Ainda sobre Zeytounlian.
Na postagem passada sobre o autor (aqui), fiz uma aproximação que não levei até as últimas consequências: Zeytounlian e Orides Fontela, ou acerca de uma forma particular de condensação poética e de como isso não implica necessariamente nas categorias de condensamento que costumamos pôr em discussão.
A condensação de que falo é uma condensação conceitual. É como um processo endógeno que opera nos primórdios processuais da poesia, de se retirar as significações corriqueiras da palavra e lhe insuflar um conteúdo absolutamente vivo. Além, é claro, de gradualmente priorizar a posição do significante não como um trabalho por si só (o que difere esse tipo de condensação da condensação proposta pela vanguarda concretista), mas como, repito, um processo endógeno. Um irrompimento. Uma autossuficiência. Caminho rumo não exatamente ao preciso, à demarcação precisa das bordas do rio, senão ao irrompimento, à torrente.
Relembrar os versos de um nome como Carlos Williams, conforme apontei também no texto anterior, será salutar:
A GRANDE FIGURA
Sob chuva
e luzes
vi a figura dum 5
dourado
num caminhão
vermelho
rodando
tenso
discreto
aos gongos
uivos de sereias
e rodas chacoalhando
pela cidade negra.
e luzes
vi a figura dum 5
dourado
num caminhão
vermelho
rodando
tenso
discreto
aos gongos
uivos de sereias
e rodas chacoalhando
pela cidade negra.
Certamente que o verso de Carlos Williams possui raiz na propostas Imagistas do começo do século, de se retratar a coisa sem absolutamente nenhum supérfluo. E isso explica o cuidado milimétrico e minimalista de seu poema, um aparente golpe de esgrimista. Contudo, a condensação que abordo aqui é e não é essa condensação que Carlos Williams pôs em nível máximo. Um golpe de esgrimista não se reduz à precisão do touché! Existe todo um suor, um sapateado, um brandir e retintim de espadas por detrás que Zeytounlian , esgrimista de fato e de fatos, não nega.
Como exemplo de poema imagista, fiquemos com um de H. D.,
A POÇA.
Está vivo?
Eu te toco.
Você treme como peixe.
Te cubro com minha rede.
O que é você — debandado?
Trocando em miúdos, esse tipo de condensação de que falo não tem como objetivo a supressão do supérfluo. Não é uma condensação excludente. É uma condensação elíptica. Ou seja: existe uma carga muito grande de discursos que não são explicitados pois a alta voltagem de significância da palavra consegue suprimi-los. Não se diz A se relaciona com B pois X. Diz-se apenas A-B. Lançando olhar à produção de Orides Fontela, podemos encontrar tanto poemas de uma concisão imagista, como
SÃO SEBASTIÃO.
As setas
– cruas – no corpo
as setas
no fresco sangue
as setas
na nudez jovem
as setas
– firmes – confirmando
a carne.
Até poemas com a tal concisão elíptica, como
Esconder (esquecer)
a face
soterrar (ocultar)
a luz
escurecer o
amor
dormir.
Aguardar o que nasce.
NOITE.
a face
soterrar (ocultar)
a luz
escurecer o
amor
dormir.
Aguardar o que nasce.
É como se as palavras suprimissem ou subentendessem o restante da frase. Na concisão imagista, a imagem, o todo do poema, que tem por fim abolir o excesso, é capaz de fornecer todas as explicações num todo via de regra autoexplicativo e numa estrutura sintática que poucas vezes se vale da elipse. Não é bem o que ocorre com a concisão elíptica, onde parecem existir lacunas que, na verdade, são os espaços deixados pelas palavras que ainda não se desdobraram. Compare-se o poema Noite de Orides com Zeytounlian:
A SOMA.
estranho léxico
em regresso –
inversa assim
a dúvida que
assoma a dívida
reincidente,
antiga,
rediviva:
o velho dedo
que envereda
na ferida.
Como a palavra é trabalhada numa autossuficiência que nem mesmo a palavra advinda da vanguarda concretista possui (pois, de resto, ela é paranomásia, repetição, discursividade calcada no nível do significante e não a ausência de discurso), o fenômeno de um termo dentro do outro, ou da fusão de dois termos, adquire um aspecto especial pois, além de ressaltar uma tessitura sonora na poesia do autor, revela a "A coisa contra a coisa: / a inútil crueldade / da análise. (...)", diz Orides em Destruição.
Reiterando, é um tipo de condensação que busca o irrompimento, o desdobramento e não a descrição perfeita, exata ou impessoal da cena retratada. Pelo contrário. Via de regra, a poesia tida como impessoal ou objetiva é uma poesia que se caracteriza justamente por sua discursividade e pelas cadeias lógicas que ela apresenta: não porque não existe um ser que se alegra e chora atrás do poema. Basta que se cite, no Brasil, aquele poeta que demonstrou-o de modo inequívoco: João Cabral de Melo Neto,
NUM MONUMENTO À ASPIRINA.
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
Se uma das principais característica do discurso poético ao longo dos anos é justamente o seu caráter elíptico, os poemas de Cabral, que via de regra possuem uma tessitura prosódica, filosófica, explicativa, demonstram bem que a dita impessoalidade nem sempre está ligada à condensação. É o que tanto a poesia de Orides quanto de Zeytounlian demonstra: são condensadas mas não são impessoais graças ao fato de serem calcadas numa condensação elíptica, onde o que era espraiamento do discurso se retrai na hiperssignificação da palavra.
Citando Orides:
ADIVINHA.
O que é impalpável
mas
pesa
o que é sem rosto
mas
fere
o que é invisível
mas
dói.
Citando Zeytounlian:
eco do afeto
há muito
dispensado:
eu te
acreditava
morto.
do rastro
de que lapso
te recuperei?
como no mastro
da mente
icei
o pano do rosto
difuso,
novamente?
Gesto alheio
eco do afeto
há muito
dispensado:
a tudo escapado,
menos ao ato
de um átimo,
ao traço esparso
de um
momento.