Numa casca de noz.

Uma prisão, a Dinamarca? Sim, para o príncipe a Dinamarca era uma prisão. Mas nós, que até então rondávamos à maneira de um espectro a conversa entre as personagens, exclamamos junto a Guildenstern: como assim uma prisão? Isto não assinalaria a ambição do príncipe, para quem as fronteiras territoriais eram demasiado estreitas? Negativo, ele responde, pois mesmo que estivesse enclausurado numa casca de noz, ainda assim seria capaz de se considerar rei de um espaço infinito. O problema, ele prossegue ― o problema são os sonhos ruins. Mas o que são os sonhos ruins senão um sinal da ambição, não é mesmo? Afinal de contas a ambição é a sombra de um sonho... E no entanto, a língua afiada do príncipe não repousa: "Um sonho é ele mesmo uma sombra." Insistimos que a ambição é tão aérea e fina que na verdade é sombra de uma sombra, mas insistimos em vão: se for assim, então os mendigos são o corpo e os monarcas e heróis nada mais que a sombra de mendigos.

Não é fácil vencer o príncipe numa batalha retórica. Os súditos petrificam-se diante de sua autoridade, embasbacados de terror, amedrontados com as possíveis consequências e compassivos com seu estado mental. Quando Hamlet pergunta a Polônio se ele via aquela nuvem em forma de camelo, é claro que Polônio responde que sim, sendo a resposta mantida mesmo quando o príncipe indaga se ela possuiria na verdade formato de doninha ou de baleia. Para alguém tão lúcido como Hamlet, esse reino de bajulação em parte malévola era inaceitável e mostrava como quase ninguém era confiável o suficiente. No entanto, mostrava também que a incumbência do príncipe depois da revelação do fantasma exigia um ímpeto de agir que sua natureza reflexiva só com muito custo conseguiu desenvolver ao longo da peça.

Neste sentido é que, dois atos depois, o encontro de Hamlet com um exército marchando para a Normandia se reveste de significado especial. Já vimos que ele seria capaz de se sentir um rei ainda que enclausurado numa casca de noz e já vimos que a Dinamarca ser-lhe uma prisão não decorria, portanto, do ser ambicioso, mas sim dos sonhos ruins que lhe atormentavam. A única maneira de desanuviá-los era retirar a carga de torpor que impunham sobre seu espírito, no que, para tanto, o exemplo daquele exército era inspirador: marchavam rumo a uma batalha que seria travada com unhas e dentes em prol de um pedaço de terra pequeno a ponto de sequer servir de cova para os cadáveres da contenda. Sendo assim, os sonhos terríveis que assolam o jovem príncipe realçam, a seu turno, o sentimento de impotência: sentir-se rei numa casca de noz de nada adiantaria se aquele exíguo espaço não fosse conquistado, não fosse defendido.





Ian McEwan já deixou claro o bastante que o tema central de Enclausurado não é o aborto. Me parece uma maneira adequada de abordar a obra. O título original é Nutshell, substantivo usado pelo príncipe Hamlet na peça homônima de Shakespeare. A edição portuguesa traduziu para "Numa casca de noz", ao passo que a edição brasileira, assinada por Jorio Dauster, opta por verter para "Enclausurado". A opção a princípio não parece das melhores, e, afora o ditame de preservar alguma coisa da concisão monolítica do vocábulo único no título, existe uma ênfase no adjetivo que caracteriza nutshell na fala de Hamlet: ou seja, o príncipe menciona que não haveria problema em ver-se enclausurado (bounded) numa casca de noz. Todavia, penso que após uma reflexão detida a opção de Dauster se mostra engenhosa e elogiável, dando ênfase à temática da impotência que se faz presente de maneira muito intensa ao longo do livro, conectando-o ao melhor do quadro psicológico da peça shakespeariana.

