Grandes poemas contemporâneos. "Praça do Sol às 3 da tarde", de Reuben da Cunha Rocha (cavaloDADA).
(Capa do primeiro livro do autor. Créditos.)
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Praça do Sol às 3 da tarde
risca o fósforo do incendiário
Praça do Sol às 3 da tarde
abre as narinas p/ o fedor dos muros
Praça do Sol às 3 da tarde
esconde a senha dos holocaustos
Praça do Sol às 3 da tarde
enerva cada coração covarde
Praça do Sol às 3 da tarde
aponta os mísseis à glória
Praça do Sol às 3 da tarde
depila as tuas rameiras
Praça do Sol às 3 da tarde
apascenta teus ambulantes
Praça do Sol às 3 da tarde
despista o fumo dos policiais
Praça do Sol às 3 da tarde
oculta o raio do cego
Praça do Sol às 3 da tarde
acode o baque das ondas
Praça do Sol às 3 da tarde
distrai o tédio do pipoqueiro
Praça do Sol às 3 da tarde
loas ao biquíni túrgido
Praça do Sol às 3 da tarde
acorda a renca dos ventos
Praça do Sol às 3 da tarde
diz a gíria do guardador de carros
Praça do Sol às 3 da tarde
toma gosto c/ as empregadas
Praça do Sol às 3 da tarde
pendura a nuvem nos galhos
Praça do Sol às 3 da tarde
trocados ao vendedor de coco
Praça do Sol às 3 da tarde
ouvido ao reggae das bacantes
Praça do Sol às 3 da tarde
Praça do Sol às 3 da tarde
Praça do Sol às 3 da tarde
devora a muvuca das gentes
cede teus bancos às fodas
legisla a rixa dos traficantes
senhora injuriada das trapaças
abre tuas pernas p/ os pivetes
engole o mijo da criança
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Retirado daqui.
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A poesia de Reuben é seguramente uma das mais difíceis no cenário atual. Podemos começar a abordá-la do título de seu primeiro livro: As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de tv. Me parece bem claro que existe aí algo de patético, uma subversão (retardatária?) daquilo que Northrop Frye localiza, em sua Teoria de Modos, como o modo romanesco. Aqui nós poderíamos pensar também no que uma aproximação assim implicaria, no que certamente cairíamos na ironia evoluída em sarcasmo, e, daí, poderíamos aportar nos estudos de Bakhtin sobre os institutos.
Não pretendo me aprofundar muito nisso. Sei que é uma característica bem notória da poesia de Reuben, subversiva de uma forma direta. Contudo, o que quero apontar é que a poesia do autor não se resume a tal (mesmo porque, se porventura o fosse, ainda assim não seria pouco). Minha ideia inicial era a de abordar a poesia de Reuben na primeira parte de meu ensaio sobre poesia e caos (aqui). Acabei que não o fiz pois, tendo visto o filme da Polly, me dispus a trabalhar aquela ótica em específico que aborda o caos como ele é, pra depois, na segunda parte (aqui), abordar aqueles autores que se dispõem a enfrentá-lo. A poesia de Reuben ficou de fora pois depois, percebi, ela estaria numa proposta geradora de caos.
Pondo em outros termos, a poética de Reuben é uma poética de ruídos. De perturbações. Nós sabemos que é da natureza da atividade poética um embaralhamento, a aproximação àquilo que Umberto Eco chamou de entropia no processo comunicacional-informativo. Em outros termos, existe uma possibilidade certo modo infinita ou incontroladamente vasta de que geremos conteúdo. Como existe um código, muitas destas possibilidades vão progressivamente se tornando menores, o que dá, de contrapartida, um enorme ganho de inteligibilidade. A atividade estética basicamente problematiza o código, sem, contudo, subvertê-lo, e então vamos ficando cada vez mais próximos da situação entrópica inicial, onde quesitos tais quais o simples contorno ou tamanho das letras podem vir a ser uma fonte semântica.
