A alegria na poesia contemporânea.
Em matéria pra Gazeta do Povo, 06/10/14, o poeta curitibano Guilherme Gontijo Flores, respondendo a Daniela Zanella, diz:
O cotidiano é importante: não trato da felicidade, veja bem, mas de alegria, sim, uma coisa fugaz e que pode emergir da própria dor. Boa parte da tradição poética ocidental (ao contrário da oriental, por exemplo) deixa de lado a alegria e prefere tratar da dor da existência, mas vejo em alguns poetas uma noção que foge à maioria; dentre eles, lembro agora Horácio, Wordsworth, Ungaretti e Leminski. Quero que meu livro, ao seu modo, esteja perto deles.
O leitor que conhece a obra de Guilherme pode ficar à priori um pouco perplexo. Como pode o homem por trás de um projeto como o Tróiades falar em alegria? Em seu livro Brasa enganosa abundam poemas negativos, com frequência falando de abismos que cabem na aba do chapéu ou coisa do tipo.
Será bom um paralelo com Ferreira Gullar. Pois observem aquele Gullar de Dentro da noite veloz, aquele Gullar de um poema como A Alegria. Ele se pergunta: "Será maior a tua dor que a daquele gato que viste / a espinha quebrada a pau / arrastando-se a berrar pela sarjeta / sem ao menos poder morrer?" Imerso no presente, qualquer leitura contextual poderia explicar a razão de versos tão impactantes assim. E contudo, é preciso também que se observe que no mesmo livro Gullar nos diz que a vida bate, e, já no Poema Sujo, ele estaria mesclando momentos sombrios com momentos da mais genuína alegria lírica, pra não dizer no fato de que, em livros mais recentes, Gullar olhará para seu gatinho de estimação e dirá que nele está a eternidade.
Com Gontijo Flores não muda muito de figura. No poema AI-5, o poeta diz que "& na verdade fomos um barco" para concluir que "& na verdade ainda / somos". Não me cabe aqui uma análise mais detida das razões de se dizer algo do gênero, embora saltos de intolerância surjam em nossa sociedade de maneira a nos deixar, no mínimo, perplexos. E, com efeito, de maneira parecida àquele Gullar que enxergava na carcaça de um gato a chave para a empatia em tempos tão difíceis, de maneira parecida Gontijo Flores vê na carcaça de um pássaro "uma réstia de vida". Lapsos de esperança, podemos resumir, pois, como o próprio poeta muito bem definiu, existem lapsos de alegria em seus textos.
Dito no poema Arquitetura, é ver que uma flor pode brotar das ruínas. Bem como aquela flor de Drummond, que, de lá pra cá, ainda vence o tédio e o nojo, embora, e aqui eu creio que está a peculiaridade do trabalho de Gontijo Flores, deva-se perceber que se no contexto de Drummond havia evidentemente uma guerra lá fora, é nosso dever, hoje, em meio ao silêncio, nos perguntarmos de onde vem isso que nos oprime. Pois será assim, reconhecendo que os tempos são difíceis e que os abismos estão nos lugares mais inesperados, como nas abas de chapéu que falei pra vocês, que o poeta poderá afirmar: "A CADA / queda faço / novo passo em / nossa / dança".
Uma tarefa difícil, vocês podem ver. E que vai além daquela felicidade relacionada à escrita que Gullar, em entrevistas recentes, afirma: ou seja, de que, embora o poeta esteja triste naquele instante, a alegria de escrever supera tudo. É e não é por aí com o projeto de Gontijo Flores. É pois o depoimento do poeta confirma o que se disse e se pode presumir esse tal prazer seja na forma como o poeta trabalha a linguagem, valorizando os espaços em branco também à maneira de Gullar, seja nas referência variadas com que salpica sua produção. E também pode não ser pois, como disse, o projeto da luta persistente por uma alegria difícil não é nem um pouco simples quando muitas vezes, eu também disse, não sabemos direito nem de onde vem aquilo que nos oprime. Daí a tarefa do poeta, um poema depois do que acabei de citar integralmente, de que "mariébrio / lanço-me em velas ao leste / ao centro decerto / do ocidente". Como se o que passasse a importar já não fosse a promessa da alegria, mas sim a sua busca, revalidando aquela frase de auto-ajuda com doses cavalares de História.