Reflexões sobre o haicai.


(Matsuo Bashô, 1644 - 1694)




À GUISA DE INTRODUÇÃO.

Os quatro autores mais citados ao longo do texto são Paulo Franchetti, Stephen Addiss, Masuda Goga e Matsuo Bashô. As citações de Franchetti advém de ensaios, entrevistas, livros e resenhas que fazem parte de sua bibliografia. Para ficarmos com um livro, cito o Haikai - Antologia e História, publicado pela editora Unicamp, 1991, e, como entrevista, cito a concedida a Wanderson Lima para a Revista de Cultura em dezembro de 2004 (aqui). As citações de Addiss advém do livro The Art of Haiku: Its History through Poems and Paintings by Japanese Masters, Shambhala, 2012. De Masuda Goga recomendo o texto Os dez mandamentos do haicai (aqui), de 2007, e a entrevista concedida a Epaminondas Alves pro Jornal Nikkey, também em 2007 (aqui). As citações de Matsuo Bashô advém do texto Learn from the pine, traduzido por Donald Keene e incluso no livro The Essential Haiku, Harper, 1995. Para referências a páginas que também possuam textos teóricos sobre o haicai, recomendo a do Grêmio Sumaúma de Haicai  (aqui) e a do Grêmio Haicai Ipê (aqui).

O estudo de Paulo Leminski, mesclado à biografia de Matsuo Bashô e inclusa no livro Vida, é também de suma importância, apesar de possuir alguns pontos delicados. Leminski esclarece muitíssimo bem a relação visceral do haicai com o zen e, logo, com a concepção muito mais ampla e extra-literária do mesmo. Contudo, se esquece de alguns aspectos na cosmovisão do haicai que fazem dele uma senda mais ou menos "limitada", uma senda trilhada ao longo dos séculos e que se pauta em categorias como, por exemplo, o reconhecimento da transitoriedade de tudo e a integração com a natureza. Assim, se por um lado é uma verdade que o zen pode ser alcançado de várias formas, ao mesmo tempo não se pode negar que cada senda tomada possui suas particularidades e exigências. O haicai, como o caminho da espada ou a cerimônia do chá, é apenas: é tudo isso. Enfim. Indico ao leitor: Paulo Leminski e o haikai (aqui), de Paulo Franchetti.

Não tenho como fins uma prescrição médica do que é haicai. Se meu título foi bem construído, o que o leitor tem em mãos são reflexões que fiz e que ainda faço sobre o pequenino poema de origem japonesa. Desse modo, existe a possibilidade, não de todo implausível, de que o haicai a que refiro com unhas e dentes (e muito amor, é claro) seja nada mais nada menos que o fabuloso haicai que escrevo e julgo que escrevo, tudo isso na solidão miraculosa de um quartinho acolchoado.




VOCÊ DEVE LER PRIMEIRO...

O texto Os Dez Mandamentos do Haicai, de Masuda Goga: aqui. A trajetória de minhas reflexões foi a de esmiuçar cada um desses pontos, chegar à raiz do problema. Que nem problema é. Mas este texto, posto assim, e com um título assim, dá a ideia de que haicai é fôrma. Não. Haicai não é fôrma. Haicai é modo de vida. E poucos, como Masuda Goga, souberam entender isso tão bem.




SOBRE O HAICAI.

A arte é feita com instrumentos que produzam um conteúdo absolutamente humano e individual, um conteúdo que consiga se renovar não apenas de indivíduo para indivíduo, mas ao longo do tempo, do espaço, do aprendizado.

Não me interessa saber que instrumentos são estes. Chamo o resultado decorrido de sua utilização de “efeito plurissensorial”. A única coisa a ser observada é o fato de que este instrumento é feito de, no mínimo, duas camadas de valor que se sustentem a partir de uma analogia. Não necessariamente uma analogia natural; pode ser perfeitamente uma analogia provocada, uma analogia antitética, uma analogia meramente interpretativa. Citando Antonio Candido em O Estudo Analítico do Poema: “A base de toda imagem, metáfora, alegoria ou símbolo é a analogia, isto é, a semelhança entre coisas diferentes. (...) Com base na possibilidade de estabelecer analogias o poeta cria a sua linguagem, oscilando entre a afirmação direta e o símbolo hermético.”

Este conjunto básico, esta peça primária para a produção do poema é o que chamo de núcleo analógico ou núcleo plurissensorial. O haicai, que será o objeto de estudo de minhas reflexões, é um poema que pode ser definido como um poema constituído de apenas um núcleo analógico. Matsuo Bashô: “(...) um haicai é feito combinando coisas.” Não vejo este núcleo como algo físico, como um processo ou mesmo como um resultado, mas, como dito, entendo-o como um efeito causado no leitor.

O funcionamento interno ou externo desse núcleo no corpo do poema ou, no caso aqui refletido, no corpo do haicai, é algo que extrapola qualquer catalogação (ao menos, a deste texto). Se o contato entre as camadas de valor é decorrido a partir de uma fusão, de uma justaposição, de uma contraposição... sinceramente, isto “pouco importa”. Janine Reichhold, em “Haiku Techniques” (aqui), enxerga 23 construções dentre as “(...) tantas mais de meu haicai que não se encaixam em nenhuma destas categoria (...)”. São técnicas que vão desde os clássicos wabi, sabi e yûgen até as mais reservadamente discutidas como a dos trocadilhos, das metáforas e do humor.