Dizer, sendo assim, que a poética de Reuben é uma poética de ruídos não parece ser lá uma grande novidade pois toda poesia possui, em maior ou menor nível, com ou sem fogos de artifício, um procedimento assim. Aqui eu poderia simplesmente dizer que a poesia de Reuben apresenta uma intensidade de ruídos maior do que a que costumamos observar em outros poetas, e creio que poderíamos pôr a discussão como encerrada. Ou então poderia dizer que ele parece possuir um projeto poético traçado neste sentido, e isso seria uma forma de me fazer entender ainda mais. Ou então posso dizer que o nível de perturbação causada pela poesia de Reuben se espraia com maior desenvoltura.
E então chegamos a um bom entendimento. Os ruídos de que falo na poesia de Reuben não são apenas ruídos dentro dos materiais compositivos poéticos. Certo que os materiais poéticos, numa análise mais realista, nada mais são que os materiais linguísticos, os mesmos que agora uso para falar com vocês. Sim, sim. Os ruídos a que me refiro, todavia, são ruídos que visam especificamente os pressupostos do leitor. São ruídos que vão diretamente nem tanto na carga que o texto diz, mas no que o leitor traz para que o texto seja lido.
Pois não posso querer dizer que Reben é simplesmente um iconoclasta, por mais que sua poesia caminhe progressivamente a um rumo assim (e também assinto no sentido de que ela se caracteriza pela iconoclastia). Seria, em outros termos, como se Reuben se instalasse nas últimas partes dA Luta Corporal de Ferreira Gullar, em poemas como Roçzeiral, onde a desarticulação da linguagem alcançou um nível tão pleno que o poeta simplesmente entra em colapso: eu destruí tudo; agora, como me comunicar? Me parece bem possível que a poesia de Reuben se movimente à beira de um colapso, mas não me parece que seja seu objetivo chegar a um. Subversiva de pronto podemos entender que ela é, ou, como disse anteriormente, diretamente subversiva. Mas não um tipo de subversão necessariamente paródica: e é por isso que decidi colocar de lado os conceitos de Bakhtin antes aludidos. Como a poesia de Reuben, defendo, trava sua batalha nos pressupostos do leitor, ela não pode ser simplesmente paródica, visto que um texto paródico se movimenta em seus próprios pressupostos textuais.
Por exemplo, ainda espero que um dia alguém se proponha a fazer uma leitura comparada entre Reuben e, no mínimo, Gertrude Stein. O ideal seria uma leitura com todo um contexto do dadaísmo, o que está mais do que evidente no pseudônimo do autor: cavaloDADA. Os ruídos de Reuben, repito, se movimentam rumo à iconoclastia, à auto-destruição, mas não parecem chegar lá, também repito. A grande contribuição dos dadaístas foi a de mostrar que o rei estava nu, apresentando a arte como um sistema, uma enorme teia, de modo que, em destruir a aura artística, o verdadeiro campo de atuação dos dadaístas não deve ser localizado com tanta precisão no âmbito da Arte, mas no âmbito da Arte enquanto relação de mercado. Mais uma vez, um ataque muito mais nos pressupostos do leitor do que de fato nos pressupostos da obra.
É o que ocorre quando Gertrude Stein diz que uma rosa é uma rosa é uma rosa. Ela desarticula a linguagem num nível aquém do textual, pois já sabemos mas não esperamos que uma rosa seja (reiteradamente) uma rosa. Óbvio que dentro do texto de Stein existem camadas interpretativas que nos permitem enxergar um processo textual, visto que, por mais que um texto se encaminhe rumo aos pressupostos do leitor, ele só vai conseguir chegar lá se possuir um trabalho mínimo em seus próprios pressupostos textuais. Mas isso a meu ver não muda muito o ponto de vista que estou defendendo, pois, valendo-me de uma imagem, os pressupostos textuais, suas engrenagens, se movimentam no sentido de adicionarem ruídos suficientes para embaralhar a experiência do leitor quase que antes mesmo de seu entendimento do texto. Se todo texto poético, vimos, desafia nossa competência textual, poéticas de ruídos fazem isso com uma desenvoltura ainda maior, posto que atingem nossa bagagem de leitores mais cedo e com mais tardar que os outros.
