Banzando V.
(Valesca Popozuda lendo Madame Bovary. Será que finalmente ela virou alguém com cultura?, se perguntam os imbecis que se brincar nem leram Madame Bovary.)
Valesca Popozuda vai pagar a viagem de professora que a citou em trabalho acadêmico a congresso nos EUA (aqui).
Estamos destruindo nossa cultura?
Bem... Estamos fomentando, não acham?
Afinal de contas, qualquer conceito que já parta de um juízo de valor está totalmente errado. Sim, o que Valesca faz é cultura e é arte, goste você ou não goste. Não tenho tanta bagagem pra poder discutir de forma mais embasada se a Valesca é ou não uma boa artista, o que, claro, me demandaria uma análise musical e não simplesmente um arremedo em prosa de suas letras (e, acerca destas, prefiro as da época da Gaiola das Popozudas); do pouco que sei, diria que não, especialmente comparando o funk da Valesca com outros funks produzidos no país; mas o fato é: dizê-lo e dar a questão como encerrada é um contrassenso pois a questão mal foi colocada, vale dizer, ao falarmos da obra de Valesca, não basta nos contentarmos com o juízo de valor na esteira do cânone (cânone entendido nas piores acepções possíveis), mas também com a contextualização, com a proposta e o impacto de Valesca, que evidentemente exploram outros lados do quadrado artístico. Sim, entendo ser um enorme exagero querermos dizer que Valesca é grande nome de nossa música. Mas quem disse que a resposta negativa para tal assertiva joga toda a obra da Valesca no lixo? Valesca pode não ser uma grande artista, pode não ser uma grande funkeira; ela é, contudo, uma grande mulher e sua obra tem ajudado a inúmeros erguerem a voz e baterem de frente em prol daquilo que são. Se você se contenta simplesmente com uma resposta de valor artístico, eu só posso rezar uma vela preta por você, meu amigo, pois você, meu amigo, provavelmente acha que todo artista quer apenas monumentos de mármore imperecível, ou que somente monumentos de mármore imperecível sirvam para tudo aquilo a que o artista se proponha a fazer. É tão inimaginável ter que, sendo a obra de Valesca arte, e enquanto arte seja fraca, ela por conseguinte perca toda a pertinência que possua? É tão dolorosa a possibilidade de que a obra de arte de Valesca, ainda que não grande obra de arte, seja, ainda assim, grande obra? Pois: a luta em prol da emancipação humana ― do empoderamento ― se isso não é uma grande obra, então o que seria uma grande obra? O fato de Valesca ser uma artista implica dizer que ela o fará apenas no âmbito artístico? E o que seria esse âmbito artístico? Uma mansão espelhada onde se vislumbram grandes gênios?
Não nego que o seja. Não nego que, a qualidade artística de Valesca fosse maior, tanto maior seria o impacto de sua obra. Mas repito: em não ser, Valesca deixa de ser artista?, de ser cultura?, de ser válida?, de ser importante?
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Veja-se, no último parágrafo da notícia citada:
(...) A questão é até que ponto, na sociede em que vivemos, isso pode ser realmente libertador, ou é só mais uma reprodução de como a mulher é vista. Me interessa pensar o funk como uma manifestação cultural legítima desses meninos e meninas. O que tem de imadiato para a juventude? A sexualidade. E o funk fala sobre isso. (...)
A autora do estudo não tá interessada num juízo crítico. Tanto que ela até usa a expressão "O que tem de imediato pra juventude". E nesse sentido ela foi bem, não acha? A Valesca é realmente uma referência imediata sobre o funk e ela traz questões de gênero em sua obra.
Leia-se o resumo do estudo da autora: aqui. Veja que ela usou também outros funkeiros, como o MC Guime, MC Beyoncé, MC Daleste, MC Catra etc, divididos em três grupos: 1) funkeiros homens; 2) funks que retratam a mulher de forma subjetiva; e 3) funks cantados por mulheres que exaltam a liberdade feminina.
E, na página 10, ela diz:
Mesmo, que o discurso intrínseco nas letras de FUNK, seja de reprodução da opressão e dominação da mulher na sociedade, acredito que ainda há esperança, que seja possível que mesmo, a partir do discurso sexista de funkeiras como a Valeska PoPozuda, seja possível que as jovens assumam cada vez mais o controle de seus corpos.
Ela fez ou não fez um puta estudo, ora essa?! E, tendo-o feito, é ou não é de uma grandeza maior a atitude da Valesca?
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Citam também o videozinho do saudoso Suassuna:
Além de ridicularizar o outro lado, o que há para ser visto aí é ― ?
Resposta: nada. Era de se esperar, pelo contrário, o mínimo do mínimo de alguém que já escreveu um livro eu considero bem estruturado sobre Estética (se bem que é sintomático que o Suassuna não vá muito além de Hegel)... Oras:
A Beleza é, sendo assim, não uma propriedade do objeto, mas uma certa construção que se realiza dentro do espírito do contemplador, uma certa harmonização de suas faculdades. Entre estas, destacam-se a imaginação e o entendimento, e a harmonização entre elas é governada pelo sentimento de prazer ou desprazer. A beleza de um objeto não decorre, então, de qualidades do objeto: é obra pura e exclusiva do espírito do sujeito, que a fabrica interiormente, diante do objeto estético. (Iniciação à estética, editora José Olympio, 2008, p. 31)
Tudo bem que páginas depois o Suassuna desacopla a Estética da Crítica de Arte; mas não creio que esse desacoplamento venha a calhar pro que discuto (isto é; a Estética trata do conceito, do geral, da Beleza, enquanto a Crítica de Arte aplica tal conceito no caso particular). Basicamente, o que o Suassuna diz aí é o que a Kate Mandoki chama da Beleza como efeito linguístico. E não me parece ser uma lição que o próprio Suassuna aprendeu de todo... Pois só aqui estamos falando de juízos de valor. E o ponto onde se deve chegar é simples: a discussão sobre o estudo acadêmico sobre a Valesca Popozuda (sobre o funk, na verdade) NÃO É uma questão pra juízo de valor.