Quando disse que o autor já deixou claro o bastante sua opção perante o livro, tenho em mente o que havia respondido para o Wall Street Journal: que não desejava entrar em tal discussão, mesmo porque ela sequer havia passado por sua cabeça, uma vez fazer parte de uma geração que já tomava como garantido o direito da mulher de optar pelo aborto desde que o fizesse o mais cedo possível. Todavia, não só. O grande chamariz do livro é o fato de que foi escrito da perspectiva de um feto em estágio avançado. A princípio isto aumenta o arsenal de argumentos pró-vida, afinal de contas se vencendo os capítulos podemos sentir empatia pela criança então é claro que as demandas abortistas implodiriam por completo. Neste sentido é que, entrevistado para o National Review ("With Nutshell, Ian McEwan Delivers a Pro-Life Novel, Inadvertently"), o escritor reconhece que o livro até pode ser lido por aí.

Sabe? Dar, dá. Mas, sabe? Alto lá. A mãe, Trudy (corruptela de Gertrudes), trama com seu atual namorado Claude (variação de Claudius) o assassinato do pai da criança, John Cairncross. Os caracteres de Trudy e Claude fazem com que ambos se assemelhem ao casal Macbeth, enquanto Cairncross, um poeta algo lunático, é correspondente das vítimas das tragédias shakespearianas, sem o caráter elevado implícito na realeza de muitas delas mas igualmente suscetível às tramas maléficas que lhes varrem do caminho como se nada fossem, no que basta trazermos à mente Hamlet pai e Duncan assassinados quando dormiam. Pois bem. O feto na barriga da mãe fica a par de toda a trama criminosa de Trudy e Claude, mas, pelo fato de que está enclausurado na barriga, não pode reverter o quadro, não pode fazer algo para impedi-lo. O feto é assolado de maneira absoluta pela impotência. Sua inserção na trama narrativa se dá no sentido de conduzi-la e expô-la para nós, mas, tão logo ultrapassamos tais funções, chegamos a um estágio onde narrador e leitor se confundem perante sua impotência diante dos atos efetivos causados na ordem dos eventos, afinal de contas do mesmo modo que não podemos evitar o assassinato do xerife num romance de bangue-bangue, do mesmo modo nem o feto e nem nós leitores podemos fazer algo que impeça o assassinato de Cairncross.

Sendo assim, embora a postura de quem enxergue os terrores do aborto a cada parágrafo pareça sedutora para o setor da militância pró-vida que insiste, a seu modo, em hastear bandeiras em solos literários, devo lembrar que isto representaria uma maneira de achatamento inaceitável do romance de McEwan. A imagem da criança indefesa e impotente diante de um algoz a sangue frio consegue comover com muita facilidade, mas a discussão mais avançada e racional a respeito do aborto afasta esse tipo de retrato melodramático e passa a debater sobre que tipo de estrutura cerebrina o feto possui até certo estágio e se, considerando tal estrutura, é razoável dizermos que possui consciência, ou, ainda, sobre se em condições assim o aborto representaria a morte de um ser humano em potência. Mas penso que não só. A resposta dada por McEwan ilumina um aspecto crucial: o feto já estava em estágio desenvolvido e não é de fato abortado no livro. Portanto, se considerarmos que dificilmente numa discussão sobre o aborto se cogitaria o direito de um casal de abortar um feto em estágio avançado, quando indubitavelmente sua consciência já está biologicamente formada, então enxergar centelhas de aborto em Enclausurado seria um modo de abordá-lo procurando pontos de apoio irrelevantes até mesmo para a discussão a que o leitor momentos depois pretende reingressar.





Hamlet não é o único convidado ilustre para as entrelinhas da prosa de Enclausurado. A capa da edição brasileira traz uma folha de papel amassada, provavelmente saída do livro aí na sua mão, que, abrigando o título e envolta em fundo preto, é idêntica à gravura de um feto na contracapa, igualmente encolhido e envolto em trevas. Design curioso, assim como curioso é o da edição inglesa da Vintage, onde a vogal "u" serve de útero para a imagem de um feto. U de Ulysses, sugere Camila von Holdefer, transformando o detalhe menor e talvez impensado da capa num ótimo paralelo entre o romance do escritor britânico e aquele que era o favorito do feto.