O poema que selecionei de Reuben não é dos mais claros acerca desta sua poética de ruídos. Existem outros textos mais claros. Ou à priori mais claros, podemos dizer, visto que não podemos caracterizar hoje, século XXI, com tanta comodidade uma poética de ruídos a redundâncias sintáticas desconexas à maneira de Gertrude Stein ou o estilhaçado de um Mallarmé. O ponto de partida de Reuben é diferente. Não é uma desconstrução progressiva. Ele encarna a condição pós-moderna do tudo já foi feito. E aparentemente parece se valer das mesmas bombas modernas para explodir as mesmas coisas. O que, claro, não é nem um pouco por aí, visto que a ideia de que tudo já foi dito é tão refutável quanto a ideia do fim da História, pra não dizer no fato de que, fosse apenas uma questão de explodir as mesmas bombas no mesmo lugar, sem espanto nenhum observaríamos que os destroços nunca seriam os mesmos.
A primeira semelhança que me vem à mente ao ler o poema de Reuben é com o poema Toada dos negros em Cuba (aqui), de Federico García Lorca em seu O Poeta em Nova York, finalzinho do livro. Claro que só veio pois tanto em um poema quanto em outro existe uma repetição de local, o que é e não é suficiente pra que eu consiga fundamentar a aproximação. Será necessário nos lembrarmos do contexto do grande livro de García Lorca, ou seja, o poeta central da vanguarda surrealista espanhola entrando em contato com o coração do capitalismo próximo do colapso. O impacto é profundo e toda a realidade de repente se embaralha. Aí você pode se lembrar da colher e o rei do Harlem, ou do naufrágio de sangue da aurora de Nova York. Em Reuben nós até encontramos metáforas poderíamos dizer surrealistas, no sentido de que elas superam e muito tanto a realidade e superam alguma exigência lógica que porventura una suas partes constituintes, aproximando-se do arbitrário (e da posterior escrita automática a que a vanguarda aportou) não fosse o fato de que existe um sujeito que valida, emocionalmente, todas aquelas comparações. É um estudo sem dúvidas interessantes o que se proponha a ler o surrealismo, o totalmente inesperado das imagens de Reuben em poemas como "perde os sapatos quando falo" (aqui poderíamos pensar na metonímia sapato → pé → poesia), mas eu o deixo para outra hora.
As semelhanças param por aí. O dinamismo que podemos ler no poema de Lorca não é acompanhado de perto pelo poema de Reuben, muito mais estático. Em Lorca esse dinamismo possui uma natureza especialmente metafórica, onde a metáfora, nos veios surrealistas, obriga o leitor a operações mentais de grandes saltos inesperados, bem como nos comandos que impelem o poeta a buscar por uma realidade melhor. No poema de Reuben, pelo contrário, a posição que temos é a de uma espécie de flanêur pós-moderno. A repetição de "Praça do Sol às 3 da tarde" pode ser tanto a indicação repetitiva de que tudo aquilo acontecia ao mesmo tempo, algo que antes de demonstrar inépcia pode demonstrar um suspense desesperado, ou pode demonstrar uma passagem do tempo que dá na mesma sempre. A segunda ideia me agrada mais dentro da poética de Reuben, onde é de se notar que, apesar de ser um poema estático, a poética de Reuben é uma poética dinâmica, coisa via de regra presente em poetas com tendência iconoclasta.