Isto proposto, de que o haicai seria um poema de três versos com apenas um núcleo analógico, embrenho-me nas outras questões que comumente acercam o haicai, como sua concisão, a impessoalidade, a adoção rígida de uma postura com o presente e apenas com o presente, bem como sua relação com a natureza.

Começando desta última, observo que o haicai ao longo dos séculos e extrapolando a tradição poética oriental se fixou como um poema onde o homem é parte constituinte da natureza, de seu redor, sem pressupor com isso uma relação de hierarquia: um campônio é exatamente o mesmo que uma folha que despenca de uma árvore e repousa em seu chapéu. Nem mais nem menos, tudo numa harmonia mesmo que desarmoniosa, num indissociável que faz da cosmovisão haicaística um todo, um único corpo interligado de forma complexa não apenas por suas inumeráveis células constituintes, mas pelo fato de que o corpo total da natureza é um corpo em constante processo de mudança, numa transitoriedade sem fim que, como diz Masuda Goga no filme Masuda Goga - Discípulo de Bashô (aqui aqui), é o espírito do haicai. Ou, como diz Bashô: “A base da arte é a mudança no universo. O que ainda é possui uma forma imutável. Tudo que se move muda, e, pois que não podemos parar o tempo, continua para sempre. Parar algo seria dividir uma visão ou um som em nosso coração.”

E isso é fundamental. Primeiro porque a poesia, que é um ramo da arte literária que se caracteriza por ser a expressão do eu, não só se comunica por intermédio de metáforas (em maior ou menor grau), mas adota comumente uma postura em relação à natureza, ao redor, ao não-eu, como se o não-eu fosse um espelho ou uma película sensível de si mesmo, indo contra a corrente de não-hierarquização proposta pelo haicai. A superfície de uma árvore: eis um espelho de seu amor para, por exemplo, um romântico. A cosmovisão do haicai, no entanto e reiterando, é diferente (talvez não de todo oposta), pois é poesia que manifesta um eu que está integrado, que é parte constituinte de um complexo. É fragmento, é ramo, ramificação. A superfície de uma árvore se confunde com os sulcos de sua senectude. Masuda Goga: “(...) o haicai faz observação da natureza através de natureza, objetivamente. Canta a sua sensibilidade através da natureza (...)”.

Deste modo, quando falamos que o haicai é impessoal, não queremos dizer que os sentimentos do poeta não possam ser transbordados para o texto (toda e qualquer arte possui sua ordenação sentimental). Se a folha cai, o poeta, por estar intimamente ligado com a folha, sente todo o pressuposto de transitoriedade que ela propõe, mas, ao contrário de outro poeta, não se debruça inteira e claramente sobre o sentimento que tem pois 1) possui reduzidíssimo espaço para isto: apenas uma célula plurissensorial, apenas uma analogia que consiga ser um espelho, que consiga ser o relato perfeito, a peça perfeita que faça o todo emocionar o leitor; e 2) não pode querer que o seu sentimento seja mais importante de ser relatado que outro aspecto qualquer, pois o haicai, como cosmovisão unificadora, não pode, reitero, condizer com a hierarquização, de modo que o sentimento retratado pelo poeta não é o sentimento seu, de instituição individual, mas o sentimento de uma partícula num todo.

Isso explica também o porquê de, no decorrer de sua história, o haicai ter se ligado tanto às estações do ano: são elas que promovem uma mudança radical na natureza de tal forma que você não pode simplesmente passar incólume ante essa mudança, visto que você é parte constituinte do Todo como a árvore que se flore e despetala em primavera e outono, respectivamente. Além, é claro, de serem o signo máximo da transitoriedade de todas as coisas (uma vez que a integração e a aceitação da transitoriedade não chegam exatamente a serem as duas células motoras do haicai, mas, antes, a única célula, pois não se pode pensar numa sem pensar noutra). Citando o Grêmio Haicai Ipê: “(...) o haicai é um veículo para a expressão da transitoriedade, e esta é evidenciada através do uso dos termos-de-estação ou kigos.”

Exemplificando uma situação, suponhamos que um haicaísta queira falar de uma folha seca no chão. Sua cosmovisão lhe faz estar intimamente ligado a essa folha, de modo a buscar entender as razões e significados da folha estar seca, e não apenas entender, mas buscar compreender o que aquele momento representa no todo a que ele também faz parte. Assim, se utilizando do pequeno arsenal de uma única analogia, e após sua análise (haicai não pode ser apenas jacto, estalo, lâmpada defeituosa), ele escolhe a composição analógica que consiga traduzir e aprisionar no corpo do poema o que aquele instante representou no todo, e, com isso, traspassá-lo para o leitor. (E, se você olhar pra história do haicai, vai ver que muitos haicaístas inclusive brincam com os instrumentos poéticos, sem, jamais, querer demonstrar virtuosismo.) Não é, assim sendo, mera descrição da folha seca. O poeta precisa, é óbvio, escolher suas palavras, mas precisa escolhê-las de modo a criar uma analogia que represente, em seu bojo, a amplitude daquele momento. Para me valer das palavras de Masuda Goga: “A emoção ou a sensação sentida pelo autor deve apenas sugerida, a fim de permitir ao leitor o re-acontecer dessa emoção, para que ele possa concluir, à sua maneira, o poema assim apresentado.”