Nele, um clássico moderno que acompanha os acontecimentos de um dia inteiro na vida do casal Leopold e Molly Bloom e do aspirante a escritor Stephen Dedalus, nele, além dos evidentes subníveis mitológicos estabelecidos com o épico homérico, comumente se destaca a peça shakespeariana. E não é para menos: tanto Stephen Dedalus quanto Leopold Bloom, que irão se conhecer no longo capítulo que fecha a segunda parte, vestem-se de preto assim como o príncipe Hamlet e guardam consigo resquícios de traumas relativos à figura paterna, Stephen porque, tal como Joyce, mantinha relação conturbada com seu pai (e, num trauma conexo, era assombrado pelo espectro da mãe, "muskperfumed"), e Bloom porque quase presenciou o suicídio do pai ("the face in death of a septuagenarian, suicide by poison"). Sendo assim, que Stephen desenvolva em certa passagem do Ulysses uma engenhosa leitura biográfica do Hamlet é um detalhe que emerge da narrativa de maneira consistente, assim como o fato de que o capítulo de abertura, que retrata as primeiras horas do dia para Stephen, termine com a palavra "Usurper" ou que, no mesmo capítulo onde Stephen e Leopold se encontrem, ambos a certo ponto se olhem no espelho e vejam a face de Shakespeare, imberbe, aparecer.

Convidados ilustres. A história do livro começou quando McEwan devaneava e a frase de abertura do romance, "Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher", surgiu de forma súbita em sua cabeça. Tudo o que precisou fazer foi adicionar o "Então" posteriormente. Quem seria capaz de dizer algo do tipo?, ele se pergunta ao ser entrevistado para o The Guardian. Ora, um feto. Um feto! E então o romance nascia, escrito da perspectiva de uma criança dentro da barriga da mãe, algo que McEwan acreditava jamais ter sido feito antes na literatura e que foi inegavelmente o que lhe deu grande apelo comercial.

O problema é que não é bem por aí. Cristóvão Nonato de Carlos Fuentes também é escrito na perspectiva de um bebê em gestação, inclusive com mais radicalidade que o romance britânico, afinal de contas cobre o ato sexual e a gestação inteirinha com todos os seus nove meses, isso numa linguagem modelada à medida que o óvulo fecundado forma um ser humano. Neste sentido é que cabe mais uma vez nos lembrarmos que Joyce, no décimo quarto capítulo do Ulysses, correspondente ao episódio dos gados do sol na Odisseia, relata a visita de Leopold Bloom ao hospital onde Mina Purefoy dava luz a um bebê. O capítulo, que segundo o esquema Gilbert tem como metáfora o útero, é escrito numa técnica que foi batizada de "desenvolvimento embrionário" e reconta a história da língua inglesa de seus primórdios com o verso aliterativo até as gírias daquele início de século.

De modo análogo, a trama de McEwan não é, por óbvio, a primeira a se basear no Hamlet. Tom Stoppard estreava em 66 uma peça famosíssima de atmosfera beckettiana estrelada pelas personagens secundárias Rosencrantz e Guildenstern, John Updike escreveu um romance a respeito dos fatos anteriores à peça, com ênfase no triângulo amoroso Gertrudes, Hamlet pai e Cláudio, e Paul Griffiths, escritor britânico, compõe o seu let me tell you exclusivamente a partir do vocabulário que Ofélia usa na peça toda (pouco menos de quinhentas palavras). O que talvez chame a atenção no romance de McEwan é que a leveza romanesca de sua trama a aproxima do livro de Updike e de qualquer outro que lemos deitados na rede, com a diferença de que escrito numa técnica refinada. O autor, que chegou a acompanhar por anos o trabalho de cirurgiões a fim de que escrevesse Sábado, agora se sentia muito mais liberto, podendo se valer, quando muito, de algumas informações pediátricas simples.

