Grandes poemas contemporâneos. "Confissão (1964 - 1985)", de William Zeytounlian.
(Créditos.)
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CONFISSÃO (1964–1985)
“– come si chiama la tua ragazza?
– Margherita”.
P. P. Pasolini
toda
a conta
feita:
ato final,
evidência
contrafeita.
eu sou
o cálice
sacrificial.
eu sou
o cálice
sacrificial
no altar.
eu sou
o cálice
sacrificial
no altar
e seu
próprio
conteúdo.
eu sou
o bode
à borda
da faca,
eu sou
o homem
desnudo.
eu sou
o grito
eu sou
o grito
inquieto
eu sou
o grito
inquieto
que busca
o ouvido.
eu sou
o grito
inquieto
que busca
o ouvido
que busca
o gozo.
eu sou
o gozo.
eu sou
o gozo
atroz.
eu sou
o gozo
atroz e
inquieto.
eu sou
o gozo
atroz e
inquieto
do algoz;
do algoz
inquieto.
eu sou
o esquecido
eu sou
a areia
que me
enterra.
eu sou
a cova
que se
encerra.
eu sou
este objeto
decorativo
este
abjeto
esquecido
pendendo.
eu sou
esta gota
que me
escorre
eu sou
esta gota
que me
escorre
agora.
eu sou
o sonho
que se
esgota
o sonho
que se
esgota
em mim.
eu sou
a encruzilhada
de acertos,
o emblema
do escrúpulo
um gesto,
um estupro,
a vida nua.
eu sou
o erro
da virtude.
eu sou
a minha
dúvida.
§
Retirado daqui.
■
Zeytounlian ainda não possui nada publicado livralivromente, e, contudo, é do tipo de poeta que compensa ser acompanhado de perto. Sobre seu mais recente poema, podemos começar do começo.
A data no título é a data da duração da ditadura militar brasileira. E, conforme poderemos ver mais adiante, o poema de Zeytounlian é um dos melhores jamais escritos sobre o tema. A epígrafe é do filme Salò o le 120 giornate di Sodoma, de 76, última cena. É uma das obras mais estarrecedoras da história do cinema, passada durante a Itália fascista e repleta de estupros, torturas, assassinatos, fezes. Quatro soldados capturam nove homens e mulheres e os submetem a 120 dias de violência. E no final, dois homens com fuzis, que observavam uma cena de tortura a alguns metros de distância, ligam o som e decidem bailar, no que um pergunta ao outro: "come se chiama la tua ragazza?" "Margherita". E fim.
Os significados desta última fala ainda hoje são discutidos. Podemos ficar com o mais básico: após um filme, repito, dos mais estarrecedores da história, por quê terminá-lo com um homem bailando com outro e lhe perguntando qual o nome de sua menina? Um prenúncio da esperança? Uma porta de acesso à tortura passada de geração a geração (aqui)?
A impressão que tenho é que o poema de Zeytounlian é circular. A diagramação da página, da esquerda pra direta... (opa!; esquerda pra direita?) ...pronta pra desembocar onde começou e cheia de ligações internas, um emaranhado de recorrências sob uma égide que não acaba...
Comecemos já na terceira estrofe, onde o poeta inicia uma longa sequência de repetições. "eu sou". Não é simplesmente forte essa repetição num poema que trata dos anos de chumbo? "ato final, / evidência / contrafeita." O leitor poderá perceber que na verdade o mote do poema é esse. Em toda estrofe vamos chegar a essa conclusão, de que, após toda conta ter sido feita, resta apenas essa tal evidência contrafeita, essa resistência. Conta, contra. Conta feita, contrafeita. A união dessas palavras tem coisa demais a revelar.
As imagens que percorrerão as estrofes seguintes apenas acentuarão o tom contraventor que o poema de Zeytounlian assume, uma verdadeira ode à vida em tempos de morte ou de revivalismo da morte. Não basta para o poeta ser o cálice sacrifical no altar (certamente guardando parentesco com o cálice de Chico Buarque), uma vez que o poeta é "o bode / à borda / da faca", "o homem / desnudo" ou, em suma, o conteúdo do cálice. Bode à borda da faca... Bode expiatório?
Muitas partes do poema terminarão no corpo. Em tempos de liquidez ou virtualização de tudo, é interessante ver como a busca pelo corpo, pela dignidade e por sua emancipação seja tão nítida. É o que o adjetivo "inquieto" também mostrará, endossando os leitmotivs que percorrem o poema e que, como dito, funcionam para mostrar de modo claro e direto a resistência, a persistência que o poema a todo instante busca demonstrar. Como se o poeta também gritasse, e como se seu grito buscasse nosso ouvido para que não caia no olvido.