No caso de Reuben, o estático nos ajuda a perceber tudo de uma só vez. Se adotarmos a hipótese de que a repetição serve como badalada monótona de recorrências, então é forçoso partir do princípio que há uma espécie de sequência ou colagem de imagens temporalmente distintas, o que mais uma vez me parece logicamente mais acertado, bastando que, pra comprová-lo, o leitor se disponha ele mesmo a tentar montar uma imagem mental de tudo o que Reuben descreve. Mas creio que isso é certo modo irrelevante. As várias imagens sendo sucessivas ou não, o fato é que todas estão suspensas e possuem pelo menos um liame rítmico. Logo, à maneira do título de seu primeiro livro, elas nos apresentam + realidades que as realidades vendidas e embrulhadas a nós são capazes de oferecer. Somos embriagados de realidade e ainda assim não nos dizemos que isto é água; descobrimos na realidade uma consistência muito mais poderosa que a leitura da realidade, com nossos pressupostos socialmente construídos, fornece. Se as situações apresentadas no poema estão suspensas, por outro lado elas estão prestes a desabar. E é aqui que o poema de Reuben mais uma vez vai de encontro ao poema de Lorca, pois um colapso é iminente (o que um verso como o segundo demonstra de forma literal).
Una a iminência de colapso a uma realidade nua e crua, mais crua do que nua. Reuben é um poeta sórdido. Tradutor de Ginsberg (aqui), a missão primordial de sua poesia, como, mais amplamente, a de toda poesia, é a de nos demonstrar a Vida, paradoxalmente a coisa mais relegada a segundo plano enquanto vivemos. Sua poética de ruídos é um impacto direto em nossa percepção, e o fato dela atacar nossos pressupostos apenas aumenta a eficiência de seu projeto. Por isso ela nos mostra o sórdido e nos conclama a que uivemos juntos, numa só alcateia.
Posso citar também a preferência de Reuben pelo sol, via de regra sempre presente em seus poemas. A metáfora central para tal aspecto é a do "sol cabeça de coruja", presente tanto no poema "teu cabelo de espuma" quanto na vocalização homônima (aqui). Coruja é animal noturno, de modo que uma metáfora assim, além de aproximar Reuben do cubismo se tivermos em mente o final do Zona de Apollinaire, ata as pontas de dois opostos, pois, de resto, quando Reuben fala do sol como cabeça de coruja ele não quer simplesmente incutir uma sensação, mas injetar a metáfora central em sua obra de que é à luz do sol que a escuridão come solta. No primeiro de seus Textos de indeterminação induzida, ele nos dá as (des)instruções de como andar de ônibus e observar a paisagem,
materiais: luz, ônibus, paisagem
dentro d1 ônibus, c/ destinação variável, posicione-se ao sol. A preferência é por horários em q a incidência de luz favoreça a formação de sombras a partir do exterior do veículo e por durações amplas, c/ razoável transformação de paisagem. (Desaconselha-se o verão.) Trânsito fluido (se ñ livre) facilita a experiência. Casas, prédios sem nenhuma coerência arquitetônica, árvores c/ folhagem de densidade variável, túneis, aviões e outras naves, nuvens, são voluntariamente derretidos durante o trajeto n1 único filtro de luz sobre a superfície dos corpos dentro do ônibus. A ambiência (grande tubo de metal, pneus dando esparro) dá 1ideia de caleidoscópio c/ pigarro, e a mutação das sombras destila suave lisergia
Destaco a parte que nos concerne. Os dois outros textos da série seriam também bons de serem citados integralmente. Cito apenas, do segundo texto, a leitura como processo corpóreo ("Siga resolutamente a leitura, permitindo a quadril e coxas q pensem por si mesmos, estimulados pela dinâmica das vibrações") e, do terceiro, o entendimento como aguçamento e transporte ("(...) pois seu verdadeiro conteúdo é o desejo de ñ estar ali", vale dizer, extrapolar o texto lido, e "O crânio desempenha o papel de caixa ressonante p/ seu portador (de efeito imperceptível p/ os circundantes) e solapa a fala externa", idem).