Isto implica dizer que apesar de escrito na perspectiva de um feto, estritamente falando o narrador é bem informado, capaz de discutir o contexto geopolítico dos refugiados e até mesmo o ativismo infantiloide que infestou as universidades britânicas. Isto acontece pois a mãe do bebê aprecia ouvir programas de rádio e podcasts, de modo que quando ela adormece a criança continua absorvendo informação. Num evento em comemoração aos trinta anos da casa editorial brasileira que o publica, McEwan, sabatinado ao lado de David Grossman, informava que o conhecimento intrauterino do feto, acostumado a tudo que os mínimos movimentos das vísceras da mãe denunciavam, acabava sendo um conhecimento capaz de perceber detalhes da psicologia humana que nós, postos pra fora há muito tempo, pelo jeito esquecemos. É por isto que para McEwan seu narrador é um narrador confiável: ele não tem por que mentir, distorcer ou estabelecer alianças. Trata-se daquilo que ele caracterizou de uma voz existencial, uma voz suspensa.

É uma designação danada de boa. Embora o feto saiba quando sua mãe mente e embora ele próprio seja incapaz de mentir, ele possui total controle da voz. É culto e escreve bem, afinal de contas, com uma elegância que nós mesmos não conseguimos nem em sonho igualar. Logo, a suspensão de descrença para que se aproveite o que de melhor o livro tem a oferecer se torna um requisito essencial, caso contrário estaremos condenados a esperar do narrador o que ele não pode oferecer. Ou seja: me parece totalmente plausível que alguém se veja impelido a comprar o livro guiado pela promessa de que o escritor realmente nos colocou na posição de um feto, o que em muitos casos é uma verdade ("Quando ouço a palavra 'azul', que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de 'verde' ― que também nunca vi") mas que, por outro, acaba sendo uma decepção dado o pendor intelectual da criança não condizer com o que minimamente se espera de bebês na barriga da mãe. Na maior parte dos casos o que nos faz lembrar que estamos sendo guiados pelo relato de um bebê em gestação são tomadas de posição, relances do olhar, informações que ele ignora ou então o simples uso de um tempo verbal como a terceira pessoa do plural referindo-se a ele e a sua mãe juntos. Ficção, portanto, ficção, é claro, mas ficção cheia de engenho e arte.

Camila von Holdefer destaca que o brilhantismo do feto não pode por óbvio ser explicado a partir da experiência. "Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas" é o trecho que ela destaca, comentando ser esta a melhor piada do livro. Ora: como o feto pode ser um empirista se o que ele conhece do mundo vem de fontes externas, fontes que lhes chegam por vias intrauterinas e que repercutem em seus neurônios sagazes? Realmente, esta pretensão do feto talvez seja o motivo para McEwan ter pesado a mão na construção do intelecto do bebê. Ainda no evento em aniversário da editora, o romancista se vê perguntando o que é racionalidade e o que é ciência, a primeira uma forma de curiosidade e a segunda uma maneira de organizá-la. Pois a ciência, porque suplanta a ambição humana criando algo maior que cada um de seus participantes, é um modo de prevenir e afastar a irracionalidade dos próprios cientistas: a ciência em si não pode ser irracional, e, embora o cientista até seja um tresloucado da vida, quando veste seu jaleco ele deve incorporar a personagem caso queira ser levado a sério. É uma maneira muito instigante de pensar, apta a escarnecer os gestos daquela militância que tenta fazer com que o edifício científico caiba nas pretensões do indivíduo e no conceito amorfo da vivência.

É quando McEwan nos conta outra piada sensacional. A princípio enfurecido com a maneira tosca com que reduzimos as possibilidades humanas a duas cores tão somente, rosa e azul, o feto se acalma e aceita ao máximo a sua herança: "Sem dúvida, a complexidade me alcançaria em algum momento." É quando ele aproveita o gancho para refletir sobre a postura dos universitários militantes que "se mostram mobilizados, por vezes raivosos, mas sobretudo carentes, e desejam a bênção das autoridades, a validação da identidade que venham a escolher."

Um camarão não é um fator limitativo nem estável. Declaro meu sentimento inegável pelo que sou. Se eu for branco, posso me identificar como negro. E vice-versa. (...) Ofendido, entro em estado de graça. Se opiniões inconvenientes pairam sobre mim como anjos caídos ou malvados djins (dois quilômetros sendo perto demais), necessitarei de uma sala segura especial no campus equipada com massa de modelar e filmes emendados uns nos outros de cachorrinhos fazendo travessuras.

