz do braço, do fêmur, do baço, do silício, do aço em nosso fígado... Notem como de uma espécie de abertura sintática, ou seja, da complementação do verbo "abrigar", ele tira isso tudo. Ou melhor dizendo: essa série de coisas aparecem na nossa frente. Elas florescem. E não acaba por aí, pois, como disse, sonoramente há uma enorme bola de neve. A paranomásia "braço-baço" é a mais gritante, mas há também que se notar a correspondência sonora entre "silício-fígado", passando pelo S muito bem colocado de "aço" ― muito bem colocado pois rima com "braço" e "baço". Isso amarra as coisas. Faz com que não nos esqueçamos de olhar, de sentir o que já passou, ao invés de simplesmente avançarmos a esmo. O que, mais uma vez, a forma da estrofe ajuda, pois, como disse, com frequência o verso menor da estrofe depende sintaticamente do antecedente e do posterior.
Então, na sexta estrofe, com o ponto e vírgula, é como se o poema reiniciasse. Só que agora a marcha é um tanto quanto suicida ("com as espáduas / mais / próximas das chagas (...)"), pois dá a entender que estão atravessando a esmo ("a ausência // do frio / que nos infecciona") e estão indo direto no covil do inimigo, digamos assim: "silabicamente arremessados // a uma fala / que nos massacra". Melhor: estão indo para o abatedouro. E se desgastam, quem sabe cotidianamente, o que esse "silabicamente" dos versos que acabei de citar, numa ocasião em que são arremessados a uma fala que os massacra, pode demonstrar. Ou então, veja-se os versos:
(...) ao deslocar
a coluna
pela úlcera, duvidamos da materialidade
da
manhã,
A corrosão atingindo de maneira alternada e complementar o exterior e o interior pode ser visto muito bem aqui, pois é quando a coluna é deslocada que se duvida da materialidade da manhã. A manhã, nesse caso, pode ser lida como metáfora do recomeço ― a imagem clássica da aurora e blábláblá. Aqui noto a ideia da coluna, um sustentáculo, ser deslocada pela úlcera, essencialmente corrosiva. Certo que logo depois, na lógica das imagens que vão permitindo que outras surjam de suas vísceras, observamos a noite que faz das pessoas distantes e que é alavancada do marasmo. Uma coisa boa ― mas você deve se lembrar que essa oração está subordinada àquela lá no começo, sobre o ato de nós duvidarmos até mesmo disso.
Mas devo notar também que as causas da dúvida ou, de maneira geral, as causas que movimentam as esteiras do matadouro são incertas. O poema todo nos faz remeter a orações passadas, a explicações que foram dadas lá no início ― uma consequência, claro, do poema ser uma única e enorme frase ―, só que essas explicações essenciais não são dadas. Essa construção não digo necessariamente fragmentar, mas necessitando de remendos, faz com que o poema aborde a forma como nós conduzimos vitórias. Veja-se, a esse respeito, a sequência "enquanto / ocultamos nossos diálogo // — do modo que faríamos / com / as fuselagens de um desastre — // para // antecipar a partilha / dos / vestígios, sobretudo // quando / detemos a deterioração // da / desordem". Peço ao leitor que note em especial o detalhe do "descolar". Não é deslocar. Um poeta menos atento teria escrito deslocar, pode ter certeza. Mas descolar pressupõe que já foi colado. E que, seja lá que reinício for, independente de ser ou sexto ou até mais do que isso, trata-se de algo que só vai ferrando nossa locomoção, embora até venhamos a nos mover. Mal e mal, é claro.
Descolamos o joelho lá de um espelho que de repente contemplamos ― contemplamos porque o aspecto sadio deixou. Porque tivemos acesso ao sossego. Sossego, isto é, onde nem o desespero e nem o desconforto fossem adicionados ao espelho. Esse mesmo espelho que nos faz descolar os joelhos. Me parece bem provável que o poeta esteja sendo mordaz para com um anseio assim. Vejam só a odisseia que tivemos de fazer pra chegar finalmente no anseio do sossego ― e de repente descolamos o joelho. Que droga, não? E ainda temos que caminhar, pois o poema não termina com um ponto. Ele está em aberto. Há que reiniciar, percorrer o mesmo caminho. Fácil não vai ser coisíssima nenhuma. Mas esse reinício, esse sexto reinício, que só pelo fato de ser sexto já indicava uma persistência e, quem sabe, a promessa de algo pelo qual valia a pena lutar ― quem diria que esse reinício não seria excruciante?
§
Vinicius Ferreira Barth é de 1986, curitibano. Já foi editor do escamandro. Seus poemas são ilustrados. Isso vai ajudar na hora de entender o poema e na hora de estabelecer um diálogo saudável.
Katabasis vem do grego: κατάβασις. Significa descer pra baixo. (Dói este pleonasmo?) Sabe aqueles episódios de descida ao inferno no corpo das epopeias? Pois então: katabasis: jornada heroica rumo ao submundo. O poema de Vinicius simula uma katabasis, e parece que esse tão de Jãozinho vê uma coisa pra lá de terrível dentro da porta (porão?). Olhe pra imagem. Uma criança bonitinha frente a uma porta escura, parecendo uma bocarra prestes a engoli-lo. Só uma vela em formato de estrelinha a iluminar ― iluminar pouco, podemos pressupor, pois ela não ilumina nada lá dentro. Ou quem sabe não haja nada pra ser iluminado lá dentro...
A base do poema é o verso de oito sílabas. Pelo menos da primeira metade é. Os versos frequentemente quebrados podem simular uma espécie de escada ― uma escada em espiral, quem sabe. A imagem da escada com frequência é associada a alguma escada celeste: a escada de Jacó em Gn 28, 12. Só que aqui a descida, como no título, é pra baixo. E em algum momento o Jãozinho meio que tropeça e a coisa desanda. Pois alguns versos possuem palavras aglutinadas, um verdadeiro bolo, como se o eu lírico perdesse a condução da coisa. É como se Jãozinho tivesse visto o bicho papão lá dentro. E aí o pau come. Pois em alguns momentos existem cortes súbitos no meio do verso, seja com cavalgamentos, seja cortando na pele a construção dessas palavras-emboladas. E se cada verso ou pedaço de verso pode ser lido como um degrau, é como se Jãozinho quase caísse ― ou caísse, não sei.
O tom infantil é uma espécie de acalanto bobinho. É um tal de repetir Jãozinho pra lá e pra cá que cria uma familiaridade infantil para com esse menino. Pode fazer com que o poema a todo instante englobe Jãozinho ― e se o poema é uma visão de coisas terríveis, podemos ver nessa repetição, por conseguinte, uma deglutição contínua de Jãozinho ― mas pode também não nos fazer esquecer nunca que o Jãozinho tá lá ― o que é importante, visto que o poema simula um cataclismo, de modo que podemos muito bem perder Jãozinho de vista. E mesmo que o eu lírico a todo momento o chame, sob a função de aposto, em alguns instantes ainda assim você não presta atenção no moleque, tão compenetrado que está em acompanhar o ritmo vertiginoso que o poema ganha, tão compenetrado está decifrando o que as palavras-emboladas (espécies de thunderwords) querem dizer. Pois aí você tem que parar, ler com calma ― quando tudo no poema te impele a ir mais depressa.
É como se o poema soltasse, pra voltar à imagem que esbocei antes, o bicho papão. Presume-se que o bicho papão da poesia, pois ele começa falando das musas. Quem sabe insinuando que essas musas na verdade são criaturas nefastas... Em determinado momento, por exemplo, Vinicius nos diz que "jãozinho respira os abismos". Existem muitos poetas em Curitiba que se referem a abismos (os outros editores do escamandro, Scandolara e Gontijo Flores, por exemplo). Tenho certeza absoluta que é problema de asfalto.
Só que não. Capte:
sente esse túnel estômago
virar baleia infinita
que vai aos mares
faminta
tendo em si mundos antigos
O pequenino explorador é engolido pela porta ou pelo algo que acabara de adentrar. É como se fosse uma espécie de Divina Comédia sem Virgílio ― na verdade, ainda mais longe: sem dedo da Beatriz. Entende? Você, a esmo, tendo que passar pelas três feras, entrar no Inferno... Olha a merda que isso não ia dar. De certa maneira, assim como a viagem de Dante é um mergulho na História ― pois a Divina Comédia é um dos poemas políticos mais poderosos de toda tradição ocidental ―, podemos supôr que no mínimo Jãozinho (que vai se despedaçando em Jão, entre outros) se depara com o tétrico. O horror, o horror: um verso depois do que acabei de citar, lemos: "vê corpos vê mares / rabiscos de luz / vermelhos azuis / vê a si mesmo espelho / e a si mesmo jão".
O horror, o horror, mas não só o horror, o horror. A estrofe que acabo de citar o demonstra muito bem. Alguns relances dentro do poema também, fazendo daquele lugar um lugar com toques surrealistas. Veja-se a sequência: "pisca cela corcunda / pisca / tomba / pisca jão / facho fós / foro / algum / pis / catombe jão / draculiforme / jão / (...)". Defendo que o tom nefasto das imagens é predominante, e que momentos como os rabiscos de luz vermelhos e azuis são a exceção. Pois já na estrofe que citei pra vocês por último é como se a vela de Jãozinho se apagasse ― e, um pouco depois, lemos: "jão pica / o fundo / da pança da velha / espadentopéia centelha / do algoz / e o mundo / chacoalhamacento / por cima por dentro / ...sss / legião". A repetição do "...sss" dá a entender uma espécie de remédio gástrico tentando aplacar a fúria de uma gastrite ou de uma úlcera. Tentando "remediar a corrosão", pra ser mais exato ― entre aspas pois o que o remédio abranda é a dor, e não a corrosão em si. Até que ponto funciona, é difícil dizer, pois Jãozinho vai sendo jogado de lá pra cá dentro daquela escuridão terrível, e, como disse, a construção do poema vai sendo embaralhada, o moleque vai sendo consumido, desnudado. Desnudado. Guardem isso. O poema fecha com uma imagem boa a respeito disso:
eita jãozinho
de que vale
a luz retirada do escuro
nas mãos de um moleque pelado?
Não me lembro do poema começar se referindo a Jãozinho vestido. Presume-se que ele está. Mas, pra seguirmos o paralelo com Joseph Conrad, Conrad dizia que até sua experiência pessoal no Congo ele era um animal simples ("a mere animal"). Isto é: contato com o horror o complexificou. Geralmente pensamos que, nessa lógica do pelado e do vestido, é como se Conrad tivesse saído da pureza ― geralmente associada à nudez ― para a impureza, e, daí, se tornou complexo. O movimento com o poema de Vinicius não está bem por aí ― e afinal, a correlação que apontei não existe necessariamente na frase de Conrad. Em determinado momento do poema, depois que Jãozinho meio que perdeu sua vela, ele consegue outra, e aí o poeta nos diz: "jão fósforo acende / um por um / aristéia de mim / invisível / entope escamandros / de escuro / (...)". Escamandro é um rio que, em certa passagem da Ilíada, fica nervoso com Aquiles ― que matava tanta gente e jogava tanta gente dentro dele que ele meio que se cansou, pois, né ― e bate no protagonista. Entupir Escamandros de escuro é entupir Escamandros de trevas. Podemos pensar de novo em cadáveres, mas não só em cadáveres.
Assim, se na penúltima estrofe o poeta nos diz que "do escuro somente uma luz / sobrou do tesouro do mundo", julgo ser possível pensarmos que essa luz é a poesia, ou que ela seja a esperança, sei lá. Ela está nas mãos de Jãozinho. Jãozinho é o portador. Só de que adianta que ele a possua, se está pelado, se deixou de ser um animal simples pois agora está banhado de trevas ― se experimentou isso?
Não há ironia nenhuma na pergunta. Ela é séria. Frente a uma experiência tão poderosa assim, como prosseguir, mesmo com o único tesouro do mundo ao alcance das mãos? Literalmente nas mãos?
Em dr. smith confesso que não sei de quem Vinicius está falando. A imagem é a de um operário ― o macacão o atesta ― frente ao que também parece uma fábrica, mas daquelas antigas, sem chaminés. Uma fábrica simples, em proporção bem menor que a da figura humanoide. Humanoide. Com uma cabeça tão grande assim, e quadrada, e lembrando uma espécie de estabelecimento (os olhos poderiam ser janelas, não sei)... e os pés meio que fincados no chão... e o braço direito tornado um cotoco... ― E esse enorme tubo saindo da cabeça e voltando pra cabeça. Como que despejando as impurezas da cabeça principalmente na própria cabeça, embora os pedacinhos flutuando no canto superior esquerdo possam dar a entender que também são despejados ar afora. Será isso que o poema quer dizer? Uma experiência tão precoce com carros ― uma experiência sexual, tanto ser literal quanto fetichista ― carro, uma das mercadorias centrais na lógica capitalista ― uma experiência precoce que obnubila a experiência com humanos. A máquina dessa figura humanoide é autossuficiente. Ou autodependente, quem sabe. Comparado ao anterior, é um poema fraco. Nem mesmo a forma da primeira estrofe, derivando, destilando a informação aos poucos para nós, até que reste apenas "anos", ou seja, o tempo ― tempo, uma das mercadorias centrais na lógica capitalista ― nem mesmo o espaço entre a primeira e a segunda estrofe, que evidencia o espaçamento entre um fato e outro ― nem mesmo o fato desse espaço em branco poder simular que as relações sexuais contínuas com carros se resumem a um nada ― confesso pra vocês que nada disso me parece suficiente pra que o poema seja considerado bom. Comparado com o que o anterior tem a oferecer, repito: um poema fraco.
Já o terceiro é melhor. Tendemos a fazer uma leitura sexualizada do poema, certamente em cima de uma leitura desatenciosa para com "Teseu", que transformamos em "Tesão" (e não é uma leitura totalmente errada pois o poeta diz logo depois que pode ser algo por aí). O fato de ser uma guerreira de Afrodite ajuda nesse sentido, e a espingarda que a figura traz na última estrofe quem sabe possa ser lida como um pênis ereto. O que subjaz, contudo, é um clima de extinção. Teseu é quem mata o minotauro. Mas nos olhos de górgona dessa guerreira de Afrodite ― a Górgona, aquela que quando você olhava, pum!, te petrificava ― você podia observar um minotauro armado com uma espingarda. Um minotauro em caça.
O poema estar petrificado no tempo me parece lógico. Senão como veríamos o que se reflete pelo olhar da guerreira de Afrodite? Além, claro, de que as referências mitológicas num contexto moderno ― só olhar pra espingarda ― mostram que a situação arquetípica da morte do minotauro e salvamento da dama persiste no tempo, como se petrificada. Só que aqui as coisas se invertem. De uma estrofe pra outra. Na primeira tá tudo meio que normal ― grita-se o nome do herói numa expressão que simula o orgasmo. Na segunda é que a coisa está invertida, pois o minotauro armado de espingarda é um minotauro armado pra caça. Não devia ser o contrário? Dever, devia. Mas é isso o que vemos no olhar da guerreira de Afrodite.
Contudo, até agora em nossa leitura não demos a atenção devida ao fato de ser uma guerreira ― portanto, não precisa de ajuda ― portanto, está em guerra, quem sabe até mesmo esteja caçando o minotauro. Unir o gozo ― unir o medo ― isto é, a sensação de gozo, a sensação de medo ― a própria sensação de estar na adrenalina, pronto pro que vier ― estas não são sensações que nos petrificam quando chega a hora H? Daí o título ambíguo do poema, podendo remeter a um ser, a um algo petrificado, quanto àquela condição, poxa vida, tão desagradável de você ser petrificado. De alguém ir e te petrificar.
Não sei até que ponto a imagem pode contribuir com a leitura do poema. Pressuponho que seja um minotauro o retratado pelo chifre ― mas é um minotauro um tanto quanto chapado, vejam vocês. Esse olho vermelho... E esses dados saindo da cabeça! O minotauro ficava preso num labirinto. Só alguém com inteligência excepcional poderia sair de lá ― alguém que não, evidentemente, o minotauro, a não ser que conte com o acaso. Só que aí, lembra Mallarmé, um lance de dados não abolirá o acaso. Será que é isso? Uma vez minotauro, para sempre minotauro? Uma vez em caça, para sempre em caça ― como se ser minotauro e ser caçador fossem condições imutáveis, petrificadas?
Imersão no escuro ― e afirmação de que, depois de imergir no escuro, você nunca mais vai ser o mesmo ―, sexo e sexo misturado ao combate. É o que vimos.
§
Alexandre Guarnieri é carioca. 1974. Trabalha de maneira bem característica a tipografia de seus textos. Parece gostar em especial de usar as barras, o parêntesis e o espaçamento entre estrofes e entre letras. O primeiro poema, \ \ livro aberto / /, não é bom. Não vou dizer que devem existir às pencas poemas que falam do mesmo assunto, pois a figura do tal do poeta sempre bateu perna em torno das mesmas fogueiras. Digo que o nível semântico do poema é fraco, e que existem poemas que dão uma aparelhagem muito mais interessante, que informam muito mais do que \ \ livro aberto / /. Trocando em miúdos, o que ele diz não se distancia muito do que um leitor minimamente arregimentado em poesia esperaria ― e suponho que nem do que um menos também ―, e de certa maneira é o que um poema bom já disse e de forma muito melhor.
Há para se notar basicamente a metáfora corpórea que o livro adquire ao longo do poema. Ou, lendo de forma mais atenciosa, as comparações corpóreas, pois Alexandre não une as imagens constituintes numa só, como é próprio da metáfora. Ele diz que X acontece com o corpo e que Y com o livro ― e compara um ao outro. A dinâmica das barras ajuda a acentuar o tom de ida e vinda, de transfusão, digamos assim, entre uma ideia e outra, e o fato da primeira estrofe estar à direta e a segunda estar à esquerda ajuda ainda mais nesse sentido (e note que o sentido das barras mudou também). Já sobre o título, a forma como está disposto simula um livro aberto, mas, se nos lembrarmos que a barra virada pra esquerda ( \ ) está ligada ao aspecto mais físico, ao exterior, enquanto a barra virada pra direita ( / ) se liga ao funcionamento interno, ao organismo, o título também simula o movimento que fazemos ao ler um livro, quem sabe num possível sentido sequencial ou dialético. Um livro aberto é um livro literalmente aberto, é claro ― mas é também um livro aberto para interpretações, para que funcione. Lembre-se do que Umberto Eco chamou de Obra Aberta e por aí vai.
Os próximos poemas demonstrarão um poeta muito ligado a imagens fisiológicas. Algo pra lá de interessante, visto que não são imagens que costumam aparecer muito... É de se lembrar, por exemplo, o gosto escatológico de Augusto dos Anjos, claro que com as devidas ressalvas (Augusto não elevava o funcionamento fisiológico a princípio constitutivo do texto). Há um sentido metalinguístico nos poemas de Alexandre ― visto tanto de forma literal quanto de forma funcional. Seus poemas funcionam como organismo. Apesar de fraco, o primeiro poema parece dar a temática da obra como um todo: se o poema é comparável ao corpo humano, então ele deve funcionar à maneira de um.
No caso do segundo poema, mecânica dos fluidos, o melhor dentre os que foram listados, mas não tão bom assim, os fluidos apontados no título são vários e não apenas biológicos. O fato do poeta reforçar o termo "bio" na expressão (decepada) "biológico", é uma ênfase necessária. Ele nos leva a uma viagem por vezes tão técnica no funcionamento do corpo humano que podemos pressupôr um todo sem vida. Realçar o "bio" é uma forma de dizer: "veja, ele não é só lógico, ele é biológico". Ou desconectado da natureza, quem sabe. Além, é claro, que uma estrofe atrás ele começou a comparar o corpo literalmente com uma máquina, e daí a graxa que escorre entre as engrenagens.
Não dá pra dizer com precisão ― com precisão! ― quando a comparação descamba para um lado tão mecânico da coisa. O título já o apontava, claro, mas talvez possamos ver numa estrofe como "( na ampulheta viva / / sangue é tempo )" a gênese da comparação. Comparação esta que não está explícita, tal o poema anterior. Comparar o corpo, o fluir dos fluidos a uma ampulheta já é adicionar, já é transformar essa mecânica dos fluidos num objeto. Por isso o poeta precisa ressaltar o "bio" no final ― pra dizer que é algo além. Por isso também no primeiro poema o contraponto com a segunda estrofe, em que temos um leitor na jogada, uma subjetividade ativa e não simplesmente a casca da coisa.
Formalmente, do poema faço notar o espaçamento tanto entre as estrofes (da primeira com a segunda a coisa é escancarada) quanto alguns espaçamentos entre palavras, por exemplo entre o começo do parêntesis e a primeira letra da palavra ou mesmo entre palavras (vide os dois últimos versos). É como se o poeta espaçasse os termos e os caracteres para que um fluido pudesse passar por ali.
Mas se digo que o poema, apesar da construção interessante ― algo a meu ver visto nos detalhes como a ênfase no "bio" ou a passagem do fluido corporal para o fluido mecânico, feita com toda uma naturalidade que depois o poeta até mesmo rechaça (e essa naturalidade é reforçada pela rima parcial relógio-lógico) ― ou visto na sonoridade do poema, dando todo um tom fluido ao texto, por exemplo a assonância em O de um verso como "só o óleo dos glóbulos", começada no anterior, "entre um osso e outro" ― apesar disso, comparado a poemas com embasamento técnico tal como os de Augusto dos Anjos, pra seguirmos no que já apontei, ele não me parece ser capaz de oferecer tanto, ou nós sermos capazes de extrair tanto do que nos é dito.
O terceiro é o pior deles. O espaçamento dos caracteres simula os poros sudoríferos. Alguns cortes de palavras permitem paranomásias no máximo interessantes, como "rípara" de "sudorípara" que rima parcialmente com "pira" de "respira". A repetição do "re" na segunda estrofe, pra seguirmos com toda uma boa vontade, dá a ideia de reconstrução ― o ato de suar renova a pele. E pronto. Não há o que apontar mais. Afora isso, só consigo apontar mais o fato de que ele não apresenta nenhuma barra...