E o leitor, lendo a analogia do haicai, deve reconstruir, com base em suas experiências (não implicando necessariamente em vivência), o que aquela imagem lhe representa, o que pode deter disso, o que pode interpretar disso (e daí o fato do título a um haicai ser um cabresto para leitor e poeta). É o dito cujo “milagre da arte”, de conseguir, graças à analogia elevada a seu nível mais estrutural, ser unicamente única para cada leitor. Ou seja: não é simplesmente uma questão de fotografia, como querem alguns, mas sim de transfiguração, ainda que essa transfiguração pareça uma fotografia por ser apenas um núcleo analógico. O haicaísta burila a analogia, o leitor a vê, e, assim, um e outro criam sua folha seca. E é aqui que entra a proposição de que a linguagem do haicai deve ser simples, visto que ela influi diretamente na receptividade do leitor para com a “folha seca” exposta. Bashô: “O propósito do haicai é fazer com que a fala comum seja correta.”

O resto acabará recaindo na discussão entre raciocínio e sentimentalidade que permeiam o campo da teoria poética. Escuso-me em ampliar minhas reflexões para esse campo. Tudo que digo é que se a poesia é antes de mais nada atividade sentimental, ela é também atividade cerebral acima de tudo. E não pressuponho com isso que apenas scholars ou eruditos podem escrever haicais; na verdade, não basta ter a atividade cerebral se ela não se traduzir num campo sensório que consiga “metaforizar” o que será expresso. A cerebralidade ou a sentimentalidade do haicai, como da poesia em geral, não estão apenas “intimamente ligadas”. As duas, em verdade, são uma. Mesmo porque seria ingenuidade de minha parte se quisesse atribuir a atividade cerebral apenas à atividade científica ou acadêmica. Na escrita do haicai, cumpre, como atividade cerebral, muito mais a sabedoria que precisamente a inteligência, pois a sabedoria pressupõe, em seu conceito, uma vivência, uma integração que a inteligência nem sempre se faz acompanhar. É quando uma coisa encasqueta e ao mesmo tempo emociona. Ou, para usar-me das palavras de Stephen Addiss: “O propósito do haicai é usar o mundano excedendo o mundano, é descobrir um momento único na diversidade ou discernir o múltiplo no singular.”

Mas enfim. Bashô dizia que o haicaísta não deveria escrever muitos haicais, mas escrever apenas aqueles que lhe fossem ligados ao coração. Em outras palavras, deveria ser honesto e sincero com seu leitor, o que, de resto, é uma característica que se deve esperar de qualquer poeta, posto que este não é uma criatura fora das circunstâncias do plano terrestre, mais inspirado ou seja lá o quê que seres humanos comuns. O transe na construção poemática, ou o “espanto” de que fala Ferreira Gullar, é algo que ocorre raramente na vida. A matéria do poema é mais rarefeita que o trítio. Basicamente o que o haicaísta deve fazer é, como diz Paulo Franchetti, “com o mínimo, obter o suficiente.” O suficiente para reproduzir a sensação no leitor (ou, mais corretamente, permiti-lo reproduzir), o suficiente para traduzir uma integração no mundo, o suficiente para refletir o individual e o universal... Quando disse que o haicaísta deve buscar captar a amplitude do momento, espero que o leitor não tenha tomado isto literalmente. Primeiro pois isso é impossível, dado o exíguo espaço; segundo que isso é impossível, dadas as limitações naturais de qualquer indivíduo. Uma das palavras-chave para essa aparente contradição é a palavra despojamento, palavra que termina por redundar nas palavras de Franchetti.

Na próxima sessão falarei um pouco mais sobre isto: ou seja, da técnica clássica que o haicaísta se utiliza para conseguir captar com generosidade e humildade o momento. 

Em frente.




SOBRE A DIVISÃO ANALÓGICA OU SOBRE O KIREJI.

Se o haicai é um único núcleo analógico, e se analogia é contato de duas camadas de significado com objetivo a se criar um efeito individual (no haicai diz-se percepção sensorial + percepção sugestiva), a se expressar o conteúdo depreendido, como iremos delimitar as partes constituintes da analogia no haicai? E como não pressupor, com isso, que o haicaísta desejará criar peças surrealistas (ou derivados e parecidos), com comparações disparatadas, “aproximações de palavras distantes”?

Em partes.

Na página do Grêmio Sumaúma de Haicai temos uma boa definição do que é o kireji: “Escritores japoneses não usam sinais de pontuação no haicai como os ocidentais, mas empregam o kireji, traduzido como 'palavras que cortam'.” A seguir, o Grêmio cita Janine Reichhold, onde se explica ao leitor que alguns kirejis como o ka ou o kana seriam correspondentes ao travessão ou à vírgula. Reichhold também nos dá a interessante informação de que o kireji reduz o número de unidades de sons do haicai de 6 a 12%. Por fim, no final do texto, lemos que para Reichhold “(...) um haicai que usa pontuação é um haicai que falhou em preencher sua forma mais básica.”

