Banzando VI.
Agradeço a Flávio Rodrigo Penteado por ter me atinado da existência dessa carta de Mário. Sim, Flávio, você tem razão: isso é um verdadeiro mantra.
Agosto de 1940.
Mas você sofre daquele delírio honesto de perfeição que lhe quer impedir escrever sobre um assunto enquanto não tiver lido toda a bibliografia desse assunto?
Conheço essa tentação do Demônio que eu também sofri.
É a mesma que faz os neocomungantes se perguntarem angustiados se não enguliram alguma gotinha d’água enquanto lavavam os dentes.
Deixe de bobagem, Oneida, vamos pra diante. Você não percebe que tudo isso são tentações da preguiça, impedimentos da vaidade, máscaras da covardia?
Faça a sua conferência e saia dela com a convicção, não de ter dado tudo o que podia, mas o suficiente para ser útil e honesta.“Tudo” é a existência, e custa uma vida. Só no dia da morte você terá dado tudo quanto poude.
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Sobre águas passadas: a polêmica entre Augusto de Campos e a Folha, da publicação indevida e tosca de um clássico do Augusto nas páginas do jornal (resposta aqui).
Irretocável a resposta do Augusto, com exceção talvez desse "a inferioridade civilizatória do brasileiro em relação aos outros povos", que ficou esquisito. Mas é doido (e doido está perto de ódio), repito, você ver como um poema tão importante como o Viva Vaia sendo usado de instrumento de ódio. Justamente o contrário da fórmula do Alfredo Bosi, de poesia-resistência, de poesia contra a barbárie. Afinal, nas mãos da Folha o poema do Augusto virou Viva A Vaia.
Mas é Viva Vaia, Vaia Viva. O reverso da moeda, pois entre um Viva pode estar implícita uma Vaia. Do mesmo modo que quem Vaia está Vivo, pois a Vaia é Viva. Não muda. Só troca os termos, muda a direção dos triângulos. Muda a cor. O Viva está escrito em vermelho com caracteres brancos: o poema quer que nós, seres sanguíneos, estejamos no branco, na paz, sei lá. É o contrário da Vaia, escrita de branco num fundo vermelho. Se é que dá pra falar de contrário, pois o Viva é como que um reflexo do Vaia. O Viva é um negativo do Vaia. (Para não dizer em exposições das mais variadas do poema que ressaltam, por exemplo, como do Viva nós temos, continuadamente, uma Vaia.) Não tem esse "A" que a Folha pobremente incutiu na leitura do poema do Augusto, um mosaico que, se visto de longe, mostra uma ondulação descontínua, linhas brancas entrando dentro de linhas vermelhas, linhas vermelhas entrando dentro de linhas brancas. Sem, repito, o reducionismo que a Folha quis implicar. Pois o poema do Augusto resiste. E ele não precisa do ódio para isso.
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Que em 2014 Dona Morte afiou a foice está bastante claro ― e sim, pode parar, a gente já percebeu. Agora daí a dizer que está sendo um ano ruim pra literatura são outros quinhentos.
Tenho como responder pela poesia. No geral eu tô me cagando pra prosa. Mas no âmbito da poesia, vejam bem:
Como dizer que pode ser ruim um ano em que três dos principais poetas do cenário contemporâneo publicam livros novos: Fabiano Calixto, Marília Garcia e Dirceu Villa? Isso pra não dizer no fato de que assistir a um poeta como Ricardo Domeneck escrever as Odes a Maximin é como se nos sentássemos para esperar os bárbaros pela primeira vez, enquanto vemos o deus abandonar Antônio. (Já encarando as consequências duma afirmação assim sem problema algum.) E isso pra não dizer em outros lançamentos que também são dignos de entusiasmo (o livro do Reuben, o livro do Akira Kuana), bem como em poetas que surgiram no cenário esse ano, como o William Zeytounlian.
No âmbito da literatura goianiense, os auspícios são ainda melhores. Ver o letra livre completar 6 anos e chegar provavelmente ao seu zênite é um ganho de todos ― é um ganho pra literatura goiana muito maior que o simplesmente esperar por Godot ou pelo próximo gênio dos versos, como se o batismo de um gênio dos versos em nossos cartórios fosse o suficiente para que a literatura em nosso terreiro ganhasse em qualidade de vida. O mesmo com o surgimento do selo Zé Ninguém e com a consolidação de um espaço tão literário tão legal como o Evoé Livros. Em nossa história literária nós não tivemos muito disso. Não tivemos momentos de efervescência tão genuínos como este. É algo pra se colocar no mínimo ao lado do GEN, valendo-me, é claro, da expressão com que a Moema de Castro intitula seu livro: Um Sopro de Renovação em Goiás.
Pois é por aí. Ainda bem. São tempos difíceis, ainda mais aqui em Goiânia, como disse uma postagem atrás... Pra citar um poema do conterrâneo e contemporâneo (sim, além de rima é solução) William Trapo,
O amor consome
o meu tempo de escrever
Não meu bem, eu não morri
Acontece que agora
minha poesia é viver
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"Sobre águas passadas"...
Perseguição numa faculdade de Direito? Meu Deus, mas em que mundo vivemos! Isso parece até coisa de outro mundo, não acham? Que tal escutarmos, porém, o que um professor de verdade tinha a dizer?
"A gênese da castração é uma gênese de dominação. Qualquer dominação começa por proibir a linguagem que não está prevista e sancionada. Quadro dogmático, quadro dogmático, que bem define como capador-capado o campo do imaginário instituído: jurídico, educacional, científico, amoroso ou cotidiano." (Luís Alberto Warat, A ciência jurídica e seus dois maridos, p. 64)
E então o professor Bernardo Santoro, que nadava contra a corrente, de repente, passa a barrar a corrente. Pode isso? É possível ser contestador e ao mesmo tempo ser conforme, banana dinamite e ovelhinha mansa? A regra é clara e Warat também: "Didaticamente acredito na construção de labirintos." (p. 93); "À pedagogia de uma perseguição, se faz a perseguição de uma pedagogia." (idem). Contudo, Bernardo Santoro é vanguarda: agora praticamos a pedagogia da perseguição.
"O Ocidente construiu a ciência como castração. Fez todo o possível para nos distanciar de qualquer mensagem alquimista, de uma ciência alquímica da transformação, da produção do novo EM MIM E NO OUTRO." (p. 86, grifo meu)