Já o quarto possui imagens danadas de bonitas. Comparar a lágrima à pérola na ostra ou à seta no arco. A ideia do sal na medida certa intensifica ainda mais a beleza de imagens assim, pois dá toda uma precisão a um movimento que transforma a lágrima em algo exato, perfeito ― malgrado o fato de que advenha de excessos. Elogio também um verso como "( no escuro algo coagula)", ou seja, coagular: solidificar. O uso do "algo" dá um tom de imprecisão ao que está sendo coagulado ― e não é assim?, ou seja, não é verdade que nunca sabemos ao certo as causas do choro? ― mas isso depois de uma sequência de imagens exatas, isso logo depois do poeta dizer que o sal está na medida certa. O que é que se coagula, então? É o além-da-lágrima. E que vira pedra, como podemos pressupor do verso seguinte. E que se precipita. E quebra a exatidão ― e observe como mais uma vez a quebra da exatidão é feita nos versos de Alexandre, uma espécie de procedimento comum de seus textos (e não o digo reprimindo nem nada) ―, tanto que a lágrima cai fria e quente simultaneamente. Faço notar que esses dois últimos versos são abertos com um parêntesis em aberto, ou seja, ( . Na verdade, o final do poema está assim (lembrando que ele é monostrófico):
pedra
até que a concha da pálpebra
abra
é quando a gota vem à tona )
( fria e quente
( simultaneamente
Além do jogo sonoro pedra-pálpebra-abra, quero que você observe comigo o jogo de parêntesis dos três últimos versos. O antepenúltimo fecha um. Mas onde esse parêntesis começou? Todo o restante do poema está certinho. E por que os dois últimos abrem, cada um deles, um parêntesis?
De certa maneira, se observarmos que nesse poema Alexandre também não usa nenhuma barra, é como se o poeta usasse um artifício substitutivo da ideia de alternância que a barra significa. Os dois parêntesis no final podem ser lidos como cada um deles sendo uma espécie de abertura possível para o parêntesis que se fechou mas não se abriu (o que a alternância gráfica dessa última parte talvez ateste). Ou como sendo um parêntesis dentro de outro. Ou então, e essa hipótese me parece a que faz mais sentido, depois que descobrimos que a lágrima não é essa coisa exatinha, depois que ela se coagulou em pedra, então os parêntesis são realmente embaralhados, eles podem abarcar tudo o que veio antes ou o que veio depois, eles podem apenas fechar ou apenas abrir (abrir o choro, quem sabe). Não é preciso que demarquemos com tanta precisão o início e o fim. Qualquer um dos dois está bom.
A seleção de poemas do autor não o ajudou. Difícil dizer se poderia ajudar. O juízo geral é ruim. Mas a ideia segue como instigante: a forma como Alexandre leva a sério isso de, digamos, uma fisionomia da escrita, me parece ter muito a revelar, e se querem saber, eu poderia muito bem passar algumas tardes sem lanchar pra conferir melhor o que o poeta fez com a proposta. Poemas que a princípio considero fracos poderiam ganhar novos sentidos se porventura observássemos, quem sabe, uma estruturação que os aprimore. Dentro da construção geral de Alexandre, é algo que minha intuição diz que ele fez ― e fez bem. A forma como erige mesmo os textos ruins demonstra um capricho. Se digo que são resultados ruins, uma coisa é certa: ele sabe o que está fazendo. E mais uma vez minha intuição me diz: ele está chegando exatamente onde quer chegar.
§
Gabriel Resende Santos, 1994, é também carioca. Sua poesia tem todo um gingado. Veste todos os adereços típicos do ironista, e é possível que com isso, mais uma vez, tenhamos o caso clínico do pé na jaca. Já proseei sobre isso, mas a questão com a ironia é que o estágio em que ela se encontra, após um século de forte uso desse instrumento, é de, no mínimo, desgaste. Não quer dizer que ela se tornou impraticável. Só que, no caso de usá-la, cautela. Como representante do Grêmio Mirim de Leitores, digo: estamos exaustos, sabem?
É que se a ironia brinca no sentido de conduzir o leitor a determinado caminho em que ele, o leitor, julgue poder andar sozinho, isso acontece pra depois revelar que aquele é um belo de um campo minado ― só que um campo minado feito a partir de conceitos e preconceitos compartilhados pelo poeta e pelo leitor. Campo Minado Made By Us. A grande dificuldade da ironia reside tanto na precisão desse campo minado (calibrar certinho a potência e o alcance das bombas, sua disposição), quanto no pegar na mão do leitor, dar uma força, dar trela, dar corda pra depois deixar que ele caminhe por si mesmo ― que ele como que responda: "Ah, já sei, é isso que você quer dizer, não é?" ― no que o poeta como que diz: "Oh, sim, pode ter certeza." Se a construção é insuficiente, ou se ela confia que a tornada irônica, que é quando o ferrão aparece e o leitor solta um "Ih!", será o suficiente, então a ironia naufraga, e, confiando ter armado uma arapuca, prende o próprio pé na armadilha que criou ― o que com a ironia não costuma ser algo ruim, pois a ironia afeta o autor e afeta também o leitor ― num certo senso de vingança ― o problema é que quando a ironia está mal feita, vemos o autor tentando fazer uma mágica e deixar que o espectador veja o fundo falso antes do fim do truque. Aí não adianta ele no final perguntar se nos surpreendemos, se estamos ludibriados, surpresos, sei lá. A gente já sacou o que você quis dizer. Ninguém entrou nessa barca. Ou, pra usarmos outra imagem, é como assistir uma mágica na internet e, na hora de repeti-la pros amigos, pensar que sem todo aquele clima e habilidade com as mãos o resultado vai ser o mesmo ― ignorando que a suposta simplicidade da mágica esconde a mestria de quem a executa.
Não é fácil. Claro que não. Ela envolve, pra usar a expressão passada, plantar caraminholas na cabeça do leitor. Ela envolve uma zona de coisas não ditas ― só que uma zona de coisas não ditas que podem e preferencialmente devem ser enunciadas ou, melhor dizendo, enunciáveis pelo leitor. É como se ela levasse o leitor a dizer o que ela não diz. Só que se o poema diz pouco ― se ele confia demais nessa zona de coisas não ditas ― se ele confia demais que derrubar o castelo de cartas deixará todos boquiabertos ― muitas vezes o poema está fazendo ele mesmo papel de bobo, pois crê que incide no discurso nada-com-nada, no discurso com-segundas-intenções quando, na verdade, está simplesmente no âmbito do discurso ralo. A ironia só pode funcionar em cima de um substrato. Não tem essa coisa de entrelinhas, segunda intenção, subentendido ou que o valha se o poema leva a entender pouco.
É um problema que se vê nos versos de Gabriel. Não em todos, é claro. Muito menos em todos os oito. Possuem bons momentos, evidente que possuem, e, dada a pouca idade do poeta, me parece indubitável que ele possui grande talento e tem muito o que mostrar. Tentarei ser mais específico sobre quando o poeta acerta e sobre quando ele erra a mão.
O primeiro poema, por exemplo. Manda bem. Você lê um título como um carinho nos teus sonhos e aperta os cintos: Romantismo de rodapé de revistaria vem aí. Quando muito pelo contrário! A situação do elevador, acondicionada de segregações, é um lócus de crítica social um tanto quanto gasto. Qualquer leitor de crônicas provavelmente possui um arsenal avançado acerca de tal situação ― especialmente no que tal situação tem a nos dizer a respeito do tédio, do embaraço, do não-ter-o-que-dizer. Da futilidade. Um enfoque umbiguista da questão toda. Uma vez num elevador social, cada um por si. É meio o que o poeta faz ao longo do texto, ao redor de si e repetindo a toda hora "o gosto do sucesso". Que gosto é esse eu não sei ― e se brincar Gabriel também não ― e se brincar mesmo quem supostamente teria como saber, não sabe. É uma frase vazia. Muitas coisas são vazias ao longo do poema, e isso é proposital. A ironia começa com o poeta conduzindo-nos a uma situação que todos conhecemos de cor como funciona. E ele prepara o caminho de tal modo que poderíamos muito bem andar por conta própria. Só que há algo de errado. Algo quase que imperceptível, e que ganha um aspecto mórbido ― o tal do campo minado. É como se houvesse uma espécie de mau cheiro ― algo em putrefação dentro desse elevador social. Na penúltima estrofe o poeta sugere o suicídio de forma velada (as giletes que beijam as curvas), e não nos damos conta disso da forma como deveríamos (isto é: devíamos rodar a baiana e dizer ei!, giletes beijando as curvas?!). Desse choque ― no caso, dessa apatia, dessa surpresa hipócrita ― surge a ironia. E é a ironia que "abate" o gosto do sucesso ― entre aspas pois me parece que, embora Gabriel diga que o gosto do sucesso se rasteja e se contorça, e depois se derrame em sua boca, ele me parece estar querendo dizer o contrário, que é ele quem se submete, ou que, mesmo que o gosto do sucesso prostre-se, a contrapartida é ainda mais violenta ― o gosto do sucesso igual um verme se rasteja até nós, nos seduz, nos faz sentir bem... e contudo há algo de muito errado, algo que não conseguimos saborear pois estamos compenetrados nesse saborzinho fútil.
Em decorrência disto um detalhe como o das moscas perto do sapato é importante ― o toque de mestre do poema. Elas parecem deixar claro que existe algo podre dentro desse elevador ― mas é algo muito sutil, e tem que ser sutil. O gosto do sucesso está lá ― mas não sabemos onde nem como. Ele está. Fica na boca por um tempo... ― o poeta insiste tanto, que ele acaba ficando, afinal ― e é como se, apenas prolongadamente ficando, passasse do prazo de validade e começasse a feder. Daí as moscas. Um clima tão estático para um elevador que, se é social no sentido literal do termo, pode ser tomado também no sentido figurado, ou seja, de que só determinadas classes possuem acesso à ideia de se elevarem, enquanto outras ficam na estagnação ― ficam pois o próprio elevador é estagnado em seu movimento.
Os três poemas seguintes não me parecem tão bons assim. Vemos o poeta pirulitando em climas muito distintos, esferas culturais que não costumamos pensar se toquem. No segundo poema ele vai de conversas durante uma carona a açougueiros, de Leatherface a Blake e Pound. Estas duas últimas referências, no final do poema, por exemplo, a princípio julguei um tanto quanto gratuitas. Não no sentido de que não possuem nada, nada a dizer ― é claro que elas possuem, ainda mais depois da referência ao cordeiro que no final das contas vence. Podemos pensar no profundo simbolismo da poesia do autor inglês (o Cordeiro de Blake, sabemos, é o contraponto exato ao Tygre, máquina de matar) e, pulando pro autor moderno, imaginarmos o ocaso de um sistema tão profundo de significações, além, é claro, a árdua luta de Pound em prol de, se não for possível ressuscitá-lo, ao menos homenageá-lo e mantê-lo vivo em seus versos. Gratuitas pois me parece que o poeta explora pouco as possibilidades de trazer dois nomes tão poderosos e icônicos assim para o plano do poema. Como se fosse um desperdício.
Mas não seria o mesmo desperdício de Leandro Rafael Perez não explorar as simbologias do número três? ― A pergunta é boa, mas preciso destacar uma diferença. Leandro, dentro do âmbito daquele poema, fazia por bem tratar a generalidade das referências simbólicas para que nós especificássemos. Especificar não era com ele; era com a gente ― e isso, entre outros, é o que faz o poema dele tão legal. Com Blake e Pound no poema de Gabriel é diferente: elas já são referências específicas que, todavia, boiam na superfície do texto, tão ocas apareceram. Você nota um certo esforço por parte de Gabriel em explorar um pouco tais significados, se referindo ao cordeiro de Blake num contexto de imolação própria e sacrifício (daqui a pouco especifico melhor), mas tal esforço redunda num algo tímido. É pouco, muito pouco.
Só que aí, refletindo melhor, vi que tal impressão podia ser coisa minha, advinda de um insucesso que pode até ter sua razão de interesse. Explico-me: Blake e Pound, no plano do poema, estão em pé de igualdade com referências tais como Leatherface e Matrix. Talvez com um pouco mais de privilégio por estarem no poema e por estarem em contraposição ao restante das estrofes, mas ainda assim sustento que estão em pé de igualdade. Daí dizer que o poeta parece não tê-las explorado tanto. Todavia, se tal pode ser uma razão de insucesso e de gratuidade, pode ser também uma característica importante, isso de que, em todas as referências culturais estarem num plano de igualdade, tenhamos uma forma quem sabe mais lúcida de enxergar o real funcionamento da cultura numa sociedade em que tudo é vendável e massificado. Gabriel parte desse estado de coisas ou no mínimo está incluso nele, e a gratuidade que enxergo nas referências a Blake e Pound pode ser mais amplamente a gratuidade de nossa sociedade. Daí provém a certa mestiçagem, digamos assim, que Gabriel usa de forma extensiva em seus textos. Um enorme sincretismo de camadas culturais que, é claro, além de grosso modo demonstrar apenas que a cultura está funcionando (cultura é mestiçagem), também indica que determinadas esferas culturais possuem uma persistência e uma existência mais bem fincada que outras.
Contudo, pra ser sincero, mesmo colocando o óculos do nossa-sociedade-é-assim (uma sociedade massificante em que alguns estratos culturais sobrepujam outros em decorrência de jogos de opressão), ainda assim sustento que as referências que Gabriel constrói, pelo menos nesse poema (e de certa maneira nos outros que são listados), poderiam ser mais bem trabalhadas, isto é, aparecem aqui novamente com aquele tom de gratuidade ― gratuidade agora no sentido de nos informarem pouco ― no sentido de podermos extrair pouco ― no sentido de poderem até deixar que o leitor enxergue o panorama e funcionamento cultural de nossa sociedade, como acabei de enxergar pra vocês agora, ao vivo e a cores, mas de forma não muito aprofundada e sem parecer explorar a dimensão que um vislumbre desses aponta. Assim, a gratuidade que enxergo nas referências de Gabriel estaria nesses dois lados da moeda: observadas de maneira específica, ele não extrai tudo o que colocar tais nomes em cima da mesma pode incutir, e, olhando de forma mais panorâmica, ele não explora todas as implicações da planificação subjugante em nossa cultura.
Quanto ao segundo poema, se são aulas particulares, são aulas restritas, aulas quase que às escuras e que buscam o aprimoramento de apenas uma pessoa. Uma espécie de reforço ou que o valha. Só que um reforço pra se entender que "o entendimento é um jogo de morte." Um jogo de morte pessoal. Por isso o autor diz que o açougueiro pode ensinar o entendimento. O açougueiro não é bem aquele que mata ― mas é possível que Gabriel tenha usado também neste sentido ― e sim aquele que gerencia, que comercializa pedaços. Pedaços de entendimento. Pedaços alheios, não advindos de sua experiência pessoal ― o que o contraponto com o cordeiro de Blake evidencia, pois o cordeiro é o sacrificado, o imolado e, portanto, o que está próximo do entendimento. (E de fato, o poema do cordeirinho de Blake é todo afirmativo, bem a antítese do poema do Tygre, pleno de interrogações ― e a ideia de que o entendimento é um jogo de morte também pode ser lida como um jogo de morte de dúvidas: vide o final da terceira estrofe.)
A primeira pergunta que fica quando lemos o poema seguinte, até amanhã, é: até amanhã o quê? Amanhã tu vai o quê? É perfeitamente possível ler o poema sem saber o quê, e me parece que inclusive não tem outro jeito. A dinâmica do poema é a de ordens pra se fazer algo amanhã que o eu lírico, de resto, nunca faz. Como se ele esquecesse. Ou esquecimento e um algo a mais. Coragem? Ânimo? Vigor? Difícil, realmente difícil dizer. A forma do poema, em versos longos que poderiam muito bem encerrar uma ideia completa, com frequência abarcam uma frase completa e, lá pro finalzinho, cedem espaço pra que outra comece. O que por sua vez força um cavalgamento dentro do verso um tanto quanto desnecessário, pois como disse, o tamanho do verso poderia conter uma ideia completa. Pra quê colocar terminar o verso com o começo de outra? Só pra ver o verso ser fraturado?
Dentro da lógica do poema, é como se o verso representasse um dia que acaba e o começo de outro. Ou a dimensão de um dia completo e a promessa do outro: aquela velha história do planejarmos como será o amanhã. Só que esse amanhã, assim como o verso que segue, dependerá essencialmente daquele restinho que ficou pra trás, e é dessa espécie de amontoado de restinhos que o poeta vai perdendo a noção das coisas. Una-se a uma cultura, como dissemos, planificada e massificante, e poderemos observar novamente a referência a Drummond e psicopatas ― em especial ao psicopata pois não é a primeira vez que Gabriel se vale de uma imagem assim. No poema passado ele falava no Leatherface, o da serra-elétrica. É uma romantização macabra da própria vida que deixa antever, na mera comparação com um psicopata, os influxos de uma cultura violenta na cabeça do poeta.
Acerca disso, vislumbrar podemos o funcionamento recôndito de nossas vidinhas. Observem: somos condenados a viver o presente e fazer planos para o futuro que não somos capazes de cumprir. As razões continuam em suspenso, mas é possível que exista uma falta daquilo que apontei antes: coragem, ânimo, vigor (veja o seppuku no final do poema). Isso nos faz ficar acumulando uma memória que, como o poeta fecha dizendo, é uma bosta. Restos de fracassos, de planos não realizados. Pra apimentar tudo isso, há o fato de que a cultura massifica e oprime. As chances de quebrar um ciclo assim, numa espécie de movimento harmônico, como vislumbrado na macroestrutura dos poemas de Drummond (unindo passado e presente como forjadores do futuro ― visto em especial nA Rosa do Povo), são postas abaixo. Drummond "é morto forte e rei e não me dá bola." O irritamento que vai se apossando do poeta, visto em especial quando ele começa a embolar sintaticamente a frase, aparentemente não dá em nada, ou redunda num discurso me parece mais corrosivo do que irônico (não creio que uma coisa seja necessariamente a outra). O eu lírico está sufocado. Em alguns instantes ele até embaralha o que diz: "queria comer / uma palavra sobre os exércitos do crack mas estou / pouco musical num mês tão engarrafado."
O tom geral da construção dos poemas de Gabriel é este. Se o eu lírico parece irrequieto, faz metáforas desconexas, parece estar zombando do que fala e zombando de si mesmo a um só tempo ― você pode e a meu ver deve ler isso como um desabrochamento do massacre cultural na sensibilidade da pessoa. Quando a ironia surge, ou o discurso corrosivo, é como se fosse o suco, isto é, de tão oprimido, uma lágrima ou uma gota de suor caísse. Repito: o tom geral da construção é este. Você pode observá-lo tal e qual no próximo poema, garota hardcore. A ideia de perseguir a felicidade sendo você mesmo, pois a felicidade só pode ser de fato felicidade se for um produto genuíno e não um negócio padrão ― é isso o que o poema está dizendo. Não há nada de mais. É um poema realmente fraco. Destacaria a forma como a dissonância na primeira estrofe ficou realmente bem construída, em especial o uso de "cores primárias" para caracterizar a forma como a felicidade pinta o cabelo (penso que um poeta menos atento usaria algo como "descolorir", ou vai saber o que mais) ― e, é claro, a metonímia da garota hardcore pra felicidade, ou que a felicidade seria uma garota hardcore, está também muito boa ―, e o fato das línguas deslizarem, o que é uma espécie de trocadilho fônico com "[más] línguas dizem". Deslizarem, é óbvio, muito mais sensual e marcante.
A última estrofe é interessante também. A construção irônica deste poema não ficou tão ruim assim, se querem saber. Acho até que está dentre as melhores de Gabriel ― e creio que, se no futuro algo me fizer rever este poema com melhores olhos, será a partir disso. Pois notem como ouvimos falar da tal garota hardcore e já imaginamos uma garota triste, reclusa, solitária ― o protótipo da roqueira carrancuda. Só que Gabriel nos diz que ela é feliz do jeito como é, e pensamos que acabou por aí ― só que ele vem na última estrofe e mostra como essa felicidade é torturante. Ele nos mostra como ser feliz não é só isso, ser feliz ― existe um caminho doloroso ao longo disso de ser feliz numa sociedade que padroniza a felicidade. E mais: a garota hardcore é insaciável, é autodestrutiva, sádica. Ela persegue seus homens de areia ― homens escorreitos, vastos, anônimos, inapreensíveis ― para que mutile os dedos dos pés e beba seus desejos. Fica subentendido que beber o sangue que vem dos dedos do pé mutilado. Por que dos dedos do pé não dá pra saber direito. Pra parar de andar? Ou relacionado a uma espécie de estética? Olha, eu não sei mesmo. O que fica é uma imagem estranha, de buscar o que jamais será alcançado, ou que, uma vez alcançado, não pode ser mantido, com o fim de se mutilar e saciar seu desejo. Impactante, não concorda?
poema de amor possui a meu ver duas coisas dignas de nota. Ele basicamente conta a história de uma paixão ― conhecer, namorar, separar, relembrar. Só que com o gingado do poeta. Faço notar em primeiro lugar a quinta estrofe do poema, talvez a mais bem construída de todos os oito poemas aqui listados. Ele consegue entrelaçar imagens de brutalidade e carícia de uma forma poderosa. Você sai de um e vai pra outro, e de outro volta pro mesmo e por aí vai. O resultado é um pingue-pongue que consegue simular melhor que o restante do poema inteiro as idas e vindas do amor. Observe como o samurai cospe beijos. Observe como o fuzileiro faz o mesmo com balas carinhosas ― só que balas carinhosas que vão de graça "aos fortemente armados / bebês das superpotências". Por um instante o uso de termos como "beijos" o "carinhosas" nos fez esquecer que estamos diante de um discurso fortemente irônico ― até que chegamos a esse armamento de guerra que é comparado com sarcasmo a bebês.
Todavia, o que uma estrofe assim faz num poema sobre amor?
É preciso observar de perto o verbo "valer" ― a segunda coisa digna de nota no poema. Como verbo transitivo, ele é o mesmo quer ter o valor ou preço de. Já enquanto intransitivo, quer dizer ter valor ou validade. Em algumas estrofes o verbo tem sentido transitivo ― isto é, o amor vale como X. Já em outras, ele faz o contrário e dá um enfoque às coisas listadas ― aqui não quer dizer que o amor vale tal como essas coisas, mas que essas coisas passam a ter valor depois do amor. É o que acontece com a quinta estrofe. Tudo isso passa a ter valor ― e o próprio entrelaçamento de metáforas se embasa nisto ― depois do amor. Não dá pra negar que é uma construção muito habilidosa por parte de Gabriel.