Fabuloso. Não apenas porque o feto, graças à sátira, se revela mais maduro do que universitários barbudos, como também pelo fato de que sua pretensão empirista espelha alguma coisa do modo com que o conceito da vivência aprisiona o raciocínio nos compartimentos estanques dos fenótipos e das biografias.





O sobrenome Cairncross, embora seja o de um espião britânico que atuou na Segunda Guerra Mundial e que no fim da vida traduziu a dramaturgia clássica dos franceses, só parece fazer sentido quando seguimos com Adam Mars-Jones e notamos que é a junção de dois vocábulos que remetem a objetos usados para marcar túmulos: moledros e cruzes. É um detalhe simples que, estampado na testa, traça toda um destino para as personagens quase como se fosse um óbolo colocado na mão do barqueiro assim que a narrativa começa.

Pois não que nos interessemos muito nas personagens. Elas são bem construídas no sentido mais morno da expressão: ou seja, elas não cometem gafes que trincam as paredes caiadas da verossimilhança nem insuflam tédio em nossas caixas cranianas. Ao se referir a seu pai, o feto diz: "a outra metade do meu genoma, cujas voltas helicoidais do destino me interessam grandemente." Isto é, Cairncross é uma personagem que interessa à narrativa até o ponto em que leva o protagonista a uma jornada de aprendizagem. Este, aliás, o motivo para que o príncipe dinamarquês seja incluso num seleto rol de criações que fizeram de Shakespeare, segundo Harold Bloom, um inventor da humanidade: são personagens que diante da catástrofe trágica aprendem consigo mesmas, personagens que avançam para um estado humano cada vez mais complexo e melhor do que o anteriormente esboçado.

McEwan aprendeu direitinho esta lição. Ouso dizer que como poucos. Em entrevista para o Telegraph, o autor nos diz que em momentos iniciais de escrita do romance ele o compunha imaginando que era a voz de Shakespeare, não nascido, que falava. O detalhe parece óbvio quando tomamos nota da intrincada rede de referências ou mesmo a elegância de uma linguagem que roça a epiderme poética com facilidade, mas só pode ser realmente entendido quando posto sob a clave maior da ideia de maturidade na obra do Bardo, onde as personagens tinham que amadurecer para que pudessem enfrentar os "slings and arrows of outrageous fortune" de que fala o príncipe numa passagem célebre. Romper, portanto, com o cárcere que o próprio indivíduo constrói para si e descobrir, às vezes infelizmente de formas terríveis, que "ripeness is all".

Uma ótima passagem para entendê-lo é aquela de quando o feto se lembra de seu nascimento como "o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece." Somente aqui, caso o leitor queira ter uma dimensão do inteligentíssimo intertexto estabelecido, temos uma citação de uma das primeiras falas de Hamlet, quando a rainha, após lhe perguntar se não era verdade que tudo que vive um dia deve morrer, passando portanto para a eternidade, recebe como resposta que de fato é por aí mesmo, muito embora, tal como a rainha tentou dar a entender, ávida em consolar o seu filho, o assassinato de seu pai fuja da dimensão do parece ser para a do ser de fato situação particular, fugindo por conseguinte das superficialidades das vestes enlutadas para algo mais profundo que dorme dentro dele: ou seja, a dor da perda de um pai.

Pois bem. O feto também aprende e evolui ao longo do romance. Ele permite que a realidade cruel invada o seu "diáfano invólucro corporal", à guisa do que ele descreve numa passagem memorável, e com isto forme seus desígnios de vida e suas responsabilidades a partir de então, fincando um sustentáculo no infinito mar de possibilidades apenas cogitadas e se preparando para o momento crucial em que a vida deve ser enfrentada longe do conforto da barriga da mãe ou de qualquer outro abrigo necessariamente provisório. Este o verdadeiro cárcere em que o feto se encontra. Não é apenas uma questão de que, saindo de lá, ele magicamente vai arregaçar as mangas e pôr tudo em prática. Enquanto se embriaga do perfume das ilusões e de todo um futuro brilhante que supostamente será seu logo que o esboce no líquido amniótico, ele não se prepara para as rasteiras que a vida inevitavelmente passa em qualquer um. É como, portanto, o amadurecimento e a concretização do que até então eram apenas ideias se tornassem um ditame, o esforço hercúleo de romper com a impotência que lhe enclausura. Mas que fique bem claro: uma impotência que não se confunde com as barreiras físicas do útero. É verdade sim que o feto não consegue fazer muita coisa que não chutar a barriga da mãe e obter dela coisas ínfimas (desligar o rádio por exemplo), mas, mesmo que tivesse aptidão física para algo maior, isso não garante que impediria o espírito de definhar nas celas que sua própria inação erigiu.