Assim posto, o cômputo geral é o de uma ideia um tanto quanto espartana da pontuação no haicai. É de se ver, porém, que o haicai é, em uma de suas definições históricas, um poema a ser declamado num só fôlego. Considerado isto e considerada sua natural brevidade, observa-se o por quê da pontuação num haicai ser vista com tão maus olhos por alguns. No entanto, creio que um quesito de parcimônia sempre deverá ser levado em conta e melhor pesado na escrita haicaística. Caso seja do desejo espiritual e não meramente estético do artista adicionar a pontuação em seu haicai, não vejo problema nenhum, desde que esse mesmo autor tenha o cuidado de não fazer refletir nessa sua pontuação uma ordenação da realidade que fira ou interfira no instante apreendido, visto que, quanto mais pontuamos, mais transformamos a matéria expressa numa matéria de ordem pessoal. Além do mais, a opinião de que o haicai que se usa de pontuação falha em preencher sua forma mais básica é uma opinião que, querendo ou não, se apega a aspectos meramente secundários, muito provavelmente desconsiderando as idiossincrasias doutras línguas que não a japonesa: por exemplo, as diferenças entre a versificação japonesa e a portuguesa são também dignas de nota se notarmos que, por exemplo, as pausas da disposição em versos da versificação portuguesa também não costumam ser levadas em conta (o haicai japonês comumente é disposto em apenas uma linha).

Retomando a questão, no caso da divisão analógica do haicai o kireji parece ser, pela tradição, a demarcação entre as partes enunciadoras da analogia, criando um efeito de justa ou contraposição que a possibilitará. Mas esse é um caso complexo, nem sempre facilmente demarcado, pois o haicai está na linha tênue entre a não-literatura (descrição) e a literatura (recriação), o que faz com que um e outro se confundam e troquem de funções muitas vezes de forma desapercebida. Querer criar uma fórmula para isso seria esterilizar a arte (a própria definição do haicai como um poema de um único núcleo analógico é passível de rupturas). 

O kireji não deve ser visto como um mero utensílio para se criar um haicai o mais próximo dos valores nipônicos: ele deve ser usado com a consciência de ser um meio que atinja o fim primordial do haicai que é a expressão integrada de um ser integrado. O zen que tão longamente Leminski discorre em sua obra. Assim, se o haicai é um poema com apenas um núcleo analógico, é de se notar que o contato entre as duas camadas nunca é perfeito (e nem deve ser), fato do campo artístico que talvez apenas o haicai nos possibilita observar com minúcia, visto que ele é a barreira limítrofe, é a forma poética mais celular da poesia. Desse modo, é comum que no corpo do haicai, entre as duas partes constituintes do núcleo analógico, exista uma espécie de espaço em branco, exista uma dimensão de coisas não ditas que é fundamental para que o haicai consiga assimilar com generosidade e humildade a amplidão de um momento, para que ele consiga ser “(...) um texto que traz para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória.” (Paulo Franchetti, Oeste, Ateliê, 2007). No mesmo livro o autor diz que o haicai se “(...) faz por meio do vazio que fica entre os dois elementos justapostos ou entre o que é dito concretamente e o que poderia ser dito, o que fica como pano de fundo ou silêncio voluntário.” Por fim, citando Matsuo Bashô, que a meu ver neste contexto bem se encaixa: “O segredo da poesia está em trilhar a senda entre a realidade e a vacuidade do mundo.”

Claro que isso é algo um tanto quanto abstrato à priori, observável apenas quando o leitor adquire um convívio com o haicai, em especial o de feições clássicas. E, sinceramente, creio que esse é o tipo de coisa que um haicaísta não deve pensar ao escrever seu haicai, isto é, pensar nas minúcias técnicas do kireji e nas possibilidades que ele porventura irá incutir (“e se eu colocá-lo aqui?”). A preocupação maior do poeta deve ser a de fixar tudo o que aquele momento incutiu e é capaz de incutir, tudo isso sem a necessidade de se demonstrar virtuosismo ou genialidade pelo núcleo analógico originado, visto que, de resto, haicai não é espaço para pirotecnia.

Creio que nem mesmo compete ao artista, no momento de escrita de seu poema, deliberar se o mesmo é ou não um haicai, por mais que o status de escrever um fale mais alto. A leitura atenta e respeitosa, a ânsia em aprender e apreender, a busca de uma integralização para com a natureza são os aspectos cruciais que devem rondar a mente do haicaísta, e não o êxito de estar escrevendo haicais como os japoneses fazem. Se ele possui esse despojamento, essa humildade e esses preceitos em seu coração, é natural que o poema escrito nasça naturalmente haicai. Afinal, o verdadeiro haicaísta não é aquele que escreve “bons haicais”, mas aquele que consegue fazer do haicai um michi, um , isto é, um caminho. Bashô: “Haicai existe apenas enquanto está na escrivaninha. Uma vez tirado de lá, deveria ser reputado como um mero pedaço de papel.”