Os dois próximos poemas, inéditos, recaem no erro da ironia vazia. Talvez mais o segundo que o primeiro. A primeira é um convite à festa, aquela espécie de lócus poético do "se a vida tá ruim, encha o copo e aproveite" ― só que posto num tom mais contemporâneo. E até bem posto, se querem saber, pois vai se apossando dos sentidos aos pouquinhos, como a visão no primeiro verso, o tato nos outros dois, a audição em seguida etc. Mas não chega a ser algo que impressiona muito. O segundo, por sua vez ― esse talvez seja o pior dos oito. Poesia não é magia, mas pau duro. Coisa séria: sexo: carne: corporalidade. Gabriel entrelaça os dois campos quando fala de um pau duro infinito, o que, é claro, só pode ter dedo de magia aí no meio. E a ironia, quem sabe, esteja em cima do anticlímax do final: se poesia não é nada dessa coisa de sobressalto, mas é um pau duro, a ironia atua no sentido de que esse pau duro é infinito e nunca broxa, e, no fim das contas, é uma espécie de pau duro mágico. E se não fosse a ironia em cima desse anticlímax, o poema seria ainda pior, pois daria a entender que Gabriel quis montar um poema apenas em cima de um anticlímax "contestador" ― entre aspas pois, vamos lá, colocar um pau no poema não é sinônimo de contestação droga nenhuma.
Quanto ao último poema, ele me parece estar de algum modo conectado com o amanhã vai. Só que me parece haver um desencontro de ordens. A Medusa deve se levantar pois não é sua hora. Sua hora de quê? Se é pra levantar, podemos supor que seja sua hora de descansar. Dormir. Encerrar as atividades. Creio que seja por aí mesmo.
Vou explicar melhor: digamos que chegou determinado momento da história da humanidade em que o ser humano pelo menos deixou de ser hipócrita. O horror não advém mais de causas sobrenaturais. Ele advém de nós mesmos. Só que era melhor, muito melhor, "quando" o horror advinha só de causas sobrenaturais ― todavia, ponho entre aspas pois isso a meu ver nunca existiu, e, se algum dia o maior temor era em relação a isso, tratava-se de um temor advindo de uma visão precisamente hipócrita. Por isso a Medusa não pode dormir, descansar. Deve ficar na ativa, tocando o terror, até que o vagalume acorde e traga um pouco de luz ao ambiente noturno. Daí também os versos que talvez seja os versos-chave do poema: "e do mesmo jeito sei tu pensa que venham outras / pois do contrário não estamos falando de guerra". Outras, no caso, é o que o verso anterior diz: pancadas. Venham outras pancadas para que o horror ínfimo da Medusa pareça pelo menos um pouco mais realista frente ao horror inimaginável de uma guerra.
O exagero que percorre a maior parte dos poemas de Gabriel, aliás, pode ser visto neste sentido: exagerar para que a ficha possa cair. Ela deve estar emperrada. Uma forcinha aqui, por favor.
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Vinícius Leopardi é de 84 e mora em Curitiba. Seus poemas apresentam uma espécie de nostalgia violentada. Ligam-se com frequência à temática da terra, só que, ao invés de retratá-la enquanto matriz de benesses ou refúgio imaculado, evidencia suas marcas antropológicas. Noutras palavras, dá um enfoque às pegadas que deixamos.
E que nunca são só pegadas.
Os dois primeiros poemas não apresentam a figura do Eu. São tipo pinturas ― natureza morta. Apesar do título Fluxo, o primeiro me parece demonstrar em especial o rompimento de um fluxo. Observe como já no primeiro verso a monotonia das rochas é estremecida. Vinícius não nos diz o quê causa tal estremecimento, e em momento algum dos três poemas ele vai resolver esse mistério. Digamos que ele não quer tornar a questão um Who's Who. Ele escava e demonstra evidências.
O segundo verso é um rompimento sintático com o anterior. Seja lá o que estremeceu a monotonia das rochas, esse algo também venceu o lodo ensanguentado. E aqui observe: ensanguentado. O poeta não vai parar e entoar loas ao que está ensanguentando o lodo. Ele vai te apontar aquilo. É uma relação certa maneira fria, distante e instigante. Como se ele quisesse restituir as origens da emoção. As origens do choque. Daí dizer "carrega miríades veladas", mais uma vez operando um corte sintático ao longo da estrofe. Devemos destrinchar tais miríades veladas enquanto esse algo causador se movimenta. Enquanto o fluxo se movimenta. Não, à maneira do trabalho científico, isolar, estudar, interromper. A visão poética do autor atua no sentido de manter o fluxo correndo e, ainda assim, senti-lo, sentir-se como parte dele.
A imagem de alguém que contempla pode ser deduzida na segunda estrofe graças às lágrimas que são deliciadas e ao "sussurro das musas". É possível que também que exista quando o eu lírico observa "rochas de ornamentos intangíveis / trazendo hino que abençoa as águas." Além da ausência de artigos ao longo da estrofe, fazendo com que os substantivos sejam postos no espaço sintático sem uma referência pessoal de estar perto ou estar longe, mas simplesmente estar, faço notar que os supostos ornamentos intangíveis das rochas que trazem hino que abençoa as águas ― quem perceberia algo assim, e chamaria em especial de hino esse sei-lá-o-que, só pode ser uma pessoa.
As duas últimas estrofes nos falam de um pássaro que encontrou semente rara doutros ares. E que "Por isso / clamava a terra." Dentro de minha leitura ― de que a poesia do autor está ligada à escavação de lastros antropológicos numa paisagem natural ―, é deduzir que o pássaro encontrou uma semente de um lugar sem o advento humano para que o fluxo pudesse ser reestabelecido. Ou quem sabe isso da ave ter encontrado a semente rara faça parte também do ciclo maior de destruição e reconstrução...
O segundo poema já apresenta o elemento humano de forma explícita. E as marcas no cenário são mais evidentes ― o contrário também (veja os "gemidos / gritos de gozo" do final da primeira estrofe). A imagem da segunda estrofe é um tanto quanto apocalíptica, e o cenário é de maneira geral apocalíptico. A chuva aparentemente apenas dá uma lustrada na destruição toda. Até o final do poema, é claro. Pois aí é como se o contato com a natureza revelasse uma nova fonte de esperança ou que o valha. A criança que pega o lodo e encontra ali, naquele lodo molhado pela chuva, lágrimas da eternidade, está de certa maneira encontrando-se com o que é tão antigo que pode ser comparável ao eterno ― com o que pode nos redimir se determos o avanço a galope de nossa própria extinção. A chuva não é capaz de apagar o suposto fogo que existe por trás da destruição ― ou não consegue lavar, sei lá ―, e no final das contas não é da conta dela. É nosso dever, como aquele garoto, ter nas mãos o lodo e, num cenário chuvoso, redescobrirmos a eternidade. Na antepenúltima estrofe, o poeta nos diz que o mundo, "único, / absurdamente único", está "enforcado / no próprio não ser / enredado / pelos ardis do infinito." O advento do ser, que a chuva pode muito bem nos demonstrar, mudaria a situação das coisas, bem como a descoberta da eternidade no lodo banhado pela chuva pode nos desembaraçar dos ardis do infinito ― qualquer infinito ― o infinito, por exemplo, da ganância humana.
Já Poço é uma espécie de pequena joia. A construção sintática é digna de nota, isto é, na voz passiva, incidindo de forma ainda mais intensa o fato de que o que é listado nas duas estrofes faz o eu lírico miserável. Dado o que foi dito pelo segundo poema, podemos pressupôr que a insistência aludida na primeira estrofe é a insistência pela destruição. A aliteração em V do segundo verso está muito bem colocada, simulando, mais do que o vento, um tufão. E a quebra sintática no quarto, nada mau: a um só tempo resume a ideia dos versos passados como nos mostra no que resulta tudo aquilo.
A segunda estrofe pode ser lida como continuação sintática da primeira estrofe, no que ela se valeria de uma elipse ― isto é, "[Também] Faz-me miserável" ― e pode ser lida também no sentido de que o poeta poderia estar interpelando a algo ou alguém que o fizesse miserável em agruras, em desgostos. Pra quê? Pois quando Ítaca revisitada for nada. Isto é: aqui Vinícius se refere ao clássico poema do poeta moderno grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933), que dizia que devemos redescobrir Ítaca sempre, pois o preço da aventura vale a pena. Só que quando isso não for mais nada, quando não pudermos redescobrir Ítaca e nem redescobrir o prazer na Odisseia de reencontrá-la ― então é melhor que algo ou alguém nos faça miserável em agruras, pois essas agruras deixarão de poder ser convertidas em dádiva.
Do conjunto de poetas publicados esse ano no escamandro, Vinícius apresentou uma das melhores seleções.
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Marcus Fabiano é gaúcho mas mora no Rio. É de 1973. Em postagens passadas cá no bloguinho eu disse que a poesia de Marcus é uma das que melhor representam a relação entre o ser humano e o meio-ambiente. Ou simplesmente entre o ser humano e o meio em que se insere.
O primeiro poema, Os nomes do mar, é um dos mais belos publicados em 2014. A epígrafe de Neruda é icônica pois certamente poucos poetas chegaram a um nível de reinvenção de mundo tão alto quanto Neruda. Um verdadeiro prodígio a esse respeito, recusando-se a ver as coisas tal como são. Pelo contrário. Indo das coisas mais simples, como uma cebola, aos acontecimentos históricos formadores de um continente inteiro, é como se a poesia de Neruda retirasse e depois pusesse dois olhos em nossa cara para que, assim, reinventemos o mundo.
Estar na forma de poema em prosa quem sabe simule a torrente e de certa maneira a dimensão coesa que o mar representa ao olhar. Acaba ajudando também o leitor, pois como as frases do poema possuem estruturas sintáticas repetidas (embora algumas alcancem uma dicção certa maneira bíblica, por exemplo "solares e umbrívagos são seus caminhos."), é bem provável que ficasse muito repetitivo e entediante se fosse disposto na forma de verso. Ora Marcus Fabiano se limita a constatações certa maneira evidentes acerca do mar, como logo na primeira frase ao dizer que o mar se torna pedra quando muito gelado, ora mistura elementos míticos, como ao se referir a Iemanjá, e ora parece simplesmente desaguar na metáfora, como ao dizer que "o mar é um cofre de naufrágios." A beleza da imagem não está simplesmente na forma como passaremos daqui em diante a olhar para o mar ― ou seja, uma forma única ―, mas também pela tessitura sonora que a frase apresenta, com uma aliteração em FR que é seguida depois pela palavra "escafandristas". A dimensão sonora do poema, aliás, é evidente, mas muito bem trabalhada, pois, embora seja algo, como eu mesmo disse, evidente, não é algo exagerado nem idiossincrático dentro do poema. É leve, embora perceptível. Na primeira frase, por exemplo, há uma aliteração em R digna de nota, em especial por ser um R apoiado em consoantes, e uma rima parcial entre "cavalos" e "gelado", atando as duas orações com um liame maior que a coordenação sintática.
É também digno de nota o fato de que o mar ora é ativo, ora é passivo. Na maior parte das vezes ativo, é verdade, mas é o surgimento de elementos passivos aos pouquinhos que permite a guinada em relação ao homem ― como se Marcus Fabiano nos dissesse que, o mar sendo tão rico, era natural, portanto, que o homem fosse atrás destas benesses. Um tema, não preciso nem dizer, extremamente caro para a poesia de língua portuguesa, que explorou, como nenhuma outra, a relação entre o homem e o ambiente marítimo. Só que esse mar, tão vasto, é um mar que destrói, que sepulta. Cabem nele tanto a vida quanto a morte. E como o homem é análogo ao mar, mas é um peixe seco pois Deus o separou ― e pois na terra existem duas árvores, a do conhecimento e da vida, e o acesso a uma e a outra pode ser interdito ― como existem esses detalhes, então o homem busca o mar. Já nessa segunda parte do poema, o enfoque dado é todo no homem, o que não é de se espantar pois o poema investiga os nomes do mar, e quem nomeia o mar é o homem. Esse mesmo homem "que brinca de deus porém vive no tempo." E que no mar "nomeia seus medos". Tratando-se de uma relação vital para o homem, mas de tal modo que o homem jamais poderá domar o mar, é que o homem é água e enredo. Ser água e enredo não chega bem a contradizer o fato dele ser um peixe seco. Justamente por ser peixe seco é que ele é água ― e se é enredo, é porque, como o poeta disse, ele vive no tempo e, portanto, força é que desfie suas narrativas. Que nomeie. Que reinvente o mar, não porque esgotou o explorá-lo, mas porque, não podendo esgotá-lo, urge concebê-lo por outros meios.
O segundo poema a priori nos apresenta um retrato, digamos assim, econômico. E, não fossem o que as duas primeiras estrofes nos informam, e não creio que estaríamos diante de um poema inegavelmente mais fraco. As Papayas a tus pies são o que o taxista nos diz, numa imagem meio grotesca: os loucos que pulam a ponte e que caem como papaias. Não exatamente a teus pés. O a teus pés é por conta do título. Por quê? Aqui devemos nos lembrar que, como o próprio taxista diz, ura quer dizer, em quéchua, cabeça. Louco + ura = loucura. A loucura está na cabeça. Próxima de nós, portanto. Que as papaias, isto é, os suicidas estejam próximos de nós não deve ser visto, sendo assim, apenas no sentido de que seus corpos acabam chegando até nós ou que o poeta estava perto daquela ponte e, por extensão, perto de um local predileto de suicidas. Ela está próxima de nós nesse sentido mais, digamos, externo, e também num sentido interno: a loucura está na nossa cabeça. O que te faz pensar que é só na deles?
A imagem da primeira estrofe é meio grotesca também. Começa com a história dos três porquinhos até fechar nos contando de um porco que tem um leitão natalício. Mas que diabos é isso? Me parece claro que devemos ler a estrofe de forma figurada, pois, caso contrário, ela não tem sentido algum dentro do poema. Se natalício é referente ao dia do nascimento, então "o leitão natalício do porco" se refere a algo que o porco foi um dia e que de alguma maneira persiste naquele instante em que o lobo mau sopra pouco a pouco nossas tentativas de defesa. Até o momento em que ele nhac!, devora. Não é essa também uma metáfora de algo que existe dentro de nós e que sucumbe? É o que o parêntesis nos diz: "(como uma bigorna filosófica / dentro se pode levar peso morto)". A "bigorna filosófica" talvez se refira à cabeça, se nos lembrarmos que a bigorna é onde se forjam os metais e, portanto, bigorna filosófica seria algo como onde se forma o saber. O fato é que lá dentro se pode levar peso morto. Como o leitão natalício do porco ― e, conforme os versos seguintes, também como a loucura, a sanidade.
O terceiro poema se refere àquela parte da TV que gera a imagem. No caso, o que Marcus Fabiano faz é pegar o fato de que a mídia televisiva é manipuladora e nos diz que ela também gera imagens em nossa mente. A exploração de termos certa maneira incomuns de serem ouvidos, que já se via muito bem no primeiro poema, serve como espécie de repasto para que a máquina sonora do poema, de alto requinte, se movimente. Basta ler mais atentamente o segundo verso, "se um trapézio emparelha o Pégaso": a aliteração em P, com esse movimento labial meio abrupto, simula uma série de pulinhos.
A ideia da primeira estrofe, de que a gravidade é só um detalhe, quando sabemos que a gravidade é pra lá de importante, está ligada à ideia de fugir da realidade. Fugir do que nos prende no chão ― a gravidade. O trapézio, com todo o tom circense que evoca, emparelha o Pégaso, metonímia da poesia. O que se segue é a imagem de que "o olho é o novo umbigo do limbo", o novo centro de uma zona posta à margem e fantasmática, e de que os ouvidos substituíram o tubo digestivo. O último verso é importante e de certa maneira mostra, num átimo, o cuidado do poeta, pois se fechasse a estrofe com mais um verso reforçando o que três já disseram, é possível que ficasse repetitivo ― por isso ele decide como que sutilmente nos mostrar que o ouvido, em ser o tubo digestivo, quer simplesmente dizer que o ouvido digere o que ouvimos. Daí que o começo da segunda estrofe, de forma marcante, já tenha sido de certa maneira preparada pelo final da anterior.
Pois, embora pareça estar se referindo em específico à televisão, o poema aborda a relação entre ser humano e mídia. A forma, já disse, como esta manipula aquele. Os raios que escarificam bruxas e odaliscas, isto é, ferem-nas, queimam-nas, seja lá que procedência tenham (talvez advenham da luz que deslumbra os nimbos, do verso anterior), devem ser lidos não só no sentido de destruírem bruxas e odaliscas, mas também no sentido de criarem sua existência da forma como são concebidas. Ou seja: é justamente pelo fato de que são escarificadas que elas existem para a sociedade, como se essa fosse sua razão de existir. Assistimos ao espetáculo, ou, pra ser mais preciso (o que enriquece e muito o texto), o que o poema parece dizer é que o espetáculo se projeta em nós, que nós processamos o que o tubo catódico nos lança.
As moiras são aquelas velhinhas que cuidam do Destino humano ― o lance do tear, lembra? Já Belerofonte era o herói dono do Pégaso. O estrôncio é usado nos televisores pra bloquear a emissão de raios-X. Moiras e Belerofontes se revelarem no elemento estrôncio pode ser lido, sendo assim, no sentido de que os raios catódicos, além de nos manipularem, fazem um mal danado à nossa saúde ― e tais imagens mitológicas, relacionadas ao Destino natural e ao herói que, além de tudo, tinha consigo a Poesia, são o que nos protegem. O que, veja só você, nos leva ao começo do poema.
O próximo poema, Talheres de prata, eu realmente não sei o que pode ter por trás. Se é que tem. Tudo o que você precisa saber é que licantropia é a capacidade ou maldição de virar lobisomem. Quem sabe seja um poema infantil. Sei lá. A conversão de estrofes de quatro versos em estrofes de três é algo que talvez guarde algum significado. Aparece em muitos poemas do autor ― neste, por exemplo, só a última estrofe é um terceto. As outras são quadras. Estaria faltando algo? No poema anterior, a primeira estrofe era uma quadra, a terceira era um quinteto e a segunda e a quarta eram tercetos. Notamos que o poema anterior era meio que cíclico: começava falando de formas de fugir dos raios catódicos ― diz que é inútil ― reafirma que é ― mostra a esperança. A primeira ter quatro versos é um começo normalizado pelo menos nos nove poemas aqui listados; a outra possuir três é mais ou menos um anticlímax. Uma mudança, uma ruptura. Já a terceira possuir cinco pode ser lido tanto no sentido dela ter comido um da anterior, o que o fato de ambas desenvolverem o mesmo assunto valida, quanto no sentido de exacerbar o que foi dito e, digamos assim, vencer a primeira estrofe. Já a última voltar a ter três pode ser lido como retorno irônico à segunda, que reafirmava serem inúteis as tentativas de escapar ao tubo catódico, quanto apenas no sentido de instituir uma ruptura. Em Talheres de prata, quem sabe o final do poema ser um terceto possa significar novamente uma ruptura ― desconfiávamos que a pessoa retratada viraria um lobisomem e eis que ele consegue aplacar o mal.
Grilagem me parece também um bom poema. O uso de termos incomuns parece remeter de algum modo a Euclides da Cunha. Só que esse remetimento se daria apenas na ordem do "os dois usam termos difíceis". Há uma semelhança a mais. É uma espécie de uso figurado das expressões. Pulemos pro final do poema, "várias vidas esgravatam sob o taco / da luzida bota do dito proprietário." Que Marcus não gosta muito de usar as maiúsculas já ficou claro pelos outros poemas, e aqui podemos voltar à ideia de que as minúsculas tendem a democratizar as palavras todas ― embora, claro, existam exceções. Democratizadas as palavras, isso de certa maneira ajuda na tessitura sonora do poema, pois faz com que todas as palavras estejam em pé de igualdade e, assim, possam arremeter-se umas às outras meio que sem pejo algum.
Mas voltando aos versos citados, esgravatar é limpar com esgaravatador. Esgaravatador é um instrumento para limpar o ouvido de peças de artilharia. As vidas, sendo assim, não são nem ceifadas nem desperdiçadas: elas servem pra limpar direitinho a artilharia do dito proprietário. Daí que, no final, o poeta inclusive diga que a bota é luzida. Se digo, portanto, que o uso desses termos incomuns é figurado, é no sentido de que, de forma figurada, a vida humana é comparada ao esgaravatador, e, de maneira mais ampla, é vista como um mero acessório que faz a máquina de matar continuar funcionando.
As bolas de Abelardo se referem às bolas de Pedro Abelardo (1079-1142), que foi castrado por não negar seu amor à sua amada Heloísa. Os jagunços, diz a primeira estrofe, não conhecem a persistência. Parecem desconhecer aquele lado selvagem e perene do sertanejo: dito por Euclides da Cunha, o de ser um forte. As páginas sem cabeçalho são as páginas advindas da grilagem, e o arcabuz é um tipo antigo de arma. O resto é o cenário de uma grilagem descrito de forma quase que silenciosa. De certa maneira, a poesia de Marcus Fabiano se embebe muito na raiz cabralina, em especial pelo uso calculado que faz das palavras e pela forma como contêm sua subjetividade lírica na hora da escrita. Claro que a exacerbação sonora de sua poesia não está muito de acordo com os parâmetros do meste pernambucano, mas não creio que isso mude muito a impressão que possuo.
Neste poema trata-se de um aspecto que é trabalho de forma muito inteligente. Não é apenas uma filiação comum ― isto é, afeita ao gosto apenas. Marcus Fabiano possui talento, e se digo que possui talento, é em especial pela forma como ele trabalha debaixo dessa égide e, pra usar a expressãozinha, cria uma voz sua. Mais importante do que isso: ele usa os dados da égide para que sejam uma fonte semântica do poema. Pois notem o que o poema diz no começo da última estrofe: "no vau desse mato mal emancipado". Ou seja: é um mato ainda ignoto. O objetivo da grilagem é esse: passar despercebida. Sendo assim, o certo silêncio que se apossa do poema, no sentido de que a grilagem em si, em tudo o que ela implica de violência, aflora só no final da segunda estrofe (uma imagem fortíssima em especial pela posição que ocupa no poema) e no final da última, nos versos já citados. O fato de não haver um dinamismo, visto na predominância de substantivos no poema e no fato de que, quando o verbo aparece, ele aparece no pretérito imperfeito ― como que silencia o ato da grilagem em si, e cria uma espécie de panos quentes e imutabilidade para uma violência tão profunda e arraigada.