E por falar em ouvido, olvido... Zeytounlian não parece trabalhar muito com trocadilhos. Ricardo Domeneck (aqui) já abordava acerca da predominância melopaica na poesia do autor, o que seus versos curtos, de esgrimista, certamente apontam. Contudo, o verso livre de Zeytounlian, que se aproxima muito do verso livre modernista de um William Carlos Williams, no Brasil pode encontrar um antepassado funcional no verso de Orides Fontela, famosa por sua linguagem extremamente concentrada onde a palavra é cubo de energia validando a equação fundamental da poesia, a do trabalho com a palavra acima de tudo e em todas as acepções. E o ideograma, já apregoavam os concretistas, é um exemplo a olho nu desse irrompimento desvelador.
Contudo, não quero dizer que Zeytounlian seja um concretista, uma vez que seu trabalho com a linguagem poética não alcança a plêiade de materiais usados por nossa vanguarda. O que, é claro, não desmerece os poemas do autor. Pelo contrário. Na verdade, essa concentração tão radical de sua poesia muitas vezes é acompanhada do que à priori se poderia classificar como supérfluo, bastando que se cite o poema divina violência. E talvez o que Zeytounlian queira demonstrar não é nem tanto o seguir o exemplo de Pound de que poesia é condensare, mas o de, quem sabe, se aproximar da definição de Valéry de que poesia é a máxima tensão entre som e sentido. Ou de que, num mundo tão abarrotado de supérfluos, não é nem tanto dever do poeta encontrar e peneirar apenas o essencial, catar feijão; talvez seja um dever também ter a consciência do supérfluo e eventualmente trazê-lo para o âmbito do poema, caminho este que vem sido trilhado por muitos outros artistas que trazem iPad's e roupas de grife para sua produção. (Se bem que essa estratégia pode ter muitas raízes... Muitas. E muito além do cinismo apocalíptico de boa parte da crítica.)
Contudo, não quero dizer que Zeytounlian seja um concretista, uma vez que seu trabalho com a linguagem poética não alcança a plêiade de materiais usados por nossa vanguarda. O que, é claro, não desmerece os poemas do autor. Pelo contrário. Na verdade, essa concentração tão radical de sua poesia muitas vezes é acompanhada do que à priori se poderia classificar como supérfluo, bastando que se cite o poema divina violência. E talvez o que Zeytounlian queira demonstrar não é nem tanto o seguir o exemplo de Pound de que poesia é condensare, mas o de, quem sabe, se aproximar da definição de Valéry de que poesia é a máxima tensão entre som e sentido. Ou de que, num mundo tão abarrotado de supérfluos, não é nem tanto dever do poeta encontrar e peneirar apenas o essencial, catar feijão; talvez seja um dever também ter a consciência do supérfluo e eventualmente trazê-lo para o âmbito do poema, caminho este que vem sido trilhado por muitos outros artistas que trazem iPad's e roupas de grife para sua produção. (Se bem que essa estratégia pode ter muitas raízes... Muitas. E muito além do cinismo apocalíptico de boa parte da crítica.)
Observe-se quando Zeytounlian diz:
eu sou
esta gota
que me
escorre
eu sou
esta gota
que me
escorre
agora.
eu sou
o sonho
que se
esgota
o sonho
que se
esgota
em mim.
Não se trata apenas de achar em "esgota" a palavra "gota". Partir do princípio que o poeta fez tão somente um trocadilho é algo que também tão somente uma leitura pobre seja do poema de Zeytounlian, seja da vanguarda concretista ou seja da poesia de Orides Fontela, poderá afirmar. Como dito, é comum que a poesia de Zeytounlian fale do corpo. E que essa corporalidade encontre na condensação extrema da linguagem poética não só uma concretude da palavra, mas também uma correspondência lógica com nossa existência corpórea. O trabalho de Zeytounlian, nesse sentido, vai de encontro ao trabalho de Domeneck que, por sua vez, encontra ecos no poeta moderno grego Kaváfis e por aí vai.
Claro que a busca pelo corpo e pelo gozo nem sempre é um saldo positivo. Reitero que o corpo nos anos de chumbo era matéria putrefeita, cadáver adiado que procria. É o que Zeytounlian diz: "eu sou / o gozo / atroz e / inquieto / do algoz", "eu sou / este objeto / decorativo // este / abjeto / esquecido / pendendo".
É impossível não ver a força desses versos. Destes:
o emblema
do escrúpulo
um gesto,
a vida nua.
A violência de se aproximar o escrúpulo do estupro e desaguar na vida nua nos reapresenta Margherita. Nos ensina a enxergar, na dúvida com que o poeta fecha seu poema, a dívida. Aquela mesma, do erro da virtude, de se buscar a paz, a democracia, todo aquele discurso nefasto e ditatorial que promete benesses num futuro ceifado, mas que, uma vez que a conta seja feita, repousa na evidência contrafeita. É enorme a lição e a humanidade que o poema de Zeytounlian é capaz de apontar. A confissão que o título aponta não é a confissão de Zeytounlian e ouso dizer que nem mesmo a do eu lírico. Ela só se valida se for a nossa. Se nós lermos o poema e pudermos dizer: "eu sou". Se pudermos imergir na empatia e na empatia encontrarmos o homem desnudo, a vida nua.
Se pudermos encontrar Margherita.