Banzando VIII.

Um bom subtítulo seria: um rápido apontamento sobre alguma poesia contemporânea. Ou: elucubrações que um dia eu hei de alimentar.





Sobre alguma poesia curitibana.

Pois vejam bem. Paulo Leminski, Marcos Prado, Luís Felipe Leprevost, Rodrigo Madeira, Guilherme Gontijo Flores, Adriano Scandolara, Adriano Smaniotto. É sem espanto algum que observamos que o ambiente literário curitibano tem se demonstrado um dos melhores do país. Senão vejamos:

§

o hóspede despercebido.
Paulo Leminski.
          Deixei alguém nesta sala
     que muito se distinguia
          de alguém que ninguém se chamava,
     quando eu desaparecia.
          Comigo se assemelhava,
     mas só na superfície.
          Bem lá no fundo, eu, palavra,
     não passava de um pastiche.
          Uns restos, uns traços, um dia,
     meus rios, minhas mães e meus pais
          me chamaram de volta pra dentro,
     eu ainda não volte jamais.
          Mas ali, logo ali, nesse espaço,
     lá se vai, exemplo de mim,
          algo, alguém, mil pedaços,
     meio início, meio a meio, sem fim.

§

Marcos Prado.
     não é blues,tristes,não é mesmo
     a tristeza não faz um homem azul
     o branco é branco,o negro é negro
     ninguém é triste,não há blues
     só existem,tristes,os tristes homens azuis

     eles se vestem de branco e de negro
     e os outros vêem azul
     porque não são brancos nem negros
     os tristes homens azuis

     ninguém nasce azul
     não se põe no mundo
     alguém azul
     mas quando a noite baixa
     se levantam
     os tristes homens azuis

§

eu teria sabido enxergar as coisas sujas?
Luiz Felipe Leprevost.
     sem me sujar com elas?
     em caso de incêndio na alma?
     também teria evitado o precipício por meio das veias

     eis que me olha enevoado um dente
     me mastiga cegamente um olho qual eu fosse coisa
     não mais do que coisa

§

exercícios banais 1.
Rodrigo Madeira.
     há lugares onde a saudade, não fosse ela inopinada
     e irrecusável, se exerce com método:
     nos bancos de praça, pelas janelas
     do quinto ao sétimo andar, diante do mar
     nos alpendres dos sobrados, no interior do goiás
     dentro dos ônibus interestaduais
     e nas penitenciárias.

     há lugares onde a saudade, não fosse ela inopinada
     e irrecusável, não encontra passagem:
     na rua XV do zênite, no pega-pra-capar do trânsito
     na fila do banco, pelas escadas carregando compras
     em frente aos muros pichados, nas lojas de sapatos
     celulares e ares-condicionados
     dentro de túneis, elevadores e mictórios.

§

Guilherme Gontijo Flores.
     encontrar na carcaça dum pássaro
     destroçada por dois gatos bem nutridos

     (gratuidade do ato
     crueldade – palavra inventada
     humana demais pra contar
     esse ato – sem pecado
                        sem perdão)

     encontrar nesse corpo espalhado pela casa
     enquanto hesita entre uma pazinha
                   ou um papel higiênico
     enquanto lembra de pegar um saco plástico
                            não muito grande/não aquele azul
     enquanto afasta os gatos que teimam em brincar
              com a comida – aliás
                                     nem comida
     enquanto afasta os gatos que teimam em brincar
               (ponto)

     encontrar uma réstia de vida
     não no pássaro
                 morto/destroçado/espalhado pela casa
     nem nos gatos
     que de bem nutridos
     seguem a vida sem procuras

                uma réstia de vida
     um soco na cara um beijo por detrás da orelha
     uma réstia ainda & sempre por se
     encontrar


§

Adriano Scandolara.
     ELAINE PUTA
     cada muro grita
     Elaine Puta
                   em toda esquina
     letra escarlate, eretos
                                     Elaine Puta
     postes.
     Pintaram branco em cima,
     Elaine
     urra pedra em fúria
                                     Puta
     permanece.
     Elaine
     que você e Catulo amaram em becos e vielas descasca
     Puta
     agora os netos de nobre Remo.

     Mas não Elaine se conserta
     nem mesmo com todos os Puta vitupérios do mundo
     a elaine impotência
     do orgulho de macho puta
                                             ferido,
     no silêncio elaine da
     tinta encerrado puta.