Os dois poemas que se seguem podem ser lidos consecutivamente como variações sobre o encantamento. Drummond farmacêutico pois Drummond foi formado em Farmácia ― embora o que o poeta nos diga aqui é que a poesia de Drummond serviu de remédio para a anemia de seu tempo. Observe-se o último terceto: "e para os achaques de asma ou mialgias / a melhor cânfora que arrepia as plumas / ali onde é mais viva a nossa carne crua." Cânfora é uma substância aromática advinda de uma planta. Ela arrepiar as plumas é um detalhe muito bonito por parte do poeta, visto que o próximo verso, "ali", operando um corte sintático com o restante do poema (algo que no geral só ocorre na poesia de Marcus Fabiano entre estrofes), parece se referir exatamente a essas plumas. Ou seja: é nas plumas que é mais viva a nossa carne crua. Numa leitura metafórica, posso dizer: na poesia.
Do segundo gostaria de comentar um pouco do primeiro verso. Na verdade, sonoramente esse é, dos nove, o mais belo de Marcus Fabiano. E a preponderância sonora e em especial aliterativa e paranomásica de seu trabalho adquire aqui um ápice. Uma vez que você chega no perene provisório, você deve entender que o atol, um anel circular de corais abaixo da superfície do mar, formado ou na cratera de um vulcão ou num banco de areia, é sem atalhos. Não dá pra ser mais rápido ou querer que esse perene provisório se desfaça ― deixe de ser provisório. Como deduzimos do primeiro poema, a navegação é uma espécie de necessidade. Você deve "Abrolhos". Como assim "Abrolhos"? É com essa palavra que Marcus Fabiano fecha o primeiro verso. Abrolhos é um arquipélago no sul do litoral da Bahia. Dentro do primeiro verso faz sentido, pois Abrolhos é precedido de dois pontos: ou seja, o poeta está falando de Abrolhos. Só que o próximo verso começa com "e os abra como se ordenasse um Sésamo". Então pode também ser lido como Abre os olhos, Abr'olhos, Abrolhos. As duas leituras são perfeitamente plausíveis, ainda mais se você observar que, se não ler da segunda forma (Abr'olhos), você terá que aceitar uma ruptura sintática entre o primeiro verso e o segundo (além, claro, do reforço que essa segunda leitura ganha da epígrafe de Vespúcio). É por isso que digo que é um ponto alto. O poeta consegue extrair significações hábeis de um lado e de outro.
O penúltimo poema se liga ao do lobisomem no sentido de contar uma historinha. A máquina sonora aqui arrefece e o poeta adota um verso curto com pouca ligação sintática entre si. Junta-se ao do lobisomem também por ser um poema ruim.
O último também não é dos melhores. Ele meio que toma aquela ideia exposta em Tubo de raios catódicos, de que somos uma TV, e projeta um filme na nossa frente. A crítica, se comparada com outros poemas, em que fontes semânticas pululavam pelos poros do poema afim de maximizar a mensagem e seu efeito, aparecem aqui de forma tímida. O formato do poema em prosa dá uma continuidade e uma consistência ao poema, novamente por razões análogas à do primeiro poema: frases simples que, fossem dispostas em verso, seriam entediantes. Só que aqui o que há para ser notado é que todas as frases rimam de forma parcial entre si: catre-apache-combate-saques-engasgue-imagem-catre-dramaticidade-covarde. Para além, é claro, das rimas internas dentro do texto, dispostas num espaçamento mais ou menos regular, como por exemplo, na primeira frase, "arte". Isso dá um compasso ao poema, ajuda no clima de suspense e na ideia de alternância que ele representa entre o caubói e o índio, o mocinho e o vilão. Além, claro, do fato de sugerir que são mais ou menos a mesma coisa.
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Rodolfo Jaruga é curitibano e de 82. O título Excertos do Terror não deve ser lido apenas no sentido de uma sequência de poemas retratando o Terror. São poemas em que o Terror mais do que domina; ele gera frutos. Está em todo lugar, e mais do que isso ― está se movimentando, está se reproduzindo.
O primeiro poema, por exemplo. Não há muito o que ser dito dele. De maneira geral, é difícil dizer algo sobre os poemas de Rodolfo. Eles estão aí menos para serem entendidos do que para causarem um desconforto. A dissonância ― a ruptura ― ele usa instrumentos assim via de regra para que uma citação certa maneira absurda incida sobre a realidade e a frature. Um instrumento tipicamente pós-moderno, mas que o autor consegue usar bem graças a alguns detalhes.
O primeiro poema, por exemplo. O título do primeiro poema. O substantivo "Soldados" se refere ao Homem e à Mulher ― ou quer dizer que temos um Homem, uma Mulher e muitos Soldados ao lado? Dentro do que o poema nos diz, a segunda opção parece ser a mais provável, no que o fato de Homem e Mulher fazerem parte de uma frase e Soldados de outra indica o distanciamento que possuem entre si ― e que explica porque o casal urina num cadáver. Mas é importante notar que o primeiro sentido continua de pé, pois, como disse, o Terror se impregna nos poemas de Rodolfo e procria. O cadáver do inimigo. Não um simples cadáver. Tem que ser o do inimigo. Por mais que o Homem e a Mulher não sejam soldados, e só estejam passeando num cenário em destruição, a ideologia bélica se apossou de sua mente. O leitor é capaz de perceber isso de forma um tanto quanto clara ― mas é preciso que se tome cuidado para que se observe de maneira ainda mais detida, e que esse dado, o de se estar num momento de exceção, seja tomado de forma pausada e reflexiva.
O segundo poema da sequência também trata do amor, mas com toda uma sensualidade. Começa com as investidas do homem, que trata Carla como uma esfinge, e continua com essa mesma Carla dizendo que seguraria o pau do amado como um fuzil. Novamente, a ideologia bélica entrando em cena pela porta do rala-e-rola. É como se fosse um cortejo sinistro. Tanto que na segunda noite o amado unta os pés de Carla com petróleo líbio. A pergunta "Você consegue imaginar?" dá uma certa concreção ao texto. É um bom artifício ― isso de virar pro leitor e meio que conferir se ele está prestando atenção no que acabou de ler. Nenhum dos dois, à época, é possível que tivessem noção realmente da iconicidade do gesto. O amado só iria à guerra um dia depois, e Carla só conhece o Mediterrâneo graças a um quadro emoldurado. A ironia está aí ― e me parece que é por isso que ela está muito bem feita no poema de Rodolfo ―: a imagética bélica está presente graças a todo um influxo ideológico, mas nenhuma das figuras presentes no poema e de certa maneira nenhum de nós parece realmente compreender a gravidade dos gestos. Não, não conseguimos imaginar. Mas seguimos untando os pés mais brancos da Europa com petróleo líbio ― a comparar um pinto duro com um fuzil etc etc.
Disse que a ironia do poema funcionava bem. A ironia, de modo geral, de Rodolfo funciona muito bem. A zona de coisas não-ditas é armada de maneira hábil, e quando o poeta para de dizer ou quando ele contorce o poema de forma inesperada, o poema já nos deu corda para que batêssemos a cabeça no vidro e enxergássemos a realidade refletida. O terceiro poema. Em 2004 a Guerra do Iraque já estava a todo vapor. A imagem de certa maneira rotineira da primeira comparação ― um carvalho sendo derrubado não é algo que costuma comover muito, e faz parte do dia-a-dia de muitos ― é transformada na imagem um pouco mais estranha da segunda ― estranha não por termos uma velha morta no banheiro, o que, se pararmos pra pensar, OK, é plausível ― estranha no sentido de que saímos de um carvalho abatido para uma velha na banheira e no sentido de que, bem, alguém com uma bala de fuzil no corpo não lembra muito uma velha na banheira, ou lembra? ― e, por fim, chega à terceira comparação que é de uma ironia, repito, estupenda. O poeta primeiro pergunta: "E o terceiro?" Digamos que ele não precisava perguntar. Somos meio que programados pra ler um ― dois ― três. Se ele perguntou, é porque vai dar um salto ainda maior. Quer criar uma suspense. A torre de Manhattan é uma das duas Torres Gêmeas. Presumimos que o franco-atirador seja um soldado americano, mas ele também pode ser um soldado rebelde. Aqui será preciso retornar ao título. Temos um franco-atirador no balcão de um bar. Isso não quer dizer que ele está atirando de lá. Ele estava atirando do alto de um telhado. Se está no balcão de um bar, é porque está contando suas aventuras. Daí eu poder deduzir que é um soldado americano, pois, como sabemos, os americanos venceram a Guerra do Iraque. E se é um americano, por qual motivo comparar a morte do terceiro alvo com a queda das Torres Gêmeas ― que precisamente iniciaram a guerra? Ignoro as razões. Se existe algo inconsciente, se existe um sadismo, se há mesmo só ironia... O fato é que se trata de uma ruptura profunda, aprofundada ainda mais quando diz, de forma irônica, "Pam. Bem na cabeça." Não digerimos direito a comparação e eis esse verso aí, todo coloquial e desdenhoso.
Os dois próximos poemas são mais diretos à maneira do segundo. Não alcançam a qualidade do terceiro, mas conseguem se manter bem graças à estruturação geral da sequência. Logo no começo do quarto temos uma comparação que novamente cai na conta da ideologia bélica ― "que boiavam feito corpos frios / num copo de bourbon." O desdenho pela poesia e sua manipulação às avessas está no fato de que as palavras do Ministro não cabem na boca de um poeta ― quem sabe pelo fato de que a poesia não conseguiria retratar o jogo de poder com a mesma crueza que o Ministro o faria ― mas palavras poéticas ou, mais exatamente, com uma profunda afinidade para com a poesia ― estas cabem na boca do Ministro. O resto são pequenos detalhes ao longo do poema, como a música de jazz cessando no exato instante em que a moça se pergunta se as palavras do Ministro servem pra calar o poeta, ou o que ela diz de que, se as palavras do Ministro servem pra calar um poeta, então isso daria no mesmo, isto é, seria a mesma coisa que as palavras do Ministro caberem na boca do poeta. Neste caso, silenciando-a.
Já o último traz a ideia de que o banqueiro estaria por trás das coisas boas da vida ― até mesmo do amor ― mas uma coisa eles não sabem fazer: foder. O amado, engordurado, seria no caso aquele que busca esses prazeres burgueses e se empanturra do que não lhe sacia de verdade. Por isso até seu cabelo fica engordurado. Que sua amada lhe mostre o que realmente interessa e muda a ordem das coisas ― e na sequência dela desabotoando o sutiã a quebra dos versos contribui para a imagem retratada ― é, de certa maneira, uma conclusão interessante para uma sequência de poemas que retratavam o Terror. O Terror nesse caso seria o de buscar a satisfação e só se deteriorar aos poucos. Até que o além do amor vem ― o instinto, o sexo ― e muda tudo. No segundo poema esse sexo era rodeado de uma ideologia bélica. Aqui ele é puro. Vem da forma como deve vir. Num rompante.
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Marcelo Pierotti é paulista e de 84. A suposta afinidade que Scandolara viu entre sua poesia e a de Marcelo não é totalmente descabida. O uso de uma voz irônica frente a um material poético que é um verdadeiro lixo e a forma como o eu lírico parece estar em cima da carne seca e ao mesmo tempo atolado na merda ― aspectos que atam ambas as poesias.
O primeiro poema, Prova de três, consegue reunir tudo isso. Essa prova de três pode ser a prova dos três tambores, em que, num rodeio, o participante deve contornar três tambores o mais rápido possível. Pode ser também, quem sabe, um nome diferente pra Regra de Três na Matemática ― aquele lance de encontrar o X e tal. Ou pode ser também uma prova de três coisas ― sabe-se lá que coisas são.
Essa ideia das gavetas e dos quartos por onde o eu lírico passou talvez esteja em contato com o começo da saga proustiana, com o Narrador rememorando os quartos onde já passou e dizendo de que forma todos eles parecem se ligar a um quarto primordial fundamental. O quarto do qual, no fim das contas, nós nunca saímos. O resto é um enorme acúmulo de lixo ao redor do poeta. Imagine só aquilo das latinhas acumuladas desde os dezoito e já dá pra ter uma ideia. A única coisa que persistiu na lembrança foram os três cachorros mortos. Esses, afinal, não podem ser descartados de forma impune. Cão é cão. Se pensarmos na prova de três como a prova dos três tambores, o eu lírico pode até passar o mais rápido que pode ao longo dos tambores apinhados de lixo ao longo de sua casa, mas aqueles três tambores ali ele não pode. Agora se quisermos ver nessa prova de três como a regra de três na matemática, seria a ideia de, com três dados à mão, descobrirmos um quarto. Com todo o lixo que ele diz ter acumulado ― as incontáveis latas de cerveja ― ou então, na terceira estrofe, o resultado geral sendo três, isto é, a dúzia de sapatos (um número exato), se dividida pelos quatro outros objetos que são descritos, dá três ―; com todo esse lixo, podemos chegar ao X da questão, que seria uma espécie de desperdício das coisas e dele mesmo. Agora se tomarmos como base os três cães, aí a coisa muda de figura. É algo muito mais doloroso ― é maior. Literalmente maior: o cão tem quarenta quilos, ora essa. Só que é preciso que se preste atenção na construção sintática da última estrofe: "O maior tinha / quarenta quilos / que carreguei / encharcados". Encharcados está no plural. Ele está nos dizendo que carregou os quarenta quilos encharcados ― e com isso podemos pressupor que esse cão maior volta a ser um objeto como outro qualquer ― ou que ele carregou os três cães mortos consigo ― e os três versos anteriores seriam uma espécie de parêntesis ― ? Ficou ambíguo, e o poeta explora bem um exemplo e outro. A imagem retratada é muito melancólica, e, seja carregando aquele cão morto de quarenta quilos que, afinal, depois de morto é só mesmo quarenta quilos, seja carregando os três juntos, é algo desolador. Um irrompimento de empatia e sentimento num poema um pouco frio, alheio, as coisas acontecendo com o eu lírico e ele nem se dignando a jogar fora.
O segundo poema nos fala de algo que todo mundo já fez. Fez o quê? É claro que o poeta não vai nos contar. Se ele contasse, a qualidade do poema caía vertiginosamente. Fica por conta da imaginação. Posso pressupôr que seja algo relativo ao matar ― ou a uma espécie de ferocidade assassina ―, se me colocar nas situações retratadas. Por exemplo, frente a um fuzil com uma fera no sertão. É pegar o fuzil e matar a fera. Só que aqui devemos notar duas coisas. A primeira delas está no título. Um belo dia. A expressão é muito usada para falar de hipóteses: um belo dia isso pode acontecer. Só que ela está correlacionada a coisas no passado. Todas são hipóteses, e duvido que qualquer pessoa que me leia já tenha ficado numa situação tal como as que foram esboçadas. Como sustentar, portanto, que todo mundo já o fez ― se poucos viveram algo disso? Ele lança a hipótese, isto é, joga algo lá no futuro, na zona do poderá-ser-assim, e de repente engata a marcha-ré e eis que estamos na zona do foi-assim. É como se ele exacerbasse o funcionamento da hipótese e já tomasse ela como feita. Ou como se existisse um ingrediente a mais para que tal presunção tão absoluta seja feita ― a de que essa ferocidade assassina não está apenas nas hipóteses listadas, mas nas coisas pequenas. Como se a listagem não fosse exaustiva ― só, digamos, excessiva. Veja-se o caso da última estrofe. O próprio poeta se inclui no que é dito. Só que aqui temos uma construção interessante: a situação já não é tão improvável. Na mira de dois olhos raivosos que nem mais dona tem. "Dona", no feminino, claro, se refere a uma mulher ― aí aquela conversinha entediante da mulher com raiva, na TPM, o escambau. Zzz. Claro que Marcelo não se limita a isso. Essa é a única estrofe do poema todo em que estamos numa posição passiva. Os outros se referem quase todos a alguma arma ― e nesse a arma está implícita no termo "na mira". Só que nos outros a arma está ao alcance da mão, ou quem comete a ferocidade somos nós. Apesar de se referir a uma mulher e estar na posição acuada ― e de dizer explicitamente que já esteve nessa condição ― julgo correto dizermos que, como elaborei antes, o poema não é exaustivo e dá e entender existirem outras situações em que podemos afirmar que nos apossamos ou no mínimo somos vítimas de tal ferocidade assassina. Por isso que ele lança a hipótese e, no corpo do texto, vale-se do tempo verbal pretérito.
O terceiro é o que mais me cativou pessoalmente. Pressuponho que as fotos cada vez mais difíceis de achar são fotos boas ― mas, mesmo que não sejam, são no mínimo fotos marcantes, dado o fato de serem fotos e de estarem debaixo da cômoda. É quando deixamos de achar tais fotos, tais lembranças ― digo lembranças de olho em especial no fato das fotos já virem velhas ―, de nos encantarmos com elas, que morremos. Não creio que exista muito o que comentar sobre o poema. É mais para ser sentido.
O próximo creio estar nessa linha também. Claro que tanto este quanto o anterior já não estão tão inscritos nas características que antes apontei; a verve aqui é muito mais íntima. Compare-se o último poema, Dia de faxina, com o primeiro. O clima vertiginoso e absurdo do primeiro poema, com seu final melancólico mas nem por isso menos obscuro, está quase que todo ausente aqui. Não sabemos a que se refere "Das que foram meio perdidas", mas o fato é que foram perdidas junto com as outras coisas listadas na estrofe. O começo, "E faz tanto tempo", dá um tom de continuidade e desabafo ao texto que sem dúvidas o enriquece, posto que a ideia do dia de faxina que apaga determinadas coisas mas não consegue varrer outras ― não necessariamente as melhores, mas sim aquelas que temos e permanecem conosco (vide última estrofe). Faço notar, deste último poema, o final da segunda estrofe, que passa das unhas às ancas e aos pés. Unhas, é claro, descartáveis, mas ancas e pés com certeza não. Podemos pressupor que o poeta se lembra de outra pessoa, e talvez até mesmo que as unhas seriam dessa outra pessoa também ― o fato, contudo, é que, boa a lembrança ou não, ela é nossa. E nós a mantemos por muito tempo, o que o fato de ser um dia de faxina após ter feito tanto tempo, indica.
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Enaiê Mairê Azambuja é de 90.
Há toda uma leveza em seus versos. E uma estrofe que é uma forte concorrente para a mais bela de 2014.
O primeiro poema, Namorados no museu, possui meio que dois pontos-chave: a segunda e a última estrofe. O museu representa uma viagem ao passado ― só que a um passado que, ao invés de se perder, manteve-se ― a ideia de que o tempo lá é diferenciado pois, como dito na terceira estrofe, leões escoltam o tempo. O verso "Eles passam..." pode se referir tanto ao raro conjunto de porcelana na Mulher Nua com Colar, no sentido de que a beleza, o tempo daquilo ali já passou ― pode se referir aos namorados que passam por aquela parte do museu ― e pode se referir, num sentido cominado ao primeiro, que os namorados também vão passar, que o tempo deles também vai acabar. Já na última estrofe, o "Eles os atravessam..." pode dar a entender que atravessam as peças do museu ― uma espécie de viagem ao tempo, sustentando que seu amor também vencerá o tempo ― ou que atravessam os dedos do Buddha. Só que aqui a coisa pode mais uma vez se bifurcar, pois esses dois dedos sustentam a seda que lhes atravessa sem cuidado. Uma metáfora pro que ocorrerá com os namorados?
Desde Manuel Bandeira sabemos que porcos-espinhos são fofinhos. Esses animais têm muito o que ensinar a nós todos. De maneira um pouco surpreendente, são capazes de nos ensinar o amor e a simplicidade. Aquela imagem que temos do porco-espinho como um animal arredio ― que se embola e fere ― é posta de lado aqui. É um poema bonito, mas não sei dizer até que ponto seja um poema tão bom assim. Sua simplicidade e a construção em alguns momentos hábil conseguem manter bem o poema ― mas ele não possui aqueles pontos concentrados de sensibilidade como no caso do anterior. Não quero com isso dizer que chega a ser um poema ruim ― estamos mais no âmbito de um poema mediano. Veja, para que cite alguns de seus méritos, na primeira estrofe o verso "ou dois", que dá uma certa concreção ao movimento sensato. A forma como aos poucos vamos entrando na rotina dos animaizinhos é também digna de nota graças à sutileza: quando a autora nos diz "da vida porco-espinho", é como se já estivéssemos prontos para embarcar nesse mundo de ruibarbos e beterrabas. O uso dos parêntesis não está nada mau: eles, mais do que reiterarem uma informação, funcionam como uma espécie de lembrete, uma senha de acesso para "um reino mágico restrito." Quando chegamos a tal ponto, já estamos habituados a este reino. O advento de um momento de, pra fechar o parágrafo como abrir (com Bandeira), alumbramento nos acomoda e, à maneira do torso arcaico de Apolo, nos faz mudar de vida.
Trata-se de um movimento poemático certo modo frequente nos poemas da autora. Com frequência ela traz não só um eu, mas um você para dentro do poema. Só que não se derrama liricamente. É como se chamasse outra pessoa para o plano poemático afim de contar algo que aconteceu aos dois, à maneira de quem quer dar mais veracidade à história ― ou de estabelecer uma narrativa que não se paute apenas em seu testemunho. Esta narrativa é basicamente contar como de repente o alumbramento veio e tomou conta. Do próximo poema, a descrição pacata de um passeio de bicicleta termina com uma citação melancólica. Quem prestar atenção vai ver que desde o começo tem algo de errado, e Enaiê é realmente muito habilidosa em fazer com que o leitor se aclimate ao poema de maneira bem sutil, afim de que, quando o final chega, o leitor consiga sentir a um só tempo espanto e coerência. Por exemplo, na primeira estrofe a velocidade vertiginosa do silêncio ― as ondas que varrem um enorme peso na segunda ― a outra pessoa que olha as mãos agitadas ― por quê agitadas? ― e, na mesma estrofe, "o sacrificante futuro de Nynäshamn." Não consegui encontrar nada a respeito de Nynäshamn e de Gotland que valide o sacrificante futuro e o fato de que a bandeira diga que é nós todos ― e morre. É algo um tanto quanto esfíngico, um vaticínio que paira pelo ar e, venha a ser ou não entendido, se embase ou não num acontecimento histórico, como que fecha a tampa de uma vez por todas e nos faz ficar pensativos mais no que virá depois ― no que fizemos até aqui ― do que efetivamente nas razões de ser assim.