É também à luz do sol que as viagens de fato acontecem. A iluminação é totalmente oposta ao arquetípico relacionado à noite, de perecimento ou isolamento. Quanto Reuben compõe seu Autorretrato enquanto retirante, o poeta faz questão de dizer que "parece quase / certo q anda / tudo rente / ao plano" quando, na verdade,
exceto claro
pelo amor
elétrico q
lanço a essa
zona
ambivalente
cidade
anômala
São poucas as passagens em que Reuben fala do amor. Se tomarmos como base a premissa "1CABEÇA Q CONVERSA É COMO 1UNIVERSO", em Telegramas de L.A.I.A., o amor dá vida ao mundo, coisa certa maneira tão óbvia que surge com uma preponderância tão clara e tão bonita numa poesia que embaralha a realidade por si só embaralhada, como se Reuben rivalizasse com o caos pós-moderno no sentido de o tornar ainda mais caótico para que, afinal, resplandeça simplesmente o que importa em meio a tantos destroços. É pelo menos uma leitura que a meu ver pode ser alicerçada num poema como "José Agrippino de Paula", onde o poeta percorre os balaios do texto pra depois, abrindo a janela, palmilhar os balaios do mundo, "a sombra sozinha / da nuvem ilhada / no meio da água".
A relação de afeto é também desenhada num poema vocal do poeta, o melô das atendentes (aqui). Daqui será bom lembrar que Reuben é um poeta performático, dos mais sólidos e bem sucedidos da poesia contemporânea. Como ele mesmo se intitula no poema "perde os sapatos quando falo", Reuben é uma espécie de "pequeno cavalo do som".
Ainda pretendo fazer algumas reflexões mais demoradas acerca de poesia e performance. Um dos principais trunfos de tal relação é o de apagar o ártico da página que tanto lamuriava Leminski em prol de um contato mais vívido entre poeta e leitor. Dar vida a um poema parece ser muito mais que interpretá-lo. Barthes estava certo quando falava do escrevível se o trouxermos para estes termos, isto é, onde a performance de um poema permite que todos os significados virtuais de um texto ganhem corpo. Você pode observar no já citado sol cabeça de coruja como Reuben habilidosamente fala um ritmo ritualístico, um tambor vocal que mais uma vez cria um padrão de recorrências desta vez com o detalhe importantíssimo a mais de que em muitos momentos a expressão "sol cabeça de coruja" interrompe a frase e, às vezes (é o que me parece), instaura uma ordem quando tudo estava prestes a sair muito mal (por exemplo, 1:15).
Os ruídos são também muito bem vistos em miss reviravolta e todos os valores/ passeia gentil nos jardins (aqui), retrato mais uma vez tão patético e corrosivo que não dá pra lembrar ninguém senão o primeiro Eliot e o primeiro Pound. O tom mais ou menos de soletramento, de dificuldade e arranques súbitos também contribuir para que tenhamos uma noção assim, além de uma certa melodia doce constantemente minada quando, por exemplo, o eu lírico fala que nem sempre se lembra de aparar as unhas.
E são também vistos naquele que é o exemplo máximo de como o ruído perturba a realidade e nos impele a aguçar o olhar, a audição. Aguçar a nós mesmos. É o caso de z de zero, feito em parceria com Tazio Zambi,
Sucintamente podemos mencionar o zumbido, algumas camadas de redundância que, antes de aclararem a mensagem (conforme a Teoria da Informação nos diz), fazem é embaralhar a coisa mais ainda, a música de fundo, novamente um melódico a meu ver ritualístico (algo da preferência de Reuben, creio, talvez pelo fato de que o ritual é uma repetição cravada no coração dos pressupostos), a imagem desfocada. A massa gelatinosa das imagens que nos são apresentadas não resulta em zero. A poesia de Reuben, aparentemente tão desconexa, não resulta em zero. O modo de proceder mais uma vez não é o de tentarmos buscar um liame entre tudo o que nos é apresentado. Até poderíamos tentar fazê-lo. Por exemplo, no poema que escolhi para comentar, podemos fazer uma ligação entre as ondas do verso 20 com o pipoqueiro entediado do verso 22 e os biquínis do verso 24 (além, é claro, da presunção de um clima de felicidade que o arquétipo solar nos permite). A questão, como comentei na segunda parte de meu ensaio sobre poesia e caos, não é nem tanto esta. É uma tendência da poesia contemporânea a de trabalhar em tudo aquilo que não é dito. Se mais uma vez podemos dizer que se trata de um processo comum na poesia de maneira geral, na poesia contemporânea este é um recurso que é demandado com uma necessidade, eu diria um desespero singular: aceitando a hipótese de que tudo já foi dito, não será apenas dizendo que voltaremos a ter o que falar, mas sim nos enlaçando ao leitor e permitindo que ele nos complete tal qual supostamente o completamos.