Reconhecendo a certa altura que o solipsismo convém a quem ainda não nasceu, o feto elucubra um pouco depois que

a dor gerou a consciência. Para evitar danos graves, uma simples criatura precisa desenvolver os estímulos e incentivos de um circuito subjetivo, de uma experiência anterior. (...) A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, e ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu.

É sem dúvidas notável ver a capacidade autoanalítica que o feto havia conseguido desenvolver. É por isso, por essa necessidade de sair de um espaço seguro (McEwan, ao conversar com Stephen Pinker, afirma: a literatura é um modo de se expor ao mundo), que o feto consegue mais uma vez dar uma estocada lancinante nos movimentos sociais, que de resto não apenas dependem de espaços seguros (literalmente falando) como também relutam em abraçar as adversidades da vida com a mesma coragem que o feto a custo aprende ao longo de Enclausurado. Uma das frases mais reveladoras do livro, portanto, é a de quando o feto se refere à "verdade mais limitadora da vida: é sempre aqui, é sempre agora, nunca lá e depois." Mais uma vez o contraste com Hamlet é digno de nota, afinal de contas se nos lembrarmos que para ele a consciência era capaz de nos tornar covardes, atenuando a cor natural da resolução com a pálida evocação do pensamento ― isto no seu mais célebre monólogo, quando ele se coloca entre o ser e o não ser ―; se nos lembrarmos que de início estas eram suas cogitações, então o instante em que Hamlet aceita o peso de suas ações e aceita a responsabilidade, como dito, de seus atos, é o instante em que aprende que vingar seu pai é dar concreção a seus pensamentos, ainda que seja para torná-los sangrentos pois caso contrário não valeriam nem mesmo a pena.

O ato de abraçar os contornos ásperos da realidade traz mudanças para a visão de mundo do feto. Ouvindo os ecos que a palestra de uma especialista em relações internacionais ecoava nos ossos de sua mãe, o feto raciocina a respeito de um panorama triste da raça humana, "uma visão sombria de nossa espécie em que os psicopatas constituem uma fração permanente, uma constante humana." Isto o leva a cogitar que "esses desastres são obras das nossas naturezas duplas. Construímos um mundo complicado e perigoso demais para poder ser administrado com o temperamento aguerrido que temos. (...) Estamos no crepúsculo da Idade da Razão." No entanto, um pouco depois, agarrado a seu cordão umbilical como que metaforicamente a um laço afetivo, a um sentimento de amor, o feto se vê diante de grandes conquistas da humanidade, por exemplo centenas de milhões de seres humanos "retirados de sua condição miserável" ou a erradicação de doenças como "a varíola, a poliomelite, a cólera, o sarampo" ― em suma, "privilégios e delícias" que um breve serão desfrutados por quem hoje não os desfruta ― e conclui que "O pessimismo é fácil demais, até mesmo delicioso, o emblema e enfeite dos intelectuais em toda a parte. Exime as classes pensantes de buscar soluções."

Pois bem. Por um instante esse "hino ao mundo glorioso que possuirei daqui a pouco" dá a entender que a visão de mundo do feto será marcada apenas por uma curiosidade admirável e por um deslumbre infantil com o mundo. Quando se pergunta "Quem sabe o que é real?", confessa não ter "condições de reunir eu mesmo as provas" e chega à conclusão de que, "Como todas as pessoas, vou escolher o que eu quero, o que for melhor pra mim." É uma tomada de decisão que rapidamente se torna sensível na estrutura narrativa, bastando que observemos a frase que abre o capítulo imediatamente posterior:

Quando ouço o zumbido amigável dos carros que passam e uma leve aragem agita o que penso serem as folhas de um castanheiro, quando um rádio portátil embaixo de mim emite um ligeiro ruído áspero, e um lusco-fusco de cor de coral, um prolongado poente tropical, ilumina vagamente meu mar mediterrâneo e o trilhão de fragmentos que boiam nele, sei que minha mãe está tomando banho de sol na varanda da biblioteca de meu pai.