O dia em que tomamos ácido leva um pouco mais a fundo a característica da autora de deixar o final em aberto ― embora nos aclimate, como dito, ao que é retratado. Tomar ácido, evidentemente, quer dizer suicídio. O clima do poema, o que também é evidente, é de uma melancolia profunda. Que os dois únicos versos que se valham de espaçamento sejam "e chorei" e "'Você é bonita'", certa maneira indica que são os únicos versos que destoam daquela vida tão miserável. Uma imagem como "flores gigantes de néon" é muito bela ― na hora dá a entender o advento de um ambiente urbano e, presumivelmente, de toda uma agitação que o poema não simula em nenhuma outra parte. O pesado relógio do final da primeira estrofe, por exemplo, está afogado. Os ruídos que aparecem na terceira estrofe são externos mas não literais ― a Terra estremece diante dela e as nuvens correm mais rápido; contudo, esta me parece ser a sensação que o eu lírico tinha naquele instante. O que ela sentia ― tanto que tudo isso oferecia a ela "clareza sobre o tempo." É possível que tenha sido aí que ela tenha bebido ácido ― os dois. A imagem do cão perseguindo os mesmos gravetos é, mais uma vez, muito bela. Pare e realize: os donos acabaram de tomar veneno, se meteram dentro dos campos de trigo, antes jogando o graveto ― elá vai Ollie pegar o graveto, enquanto o vento pressionava seu frescor sobre as costas de ambos. Um eufemismo para o falecimento: eles tombaram. Quais as razões para o suicídio, complicado dizer. Desgaste? Não sei. Enaiê se preocupa mais em tomar a "decisão" do suicídio. Entre aspas pois o que o eu lírico diz pra si mesma no quinto verso talvez indique que a decisão não foi acatada cem porcento, e que, quem sabe, no fundo ela sentisse pena de morrer. Medo. Seu coração martelando logo depois, os braços e as pernas cruzadas quando se sentou no jardim... O "você" do poema foi quem armou tudo, ou pelo menos quem meteu a mão na massa.
Inflorescência, por sua vez, é dos mais belos poemas eróticos do ano. Existe uma delicadeza, é claro, mas também existe uma intensidade. A inflorescência é o modo como as flores se agrupam dentro de um vaso. Daí a comparação realmente interessante do final da primeira estrofe: um poeta sem a sutileza de Enaiê teria comparado o pênis a uma orquídea, o que já não está mau ― mas Enaiê tem o cuidado de trazer o vaso. Seu cuidado vai um pouco além. O tom frio e suave da primeira estrofe é seguido do tom mais acalorado da segunda ― é claro, a parede aquecida. Só que a suavidade persiste, e a orquídea murmurando no escuro parece dar a entender o sexo oral. O parêntesis no penúltimo verso tem a mesma função do que nos poemas sobre os porcos-espinhos: lembrar algo que não pode ser esquecido. O fato dos olhos serem azuis e, mais do que isso, aquosos, é um aspecto que já teria seu valor se posto de forma isolada, mas que, dado que a autora antes trouxera a orquídea e o vaso, ganha um correspondente passado: isto é, a ideia da aclimatação operando em giros menores aqui neste poema.
O penúltimo talvez seja o pior poema dentre os listados. É como se a autora sucumbisse ao lugar-comum de retratar a vida de um casal a partir dos registros fotográficos ― uma tomada de cena cinematográfica que já se tornou um enorme clichê. Claro que não quero com isso rebaixar ao nível dos piores textos o poema de Enaiê; ela ainda toma alguns cuidados dignos de nota, especialmente a comparação no final da segunda estrofe das rugas escavadas por uma criança com uma pá de plástico ― uma forma belíssima de atar as duas pontas da vida, como diria Machado ― e o final do poema, com a ideia de que ambos se levantavam da banheira em câmera lenta, meio que sob o efeito narcotizante daquele relacionamento dependente de registros fotográficos.
É do último, por fim, a estrofe que a meu ver é das mais belas de 2014. É a terceira:
Qual é
o nome
de um jarro
pleno
de água?
Antes de chegarmos até ela, observemos que o recurso do espaçamento gráfico é usado mais uma vez ― e muito bem usado, por sinal. No primeiro caso, demonstra figurativamente a toalha de plástico estendida sobre o oceano, pois é como se o verso também se estendesse em relação aos restantes e flutuasse (como podemos supôr que ocorrerá com a toalha de plástico) ― e, no segundo, usa o mesmo efeito para mostrar como a brisa passa: leve, leve, leve.
Quero que o leitor note a engenhosidade das metáforas. O corpo que se desprende da toalha de plástico estendida sobre o oceano. Pense na vastidão do oceano. Pense numa toalha de plástico. Gosto de pensar numa transparente, mas tanto faz. É como se o oceano fosse uma mesa e essa toalha se estendesse em cima dele, e ficasse flutuando. Agora pense num corpo se desprendendo disso. Disso o quê? Da leveza e da imensidão. Na segunda estrofe, contudo, as imagens são mais contundentes. Uma parede indestrutível ― sem comentários. Uma chama tripartite ― a intensidade disso! ― que baila com a brisa ― que passa através da porta. Não necessariamente de forma literal ― essa chama pode muito bem lançar sua sombra debaixo da porta, iluminando, quem sabe, um quarto escuro (pois, caso contrário, dificilmente notaríamos a chama passando debaixo da porta). Veja como ela consegue apresentar duas imagens a princípio antitéticas ― água e fogo ― que, todavia, se unem pela intensidade e pela leveza internas.
Isso tudo se rompe. Afinal de contas, a toalha num oceano era coisa instável ― o mesmo com a chama bailando com a brisa (e se a brisa resolvesse dançar um pouco mais rápido?). Aí vem a estrofe. Qual o nome, você também se pergunta. Engraçado, pois não tem. Deveria ter? Numa visão poética do mundo, deveria sim. Jarro pode ser os dois, mas não tem cabimento que seja assim ― jarro pleno de água e jarro vazio são muito distintos. Jarro pleno de água ― metaforicamente, isso é o amor. Fechar se perguntando "O que é o vazio / do que se tem drenado?" pede para que seja lido com atenção: note como o último verso indica a ideia de uma ação contínua. A separação encarada aos poucos e de forma constante ― talvez até mesmo depois de já ter sido feita. Vamos imaginar aquele jarro pleno de água mesmo. Estamos drenando a água dele. Mas o que é o vazio do que se tem drenado? Ou seja: o que é que se tem drenado nesse caso? ― É a água, não concorda? Pois então: sabemos o que é o vazio do jarro ― isso tem até nome ― mas e o vazio da água? Se o jarro pleno de água é o amor, o que é o vazio do amor?
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Glayssom Zamt é mineiro de 84. Ele foi, a um só tempo, o primeiro contemporâneo publicado em 2014 (o link que acabei de), e foi também publicado em julho: aqui. Para não ferirmos o moon walk, leiamos primeiro o que julho nos trouxe.
Ataraxia, do gregô Ἀταραξία, é a quietude absoluta da alma. Uma espécie de inércia que atrofia. Este segundo sentido o que Glayssom nos diz. Todas os três períodos do poema terminam no presente do subjuntivo, só que numa negação. Não são, portanto, ordens. São fatos que podem ocorrer no momento atual ― só que negados. Além disso, os dois primeiros períodos começam de maneira negativa: "Não há". É um tipo de negação generalizadora, indicando que não existe nenhuma coisa que não seja daquele jeito. A violência, como se pode ver, é maior do que se fosse apresentada aquela coisa e depois negada para o eu lírico. Pois, com a estrutura negativa no começo, a negação ela é total. O caso do terceiro período é um pouco mais curioso. Ele já começa com uma ação no presente do indicativo: "Imortalizas". Só que no caso o que é imortalizado são as agruras ― bem o que líamos nos dois períodos passados, acerca do verso que se sustente (e poesia sempre esteve ligada à fixação de agruras) e das tragédias que não são levadas com brio ― e mais ― elas são imortalizadas a partir de uma posição, pressupõe-se, mais passiva do que ativa, isto é, imortaliza-se as agruras sofridas no sentido de que elas não param de lacerar ― e não no sentido de que as agruras são imortalizadas no tempo à maneira da fixação no mármore imperecível. É o que o final do poema atesta, lembrando-nos da figura do José drummondiano ― que, mais do que simplesmente ser imóvel, morto, abobalhado, sei lá, era um empecilho no sentido não de barrar o caminho, mas de deixar evidente que nós chegamos ao fim do caminho ―; é no final do poema que o autor diz da "tua careta de gozo / e teu trejeito horroroso", sem menção alguma a possíveis obras que essa pessoa teria feito para imortalizar as agruras, dando a entender, pelo contrário, que as agruras jamais pararão de doer. Por isso que a negação no final deste terceiro período também funciona de maneira diferente: ela não arrebata a única coisa que sobra ao eu lírico. Ela arrebata uma hipótese de algo que pode acontecer numa espécie de volta-por-cima. Ela arrebata a esperança. Só que a esperança não fora enunciada antes; em todos os outros casos, dizia-se que não havia mais sentido algum. Aqui nós chegamos a essa conclusão ― e, existindo a esperança, representada na dança, ela é retirada. Que a calma impere. E assim seja.
Diacrítico, por sua vez, é referente àqueles sinais gráficos que indicam mudança na entonação ou na pronúncia. Por exemplo o acento agudo. É totalmente provável que Glayssom tenha usado também no sentido de que diacrítico = dia+crítico. Um dia crítico. Que se destaca dos outros por destoar etc e tal. Só que o que ele ataca aqui é que talvez não seja bem um dia crítico, mas um dia como todos os outros.
A forma do poema é digna de atenção. Glayssom trabalha o espaçamento como quem quer o sumo. Vai se afastando, se afastando, se afastando... e, aparentemente, chega ao que realmente importa dizer. À camada mais profunda das intenções. Numa rotina feita de dias críticos, em que a rigor um dia crítico não parece existir, a formulação gráfica do poema é uma maneira de resistência. Uma maneira de encontrar aquilo que o exercício cotidiano não nos dá: a graça do costume. Tanto no sentido de que o costume daria o ar das graças, quanto no sentido de que acharíamos qual a graça do costume. Encontrar um ineditismo que não seja árido ― não nos remeta à mesma paisagem sempre. E por aí vai.
Os versos 5 a 7 merecem uma pequena atenção. Requentar a música mínima é uma maneira prosaica e urbana ― e fabulosa ― de dizer pra que se mantenha viva a música, a arte, provavelmente aquela mesma graça do costume. Ela já é pouca ― imagina se morre? Só que essa música mínima se esgarça junto ao coro do peito. Como se, assim, ganhássemos uma retumbância maior, e a música, que antes era mínima, supostamente ficasse mais alta e possível fosse de inundar os dias. Claro que posso estar exagerando, e, de toda maneira, a música mínima unida ao coro do peito, isso continue a ser mínimo ou não, reconforta. O peito reconforta. Digo isso tendo em vista o fato de que a palavra "peito", o verso 7, está violentamente isolado do restante. Se tomarmos como base a lógica da destilação que o poema apresenta, ele já é a coisa mais destilada. O peito não se encaixa no diacrítico. Ele precisa retornar à origem da página e perseguir na resistência absoluta ao marasmo dos dias.
Tremer frente ao hífen, conforme dito no final com referência a 1984, pode ser lido como tremer diante da construção de novas palavras ― pois o hífen é procedimento comum nesse sentido, criando as chamadas palavras-valise ― e aí você tem que tirar da lembrança a novilíngua ― ou então apenas no sentido de que o hífen estabelece um contato direto e longe do ineditismo árido ― isto é, ele é capaz de fazer com que fiquem juntas algumas palavras distantes até então.
O poema publicado no começo do ano, Balada para Auguste, é o melhor dos três. Se os poemas que seriam publicados meses depois possuem em comum o tema do marasmo e a tentativa desesperada de romper com ele ― neste aqui o tema ganha uma estância metafísica. Ou, melhor dizendo, ele vislumbra, perante a impossibilidade metafísica, a realidade nua e crua. O uso do termo "balada" coaduna com o ritmo certa maneira compassado do poema, com rimas que vão atando pequenos blocos de versos e com isso criando uma musicalidade mais ou menos esperada na cabeça do leitor.
Se o eu lírico diz que desconhece a medida das coisas ― e duvida até mesmo se as coisas podem ser ― mas ele não deixa claro se as coisas poderiam ser num sentido, sei lá, fenomenológico, ou se elas podem ser medidas ― a última opção me parece mais plausível ―; se ele diz isso, ele se posiciona em determinado local e, de acordo com suas limitações físicas (isto é, até onde sua vista divisa), contempla "a marcha fúnebre dos corpos / cansados". O tema da exaustão é trabalhado por Glayssom com uma preponderância que, sinceramente, não creio existir em nenhum outro contemporâneo. E ele se sai bem, de verdade. Por exemplo, quando, versos atrás, ao se referir à ordem, diz: "(essa bênção!)". Creio que é perfeitamente possível ler como apelo irônico tais versos.
Mas seguindo, esses corpos cansados possuem "trejeitos estranhos / de gado a serviço do pasto / ― da pátria". A estrutura sintática ajuda a enriquecer o poema. Não só a paranomásia entre pasto e pátria, muito bem feita e que toca a fundo a ferida ― mas no uso do travessão que insere justamente a correlação entre pasto e pátria à maneira de uma estocada, não nos deixando de jeito algum esquecer que esse gado está a serviço do pasto da pátria. Um pouco mais pra frente ele usará o mesmo instrumento, ao dizer da esperança que é comprada a prazo, "em vinte vidas sem juros". Um pouco antes, as vozes sem bocas dão um clima espectral ao poema ― também um clima incômodo. Pois não sabemos de que boca saiu aquela voz, se é que houve uma boca. São frases à solta pelo espaço ― e, claro, isso não quer dizer que sejam necessariamente uma coisa ruim; na verdade, essas vozes "anunciam planos ótimos", e, sendo ótimos ou não, eles nos deixam à solta no espaço, sem amparo.
E o que era uma balada vira uma procissão. Primeiro a procissão das pessoas cansadas, depois a das vozes sem bocas, e, por fim, olhando o mais longe que podemos, a promessa do progresso. Ele virá? Glayssom o caracteriza como "karmicômico". Um bom neologismo. Venha ou não venha, ele nos acalante. O poeta nos garante que ele virá. O travessão é mais uma vez importante pois, pondo de chofre determinada coisa dentro do poema ― que, nas ocasiões passadas, era esperada dado o andamento sintático do período ―, inclui uma informação que, aqui, não estávamos preparados para receber. É como se rapidamente após dizer que o progresso virá, e sem tempo para que consigamos digerir esta informação, o poeta nos perguntasse se estamos preparados. Uma surpresa. Somos acondicionados a aguardar pelo progresso e, quando recebemos a certeza de que ele virá (o verbo "virá" aparece duas vezes, como uma espécie de eco ― claro que pode ser um eco irônico, mas julgo difícil provar que seja), a forma como Glayssom e a própria pergunta de Glayssom põe em xeque meio que nossa vida inteira. Afinal de contas, o eu lírico não está tão distante assim do gado a serviço do pasto da pátria. Ele é mais ou menos uma ovelhinha desgarrada que quer tocar fogo no circo. Mais do que responder se está preparado ou não, a pergunta final de Glayssom, posta da forma como foi posta, isto é, de súbito, acarreta outras perguntas desagradáveis e quem sabe impronunciáveis.
Suponhamos esta: depois que ele vir. E aí? Como fica?
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William Zeytounlian é paulista e de 88. E esgrimista. Senhoras e senhores, a mothafocker esgrimista with lasers.
Ruínas. Em postagens passadas aqui no blog comparei a poesia de Zeytounlian à poesia de Orides Fontela, em especial pela forma como ambas possuem uma solenidade fundada em cima de toda uma concisão que transforma cada palavra num cubo de energia.
A base do poema é o verso de 4 sílabas, existindo, claro, variações aqui e ali.
Qual é o ponto indefinível?
Observe que a pergunta é meio descabida. Se o ponto é indefinível, como defini-lo? A primeira estrofe abre e fecha o poema, sempre acercada de um travessão. Supomos que, ao longo do poema, o poeta tentará definir ou explicar um pouco melhor o que é esse ponto indefinível, ou como chegamos até ali, não sei. Se o nome do poemas é Ruínas, e se pensarmos em qual seria a dinâmica das ruínas, podemos observar que as ruínas representam um ponto indefinível. São restos históricos que não podemos dizer pertencerem totalmente a determinado tempo. A rigor, sim ― mas é preciso fazer uma leitura um pouco mais atenta da questão. As ruínas foram usurpadas de seu tempo histórico e persistem. Chegam até o presente e, pelo próprio funcionamento da leitura histórica, têm a dizer do tempo de que advêm e do nosso próprio tempo. São uma espécie de intersecção. Pois note como William diz que o ponto indefinível é o nosso. Ele está mais do que incluindo a si mesmo e ao leitor no poema ― ele está falando, de maneira geral, à Humanidade. As ruínas representam o nosso ponto indefinível como seres humanos.
Formalmente, algumas estrofes possuem um recuo diagramático. Isso mais ou menos quebra a unidade da estrofe ― e se lemos cada estrofe como um bloco de mármore, é dizer que elas se rompem e são deslocadas. Qual se fossem ruínas. O uso das rimas e dos efeitos sonoros é também digno de nota não só pois William consegue excelentes resultados, mas também pelo fato de que amarra e dá uma consistência ao todo poemático. Ata partes que estão distantes.
"motivo / repetitivo". As ruínas são uma constante no caminhar da humanidade. Representarem o "cimo / do labirinto" ― pode parecer meio difícil entender isso, mas imagine como seria o cimo de um labirinto. Não seria a solução desse labirinto? O labirinto parece ter sentido quando é plano. Mas não vou dizer que é a solução do labirinto ― na verdade, o cimo de um labirinto é o ponto alto, como se fosse a parte mais complexa, ou simplesmente aquela parte em que podemos vislumbrar o labirinto como um todo. Um panorama dele. As ruínas não fazem a mesma coisa ― nos permitem observar a História como que no cimo de um labirinto? O labirinto dos tempos...
As duas perguntas da terceira estrofe são de certa maneira dialéticas. Pressupõe, na primeira, que toda pergunta traz sempre a mesma resposta. A princípio podemos pensar que sim, se tivermos como modelo as perguntas escolares ― a pergunta certa e a errada. Mas, quando crescemos na vida, viramos grandinhos e nos encontramos numa coisa chamada debate, aí observamos que em algumas áreas do conhecimento humano essa coisa de pergunta que contêm só uma resposta não existe. "que pergunta / não traria / sempre a / mesma / resposta?" Uma pergunta histórica, por exemplo. Uma que dependa da interpretação das ruínas ― algo que, como disse, está sempre atrelado à posição do intérprete como homem de seu próprio tempo. Agora imaginemos um alvo. Acertar o alvo não deixa de envolver uma certa aposta. Uma resposta que acertaria sempre o alvo da mesma aposta. Além de enxergar uma precisão seja lá do quê acerta o alvo, é preciso enxergar com olhos meio enviesados o fato de sempre se fazer a mesma aposta. Pois chega um momento em que acertar o mesmo alvo fica fácil ― e apostar no mesmo alvo, por sua vez, fica obsessivo. Que resposta foge de tal obsessão?
É preciso mudar, começa a quarta estrofe, pois caso contrário ficamos intraduzíveis. A imutabilidade não é sinônimo de facilidade neste sentido ― de que o que é imóvel é traduzido com mais facilidade. "Se eu não me / detenho, / a minha imagem / permanece." Esta também é uma estrofe dialética. O que é mutável ― por exemplo as ruínas são mutáveis ― pode ser traduzido. Por quê pode ser traduzido? É o que a outra estrofe tem a nos dizer, calcada, dessa vez, não no estático, mas no dinâmico. O que é mutável faz com que a imagem permaneça. Se você se detêm, ela não permanece ― o que é um movimento meio difícil de acompanhar, pois tendemos a pensar que, quando você está parado, é que a imagem pode ser fixada. A ideia da imagem, aqui, está ligada ao movimento. É movimentando-se que a imagem permanece, dando a entender que a produção da imagem não é instantânea ― basta estar que ela é fixada. É um trabalho lento. Provavelmente incompleto. Assim como a pátina histórica.
Pode ser que um dia acabe? A resposta não é dada. A hipótese é apontada, mas o que fica é essa relação histórica um pouco conturbada que temos frente às ruínas. É preciso que elas se movimentem e mudem para que sua imagem permaneça e para que sejam traduzidas. Elas rompem com a simplicidade da pergunta com só uma resposta e com as respostas em torno apenas do mesmo alvo. Só que elas vão sendo corroídas, é possível que chegue um momento em que elas desapareçam. William não está ― caso queiramos proceder frente a esse fato ― falando de uma ruína em específico, ou apenas das ruínas que encontramos agora. Seu poema consegue chegar a raias mais profundas do assunto. Ele aborda também a interpretação de ruínas ― quaisquer ruínas, pois, de resto, elas são um motivo repetitivo ― e, ao longo de sua obra, vislumbrará a produção das mesmas. Aqui nem tanto. As ruínas continuam sendo nosso ponto indefinível, o ponto a que chegamos e que não nos permite diferenciar. Bem vindos.
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Rubens Akira Kuana é catarinense. 92. Seu primeiro livro não é propriamente um bom livro ― mas possui propostas excelentes que são levadas a pontos um tanto quanto surpreendentes. Em poemas mais recentes, diga-se de passagem, o poeta tem conseguido resultados esplêndidos ― só que tal nível estético aparece timidamente em sua estreia.
Existe um após a desconstrução na poesia de Rubens ― o que parece um pleonasmo pois toda desconstrução prezaria o após ― sentido que não é bem o que tomo, tratando de desconstrução mais a ação e o ato do que o resultado. Existido esse após, nem o poeta parece saber direito o que quer, o que sente, aonde quer chegar. Aquele sentimento desolador de que a boiada foi estourada ― essa coisa chamada pós-modernidade ― atua de maneira muito intensa em seus versos, e o sentimento geral é o de algo insosso que você não consegue digerir. Engraçado, não? O título do livro. Nós não conseguimos digerir esse ensopado de absurdos. Talvez aí resulte o que disse do livro não ser exatamente um bom livro. Não por ser algo insosso, digamos assim ― é perfeitamente possível que possa vir a ser insosso e, ainda assim, continue bom. A questão é como lidar com as fontes semânticas geradas por um poema estando em pane. Que o objetivo geral é o da dissonância, o de ferir a fundo mais do que o objeto estudado ― também os instrumentos poéticos e o próprio entendimento textual ―, isso me parece claro. Mas a forma como se irá gerir o alcançar tal objetivo é que é a questão. Não se trata simplesmente de desconstruir ― existem níveis e níveis de desconstrução. Nem sempre Rubens chega a níveis realmente profundos. Em alguns momentos não só a desconstrução me parece certa maneira superficial ― como o resultado é superficial. É meio que um problema próximo do problema da ironia ― e tanto que com frequência o instrumento gerador de dissonância ou de desconstruções é a ironia ― mas que pode se diferenciar no sentido de que, enquanto a ironia deixa uma zona de coisas não-ditas que o leitor é programado a dizer ― no caso do texto desconstrutivo geralmente não sobra muito o que ser dito. É o silêncio ― aquele silêncio de redescobrir as engrenagens do mundo.