Quanto ao segundo caso, das palavras distantes, devemos nos lembrar que, como reiterei várias vezes, o haicai é a expressão de um ser humano absolutamente integrado à natureza. Qualquer posição surrealista que pressuponha uma transfiguração unilateral da realidade (ou seja, o delírio de um eu lírico, quando o correto seria o “delírio” de todas as coisas afetando também o eu lírico), ou qualquer posição análoga, estará indo contra o que o haicai representa. Não quero dizer que um haicaísta não possa descrever a folha caída no chapéu de um campônio como uma pegada de elefante: o que digo é que, se assim ele fizer, não o estará fazendo para criar uma expressão que corresponda ao que ele acha, ao que ele vê, mas sim que, se a folha é paralela a uma pegada de elefante, é porque o universo sofreu uma modificação profunda (ou profundamente superficial) que permitiu esse fato, essa imagem.

Para os haicaístas engessados, todo haicai sem um kireji é um “haicai de prateleira”. Como se isso fosse algo ruim (a obra clássica é uma obra de prateleira). No entanto, esse tipo de regra, tão esdrúxula como um padrão rímico baseado na opulência, ou qualquer outra coisa que olhe para o passado e julgue que, a partir da emulação, e somente a partir desta, bons resultados podem ser alcançados, esse tipo de regra apenas cerceia o haicaísta e o desvia do que realmente interessa ao haicai: ou seja, a sincera expressão integrada de um ser integrado. Se um haicai é composto todo em uma oração, se os versos não possuem conectivos semânticos entre si, se a analogia está diluída, se está explícita... A análise não pode partir e se limitar a tais aspectos externos, mesmo que a razão de fracasso (com todas as infinitivas reservas do termo) se localize em alguns deles ou em todos eles.




SOBRE A LOCALIDADE OU SOBRE O ESPAÇO.

Uma das questões que sempre permeou o haicai é a questão do local. Definindo-a melhor, a regionalidade ou até mesmo a urbanidade. Ou, formulando-a: um haicai pode ser escrito num contexto regional que não o do Japão? Pode ser escrito com olhos voltados para a cidade?

Sempre me pareceu risível a tentativa desesperada de alguns de pôr o haicai como poema exclusivamente japonês, como poema que deve adotar ou psicografar os valores nipônicos. No entanto, conforme observa pertinentemente Paulo Franchetti em entrevista a Álvaro Kassab para o Jornal da Unicamp (aqui), junho de 2008: “Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas de sentido histórico. / O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.” A globalização não se desviou ou “preservou” a arte. O objetivo do haicai é o alcance do zen a partir da integração total entre o eu e a natureza. Não é apenas pra servir de penduricalho em mostrar anuais nipônicas. Óbvio que você deve respeitar os valores da outra cultura, mesmo porque o Japão é o berço do haicai. Mas se você põe o culto à territorialidade acima do culto ao que o mundo incute em nosso ser, você está apenas transformando num fetiche uma das formas mais sinceras de vida.

Assim sendo, a adoção de kigôs regionais, ou mesmo haicais produzidos para contextos regionais, não deve ser vista como “errada”. As assimilações entre culturas não devem ser apenas meneios tácitos de concordância; quando duas culturas se encontram, o resultado afeta a ambas de forma visceral, pois todo contato entre culturas é sempre uma relação de troca e adaptações (isso sempre considerando uma relação ambivalente). Além do mais, a ideia de que apenas um japonês pode escrever haicai parte do princípio que, idealmente ou aproximadamente, apenas uma pessoa com profundo conhecimento da cultura japonesa poderia escrever um haicai.

Julgo que citar Paulo Franchetti mais uma vez será de grande ajuda. A citação é longa, mas pontuará com precisão a querela. Advém da já citada entrevista a Wanderson Lima para a Revista de Cultura, dezembro de 2004:

(...) se é preciso um conhecimento denso da cultura japonesa para produzir um bom haicai, eu tendo a responder pela negativa. O haicai é um caminho, um jeito de estar na linguagem e no mundo, mas não creio que seja preciso saber japonês ou estudar profundamente os textos budistas para fazer bom haicai. Como não é preciso um conhecimento denso da cultura japonesa para ser um bom lutador de judô ou de karatê, ou para ser uma pessoa capaz de fazer ikebana. Algum conhecimento é necessário, principalmente para poder sentir a diferença, para perceber o jeito de olhar e de registrar a sensação que respondem pela especificidade do haicai. (...) A leitura dos clássicos, a percepção do quadro de referências religiosas e culturais, a observação do que o poeta disse numa determinada situação em que outras coisas podiam ou deviam ser ditas – tudo isso compõe, à volta das breves linhas do haicai, um quadro de estranhamento, em relação à nossa própria época e tradição, que é, a meu ver, salutar. Em suma, penso que o haicai vale como exercício de alteridade, e que cabe a cada um definir qual a porção de conhecimento ou idealização da cultura japonesa que é necessária para produzir o efeito de deslocamento que sempre se busca no cultivo de uma arte exótica, distante de nós no tempo ou no espaço.

Raciocínio parecido podemos aplicar aos haicais de contexto urbano, que na maior parte das vezes são expurgados. A primeira problemática destes reside no fato de que eles são em sua maioria expressão de um indivíduo voltado a si mesmo, incapaz de observar a natureza a seu redor e se reconhecer como parte constituinte da mesma, sem absolutamente algo a mais ou algo a menos. E não apenas isso: a natureza a que o indivíduo urbano faz parte é uma natureza dificilmente desvinculada, uma natureza dificilmente “pura”.