§

Adriano Smaniotto.
     fui eu quem guardou
     as manhãs dos soropositivos
     e dos outros filhos deste caos

     estão comigo...
     se não as encontro
     então os sãos
     insistem em continuar sorrindo

     quem puder sair de seu almoço
     com arrotos de tudo bem
     tudo bem coma como um porco
     tudo bem coma coma um porco
     só não venha me dizer que é poeta
     
     o vício da poesia implica algumas abstinências:
     de focinheira
     de linhas
     de vida

     essa/ poucos ouvidos sensíveis, nem nos quer

     fui eu quem tentou apreciar o prazer dos verbos
     ganhei no lugar vãs filosofias e uma única razão:

     fui eu que inventei o mundo que chamam mal-estar.

§

É preciso que se observe: poucas poesias hoje têm trabalhado com tanta proeminência o prosaico como a poesia curitibana. Quais as raízes de um trabalho assim eu não sei, embora, lançando um olhar mais atento na comicidade ao rés do chão de Emilio de Menezes ou nas bases urbanas da poesia dum Leminski ou dum Thadeu Wojciechowsk e prosa dum Dalton Trevisan, possamos esboçar algum entendimento. Afinal de contas, se o que disse foi bem dito, a poesia curitibana não é a única a tratar o prosaico com tal proeminência nem hoje ― e basta que se cite o trabalho, pra citar um que me vem direto à cabeça, da Poesia Maloqueirista, pra não dizer no trabalho individual de nomes como Fabiano Calixto ― nem ontem ― e aqui poderíamos pensar na revolução logo no introito da grande aventura moderna, vale dizer, Whitman e Baudelaire. E também, se o que disse foi bem dito, não quer dizer que a poesia curitibana tenha se reduzido a isso ― se é que dá pra falar em "se reduzindo a isso"... Por exemplo, a poesia dum Ivan Justen Santana, não citado, por certo se inscreve na linha satírica de Emilio de Menezes, sem prejuízo a  seus momentos "mais sérios" como o de Amor & velho verso (mesmo porque este último ainda assim possui construção evidentemente satírica, bastando que se leia a última estrofe).

Onde quero chegar é: não se trata simplesmente de um encaminho exótico ou coisa do gênero, nem como simples contraponto. O prosaico é resultado direto da vivência, e, antes que se traga o prosaico para que combata uma espécie de marfim atemporal, o caminho apontado tende a ser o de enxergar nesse mesmo prosaico uma cadeia de reentrâncias históricas. Logo, a pergunta com que o prosaico sempre se vê rodeado retorna: é possível falar de coisas prosaicas no âmbito do poema? Se um simples relance para com a história literária nos permite dizer SIM de chofre, o que esses poetas fazem depois é nos perguntar, meio que retoricamente: é possível falar de coisas prosaicas em qualquer âmbito?

...E o que nos resta é uma clausura e um massacre. O que pode ser visto nos poemas acima mencionados ou em momentos ainda mais altos, como a Balada da Cruz Machado de Rodrigo Madeira, um dos poucos correspondentes funcionais aos grandes textos de Villon (e a esse respeito escoo o comentário de Pound sobre Villon: "o que ele vê, escreve") ― da mesma maneira como podemos enxergar o prosaísmo romano (Catulo, Propércio, Marcial, Juvenal etc) em Gontijo Flores e Scandolara ― assim como podemos escutar os uivos de Ginsberg em Smaniotto ― e a postura de Ginsberg, em especial quando Ginsberg enxerga no prosaico algo além de uma espécie de materialismo redutor, bem como a postura de muitos beats, por exemplo Bukowski, essencialmente erótica, é entrevista com frequência na poesia curitibana...

(A profusão de referências não deve espantar. A poesia contemporânea paranaense já foi chamada de antropofágica: aqui).




O café na poesia contemporânea.

Foi o que parei pra pensar lendo esse poema do Dirceu Villa, que tá pra lançar livro novo:

Diluir em cafeína.

     Diluir em cafeína a conversa, as palavras;
     Seus olhos, baços, as belas unhas, sujas,
     Dou um dinheiro, um aviso, e daí?
     Seus olhos brilhavam no primeiro sol:
     O dia espalha cores fortes pelo céu
     E você, o ruído e o mundo em ruínas
     Não sabem nada do sol, perderam o calor,
     E uma sombra suspira e os olhos suplicam:
     “Café. Preto e sem açúcar. Eu estou só.”