Um projeto poético calcado na desconstrução é um projeto poético de pequenos estalos. Não se pode querer de um projeto assim grandes resultados ― Resultados com R maiúsculo, à guisa de poemas memoráveis ou extremamente bem escritos. Você terminar de ler o poema e se perguntar "Tá, mas e daí?" pode muito bem ignorar o fato de que o que o poema tinha pra dar ele já deu ― ou seja, desconstruir. Pois muitas vezes o projeto ganha não na realização, mas na ideia e na própria existência ou esboço do projeto. O que não é uma porta de entrada ou uma espécie de desculpa prévia para fracassos, evidentemente ― continuamos com os mesmos problemas, as mesmas dificuldades, concentradas, desta vez, no movimento da cortina ser levantada ― e não no espetáculo em si ou na preparação. O primeiro poema, por exemplo, diz muito pouco. Tudo o que é listado é absurdo ― e o fato de ser chamado de coincidências histéricas é algo que diz mais a respeito do eu lírico que do leitor. A princípio. Pois você lê, não entende nada ― e um poema desconstrutivo quer isso aí mesmo: o impacto, a desolação ― e começa até a querer encontrar as coincidências prometidas pelo título. E, se levar isso muito a fundo, fica histérico igual ao eu lírico. O campo de visão ser uma gangorra traz, além do alto e baixo que se repete, um toque lúdico. É mais ou menos o que se vê na construção do poema, intercalando frases repetidas que dão a entender precisamente alternâncias: querer comer uma terra que ainda não está lá, ou a cintura menor que o campo de visão.
Apesar de ser me parecer um poema francamente ruim, dentro do projeto desconstrutivo do livro é um poema que segue válido e que cumpre seu papel. O leitor precisa entender isso. É como se estivéssemos empreendendo uma viagem ao fantástico mundo de Rubens ― ou ao fantástico mundo de Digestão ― de modo que temos de fazer um esforço para não exatamente compreender a fundo, mas sim de poder conviver com menos estranheza ou com mais sensibilidade aos sopapos que o livro nos dá.
O embaralhamento das informações, por exemplo, é muito melhor realizado no próximo poema. Aqui temos a retroescavadeira que derruba pilares trabalhando de forma mais intensa e mais inteligente ― e a sensação certa maneira vazia que a desconstrução acarreta é ao mesmo tempo construtiva, isto é, deixa que reconstruamos, a partir das ruínas, concepções mais lúcidas, uma vez que o poema nos ajudou a mergulhar na estrutura do objeto retratado ― visto que, para a desconstrução, tão importante quanto o desconstruir é o esquadrinhamento do funcionamento do objeto pesquisado.
Uma coisa puxa a outra. As calhas e caixas d'água do segundo verso talvez surjam da ideia de serem água e das mãos serem brandas ― água, suavidade, branda. Ou pode ser simplesmente um exemplo desconexo e mais pés no chão: as casas das pessoas costumam ter calha e caixa d'água. Uma maneira esquisita, é verdade, de falar de uma pessoa, mas uma maneira ainda assim não totalmente absurda. Apenas esquisita. Vai ficando estranho quando a caixa d'água e a calha entopem com um filhote de sabiá e uma lebre. Esse "E" não está explícito no poema, que se valerá de uma estrutura sintática de cortes e enxertos ― em alguns momentos isso vai até mesmo criar uma forte ambiguidade sintática, pois teremos a impressão, seja ela vaga ou forte, de que aquele verso ou metade de verso é um novo período. Ou não.
A ideia da suavidade continua no exemplo do sabiá e da lebre ― só que é uma suavidade que já entope a caixa, olha que chato. Rubens está pronto pra dar o bote. "uma lebre não é capaz / de aguentar mais fibras / e mais pilhas duracell". Veja como a constatação continua evidente, mas continua também estranha (evidente pois uma lebre realmente não é capaz ― e pois a correlação também não é absurda, visto que o símbolo da Duracell é uma lebre). O absurdo deste poema é diferente do absurdo do outro poema, o eu lírico dizendo que queria comer a terra. Aqui o nível de afirmações estranhas ― constatáveis empiricamente ― se torna tão alto que chega um momento em que você só pode responder "Absurdo!" pro conjunto do que nos é dito.
Em certos momentos, de maneira mais ou menos espaçada, o poeta repete três vezes um adjetivo. A repetição é importante, pois mostra como os excessos da poesia de Rubens ― mais ― mostra como os excessos vão aos poucos desconstruindo e, por conseguinte, nos reabilitando a olhar para as coisas de maneira diferente. O termo "remoto" de controle, por exemplo, mais do que ser repetido três vezes dentro do verso, vai ficando cada vez mais remoto ― assim como o desenvolvimento metafórico dentro do poema e do primeiro livro de Rubens. Outros pontos dignos de nota no poema são o uso de termos referentes à culinária e a dietas ― que se aproximam do título do livro, em especial pelo fato de algumas dessas imagens se alimentarem da certa indecisão sintática que percorre os versos e, digamos assim, apresentarem umas imagens meio indigestas ― por exemplo quando Rubens diz "insira cenoura em sua / dieta em sua dieta em", o cavalgamento dos dois primeiros versos fazendo com que o leitor pense besteira e a repetição do segundo verso dando a entender que a dieta está sempre sendo reiniciada ― ou, pra citarmos outro caso de ponto digno de nota, o final, em que o ruído que a poética do autor é capaz de produzir interfere em nosso entendimento de um termo básico como "covas" de tal modo que quando menos esperamos estamos realizando um enterro dentro de um poema que falava de comida, lebres pra lá, pra cá e sei lá o quê mais. Mãos brandas? Que mãos? Mãos de quem? O tempo todo o poeta está se referindo a um você, mas saber quem é esse você, ou qual a relação entre as mãos brandas e o restante... Fica aqui uma dica: o título nos poemas de Rubens nem sempre possui uma relação globalizante com o texto, à guisa do primeiro (mais ou menos). Nesse caso ele me parece muito mais um ponto de partida.
O terceiro poema, por sua vez, também possui um título com o mesmo funcionamento do primeiro. Este também me parece um poema interessante. Se você ficar com a ideia das satisfações suspensas a todo momento, vai conseguir compreendê-lo até bem. Claro que existem picos de dissonância, por exemplo logo no começo em que Rubens nos diz que comeria areia porque ele é limpinho. Mas a areia não é uma coisa precisamente suja? (Lembre-se de qualquer gato.) Justamente por isso. Satisfações suspensas. Se ele comer areia, ele vai se sujar, vai ficar sujo. Ele pode ficar sujo. Ele é limpinho. A satisfação de ficar limpinho seria suspensa. As outras metáforas, por sua vez, são mais simples: vide as rosas sendo recebidas por e-mail ou o pôr-do-sol no Power Point. Particularmente, achei as duas muito bonitas e bem boladas. Conseguem dizer com precisão o que seria uma satisfação suspensa para mim e para você, unidos por uma tela de computador.
Faço notar o final ― o ponto alto do poema. O amor romântico transforma as coisas em objetos. Ele objetifica. Amor romântico é mau. Tsc, tsc. A forma como Rubens enuncia os versos dá a entender uma certa agressividade que, de modo geral, já estava presente nos versos passados, quem sabe o "Não?" do começo da terceira estrofe. É como se, tendo de viver com satisfações suspensas, ele se impacientasse e pedisse pra pessoa que ama ou que lhe dá prazer fosse embora. Ela vira um objeto ― um objeto que, como os outros, não é capaz de fazer que a satisfação saia de sua zona de suspensão e se carnalize. Só que a estrutura sintática está um pouco embaralhada. Veja: "Passe adiante passe / Por você". O uso das maiúsculas por um poeta que no geral não gosta muito delas dá um tom à antiga ao que é retratado ― no caso, a satisfação. O que quero destacar, contudo, da estrutura sintática confusa, é que temos duas orações: "Passe adiante" e "passe / Por você". A segunda é a que nos concerne mais de perto, pois ela é a tacada de mestre da coisa toda. Passar pode ter tanto o sentido de passar frente a um lugar, no que teríamos de imaginar a situação meio absurda ― mas não tão absurda num mundo em que as pessoas enviam rosas por e-mail ― de que a pessoa passaria frente a ela mesma. Mas também temos a hipótese ― mais plausível ― de que a pessoa passaria por ela mesma, isto é, fingiria ser ela mesma. Isso dá toda uma dimensão diferente ao que acabamos de ler, pois recebemos a informação de que a pessoa antes não era ela mesma, ou, o que me parece mais acertado e um tanto quanto sutil, de que ela agora, passando por si mesma, criará uma espécie de verniz falso. Imagine que eu imprima uma máscara com meu rosto. E saia na rua com aquela máscara. Se alguém derrubar minha máscara, vai ver minha cara. O que mudou? Pra quê saí com aquela máscara? Por que eu vou passar por mim mesmo? Suspender por um instante minha experiência imediata com o mundo para que, fingindo ser eu mesmo, eu crie um empecilho entre eu e o mundo que seja precisamente uma cópia minha?
É de derreter o cérebro, eu sei, mas guarda significados profundos. É uma desconstrução profunda. A satisfação de ser você mesmo de repente é suspensa não por você querer ser outra pessoa ― algo que suponho que um poeta menos cuidadoso escreveria ― mas por você querer ser apenas você mesmo. Como se ser você mesmo só fosse possível na base do fingimento. Do tornar-se um objeto, do entrar em contato com o mundo a partir de maneiras medidas e falsas ― à guisa da rosa por e-mail ou do pôr-do-sol no Power Point ― e, portanto, das Satisfações Suspensas.
Note a dialética disso, caro leitor. Note como Rubens desconstruiu tudo pra que chegássemos no final e, bem como eu disse, a partir das ruínas do que acabou de ser desconstruído, remontássemos a sequência dos fatos com um olhar novo.
O próximo poema também é muito bom. A desconstrução aqui trabalha de forma completa assim como no outro poema, e o discurso às vezes irônico e às vezes autodeprecitativo consegue chegar naquele estágio longe o suficiente para que a relação deixe de parece um capricho do poeta ou um enxerto do leitor para ser uma espécie de ataque à base fortificada das opiniões consagradas.
O título pode ser lido como uma constatação neutra ou triste. Pensando um pouco no que tem a nos dizer, não se trata de algo muito absurdo. Novamente caímos de volta no exagero ― na repetição que vai tornando alheio um fato natural. Somos impermanentes. Somos mortais. É claro que a impermanência é uma parte de nosso corpo. A diferença é que o título nos leva a entender que algumas partes não são impermanentes ― e que, antes que porventura venhamos a pensar na Amizade ou na Glória, são partes relacionadas ao corpo. O corpo não é precisamente a parte mais efêmera de nós enquanto seres humanos? E mais: a impermanência é parte desse corpo. Como se fosse uma espécie de apêndice certamente indesejável. Como funciona isso, afinal? Que caminho percorremos para chegar a transformar um fato da natureza corpórea numa espécie de península?
É um poema de tônica política. E se é um poema de tônica política, podemos pressupor que o corpo retratado seja o corpo do Estado. Mais precisamente, é um poema sobre o meio-ambiente. A forma como o Estado lida com o meio-ambiente ― a forma como lidamos com o meio-ambiente. É preciso que o corpo estatal entenda que a impermanência é parte de seu corpo ― algo que, dentro do contexto da política enquanto joguete, é tratado das formas mais sujas possíveis. Só que o que parece escapar à compreensão é que a Natureza é de fato impermanente ― ainda mais se considerarmos o modelo de exploração de recursos naturais, predatório e insustentável. O poema vai direto no assunto, mas pra chegar até esse "direto no assunto" ele precisa passar pela estrutura ambígua do corpo estatal: se ele é impermanente mas tenta ser permanente, sabemos historicamente que ele se perpetua nas mãos de poucos, de modo que o poder político vai sendo concentrado na mão de alguns corpos em específicos. A crítica do começo do poema é por aí ― embora ela também recaia no sentido de que mesmo esses políticos que aparentemente se julgam intocáveis ― bem, o corpo deles também precisa aceitar a impermanência como parte de si.
A recusa ao trabalho voluntário se dá no sentido daquela espécie de ideologia às avessas que culpabiliza ações individuais e caseiras pelo verdadeiro desmantelamento do ecossistema. Sim, elas possuem impacto ― mas não sejamos inocentes a ponto de crer que a conscientização de todas as pessoas, ou que elas, vamos supôr, reciclando e fazendo trabalho voluntário poderá mudar alguma coisa. O corpo que Rubens está tratando é mais amplo ― e observem como a desconstrução opera de forma hábil, passando de um âmbito macroestrutural para um âmbito individual. Para citarmos um exemplo, a questão da água. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 70% da água vai para o agronegócio e 12% para a indústria e mineração. Só 4% vai pra gente. Entende como a questão é muito mais profunda e não depende apenas de trabalhos voluntários? É preciso que se retire a questão do âmbito individual. Perto do final do poema, ao falar de ciclovias e florestas, o poeta nos diz que estes não serão mais comuns ― e depois diz que "você resolve ser virgem". O verso parece desconexo com o restante. Apenas a princípio. As florestas ― a Natureza não pode mais ser virgem. Ela está devassada num nível quem sabe incontornável. É preciso que se olhe para a hipocrisia extrema de que o estadista resolva voltar a ser virgem, seja lá em que sentido for. Isso não fará diferença alguma.
A repetição de "até breve" e "eu quero que você olhe para a lua" no final do poema, três vezes cada, não só intensificam ― querem fixar. Rubens parte do princípio que não basta apenas olhar pra lua. É preciso olhar para a lua. Ela existe por si só. Ela ainda é um território certa maneira livre da exploração predatória humana. Sua beleza ainda não depende de nós ― depender não num sentido metafísico de dar sentido ou que o valha. No sentido de embelezar uma coisa que está podre ― pra fingir que está bonito. No sentido de que insistimos em não aceitar a impermanência como parte de nosso corpo ― mas, ao mesmo tempo, fazemos de tudo para acelerá-la.
Quanto ao último, a queda da qualidade é evidente. Dentro do projeto geral do autor ele faz com que a retroescavadeira continue ligada ― mas não só esta retroescavadeira em específico atua em regiões superficiais, como o que ela tira de lá, e o que podemos analisar daquele amontoado de terra, tem pouco interesse. Pra me valer das próprias palavras do poeta no começo do poema, "o mistério é maior / quando a descamação completa" ― "completa" mais como verbo que como adjetivo. Talvez a parte mais interessante do poema é que de certa maneira ele simula ser os objetos domésticos ― ou a forma como esses objetos domésticos ganham vida. Na quinta estrofe os noticiários esportivos argumentam, por exemplo, e, se correlacionarmos a primeira estrofe com a segunda ― baseados na repetição de "completa" ―, é como se Rubens tivesse adicionado uma espécie de metafísica à máquina de lavar roupa ― e mais que isso, ao dizer que se fecha, ele pode tanto dar a entender que se fecha naquele ambiente doméstico ― no que o poema todo se desenvolveria como um claustro patético ―, como dar a entender que ele está dizendo na perspectiva da máquina de lavar roupas.
Tal movimento de dar vida aos objetos domésticos é possível pois, como deduzimos das duas últimas estrofes, houve um passado amoroso envolvendo aquela casa. Aí é como se a magia da paixão fizesse com que as coisas lá dentro ganhassem vida. Só que isso foi passado, e o rompimento entre os dois é acentuado pelo forte cavalgamento entre estrofes da penúltima e da última estrofe. Se são acidentes domésticos envolvendo toalha, podemos ler de forma literal ― pois a toalha realmente aparece em determinada estrofe do poema ― e note como Rubens mais uma vez fala do mistério ―, ou então podemos ler no sentido de que os acidentes domésticos envolvem a toalha, a toalha tomada aqui como sujeito passivo. Leia ou não de forma figurada o que a toalha quer dizer, podemos no mínimo pressupor que os acidentes domésticos envolvem mais coisas. Envolvem mais pessoas ― e me refiro aqui ao verbo no sentido transitivo e no sentido pronominal.
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Antônio LaCarne é cearense (quer dizer, eu acho; não ficou claro) e de 83. Seus poemas dão a impressão explícita de que falam de coisas maiores ― coisas impregnadas. O objeto poético do autor é um objeto marcado a ferro e fogo.
O primeiro poema é um poema de amor. O segundo também, mas o primeiro é melhor. Está dizendo basicamente de um amor inesquecível ― daí o "última casa" do título. A diferença é que estamos falando do amor em tempos pós-modernos. Um amor inesquecível não é necessariamente um amor eterno nem muito menos um amor, digamos assim, rodeado de lugares comuns esfumaçados e inalcançáveis ― um amor transcendental. Ele pode até ser ― mas isso será uma experiência corpórea advinda do êxtase ― portanto efêmera, malgrado duradoura.
Isso explica a razão do ópio estar no título. Mais: explica o fato do ópio ser o agente ativo da frase, fazendo com que tanto a última casa se submeta ao sentido que ópio trará consigo e fazendo com que o eu lírico recebas as flores que o ópio lhe deu. Uma imagem boa de se pensar ― o que é mais ou menos uma maneira de dizer que aquele amor acabou e agora o eu lírico está sozinho, quem sabe chafurdado na merda. Que flores, afinal, ópio pode oferecer? É tudo ilusão. Mas inesquecível ― suponho, pois o crítico aqui não bebe nem fuma.
Daí os giros exteriores que o poema dá. Como se estivéssemos à roda. Aquela embriaguez advinda de comparações díspares e fortes: por exemplo, logo no primeiro verso, pare e sinta o cheiro de uma mensagem antiga combinado com o do lodo urbano. Saíamos do pretérito para entrarmos de chofre no presente mais abjeto. As próximas imagens continuarão esse clima de descompassos, em especial pelo fato de que ambos plantaram "águas passos faróis" (os três se unem pelo fato de serem transitórios ― o último, contudo, repetitivo e normativo) "rentes aos corpos do amor inacabado". Não só inacabado como despedaçado, convenhamos ― o uso do plural para "corpos" mostra um poeta atento para possibilidades de enriquecimento semântico. Afinal de contas, isso a um só tempo intensifica como dá toda uma dimensão dramática ao verso, fazendo com que a ideia geral, que tinha tudo para ser bem chocha, de repente se tornasse marcante. Um contraponto seria o segundo verso da segunda estrofe, "madrugada do tempo & seus labirintos", em que "& seus labirintos" já não está nem um pouco bom, especial pelo fato de que no verso anterior líamos "regras enxutas" que, certo modo, já suprime a ideia do labirinto ― uma metáfora, sabemos, mais do que batida para falarmos do enredamento e excruciamento, de que ordem e origem forem.
Se a segunda estrofe começava falando de linguajar e aos poucos se eleva, referindo-se a corais e danças (mas noto aqui que o final da estrofe, "mas sem alcance", é um bom contraponto que consegue amarrar o poema e fazer com que a terceira estrofe não seja baldada, isto é, não repita a anterior) ― a próxima parece começar de forma mais abrasada: "o beijo que é o exercício das mãos". O contraponto mais uma vez está muito bem feito, pois, se este é um verso bem corpóreo, em que você sai da boca e cai nas mãos ― é ou não é o que acontece no rala-e-rola, afinal de contas? ―, os próximos são um tanto quanto abstratos, e parecem efetuar aquele salto rumo a dimensões maiores que revelem a gênese das marcas. É como se, após a separação presumida, o eu lírico se afundasse no ópio e, portanto, fosse galgando esferas cada vez mais distantes até o instante em que fala de "meu deus". O penúltimo verso, "piedade do quadrado que exige descanso", se referindo talvez à casa ou à sua inscrição no mundo (o seu quadrado), é um dos mais belos de 2014. O jogo de contrários ― luz e sombra ― "perdão inumerável & submisso" ―, repito, está bem colocado no poema. Dão um jogo de tonalidades que, oticamente, aguçam os efeitos do ópio na sensibilidade do poeta.
O segundo não está exatamente ruim. Leather, sabemos: couro. Só que o couro aqui é uma espécie de couro artificial. Os acontecimentos, os amores, nosso contato com o mundo vão marcando nossa existência. Marcando no couro. É o que esse poema diz de forma meio que literal. Faço notar aqui que o poeta dá um destaque maior a produtos de consumo ― o jeans, o inox ― e, portanto, dá uma espécie de durabilidade distinta ao que sabemos que foi feito para não durar. Existem outras passagens que fazem esse jogo de impermanências que certa maneira vão criando uma crosta e, portanto, resistindo ao passar dos anos. Veja-se o caso das páginas de menage à trois na internet. O verso "o girassol de uma mão que me afaga as lágrimas" dá a entender ― de forma belíssima ― que o relacionamento acabou e que ele foi intenso. Você pode se perguntar de onde tirei isso tudo ― mas tente imaginar como é um girassol "de uma mão". Um girassol segurado numa só mão. Não creio que, no contexto de um poema de amor, seja exagerado dizer que é um girassol para ser dado a outra pessoa ― de modo que, se ele hoje afaga as lágrimas do eu lírico, é uma forma de dizer que ele dá consolo ― só que isso tudo sem cair naquela espécie de longa explicação acerca do "aquele instante foi intenso" e "hoje é só em você que penso", ou que o valha. Consegue unir tudo num só verso compacto e de uma beleza invulgar. Tamanha a beleza que os outros até ficam um pouco desnecessários frente a esse ― o que é um sentimento meio perigoso de nossa parte, pois não podemos dissociar e dizer com tanta certeza até que ponto aquele verso não é tão belo justamente pelo fato de ter tido aqueles outros antes dele, ou aqueloutros depois.