Quanto a isto, apenas friso que o espaço contemporâneo não é “puro” em lugar algum. E se utilizei a palavra “espaço”, é apenas para ressaltar e redefinir a concepção anteriormente proposta de que o haicai não é exatamente um poema advindo duma relação profunda entre indivíduo e natureza, mas entre indivíduo e espaço, este último também com todas as conotações a que Milton Santos se refere (técnico-científico-informacional). Tal adoção não implica em abandono àquilo que disse anteriormente; na verdade, o fato do espaço ao longo da história ter ganho tantos relevos pelas ações contínuas do homem não o transforma em menos natureza ou natureza-morta. O haicai não deve ser uma fuga da realidade, uma espécie de misantropia, pois nem mesmo o haicai dos grandes mestres era um haicai de uma torre de marfim (e a isso com propriedade chamamos natureza-morta).

Desde que o haicaísta de contexto urbano compreenda os preceitos até aqui discutidos, entre eles o de que a cidade não é o único espaço amostral (é apenas um espaço amostral que foi mais modificado pelo homem, mas, mesmo assim, um espaço incluído num todo), então o haicai que escreve pode ser perfeitamente considerado haicai. Stephen Addiss: “(...) mestres haicaístas evidenciam o momento atual num estado de percepção acurada, mas esse momento individual é também parte de um mundo maior que não começa nem acaba.” Matsuo Bashô: “Fazer do universo tua companhia, sempre tendo em mente a verdadeira natureza das coisas (...)”.

Naturalmente, isto demanda uma atenção e uma sensibilidade, um despojamento maior a seu autor que somente a disciplina poderá ensiná-lo. Como todas as coisas em haicai.




SOBRE O KIGÔ OU SOBRE A RELAÇÃO LEITOR-POEMA.

Kigô é uma palavra ou expressão no corpo do haicai que lhe define a estação do ano. Conforme disse anteriormente, as mudanças de estação são as mudanças mais profundas na estrutura do não-eu passíveis de ocorrer, de maneira que o poeta não passa incólume ante tais mudanças. No entanto, a questão do kigô é uma das mais febrilmente discutidas quando sobre o haicai: alguns defendem que o kigô deve aparecer nitidamente, ao passo que outros defendem que o kigô não é mais necessário hoje em dia.

Para discutirmos com mais propriedade e não mera superficialidade a questão do kigô, cumpre compreendermos que o kigô, repetindo o que disse, é uma palavra ou expressão que deixa claro ao leitor que uma modificação profunda ocorreu no espaço. Assim, não podemos entendê-lo como apenas uma definição ou explicitação sobre qual estação aquele haicai fala: afinal de contas, isso seria esdrúxulo, dado que a organização das coletâneas de haicai já o faziam pelo leitor, em se dividir em cinco partes: Ano Novo, Primavera, Verão, Outono, Inverno. Quando entendemos isso, já respondemos a uma série de perguntas que se limitam sobre a referida questão.

No entanto, não quero pressupor que um haicai, digamos, possa ser escrito sem uma estação do ano. Isso não teria cabimento pois, na perspectiva integralizante do haicai, equivaleria dizer que o artista está falando de uma natureza isenta das alterações sazonais.

A razão da “obrigatoriedade” do kigô no haicai é simples e possui uma raiz direta: você não pode falar de forma não-hierárquica da natureza sem se referir ao que as estações do ano incutiram naquela paisagem e em você. Masuda Goga: “Na nossa vida não podemos fugir da transitoriedade da natureza. Quer dizer que, como hoje, desde manhã está chovendo, de tarde, clareia, aí aparecem pássaros, flores, assim, a nossa vida sem a natureza não existe.” 

Não é um processo estilístico ou um requinte de agradabilidade; na verdade, pode até vir a ser, se antes se puder entender o kigô como um caminho inescapável. Mesmo porque, como pontuei reiteradas vazas, não é objetivo do haicai “(...) a beleza da imagem ou da combinação dos sons, mas o registro ou o despertar de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação.” (Paulo Franchetti, Oeste). Se para o haicaísta o kigô é uma espécie de entrave, ou um caminho obrigatório para que a sigla “haicai” possa estampar-se junto de seu texto, então provavelmente ele está em desacordo com o caminho do haicai.

E se esse kigô é explícito ou não, a razão é ainda mais simples: o haicaísta precisa perpassar para o leitor o instante de forma viva, mas possui reduzido espaço para isso (apenas um núcleo analógico). Assim, é improvável que ele o consiga a partir de sonoridades, sinestesias ou seja lá o quê mais (mesmo porque isso poderia incorrer numa hierarquização). Explicitando a estação do ano, ou mesmo recorrendo a expressões balizadas, ele terá uma liberdade maior de ser fiel a si mesmo e fiel ao poema que irá escrever. Para citar o Grêmio Haicai Ipê: “(...) o kigo é a palavra ou expressão associada a uma entidade natural, capaz de disparar associações afetivas a partir de uma cena concreta, de maneira muito econômica.”