Lembrei, claro, do conto O último café de minha amiga Cleonice Machado, e do como a Cléo é doida com café. O que é interessante no conto da Cléo são passagens como o penúltimo parágrafo, com esse lance do "Os olhos trabalhavam muito." e de como a narrativa literalmente tem cafeína injetada na veia. Isto é: o redor está ali, palpitante, forte, mas a personagem não. O café é necessário, continua necessário ― e isso nós sabemos pelo menos desde Manuel Bandeira (Café com pão etc) e Mário de Andrade (a ópera Café), especialmente quando eles tratam de maneira tão irônica a questão do café como objeto metonímico para o progresso, a profissão, o social, o se mantenha ativo pra nos manter na ativa.

Não é bem o que vemos no poema do Dirceu ("E você, o ruído e o mundo em ruínas / Não sabem nada do sol, perderam o calor"), nas frequentes vezes que o café aparece nos textos da Cléo, ou, para citarmos um poeta goiano (Kaio Bruno Dinossauro) que consegue resumir bem a questão:

     vou sentir mais saudades 
     do café que você fazia
     do que de você.

Claro que daqui nós podemos ampliar e não falar só de café, pois o que está em questão é como essas coisas cotidianas, digeríveis, pedras no caminho deixam de ser o obstaculo transponível-intransponível de Drummond para virar uma espécie de pedra no sapato. Tão antigo quanto o relacionamento do ser humano com o mundo parece ser a questão de povoar subjetivamente o mundo, e aí nós podemos, pra não ampliarmos muito o leque de citações, nos lembrarmos da maçã de Bandeira. Mas o que o café na poesia contemporânea parece querer dizer com tudo isso é que o empecilho, isso talvez todos nós no fundo já saibamos, se tornou individual demais: hoje não bastaria simplesmente a atividade por si só esplêndida de particular aquela maçã como AQUELA maçã, mas, provavelmente, o poeta hoje se referiria à TUA maçã (isto é, ele abandonaria a via implícita de sensualidade que o poema do Bandeira implica, conforme nos diz o Arrigucci Jr., em prol do torná-la explícita). Só que um individual, demasiado individual não por ser intransponível ou por estarmos cerceados pela dialética lírica face a algum impedimento, como seria o caso da relação entre o passado e o presente na obra de um Bandeira. Em muitos poemas da Cléo o que vemos é um eu lírico meio sonso que esquece coisas no bolso das pessoas pra manter viva, ou coisa do tipo, uma parte dela na pessoa querida. O que ela diz no poema Alma imperativa,

     (...)

     O que eu sinto me sente, te sente,
     se faz urgente,
     quente,
     grávido do não existir.
     (...)

Ou, citando mais uma vez um poema do Kaio Bruno,

     (...)

     mas a casa caiu
     melhor, o quarto caiu

     a vida deu uma reviravolta
     e não dava pra alugar mais esse sonho bobo
     e juntou isso com a saudade de casa

     é estranho
     pareço não querer mais sair daqui
     (...)

E é isso aí. Ainda hei de pensar um pouco mais sobre as questões apontadas. Exemplos existem de sobra, visto que, por exemplo, eu nem cheguei a citar uma poeta como Alice Sant'Anna, ou uma Marília Garcia (os 20 poemas para SEU walkman), ou mesmo um poema fabuloso como O tubo do Carlito Azevedo, onde, numa estrutura emprestada da Divina Comédia, o poeta passa mais tempo no Purgatório que no Inferno ou no Paraíso, isto é, detalhe que por si só tem muito a nos contar.

§

Em suma, um tipo de café que é coado de maneira a que o objeto ganhe algum valor graças à sua esfera de pertencimento. As coisas importam porque elas pertencem ou pertenciam à outra pessoa. Logo, é um tipo de relação geralmente advinda de poesias onde o eu depende muito do outro. Acho que seria o caso da poesia da Cléo, do Kaio e da Marilia. Do Dirceu nem tanto. Em alguns instantes, quem sabe. O lance com ele já é outro. Me parece ser mais o da lacuna que o objeto causa no espaço em que é posto.

Mas aí já é outra prosa.


Prosaicos à sua maneira, e cada qual invadindo o espaço do outro, pois a rigor não há nem nunca houve divisão exata entre um e outro, o que tenho podido observar é que, seja enxergando no prosaico a duração do deserto (pra me valer do segundo livro de Nina Rizzi, que consegue bailar muito bem de uma a outra categoria), seja enxergando no prosaico partes da outra pessoa a nosso lado, trata-se de um fenômeno que não pode ser tratado a vistas largas. O que significa, num mundo cada vez mais descartável, que o poeta lance um olhar ou outro, ou mesmo os dois, sobre a coisa de que fala?

São apontamentos, elucubrações à espera de ração. Espero que, pelo menos, eu tenha deixado mais ou menos claro porque pretendo estar constantemente voltando a estas paragens.