A segunda estrofe possui um movimento parecido com o da primeira ― deduzimos que o poeta se droga em determinado momento (especialmente quando se tranca no banheiro) ― e ele vai abstratizando a matéria de que trata até terminar falando de livros que não foram escritos e que lhe causam desejo. A situação é bem bolada, mas não creio que seja tanto. Os contrastes do final do poema anterior a meu ver são francamente melhores ― e não digo com isso que o poeta deveria repetir a jogada, mas que o resultado a que ele chegou com essa nova não se compara. Existem, claro, bons momentos nessa segunda estrofe, como por exemplo as "duas gramas de lucidez / fabricadas pouco depois dos dinossauros", que gosto particularmente de ler como se referindo à droga ― e de tal modo que, é claro, as gramas de lucidez seria totalmente irônico ― e de tal modo que a longa procedência delas pode estar dizendo que o efeito gerado é antigo ou que as marcas que o produto traz consigo são remotas ―, ou então se referindo literalmente a duas gramas de lucidez ― advindas pouco depois dos dinossauros pois, certa maneira, numa tabela biológica da cronologia universal, o ser humano ― e a lucidez ― vieram mesmo pouco depois dos dinossauros.
Os dois próximos poemas não são mais individualistas. Possuem um posicionamento político mais claro ― embora o último retorne à temática amorosa. Se continuarmos lendo a partir da ideia de que os poemas do autor giram em torno de objetos marcados ― antes, como vimos, em especial de forma afetiva, mas também de forma mercadológica ―, aqui a ideia é a de marcas sociais e históricas. Falando abertamente à Revista Veja, o poeta não se furta de brincar com "Veja" no sentido de verbo também. A ideia é a de que a Veja fez com que seus leitores não vissem uma série de coisas ― e é possível que a própria revista não tenha visto outras e/ou não tenha visto o mal que fez fazendo o que faz.
Nos primeiros versos destaco o contraponto entre a ebulição do Brasil e a frieza do eu lírico. Há uma proximidade irônica entre a revista e o poeta ― a revista é, de fato, muito próxima do cotidiano brasileiro. Por isso ela é personalizada e tratada como um de casa ― a ponto de ligar às 4 da manhã. No quarto verso, a gradação da floresta até os fios de alta tensão é icônica. Simboliza tanto uma urbanização quanto um aumento de tensão repentina ― visto que passamos da floresta pro bosque e do bosque direto pro fio de alta tensão.
Ao longo da enumeração de coisas que advieram da relação entre a revista e o eu do poema, em determinado momento o poeta diz ter se embrenhado num "jardim de plantinhas simples / que você nunca deu importância". Confesso que acho um pouco difícil captar sobre o quê o poeta se refere. Devemos notar primeiramente que, se antes ele havia feito a transição para os fios de alta tensão, agora ele retorna a um ambiente natural ― um esfriamento assim como o dos primeiros versos. Essas plantinhas simples podem ser qualquer coisa ― mas devemos nos lembrar que são plantinhas e que são simples. Julgo que a leitura mais plausível para o que elas representam seja a de que representam as pessoas de vida simples que a revista passa por cima, omitindo e manipulando suas vidas ― vidas de quem talvez nem leia a revista.
O poema de Anne Sexton a que se refere traz a figura da poeta na terceira pessoa, Srta. Anne Sexton, e mostra a poeta galgando as esferas e repetidamente dizendo, de maneira intercalada, o refrão: "No one." Até que, na última estrofe, precedida da interjeição "Ah!", ela tranca a porta. O cartão de visita, portanto, de um cético ― não há Deus algum, e será melhor que tranquemos a porta para que, quem sabe, não resolvam colocar um no posto ― um inventado ― e de maneira que destaco o verso "o mundo girando cada vez mais rápido" ― movimento imagético este que, como vimos, o poeta parece ter preferência em trazer à tona ― aqui inclusive posto de maneira análoga aos poemas anteriores, ou seja, no final do poema, em que uma espécie de guinada panorâmica é dada. Mas, para ficarmos com um último detalhe, esse mundo cada vez mais se parece "com aquele tom de voz / que foi minha estrutura de autossabotagem". Que tom de voz é esse? O poeta fechará o poema dizendo que está abalado emocionalmente ― e, pra variar, a revista não viu isso. Devemos ler no sentido de: a autossabotagem atua sobre as verdades e, digamos assim, marcas de sentido que a revista imprimiu no poeta. Ela sendo um cabresto, é o resultado de uma visão de mundo parcial e opressa. Esse tom de voz é o tom de voz que faz com que o eu lírico sabote a si próprio e, no final das contas fique abalado emocionalmente, é pra dizer que sua concepção de mundo havia sido rompida ― tamanha era sua dependência com a revista.
Dependência é o que o outro poema demonstrará. Por isso creio que poderei economizar energias se não o comentar de forma tão detida. O poeta se vê exilado ― se vê mutilado ― diz, em determinado momento, em versos que, confesso, me tocaram, "e você / não entende do que é feito meu país" ― e, lendo dois poemas de alguém no jornal, parece reabrir aos poucos os olhos para a vida ― num movimento poemático interessante, dado que o poeta começa falando de suas deficiência e, de alguma maneira, lá de dentro dessas deficiência dias melhores surgem ― o que é propiciado pelo fato do poema ser todo escrito num só período até bem demarcado sintaticamente ― e eis que uma nave extraterrestre surge, se apaixona por ele e anota seu número de telefone.
É que a paixão, como eu sempre digo, só pode ser uma coisa alienígena.
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Ernesto Von Artixzffski é curitibano e de 92. Quem vê um pseudônimo tão esquisito assim não imagina que os dois primeiros poemas são de uma delicadeza ímpar. O primeiro, aliás, dos mais delicados de 2014. Tudo está acontecendo de forma intensa não digo bem lá fora ― está acontecendo aqui mesmo ― e o poeta consegue tratar com uma calma impressionante.
Pra começo de conversa, notem a construção belíssima do primeiro verso. A ideia de casa e arder é sinônimo de desespero ― mas é a chama da possibilidade. Qualquer chama que não seja chama ― chama ― abranda a imagem e traz a ideia do ardor, talvez até mesmo da queimadura e tal ― mas não mais a do desespero. Em tese. A chama da possibilidade... Como seria isso? Uma chama intermitente? Uma chama menos chama que a chama? Ou será que, pelo fato de ser chama da possibilidade, ela paira com mais força do que as outras chamas?
É claro que o poeta não fornece essas respostas pois quem fez as perguntas sou eu. O lance com o primeiro poema é o da sensibilidade: as metáforas atuam na sensibilidade do leitor. E atuam muito bem, pois, você aceitando que existe ou não exageros ou dissonâncias ― eu particularmente não acho que existam, pois, repito, tudo é tratado com muita delicadeza ―, o fato é que o efeito sensorial é profundo, e o objetivo do poeta é bem esse ― que seja profundo e marcante. A estrutura frásica do poema, com constatações e frases que não possuem uma correlação semântica clara entre si, vai como que dizendo a respeito, em vários takes cinematográficos, do cenário. Uma só seiva percorre o poema inteiro, deixando-o suspenso. Veja como, além da chama ser da possibilidade, o jardim é incerto. Note como o cão é sem razão ― e ele ser azul apenas acentua isto. E é por isso que o poeta poderá dizer, no quarto verso, que "Tudo acontece aqui." Nem tanto porque a casa arde e não arde em chamas, ou porque o cão é azul. Uma leitura assim não me parece ir totalmente a fundo. Tudo acontece lá pois tudo está suspenso.
O movimento é bem construído. Consegue suspender o poema e ao mesmo tempo situá-lo. Não me parece possível dizer se o final do poema é irônico ou não; contudo, o leitor não deve se assustar tanto com o aparecimento da morte num poema que parece nos dizer que, quanto mais habitamos a realidade, mais a possibilidade de não habitá-la, a possibilidade de sermos de repente arrebatados e de algum modo não estarmos mais aqui ― com todas as coisas ainda assim estando ― não é nem nunca foi implausível.
Se o movimento abstrato e concreto do primeiro poema é a maior fonte de sua qualidade estética, no primeiro caso a coisa desanda um pouquinho. A queda de qualidade me parece evidente. Não digo novamente no sentido de que seu escudo metafórico e o tema já foram ditos antes ― o problema é que a forma como foi dito, a estruturação geral do poema, seus movimentos internos, em certo sentido suas técnicas... Existem bons detalhes. Claro que existem. Os três primeiros versos desenvolvem uma imagem bacana: a da passagem dos dias. É o que explica as sombras girando ao redor das rochas ― imóveis. O fato de que elas ainda girem dá um toque melancólico à imagem, pois é o mesmo que dizer que os dias ainda passam. Mas note que, se essa imagem foi muito bem feita ― graças ao fato de poder nos dizer muito ―, as outras constatações são, certa maneira, supérfluas. Claro: elas podem estar se aproveitando da deixa aberta pela imagem da abertura para, justamente por isso, explorarem uma linguagem mais direta e incisiva ― o que a estrutura frásica idêntica das duas frases que se seguem aponta. O contraponto no final do poema, de que "Quem era de acordar, já caminha" quando "agora, tudo é sono", não chega a estar propriamente ruim, embora me pareça um contraponto simples ― acordar, caminhar, sono ― isto é, baseado em liames de sentido óbvios.
Já o terceiro poema é impactante. E, o que considero mais importante ― pois muitos poetas possuem a ilusão de que apenas chegar ao impacto basta ―, ele consegue gerir muito bem o impacto, o que implica dizer que o impacto será capaz de se renovar ― e não decrescer exponencialmente após a primeira leitura ― ouso dizer até o passar dos anos ― e implica dizer que ele se valerá de suas fontes semânticas como instrumentos voltados para o objeto criticado.
É certo modo despiciendo comentar imagem por imagem. Também é despiciendo dizer que em alguns momentos elas não parecem fazer sentido. Claro que fazem. A estrutura anafórica do poema fornece um significado geral ― sem querer dizer com isso, é claro, que todas as metáforas são redutíveis a uma metáfora geral, mas sim que todas parecem remeter a uma metáfora maior. Ou, melhor dizendo, a uma situação geral. A situação de se estar dentro da máquina ― ora tomado num sentido literal, ora tomado num sentido figurado e mesmo, digamos assim, num sentido pré-histórico. Num sentido de invisibilidade social: o que a produção de uma máquina trouxe consigo até chegar ali, naquele estágio em que nós, consumidores, podemos imergir e nos embriagarmos da máquina. Pois é este movimento ambivalente que explica a qualidade estética do texto. É o que explica tudo o que disse sobre a crítica dele poder andar sozinho.
Note como, em alguns momentos, a relação de fetiche, relação objeto-objeto, entre humano e máquina é retratada e posta de frente com uma espécie de relação sentimental daquela máquina. O primeiro caso creio que pode ser visto na primeira estrofe ― ou, pelo menos, é o ponto de partida. Os dois versos que abrem a segunda estrofe podem servir de exemplo das relações sentimentais dentro da máquina.
As três primeiras estrofes terminam com "dentro de cada máquina." Serve pra fixar e dar a entender que aquilo ali é dentro de cada máquina. Quem sabe fora não exista algo além? ― O problema é que, com a repetição anafórica, e o fecho repetido três vezes, é como se não conseguíssemos ver além da máquina. Que a quarta estrofe dizendo que "dentro da máquina não cabe a lua" talvez seja icônico a esse respeito, pois a última comparação da terceira estrofe era a de que "dentro da máquina nunca nascerá nenhuma flor." Tema drummondiano evidente, serve para dar uma conotação natural à máquina, como se o poema também simulasse o envelhecimento da máquina ― note como, por exemplo, no início dela sai sangue e sêmen. Dizer que dentro da máquina não cabe a lua é uma imagem literal ― realmente, não cabe. Não está num âmbito metafórico, como até então. Só que, claro, o fato de alguém querer colocar a lua dentro da máquina dá um ar de absurdo para a simples proposta. É um momento mais literal que se repetirá no finalzinho do poema, após mais uma bateria de imagens de estrofes ― com a diferença de que agora não se termina mais com "dentro de cada máquina." ― o que é importante, pois o poema vai se tornando mais e mais uma espécie de moradia, vai impondo mais e mais um cabresto a nossa visão de mundo.
O poema termina nos falando de insetos dentro da máquina, "decrépitos, agrupados, abandonados e sós." Não acho que viajo na maionese se ler estes insetos como literais e como podendo ser os seres humanos que de algum modo giraram em torno daquela máquina supostamente gasta ― não necessariamente, pois há a hipótese, mais estarrecedora, de que mesmo uma máquina nova também guarde seus insetos. O final, "mas apenas dentro de cada máquina.", aparece pra como que trancar o poema e nos deixar de vez naquele âmbito ― ou pode servir como uma pontada de esperança. Horrores como os que acabamos de ler existem dentro de cada máquina. Mas quem sabe fora disso a coisa não mude?
§
Martim Silva é baiano e de 84. Se os dois primeiros poemas abrem e fecham de forma análoga, temos aí um convite para ler o poema em si como um périplo. Tentar entender o que não mudou e o que mudou.
O primeiro, por exemplo, mais do que esmiuçar as razões do eu lírico estar destinado ao árido, nos mostra uma aceitação e um planejamento. Este último é importante. Se no primeiro caso temos a ideia de fatalidade, no final do poema observaremos que parece que, bem, o eu lírico correu em busca disso. Ou que realmente não havia outro jeito, e a condição dele quem sabe não seja a nossa. Note, no terceiro verso, uma expressão como "contrapartido às vésperas". O verbo "contrapartir" ou o adjetivo "contrapartido" não existem. Existe o substantivo: o mesmo que um complemento, algo que é usado em compensação de outra, geralmente em contextos financeiros. Estar contrapartido é estar como uma contrapartida ― servir de complemento, servir de compensação? Ou, se lermos esse "contra" como um sufixo, seria algo como estar partido só que de alguma maneira inusual?
Aceitemos uma leitura ou outra, o fato é que se deu às vésperas. Cedo, portanto. Só que não acaba por aí ― o poeta fecha o arco, mas fecha de forma hábil. Diz que também esteve contrapartido "ao ocaso do entorpecimento mais sublime." Digo que fecha de forma hábil pois contrapor véspera e ocaso é comum ― o que salva o poeta dessa armadilha é o fato de que a ideia de algo que se deu cedo continua. A próxima frase fechará com uma construção igual ― dois extremos do dia que são ligados por um forte liame sentimental. Note as "transitoriedades brilhantes" ― uma bela imagem ― que, nos olhares invejosos e ciumentos, sobrevoam translúcidos à tarde. A imagem continua bonita, com a diferença de que aquela transparência que observávamos na primeira formulação continua na segunda, só que agora à tarde. Essa passagem do tempo sutil e a um só tempo impactante, quando posta ao lado da estrutura rimada do poema, sem exagero e com uma sonoridade que o vai amarrando de forma coesa, e ouso dizer que até mesmo a pontuação do poema, cheio de vírgulas que vão esmiuçando o que é dito ― tudo isso mostra uma perícia por parte do poeta, ao mostrar como ele esteve destinado a tanta coisa não apenas desde a nascença ou desde o início, mas com o passar dos dias.
A terceira frase do poema merece ser acompanhada mais de perto:
quando cheguei,
que espécie de bosque havia florescido
nas paredes das minhas gargantas,
desfazedor de substâncias?
Parece ser o único instante em que o poeta, descobrindo-se como poeta, tem a chance de mudar seu destino. O uso da forma verbal "estive destinado" é boa pois ela não só dá a entender algo que já se selou ― a destinação está pronta ― e dá a entender uma destinação que segue no tempo. Daí digo que ela é boa: é duplamente terrível. O poeta dizer que chegou é uma referência ao fato de que, versos atrás, ele havia subido a esquina pra desdobrar "os olhares e suas entrelinhas". A diferença é que, após retornar do périplo a que se submetera, ele de certo modo se encontrou com uma espécie de momento de emancipação própria ― aquilo de estar destinado às transitoriedades brilhantes. Ao longo do poema, ele dirá duas vezes que esteve destinado ao árido. Muda muita coisa. Transitórias que sejam, a transitoriedade se contrapõe à ideia do destino, que se prolonga no tempo e encarcera, e mais ― ela é caracterizada como brilhante. Claro que a forma verbal "estive X" se prolonga nos versos, e ele diz, logo depois, que esteve "amaciado, mas nem tanto," aos olhares invejosos etc e tal. O saldo pode até ser negativo ― estar destinado ao que é transitório e a ser amaciado, a ser flexível e acostumado com olhares invejosos e ciumentos ― mas ainda assim existe uma pontada de diferenciação ― pois, afinal, amaciado por tais olhares, ele segue enciumado e invejado.
A mudança que se operou da segunda frase pra terceira é que agora o poeta sente que existe uma espécie de bosque nas paredes de sua garganta. Essa espécie de bosque é a poesia. Apossar-se da garganta segue a correlação histórica entre poesia e canto. Claro que a imagem que Martim constrói deixa a coisa mais floreadinha pois transforma a garganta em algo que possui paredes ― e traz um bosque pra florescer ali. Fica bom. Fica ainda melhor com esse "desfazedor de substâncias". O funcionamento da poesia não é por aí mesmo? Só que observe aqui como aquele aroma que poderíamos deduzir de substância ― isto é, substância: essência: aroma ― entra na expressão, e como ela age como a maior fonte de esperanças do poema inteiro. O poeta pode romper seu destino. Mas o anticlímax do final do poema é mais forte, pois transforma todas as frinchas que a terceira frase havia feito ― e as tapa todas. O poeta confessa que se inclinou a tudo que se desfaz ― mais especificamente, "a tudo que se desfaça", no presente do subjuntivo ― de forma violenta. De fato: isso consegue explicar muito do que nos foi dito ao longo do poema, por exemplo o incômodo que a expressão "contrapartido" causa. É um bom final para um bom poema.
O segundo poema também não é ruim. Começar fechando os olhos e enxergar tudo ― é o que Stephen diz a si mesmo no terceiro capítulo do Ulysses, "Shut your eyes and see." Lá pra frente o poema aos poucos adquirirá um tom onírico, visto em especial pelo gato de Alice, o que talvez indique que o poeta foi adormecendo. De toda maneira, é de olhos fechados que o poeta pode trazer de volta a imagem da amada ― ao que tudo indica, ela está longe. O uso do "ainda", a esse respeito, é sutil e revelador ― entre os versos 5 e 6, será ainda melhor. A forma como as imagens vão vindo de mansinho é também bem construída ― note como o sorriso vem do canto do espírito. Depois do sexto verso, há uma espécie de quebra no movimento semântico da frase, incluindo, nos versos 7 e 8, duas falas vindas diretamente do eu lírico que mostram como ele se acostumou com o escuro e as imagens que seus olhos trazem. Tanto que se vê diante do abismo hiante ― e logo em seguida, o verso "do fractal dançante de despropósitos", um dos mais belos de 2014 ― a aliteração bem colocada e a intensidade da adjetivação do fractal como dançante que se intensifica ainda mais quando nos é dito que ele é dançante de despropósitos, isto é, aleatório. O verso anterior estava certo: "como é bela a paisagem absurda". Mas peço ao leitor que observe como o poeta, conforme dito antes, vira de cabeça pra baixo e chacoalha ― veja que, nos versos 16 e 17, é a moça que pega o poeta pela borda dos olhos. A imagem se intensificou a tal ponto que, caindo pouco depois na referência ao coelho de Alice, reste "cair / no vórtice das texturas da existência" ― uma imagem ótima, em especial por advir de um piso falso ―, o que equivalerá, no final do poema, a abrir os olhos.
É sutil, você pode ver, mas, ao mesmo tempo, é marcante. O terceiro poema também é assim. É um exemplo funcional de um poema que, dizendo muito pouco, incorrendo naquela famosa economia de meios expressivos, consegue dizer muita coisa. A crítica social já parece começar com o sol absurdamente branco ― mas, caso o leitor não queira ver assim, veja pelo menos a forma como um sol absurdamente branco ilumina de maneira absurdamente intensa também a realidade das coisas. Quando o cão deitado ― acomodado? ― late nos degraus da porta, isso dá todo um toque de abandono que, terminasse aí, poderia até resultar em bons versos ― mas não tão bons quanto depois disso escrever que a vida passa apressada pelo eu lírico, que lhe escreve versos tristes. É como se fossem canaletas que se comunicam. A solidão que o sol absurdamente branco aclara incide sobre o cachorro e a solidão desse cachorro como que é transmitida ao eu lírico. O abandono é geral. E os detalhes do poema são bem aproveitados ― por exemplo o fato de que aquele sol dá sono ― ou o cavalgamento entre os dois últimos versos, intensificando a noção de distanciamento ― ou mesmo a aliteração comum, mas muito bem aproveitada, de P e S na expressão "passando apressada".
Sobre o último, não dá pra cairmos na retórica do "quis dizer isso". É um poema de impacto. Delineia um sentimento, uma sensação, e a transfere ao leitor. Devemos analisar a forma como essa sensação foi delineada. E vemos que foi muito bem. Primeiro pelo fato de que, se o poema todo aborda a temática do mistério, do insondável ― do deliberadamente insondável ―, então é de se ver que o fato de ser um poema conciso é mais uma vez um risco. É mais fácil que tentemos entender-não-entendendo o que foi dito a partir de uma estrutura poemática maior, em que o poeta se veria enredado nas profundezas do inexplicável, do que criar um pequeno dispositivo que, num estalo, enche a sala inteira de fumaça. O poema começa de forma ativa ― daí minha reiteração: deliberadamente. Só que se trata de uma ação que não foi levada a cabo. Além de estar no tempo verbal futuro, ela se prolongará no tempo, será um trabalho jamais terminado.
A passagem da primeira estrofe, com toda essa anunciação vindoura e infinita, é contrastada com a certeza da segunda estrofe, pés no chão. Agora a coisa tá no presente. À guisa de uma criatura das sombras que precisa trazer sua presa para seu covil ― é mais ou menos isso o que o eu lírico diz no poema todo. Faço notar o uso do verbo "desesperar", que ganha uma intensidade graças à elipse: "sei que meu olhar te desespera [rumo] às profundidades". A sutileza do poema se encaminha em veredas de excesso ― a reiteração de caracteres vagos e abstratos ― mas, ainda assim, não se sai com a mesma galhardia dos anteriores. Entende-se que o uso de "comparsas" fechando o poema é bem dado, pois, se levo a fundo o que disse do funcionamento do poema ― a criatura das trevas etc etc ― então é como se tivesse dado certo. Mas aquela espécie de giroscópio interior peritamente configurado, ou aquela transfusão de sensações quase que subterrânea... Isso até existe neste poema, mas em níveis menores ― menores para o que o próprio poeta nos ofereceu versos atrás.