Esse aspecto, de descobrir uma forma de perpassar a estação do ano no haicai a ser escrito, se atrela mais uma vez às palavras de Bashô, segundo o qual o haicaísta que descobrisse um só kigô próprio, original e condizente, estaria cumprindo a obra de uma vida inteira. Assim, considerando tudo o que disse até aqui, interpreto o que Bashô quis dizer como: aquele haicaísta que descobre um novo sentido para as ancestrais mudanças no espaço, esse haicaísta está descobrindo também uma senda para uma compreensão mais abrangente das relações sujeito-mundo. Não se trata de descobrir um novo sentido para o vento de inverno, para o mormaço de verão ou para os desabrochamentos de primavera; antes, se trata de descobrir como que uma nova percepção, como que um novo inverno, um novo verão, uma nova primavera.

Naturalmente, isso não é algo simples. Em se tratando de regiões como a brasileira, onde as estações do ano por vezes não se definem tão claramente, o encontro de um kigô durante muito tempo foi o que fez com que muitos haicais produzidos aqui não fossem, de fato, haicais. No entanto, creio que esse tipo de desculpa (de que o Brasil “não tem kigôs”) já não tem o menor cabimento, bastando observar que haicaístas como Masuda Goga ou Teruko Oda, ou grupos como o Grêmio Haicai Ipê, ao longo de suas trajetórias e numa atitude heroica, procuraram e posso dizer que encontraram kigôs “genuinamente brasileiros” (entre aspas pois acho isso algo maleável), o que pode ser visto em sajikis (inicialmente compilações e depois dicionários de kigôs) como o Natureza – Berço do haicai, de Goga e Oda (resenha aqui). Além do mais, como diz o Grêmio Haicai Ipê, por mais que no Brasil não exista “(...) uma sucessão de quatro estações à maneira européia”, é “(...) inegável a existência de um ciclo anual (...)”.

Mesmíssimo comentário faço ao haicai de contexto urbano: não é porque se fala de uma cidade que as alterações sazonais desaparecem. Cumpre ao haicaísta urbano encontrar seu(s) kigô(s) para que possa escrever haicai, e isso não como um pré-requisito, mas como uma via de acesso à sinceridade para com o momento, para com o todo. Para consigo mesmo.

E se esse kigô é explícito, se não é explícito, se segue padrões clássicos, se é por si só um kigô de renome, tudo isso é um aspecto que tange os almejos do poeta, mas de um poeta que se lembre sempre que um haicai não é uma realização própria, mas um produto que deverá ser desfrutado por um leitor que é, exatamente como ele, uma parte constituinte daquele espaço.




SOBRE O ACOMPANHAMENTO DO HAICAI OU SOBRE O HAIBUN E O HAIGA.

Além de ter sido o fixador do haicai como uma cosmovisão, além de ser um dos grandes mestres no referido gênero, Matsuo Bashô (1644-1694) possuía o hábito de fazer seus haicais se acompanharem de relatos de viagem (o chamado haibun), onde se explicitava ao leitor as condições pelas quais um determinado poema se baseara. Seu haibun mais clássico é o Oku no Hosomichi (奥の細道), traduzido em língua portuguesa para Trilha Estreita ao Confim (Iluminuras, 1997) por Kimi Takenaka e Alberto Marsicano, para Sendas de Oku (Roswitha Kempf, 1983) por Olga Savary, e para O Caminho Estreito para o Longínquo Norte (Fenda, 1987) por Jorge Sousa Braga.

Trata-se de um hábito admirável, se usado com as devidas precauções, pois, caso contrário, ele poderá se tornar exatamente no mesmo problema que um título num haicai implica: isto é, o problema de um texto que explique o haicai para o leitor, como se o autor fosse o dono da interpretação mestra de seu poema, quando, na verdade, o autor, após dar a lume sua obra, se torna em apenas mais um leitor daquele poema, ainda que um leitor com poderes factíveis de edição. Por isso, o haicaísta, ao escrever um acompanhamento ao haicai, como um relato de viagem à Bashô ou uma pintura que lhe acompanhe (o haiga), deve ter em mente que seu objetivo não é o de explicar, mas de fazer com que o leitor saiba de processos de construção do poema que a exiguidade do haicai não permitiu que se passasse. Usando de outras palavras, uma forma de se aumentar o esplendor e o fascínio que o haicai é capaz de transmitir, criando um terreno e um pano de fundo não para que alguns aspectos se sobressaiam, mas que para o todo e a integralidade de sua obra se enriqueça.

De minha parte, tudo que posso opinar é que as viagens, ou os retiros, ou qualquer atividade que pressuponha uma mudança drástica de vida, essas atividades são as mais recomendáveis para se fazer acompanhar um haicai ou um conjunto de haicais, a partir do momento em que elas forçam e impõem ao eu lírico uma mudança e uma busca de descobertas e de integração que uma situação corriqueira dificilmente imporia.

Comentário análogo pode ser feito a quem decida fazer um haiga, por exemplo, a um haicai alheio. Isto é: se seu objetivo é o de interpretar o poema ao leitor, então que tenha a seriedade de deixar isso bem claro. Caso contrário, que se preocupe em despojar-se e mostrar o que aquele poema pôde lhe suscitar, como se um novo poema ou uma nova obra de arte estivesse sendo engendrada a partir da experiência com o poema-base. Ou, mais exatamente, sem esse “como se”. A diferença nesse caso inexiste.