Pois, a esse respeito, li há tempos uma paulada na cabeça do falecido: Suassuna, velho burro, de Alex Antunes (aqui). Óbvio que não concordo nem de longe com a irresponsabilidade e desonestidade de chamar o Suassuna de burro; acho também que o autor do texto cometeu o pecado de exagerar, pois, de resto, o Suassuna não era contra o contato entre a cultura brasileira e a cultura de massa, sendo, antes, contra o contato com uma cultura de massa ruim (e também não era a favor de uma "purificação" cultural, ele mesmo a chamando de "impossível e indesejável"); mas que a defesa em prol da cultura popular por parte do Suassuna era aqui e ali inocente e incoerente, isso era... Funk não é cultura popular? O pop não é cultura popular? Incutir um juízo de valor nesses casos, repito, é um tiro pela culatra. Do mesmo modo que não é da competência de um artigo acadêmico efetuar um juízo de valor ― e, ainda que o fosse, a autora explicitamente não está preocupada com isso.
Quem leva a discussão para estas raias está fugindo do assunto.
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The Bad Feminist Manifesto, de Roxane Gray (aqui):
Maybe I'm a bad feminist, but I am deeply committed to the issues important to the feminist movement. I have strong opinions about misogyny, institutional sexism that consistently places women at a disadvantage, the inequity in pay, the cult of beauty and thinness, the repeated attacks on reproductive freedom, violence against women, and on and on. I am as committed to fighting fiercely for equality as I am committed to disrupting the notion that there is an essential feminism.
(...)
(...) The more I write, the more I put myself out into the world as a bad feminist but, I hope, a good woman – I am being open about who I am and who I was and where I have faltered and who I would like to become. No matter what issues I have with feminism, I am a feminist. I cannot and will not deny the importance and absolute necessity of feminism. Like most people, I'm full of contradictions, but I also don't want to be treated like shit for being a woman. I am a bad feminist. I would rather be a bad feminist than no feminist at all.
Roxane Gray é uma das ensaístas mais interessantes que você vai encontrar hoje.
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Sobre Nabokov enquanto crítico: Nabokov esquadrinha obra de russos em livro cativante (aqui), por Irineu Franco Perpetuo.
O texto sobre o Dostoiévski pode ser lido na dissertação de mestrado do Fabio Brazolin Abdulmassih, Aulas de literatura russa ― F.M. Dostoiévski por N. Nabókov: por que tirar Doistoiévski do pedestal? (aqui).
Geralmente esse texto sobre o Dostoiévski é o que gera mais interesse, assim como os textos do Nabokov sobre o Dom Quixote ― pois neles o Nabokov mete o pau. Observa-se nitidamente que Nabokov recorre demais ao juízo de valor generalizado (quanto toda crítica deve particularizar, seja ela positiva, seja negativa) e que ele se aferra demais a SEU ideal de qualidade, o que seria algo normal se não fosse tão evidente quando cotejamos os defeitos apontados por ele em Dostoiévski com aquilo que a crítica costuma discorrer sobre o estilo nabokoviano. Assim, por exemplo, Nabokov criticando "(...) um exagero não-artístico das emoções que, de acordo com suas concepções, tinha como objetivo provocar uma compaixão automática no leitor." (p. 49 da dissertação) ou Nabokov criticando a falta do "pano de fundo natural" nos romances de Dostoiévski, isto é, "(...) as descrições dos ambientes, do clima e dos lugares onde se desenvolve a ação, tão importantes para a percepção dos sentidos, segundo o autor [Nabokov]." (p. 50) ― tanto um como outro, ora essa, características marcadas da prosa nabokoviana, onde via de regra existe um narrador numa posição aristocrática que impede qualquer transbordamento emocional das personagens, e às vezes dele próprio, banhando seu redor num balde de sarcasmo, e onde é notório o relevo dado às descrições ambiente.
E tanto um como outro, é claro, não consistem necessariamente defeitos em Dostoiévski, visto que Nabokov não soube particularizar o juízo que fez, o que até mesmo o impediu de entender melhor a constituição psicológica da personagem dostoievskiana e, por conseguinte, do ambiente em que a narrativa é veiculada: ou seja, Dostoiévski, porta de entrada ao monólogo interior de modo que as descrições ambientais, quase autônomas no século XIX, e as descrições psicológicas, no geral tidas como arquetípicas ou limitadas aos quadrantes da própria personagem (sem transbordarem), são afetadas na medula: "Ora, o romance em Dostoiévski, por menos que Nabókov queira reconhecê-lo, é o espaço do choque entre as personagens, das relações que elas estabelecem entre si e com o meio social em que estão inseridas." (p. 51)
De todo modo, ouvi dizer que as leituras de Nabokov de Tolstói e Tchékov são ótimas. Já pude confirmá-lo lendo alguma coisa do Nabokov a respeito de Joyce, Proust, Kafka e Flaubert, escritores de sua preferência, e, de maneira geral, parece que Nabokov foi um bom crítico quando falava do que gostava. Situação normal, podemos pensar, não fosse o fato de que suas críticas de quem ele não gostava denunciassem tanto a qualidade dele, Nabokov, como crítico.