§
Danilo Augusto é baiano e de 90. Quem se sente incomodado com seus poemas está no caminho certo. O problema é que muitas vezes Danilo não consegue gerir o incômodo ― e, sabem, nós seres humanos podemos nos acostumar com o incômodo. Se o poema não consegue andar sozinho, mas depois de alguns estalos passa a fazer parte de nosso campo de visão como uma espécie de cisco que, se colocado no canto do olho, não fica tão ruim assim, então ele não pode ser outra coisa que não um poema ruim.
É esse o caso, a meu ver, com o primeiro e o último poema. Mais com o primeiro. Pode parecer ser uma forma um pouco grave de começar o comentário; mas, de todo modo, tentarei destacar porque o segundo poema se sobressai em relação aos demais, porque o terceiro segue mais ou menos a mesma esteira e porque os outros dois não são lá essas coisas.
O primeiro. Uma metalinguagem pós-moderna. O poeta escreve seu nome no Google, usando um iPad, e conta pro leitor que fez isso. Devo chamar a atenção que não basta apenas dizer isso do poema e chegar à conclusão de que ele é ruim. Pelo contrário ― se ele criou o poema em torno disso, me parece claro que o objetivo é justamente o de ser insosso. Quem se limita a um comentário e a um juízo valorativo apenas em torno disso é mais ou menos aquele que cai na armadilha e reclama do escuro ou do incômodo.
O eu lírico está notoriamente sem saber o que fazer. É algo além do tédio ― ele está desnorteado. Observe como, no final, ele nos revela que inventou seu próprio nome pra que depois não procurasse no Google. Me parece que aqui existe um passo além da certa imbecilidade ― de esquecer o próprio nome e, quem sabe, achar que aquele nome é o verdadeiro. O que existe aqui é uma profunda solidão ― só que uma solidão narcisística, e essa parece ser a base da crítica do poema. Note como ele está dedicado ao leitor. Só que ele fala o tempo todo dele. É mais ou menos como dar um presente que serve pra você e não pro presenteado. E mais: se ele inventa um nome, é pra que ele possa dizer de si mesmo e o leitor não possa saber ao certo sobre ele, poeta, o que inverte drasticamente a construção poemática comum. O exemplo aqui é o de quem conversa com você de óculos escuros ― ele pode te olhar nos olhos, mas você não. Só que isso de inventar um nome é o que revela a solidão do poema ― e talvez seja o detalhe mais interesse do texto ― no sentido de que, se o poeta procurar esse nome inventado no Google, ele vai achar informações sobre outra pessoa. Não dele mesmo. Vai encontrar, digamos assim, a vida daquela pessoa que ele usurpou o nome a seu bel prazer. É a frincha que o poema abre pra denunciar a quebra daquela espécie de torre de marfim ― ou torre de wi-fi, quem sabe ― em que o poeta se encontra.
O efeito gerado não é ruim. Mas poderia ser melhor gerido. O rombo que Danilo abre é um rombo consistente e bem realizado, e algumas farpas sarcásticas aparecem aqui e acolá ― por exemplo na segunda estrofe, com esse "tô obviamente acordado" ― "obviamente"? Obviamente pra quem? ― ou, no final, o iPad que imita o som da máquina de escrever ― uma nostalgia fetichista, em suma. Só que é pontual, e me parece claro que possui pouco a oferecer. É possível que dentro de um projeto poético mais amplo o poema tenha algo a dizer ― e, de todo modo, dentro de um certo contexto poético em que o poeta se insere é um poema icônico. Mas não vai muito além.
O segundo já é diferente. O tema oscila entre o da perda e o da passagem do tempo. Sem nos demorarmos muito nos meandros da reflexão sabemos que uma coisa está intimamente ligada à outra, mas é comum que não aceitemos. Um dos diferenciais do poema é que ele oscila entre a outra pessoa e o si próprio. É a perda do outro que nos faz refletir sobre a perda em nossa esfera existencial ― é a passagem do tempo que vem com a passagem dos outros por nossa vida.
A frase inicial, "você guardou as chaves do meu pai?" ― da qual desde já destaco a referência a um você, que polariza diretamente a leitura e até pega o leitor de surpresa, pensando que é com ele ― me faz pensar em que contexto guardamos as chaves de uma pessoa evidentemente tão próxima de nós. Por que ela esqueceu de guardar? Por que ela se foi ― pra sempre? A segunda pergunta parece exagerada, mas note que, logo depois do poeta assumir a voz do "você" e responder "não", lemos que a porta está aberta. Se a porta está aberta, a hipótese de que o pai teria saído é maior ― e se perguntar o que há de mais numa porta aberta parece encaminhar a pergunta para um caminho um pouco distinto ― quer dizer: se o pai saiu, e continuo presumindo que ele saiu pra sempre ou pelo menos de forma decisiva, a questão deixa de ser, é claro, o que há de mais numa porta aberta, pois o problema não é a porta aberta ― é quem saiu ― e notem como essa espécie de fuga do assunto já estava implícita na pergunta, pois, se aceitamos que a questão é mais ampla que uma porta aberta, ela também é mais ampla que guardar chaves. A resposta que se segue, "como se não fosse espaço mas / paredes e pedras e tudo o mais?", em forma de pergunta, parece corroborar com essa ideia, em especial por esse "e tudo o mais" que, posto da forma como está ― ou seja, ele deveria ser esmiuçado e não as paredes ou as pedras ―, mostra uma espécie de circunlóquio para que não encaremos de frente o fato fundamental de que, no mínimo, há algo de estranho acontecendo ali.
Os versos 6 e 7 dizem para temermos os palácios, caso sejamos fracos. Temer a suntuosidade, a grandiosidade ― temer um edifício repleto de portas abertas? Repletos de ausências? Creio que uma coisa e outra. O que a ideia de pô-lo abaixo, se possível, "como a si mesmo em um travesseiro" ― uma bela comparação ― veja como interioriza de maneira muito bem bolada a solidão e veja como pode ter também uma pequena pontada suicida no verso ―, continua. Na verdade, a ideia de pôr abaixo se estende por mais uma oração, dizendo, agora, "ou quando se envelhece / ao se mirar no espelho de um rio". É uma imagem profunda. Se olho para o espelho de um rio, vejo a mim mesmo. Como isso me envelheceria? ― O que julgo estar na raiz desta imagem é a ideia de que a percepção de si mesmo no mundo é uma forma de envelhecimento. Mostra que existimos ― definitivamente. O que nos leva à ideia da transitoriedade, que, arquetipicamente, o rio representa. Colocar esse palácio abaixo pode ser lido, portanto, como uma maneira de se reconhecer enquanto coisa efêmera. Uma espécie de vazio ― uma ausência ― à maneira das chaves do pai ou de uma porta aberta.
Quanto a Prince, você a todo instante quer pensar no cantor. É provável que exista um diálogo com a obra dele, mas, como conheço pouco do Prince, não sei dizer nada a respeito. É tipo um pássaro o de que estamos falando ― um animal de estimação ― e daí o nome Prince. Só que com toques humanos, o que esse câncer logo no começo dá a entender. Uma terceira via ― que me agrada muito ― é a de realmente pensarmos que Danilo está falando de um ser humano, mas de uma pessoa muito querida sua por quem ele nutre um afeto como a um bichinho de estimação. Algo meio esquisito, pode-se pensar, mas nem tanto afinal de contas. A vida dessa pessoa ou desse algo parece estar na mão do poeta, e a forma como ele trata isso é um misto de inabilidade com sinceridade. Fatalidade também. Quando ele diz, no único parêntesis do poema tudo, "(será que essa responsabilidade pertence somente a mim?)", temos uma carga dramática muito forte em grande parte pois o poeta como que fugiu da responsabilidade em versos passados, trazendo livros que ele consegue ler finalmente ou querendo incluir a cachorra de Kafka no texto. Ele francamente diz que não está preparado para receber a carga que recebe. É um poema intenso. O tamanho dos versos ajuda nesse sentido ― e quando Danilo diz que parou o poema ― quando, na verdade, é como se ele tivesse começando, pois aí sim é que caímos na real e sentimos a seriedade do que nos é dito, visto que, até então, ele ornava um eu lírico meio fanfarrão ―, a descarga emocional de vê-lo indo até a cama daquele algo. "você é um animal mas eu o que sou?" Por isso formulei a hipótese de que seria um bichinho de estimação ― na verdade, versos atrás o poeta fala de sair com esse algo também. É, novamente, uma pergunta dramática. Mesmo que seja de fato uma pessoa ― bem, ela é um animal ― e ele, o que ele é? Animal também ― sim, claro ― mas algo além ― um animal que está sofrendo. Quando ele nos revela que "mas era você quem cabia dentro da minha mão" ― e notem o uso do "quem", agora dando a entender que é uma pessoa ―, podemos ver claramente como ele perdeu o controle da situação. A dor ficou maior. Maior que a mão, maior que tudo.
E o que acho interessante desse poema ― extremamente tocante ― é que ele dá a entender que o poeta a todo instante quer sair do poema, ele quer ser mais forte, de algum modo. Talvez o que o tenha impelido a justamente tentar escrever o poema tenha sido essa promessa de que, comandando um eu lírico, ele pudesse pôr ordem na casa. Mas não consegue. Ele diz que sai do poema, conforme mencionado, e termina com uma pergunta ― um pouco estranha, pois a impressão que tenho é que ele transformou bruscamente uma afirmação numa dúvida ― de que ter aquilo nas mãos, há quinze anos atrás, foi o que ele aprendeu e ainda é a única coisa que ele sabe fazer. É uma confissão forte. A ocorrência metalinguística nos versos anteriores não se dão no sentido de demonstrar um eu lírico forte que pode até mesmo acabar com a magia do poema e bater uma real contigo. A casa desmorona. Ele está sozinho. E nós, leitores, que, durante a leitura de um poema, nos aferramos à figura do eu lírico, que é na maior parte das vezes o manancial do texto, nos vemos sozinhos por conseguinte. É inevitável que nos perguntemos: e nós? Também estamos?
O último tem momentos interessantes. Acho que o ponto alto é o verso "eras o réu mas eras a luz", um evidente trocadilho com rei-réu e, é claro, o contexto da morte de Nosso Senhor. O lance aqui é o de que a poderosa pergunta de Cristo em seus momentos finais é de certa maneira dissecada pelo eu lírico, como se ele estivesse dizendo que, afinal de contas, não era tão terrível assim ― e reformulada nos termos: "se você, que era tudo isso, sofreu e no final das contas não foi abandonado ― bem, por que você me abandonou então?" A ideia de que existe uma voz lírica forte que aqui e ali se demonstra como fraca ressurge em especial na sequência final, com esse "e eu não desesperei", mas ela não possui a intensidade destruidora, por exemplo, do final do poema anterior. Nem a mesma carga dramática, a mesma carga lírica... A própria forma que Danilo encontra de dissecar a sacralidade de Cristo eu julgo um tanto quanto tímida, com exceção do que apontei antes sobre a transformação rei em réu.
§
Leila Danziger é carioca. Os três poemas que apresentam mostram que estamos diante de pelo menos uma poeta com propostas diversas. A primeira seria o caso de um poema conciso. Não sei se consegui captar bem tudo o que ele pode oferecer, mas começaria dizendo que é um poema precoce. O que a garota de apenas 13 anos anota em sua agenda é um tanto quanto avançado. Não digo nem tanto pela intensidade do sentimento ― de certa maneira, é na adolescência que essas coisas "amor de vida ou morte" costumam surgir ― digo mais pensando nas formulações generalizadas e em certo sentido filosóficas que ela faz acerca do assunto, para além, claro, da ideia de comentar Tristão e Isolda. Uma garota à moda antiga? Difícil. Uma garota anacrônica ― quem sabe uma garota impossível, visto que não creio que em algum momento fosse comum um tipo desses. Que dever de casa seria esse, ora essa? O dever de entender a vida de uma maneira dolorosa ― posto que intelectualizante ao extremo? Mas esse não deveria ser o dever de casa ― casa aqui entendida como metonímia para vida? Aliás, note que usei "a garota". Mas o texto não diz. Suprime o sexo de quem escreve. Pode ser um garoto também ― mas as garotas com essa idade são mais maduras que os garotos. Mas é uma possibilidade sim.
Seja como for, a ideia da supressão da experiência juvenil é forte e embasada numa crítica subjacente ― a ideia de que uma educação sentimental tão rígida como essa faria com que a criança perdesse a infância. A autora não chega a formular isto tintim por tintim, mas me parece ser algo legível em especial pelo tom melancólico do último verso, "Tinha 13 anos.", que quebra semanticamente a sequência de anotação na agenda que o texto apresentava até então.
Apesar de bem construído, e conseguindo se sustentar de maneira admirável, julgo que o poema diz pouco. Claro que é de se perguntar se não estaria exigindo algo na contra-mão do espaço em que o poema se movimenta ― é uma criança, afinal. Realmente, é possível. Mas pude comentar, em outros casos, acerca de poemas que também se valiam da concisão e que, no entanto, chegavam a resultados estéticos mais completos.
O próximo é, creio, o melhor dos três. Costumamos pensar na noção da pontualidade apenas num prisma temporal, mas a autora expande a ideia para um nível espacial e também sentimental. Num contexto dinâmico ― muitíssimo bem exposto na primeira estrofe, em que o oscilar dos jornais ao vento é seguido, nos versos 3 e 4, de resumos de notícias que também oscilam ao longo do verso ―, a poeta diz, no começo da terceira estrofe, "Eu devolvo imobilidade às imagens e me retiro". É bonita a ideia. Uma vez que despertamos, é como se o dia recebesse aquele aceno aguardado e, como dito, as coisas passassem a oscilar até o instante em que a poeta desse de volta imobilidade às imagens. No caso, podemos ler como se o avanço do dia fizesse com que tudo aos poucos voltasse a seu tom estático, noturno ― ou então desmantelando os significados do termo "imagem" no sentido de ser o que percebemos e no sentido de ser aquilo que captamos ― algo como se batêssemos uma foto e, portanto, devolvêssemos imobilidade às imagens que contemplávamos.
Só que existe um tom opaco ao longo do poema ― veja-se a poeta se retirando "por trás do vidro sempre empoeirado / que filtra a brutalidade crescente do sol." Existem espécies de saltos que partem sempre de pessoas dentro de seus quadrados ― rumo a patamares mais altos. Quando ela nos diz, na segunda estrofe, da criança que olha pro décimo andar enquanto fecha o portão, podemos notar tal movimento ― o aqui, agora, ao rés do chão, de se fechar o portão, e o além, representado pelo olhar pro alto. Isso de certa maneira perturba a pontualidade ou, pra irmos em sentido contrário ― o que creio mais coerente ― faz com que nos movamos dentre dois pontos separados no espaço, um aqui por perto e outro lá longe. Nos versos que citei no começo do parágrafo, é a mescla perspectivística do vidro sempre empoeirado ― isto é, um ponto ― com a brutalidade crescente do sol ― outro ponto.
Formalmente, dois detalhes devem ser chamados a atenção. Na quinta estrofe, a palavra "pontos", naturalmente, simula pontos ― e, na sexta estrofe, a ideia de reaparecimento da vida é reforçada pelo fato de que a estrofe é composta de apenas um verso dependente sintaticamente da estrofe anterior.
― Vejamos a última estrofe:
É mesmo importante
que alguns lugares da casa
vivam sem mim.
A ideia da pontualidade reaparece ― aqueles pontos da casa. Tendo dito, antes, que o poema também explora as dimensões temporais e espaciais da pontualidade ― e a dimensão temporal pôde ser vista quando abordei a ideia da passagem do dia e a estaticidade e dinamicidade dele ―, a autora está nos dizendo que alguns lugares da casa como que merecem seu afeto mais do que outros. Embora exista vida mesmo no vão inalcançável, é uma questão de perspectiva ― "Há perspectivas da casa que desconheço, / pontos / em que me demoro / não mais do que instantes." Um pouco antes, a autora nos diz que inspeciona "minúsculas configurações / de sujeira e mofo / em progressão". A ideia é que algumas partes da casa, portanto, vão deixando de merece sua percepção e, portanto, vão sendo jogadas às traças. Não dá pra dizer com exatidão que pontos seriam esses ou quais as razões da poeta fazê-lo. Um relacionamento antigo? Memórias? Vai saber. O que chamo a atenção é para o fato de que um poema intitulado pontualidade transcende a simples ideia de objetos isolados. Vimos, com a dinâmica de estabelecimento de pontos distanciados entre si, que isso dá um certo tom de alternância que, não raro, é mesclado numa só metáfora e, com isso, faz com que o poema se movimente de maneira interessante, à maneira de um pêndulo tão rápido em seu trajeto que parece ter apenas duas posições no espaço: A e B ―quando, na verdade, entre A e B existe uma infinidade de outros pontos ― e, se lemos o poema da autora de maneira atenta, vamos notando que é isso o que ela deixa transparecer ― e é isto, aliás, que peço para que o leitor preste atenção: a forma como ela espacializa um poema que deveria ser pontual e, digamos, unidimensional ― como, por exemplo, ao abordar determinados cantos da casa que devem viver sem ela, ela não deixa de estar falando de todos os outros ― algo que, evidentemente, demonstra grande perícia por parte de Leila.
Já o último poema muda um pouco, de novo. Camaleônica, essa autora. Pesquisei com cuidado cada referência, e, a não ser que não tenha feito o serviço direito, cheguei à conclusão de que são referências muito específicas, quase que barristas. Ou seja: não se trata do caso de que uma referência queira dizer algo além, que traga uma bagagem de significados. Quando a autora fala dos sacos de leite CCPL, ela quer dizer apenas sacos de leite CCPL. Não sei como haveria algo a mais para ser dito. Se o título do poema é Aventurado, somos tentados a ler um "Bem-" ali no começo, só que não dá pra fazer isso. Aventurado: aquele que se aventura: aquele que se expõe. Não é bem isso o que o poema nos diz? A dinâmica das referências é por aí mesmo. Um saco de leite CCPL diz apenas que é o que é. Se houver um significado além do normal, é um significado da ordem sentimental. Claro que podemos enxergar também no termo aventurado a ideia daquele que passa por aventuras, peripécias. Isso explica um certo tom cosmopolita ao longo do poema, mesclando os sacos de leite CCPL com o Jerusalém Post, ou o "legado de palavras técnicas e góticas" do começo da segunda estrofe.
Explica também o fato do poema começar dizendo o nome de um navio ― ou o fato dele possuir "corpo de sopro, pele fina como papel" ― ou seja, pronta pra que nela gravem-se símbolos ― e explica o tom de desolação ao longo do texto, visto em especial quando ele chora no final da primeira e da segunda estrofe ― esta última inclusive citando o nome de uma pequena cidade alemã. Que, conforme minhas pesquisas me levam a crer, quer dizer apenas o que quer dizer ― que ele existe. Que aquele de quem a poeta fala está triste. Sem mistério algum por detrás disso.
§
Disse que não buscaria um fio da meada. Mas mudei de ideia. Em determinado momento, a feira apinhada de gente, me lembrei de olhar pro alto e conferir se haviam estrelas. Nada... Só uns furinhos dando a entender que aquela gaze escura estava ela própria desgastada ― não o contrário. Foi quando uma gota de chuva caiu perto do meu olho, e por isso pareceu que eu havia chorado.
Digamos que a questão aqui seja passar de um extremo ― de sutilezas líricas não raro descritivas ― a um extremo de forte presença do autor ― chegando a um nível de registro idiossincrático. Entre ambos, a tonalidade política e o experimentalismo formal ― e, como uma espécie de linha mestra, a busca frequente de tornar opacas as divisórias entre categorias dualistas tais como interior e exterior, subjetividade e objetividade, individualidade e coletividade ou memória e política, esquecimento e eternidade.
A maior parte dos poetas nascidos na década de 90, por exemplo, está naquele extremo idiossincrático. Seriam nomes como Gabriel Resende dos Santos, Rubens Akira Kuana ou Danilo Augusto. O fervor que seus poemas exibem, como se algo estivesse prestes a explodir na terra desolada, faz com que tenhamos o forte ressaibo de que o poema funciona jungido aos caprichos do poeta. São comparações desconexas que nos deixam atordoados, batendo tudo num liquidificador cultural que resulta numa massa pastosa ― que, bem, é isso aí. Autores de décadas passadas também entram nessa jogada, não raro com recursos próximos do irônico ― embora eles não cheguem, via de regra, a possuir a vitalidade absurda dos poetas que não sentiram de algum modo a redemocratização do país. Seria o caso de nomes como Leandro Rafael Perez, Vinícius Barth, Marcelo Pierotti ou Antonio LaCarne.
Mas existe também um lirismo delicado. Um lirismo sutil. Enaiê Mairê Azambuja, Vinícius Leopardi e Ernesto Von Artixzffski são bons exemplos. A tendência pode ser a do poema conciso; mas a máquina melíflua, que em Martim Silva chegava até mesmo a funcionar como uma espécie de giroscópio quase que imperceptível, faz com que o leitor tenda a visualizar com clareza impressionante o objeto retratado, pra não dizer no fato de que a forma como somos tragados para a situação do poema também foi feita, no geral, com perícia pelos poetas reunidos.
Se disse máquina, é pra lembrar que o espectro político esteve presente. Muito presente, aliás. Do poema de Casé Lontra Marques, Rodolfo Jaruga e Glayssom Zamt, os poetas brincam com a forma como moldamos e somos moldados por um jogo de poder. O tom participativo parece às vezes preferir refletir sobre a apatia ― a forma como individualidades pervertem-se em joguetes ― mas não se deve traduzir um posicionamento assim em apatia do próprio poeta ou do poema em si. Leia-se, antes, como uma investigação viva do processo opressor.
A vertente experimentalista com frequência se coaduna para um lado ou para outro. Creio que com exceção de Alexandre Guarnieri ― mas com as devidas ressalvas, posto que quando falo do experimentalismo em seus poemas listados estou falando em especial na preocupação de que o funcionamento total do poema refrate o objeto poemático ―, tal verve experimental não se faz tão presente nos outros poetas ― a não ser que enxerguemos boa parte dos procedimentos idiossincráticos de um dos extremos como também incluso ou pelo menos refratário do experimentalismo. Assim, a concisão descritiva de William Zeytounlian pode começar do lirismo delicado e pleno de sutilezas para passar pelos meandros da formalidade friamente calculada e chegar com força total na atuação político-histórica. O mesmo digo a respeito de Marcus Fabiano Gonçalves.