SOBRE O HAICAI GUILHERMINO OU SOBRE OS ASPECTOS FORMAIS DO HAICAI.

O haicai, segundo a tradição, é um poema sob a divisão métrica (ou sonora) 5/7/5, posto que os metros de 5 e de 7 são os metros da poesia clássica oriental. Para Paulo Franchetti, é um poema de 17 durações. Ou, de modo mais clássico, é um poema de 17 onjis cuja função seria o de ser recitado de uma só vez. Se tivéssemos de ser ainda mais ferrenhos, diríamos que na literatura japonesa conta-se todas as sílabas do verso, inclusive as pós-tônicas. Mas tal constatação iria em desacordo com a versificação em língua portuguesa. Masuda Goga: “(...) a contagem das sílabas termina sempre na sílaba tônica da última palavra de cada verso, sendo permitidas também as elisões.” 

O haicai guilhermino é uma fôrma que rima o primeiro com o terceiro verso e, no segundo, adiciona uma rima leonina, mais especificamente entre a segunda sílaba e a sétima. Outro aspecto do haicai guilhermino é o da adição do título, numa relação que seu criador comparou à de um verbete de dicionário. Logo, seu esquema é:

                    (TÍTULO)

             – – – – A
             – B – – – – B
             – – – – A

Minha opinião sobre essas duas engrenagens motoras do haicai guilhermino é a mesma de Paulo Franchetti (Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa, Ateliê, 2007): a de que seu “problema” está não nas rimas, mas no título. As rimas, na verdade e colocando de lado os propósitos talvez parnasianistas de Guilherme, de criar uma fôrma poética em que ele pudesse pôr em prática seu notório e simplório virtuosismo, adicionam uma naturalidade ao haicai que o aproximam de uma forma de alcance popular muito utilizada na Língua Portuguesa: as quadras. Assim, ao estabelecer esse padrão rímico fixo, Guilherme de Almeida está aclimatando a estrutura sonora do haicai à nossa língua, o que é uma atitude louvável e que, se bem usada (mas apenas se bem usada), resulta indubitavelmente em bons frutos.

O mesmo não se pode dizer do título. O título nos haicais guilherminos vem de uma leitura errônea do poeta para com o célebre haicai de Bashô sobre a rã no açude, para o qual Guilherme de Almeida julgava ser intitulado como Solidão. Se é ou não do conhecimento do leitor, fique revelado que o haicai nunca possui nem possuíra títulos, e os títulos apenas cerceiam (e enormemente!) a reconstrução analogia do leitor, a parte mais significativa na equação artística. Assim, quando o poeta intitula seus haicais, ele ao mesmo tempo põe nos mesmos um cabresto que os junge e os enfraquece poderosamente, pois a única analogia contida no poema perde consideravelmente seu poder de enunciação.

Anteriormente disse que o haicai é, classicamente, um terceto com métrica 5/7/5 (ou com 17 sílabas no total). Ao longo de sua história, a estrofação do mesmo nem sempre obedeceu ao padrão de tercetos, e mesmo as sílabas métricas aqui e acolá foram suplantadas ou remanejadas. A meu ver, esses movimentos, quando necessários, podem ser realizados sem menores danos, de maneira que o haicai à priori passa a não ter um número exato de sílabas (mas de versos, no entanto, sim). É a mesma opinião de Masuda Goga: “(...) mas não há exigência rigorosa, obedecida a regra de não ultrapassar 17 sílabas ao todo, e também não muito menos que isso.” Sinceramente, acho que, no cômputo geral, o haicai com pouco menos de 17 sílabas costuma se sair melhor em língua portuguesa que o de 17 (mas esta é uma opinião sem o menor esteio, exceto o estético-pessoal).

Porém, deve ser notado com parcimônia pelo autor (e analisado também com parcimônia pelo leitor) que, quando o número de sílabas poéticas aumenta, o espaço do poema também aumenta e, em decorrência disso, o espaço permite a inclusão de mais de uma analogia (consciente ou não), o que, mesmo nas condições ambiente de um haicai comum, é passível de ocorrer. Assim sendo, cumpre ao poeta a sua humildade e a sua vigília de não aplicar em seu haicai esse ultrapassamento de analogias, pois, quando o procede, pode não estar criando haicais, mas um outro poema qualquer (o que não lhe diminui porventura o êxito).

2011  início de 2012.

                vejo a chuva
         na concha de folha seca —
                verão típico

         solstício de inverno
         no brilho da calçada

              acordo no escuro —
              o brilho nas folhas
         define os confins da noite

         cubra-me de pétalas
         noite de outono


Um haicai do poeta japonês Masaoka Shiki, conforme traduzido por Janine Beichman. Por ser tradução de tradução, busquei uma comunicação livre para com o texto de partida, dando uma atenção maior ao que o momento do haicai suscitou em mim.

              fresta —                         ..             the tree cut,
         o dia nasce cedo                 ..           dawn breaks early
             na minha janelinha        ..          at my little window