Como a poesia de Reuben possui tendências iconoclastas, pensamos à priori que o que existe por trás de tais imagens desconexas é um enorme nada, é um poeta brincando com bombinhas do século passado. A esse respeito já comentamos. Mas, como também acabei de dizer, a poesia de Reuben não se reduz a um zero. Os pressupostos do leitor tendem a enxergar o poema e aquelas cenas cotidianas que ele mesmo presencia como um zero, um nada. Contudo, é uma bifurcação essencial do zero a possibilidade de que ele nada valha e tudo valha. A poesia de Reuben é uma poesia que possui um mecanismo certo modo análogo ao do Teatro Épico de Brecht, em tudo o que o dramaturgo alemão imputava como necessidade do leitor se afastar do texto e rolar de borco na realidade. Diz Reuben em "A professora ensina a empalhar",
Nada q vale a pena de ser lido
pode estar contido
na palavra objeto
quando 1texto está de pé
ñ vem c/ essa
São assim (p/ ficar nos gêneros clássicos)
a desobediência e o assalto a banco
Quando estamos textualmente dentro e eternamente dentro da Praça do Sol às 3 da tarde, o famoso movimento de sublimação que a literatura é capaz de oferecer, ou seja, de tornar o particular no universal, está presente no poema de Reuben, que não quer exatamente que também sintamos o fedor dos muros ou o mijo das crianças. Posicionarmo-nos na Praça do Sol às 3 da tarde é nos posicionarmos frente ao cotidiano e descobrirmos + realidades q canais de tv. Se disse no começo que o título de seu primeiro livro possui algo de patético, patético é o fato de que realmente necessitemos de aventuras assim. A poesia de Reuben não vai nos apresentar muitas coisas novas, como, de resto, as variadas facetas em Apollinaire ou o impacto metafórico em Lorca também não. Não tenho uma resposta satisfatória para o apreço particular de Reuben por cavalos, e esse é um dos casos em que a intenção do autor deve ser de preferência evocada; presumo, na leitura de um heroísmo cotidiano que sua poesia nos propõe, que o cavalo aqui se dê no sentido de um meio ou de um alicerce para o romanesco que a poesia de Reuben precisamente ataca. Ou uma via de encontro, se trouxermos a simbologia do cavalo, para o selvagem, o animalesco, o indomável que se tornou domado e que, numa expressão como cavaloDADA, deve perder novamente as estribeiras pra que não tomem as rédeas.
E perder as estribeiras talvez seja a melhor definição do que a poesia de Reuben nos propõe. Os ruídos que a constituem se movimentam todos neste sentido. Não é, assim sendo, uma questão de mera iconoclasta, como, presumo, um ataque desatencioso à sua poesia poderia nos levar. A iconoclastia de Reuben não é mais uma iconoclastia regada a padrões modernos, tardo-românticos, obra de gênio, marco em livro de História. Se sua poesia, dentro da genealogia do caos que venho traçando, se dá no sentido de ser uma poesia que gera o caos, é muito interessante notar como as pontas se unem e, a um só tempo, ele nos chama para que o anulemos, para que, juntos, tenhamos voz.
Uma aventura, vocês podem ver, realmente heroica, ainda mais vinda de alguém que rejeitou com tanta galhardia e lucidez a tese de que a poesia é inútil (aqui; de fato, um dos melhores ensaios dos últimos tempos). O próprio Reuben sempre diz que uma coisa é dizer que a poesia não ser pra nada e outra é dizer que a poesia não serve a nada. Poesia, ele muito bem nos diz, é a refinaria do humano. Embaralhar toda a matéria bruta que nos embrutece, é uma necessidade.