Nota sobre o "Tróiades", de Guilherme Gontijo Flores.
Talvez fosse melhor compartilhar isso meia-noite, quem sabe... Talvez não. O que o poeta expõe no site, infelizmente, não é nada de sobrenatural ou que se pretenda no escuro: tudo aí acontece à luz do dia.
Então fica a indicação para os colegas de um excelente exemplo de poesia NA internet. Grande parte do que temos é poesia PELA internet; este é um caso distinto, pois se vale dos instrumentos que a internet pode oferecer para torná-los fonte semântica. Especialmente o instrumento da interatividade, que, já dizia o Steven Johnson (Cultura da interface), é a espinha dorsal da navegação na internet.
São vários trechos de Eurípides, Sêneca e Walter Benjamin associados a imagens de massacres. O fato de ser basicamente um projeto de colagens não reduz a originalidade, bastando que se cite a composição geral de uma obra como Os Cantos do Pound ou a associação para com aquilo que a Marjorie Perloff estudou em O gênio não-original: isto é, poesia basicamente feita de colagens de trechos alheios, como no caso da obra de um Eliot ou das Passagens do Benjamin, ou, nos casos mais recentes, o caso da obra Traffic do Kenneth Goldsmith, que transcreve 24 horas de relatórios de trânsito. Ou ainda, como notou bem o Adriano Scandolara (aqui; ler, sobre o Tróiades, aqui também), tradutor dessa obra da Perloff,para voltarmos no tempo, o caso dos centões na poesia romana, que funcionavam da mesma forma.
Não digo nem tanto que o site se trate de exercício de empatia pura e simples, pois, a esse respeito, existem talvez alguns equívocos tornados em chavões. Por exemplo, essa coisa de que não somos mais capazes de nos chocar com imagens que nos demonstrem a barbárie.
Seria uma verdade? Se for, o projeto do Guilherme nos ajuda, como é próprio da boa poesia, nos ajuda justamente a ver o contrário: e o fato de serem colagens certamente ajuda muito neste sentido, visto que é comum aos melhores trabalhos de colagem poética o fato de se desvincularem momentaneamente do texto de origem para que ganhem novos significados permitindo que nós, leitores, habitemos a fenda temporal entre o contexto do texto de partida e o contexto do texto de chegada.
Mas talvez não seja bem uma verdade se nos lembrarmos do que a Susan Sontag diz em Diante da dor dos outros. Analisando a fotografia de guerra, em determinada passagem ela questiona essa ideia de que estamos nos tornando menos empáticos quando encaramos fotos tão terríveis assim. Afinal de contas, ainda que a presenciássemos cara a cara, isso não seria garantia de que iríamos nos comover. É como se ficasse ainda algo por completar. O que seria esse algo... Eis a questão. Talvez, lançando olhar para a obra do Guilherme, possamos chegar a uma resposta. Por exemplo, no Brasa enganosa, no poema Está na cara, ele diz: "raia no raio do olho que a devora no metal / enquanto espreitas em seu / (sem) / sentido // O MISTÉRIO". E então, considerando que o Brasa enganosa basicamente se movimenta no sentido de se inscrever na realidade e explorar a fenda de sua própria inscrição, ou seja, ele opera nos espaços em branco da realidade, nos espaços de não-inclusão, de pós-dissolução, um projeto como o Tróiades tem sua lógica. A lógica de que, feito sob/sobre as vozes dos derrotados, o projeto siga indeterminado, pois, quando me refiro à fenda de sua própria inscrição, não implico com isso que a fenda seja fenda. O golpe final é justamente esse: ela não é.
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E, ainda do Brasa enganosa, observe:
sem vida a vida ainda é vida
(do poema Labirinto)
sentir na pluma a brisa
ilógica do abismo
(do poema "Exilar-se do céu")
- em tudo o medo
de encontrar neste aqui um precipício
(do poema "Quisera eu não te amar")
etc.
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Inevitável, portanto, não se lembrar do trabalho de pelo menos dois outros contemporâneos: Nina Rizzi e Fabiano Calixto.
De Rizzi, onde vemos uma autora às voltas com as lacunas de seu próprio ser, é possível enxergar o caminho que a autora faz da união amorosa à voz épica apontada para os massacrados. Observe-se, de A duração do deserto:
FRAGMENTO PISADO DE UMA URNA GREGA.
Este pedaço de pedra em minhas mãos já foi a Acrópole
e já foi uma ideia de viagem, um mistério do velho Elêusis, um nome
de poeta e de outro poeta, careca – como nunca grego - e grego, primo do primeiro poeta.
Ouvi da pedra: é penteliana, mas já não digo
das brincadeiras que se faz com nomes, entre o
Agora, o Beijo e o Pentélico.
Este pedaço de pedra assassinou muitas gentes em suas passadas
e o faz agora, mas muito doce, com os meus olhos
cascalhos que despedaçam ou um lobo convertido em pedra.
De Calixto, aquela literatura que traz não só uma dimensão inexplorada do presente, como também um fluxo histórico nas entrelinhas que, quando mais se espera, extrapola o quadrado da página literária para coabitar conosco aqueles pontos cegos de nossa sociedade. É o que se pode ver, entre outros, em:
ORATÓRIO.
meninos jogam
capoeira
em frente ao muro da creche
onde, escrita a tiros,
lê-se a epígrafe destes dias
(...)
Entre outros, especialmente muitos outros de Nominata morfina.
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E, como tive a oportunidade de notar (aqui), o projeto de Guilherme dá prosseguimento ao que me pareceu e mais e mais me parece ser a tendência da poesia curitibana: realçar no agora o outrora.