É simplesmente maravilhoso. A segurança narrativa e o garbo das descrições de McEwan revelam um escritor em pleno domínio de suas capacidades expressivas, capaz de chegar a momentos de uma elegância absolutamente memorável. Existe uma sutileza e um encanto numa passagem assim que fazem com que o leitor redescubra uma manhã de sol a partir do que os sentidos aguçados do feto são capazes de nos transmitir. Não apenas o adjetivo "amigável" caracterizando o zumbido dos carros se destaca, no que portanto observamos a maneira com que para o feto o mundo havia se tornado algo inapelavelmente lindo e instigante, como se portanto ele anulasse as sombras que permeiam a existência muito em decorrência do fato de que está contemplando sua mãe e, como noutras passagens, tal contemplação é quase sempre lírica, herança portanto dos dotes poéticos de seu pai, mas também em decorrência do fato de que não descobriu ainda os planos escusos de Trudy e Claude, os quais, de resto, serão revelados no capítulo que se inicia com a frase citada; não apenas, portanto, o adjetivo "amigável", como a singela ignorância deste "o que penso" um pouco depois bem como a leveza do "ligeiro ruído áspero" do rádio e a precisão saborosa do "lusco-fusco de cor de coral, um poente tropical", ambos permitindo que nossa sensibilidade se acostume à beleza familiar do útero despontando com a evocação de um "mar mediterrâneo" cercado de um "trilhão de fragmentos que boiam nele".

Com o assassinato do pai, todavia, as coisas mudam:

Houve época em que a fala de Claude ao ir embora poderia me fazer sorrir. Ultimamente, porém, não pergunte por quê, não sinto atração pela comédia, nenhum desejo de fazer exercícios (mesmo que tivesse espaço), nenhum encanto pelo fogo ou pela terra, por palavras que antes revelavam um mundo dourado de estrelas majestosas, a beleza da percepção poética, o júbilo infinito da razão.

Esta a realidade áspera a que o feto, como qualquer um de nós, tem de enfrentar. No primeiro sonho de sua vida, logo após Trudy e Claude treparem um pouco (e, parêntesis um pouco mais longo, até mesmo as deliciosas pitadas de humor, características do romance e certo modo surpreendentes, afinal de contas não imaginamos que o feto se saia com uma dessas, até mesmo as deliciosas pitadas de humor por exemplo de quando ele menciona que "Nem todo mundo sabe o que é ter o pênis do rival do seu pai a poucos centímetros do seu nariz", até mesmo elas cedem espaço, a esta altura do romance, quando o narrador já está inteiramente a par dos intentos terríveis contra Cairncross, para descrições soturnas que se referem a "um afogamento viscoso", "alguma coisa perfeccionista rastejando num pântano"); no primeiro sonho de sua vida ele nos conta do encontro que simbolicamente teve com seu pai, "um jovem da minha idade" que lhe pede a opinião a respeito de algo que acabara de escrever. É um ambiente estarrecedor, com um sino repicando e um cortejo fúnebre que passa do lado de fora, mas, o que é fundamental, é um ambiente retratado de maneira desencantada: o nevoeiro da manhã por exemplo é caracterizado como frio, as ruas são marcadas pelo "cheiro de dejetos humanos tão sólidos quanto as paredes das casas cede lugar" e ao longo do caminho existem "fileiras imensas de ingleses pobres e sorumbáticos às margens de estradinhas esburacadas".

Ora: é justamente esta consciência da morte e da faceta mais degradada da vida que amadurece o feto. A partir de agora ele passa a sentir o peso e a real dimensão das coisas e da realidade que lhe cerca. O tema da impotência, como dito, me parece ser o centro do romance, mas ele só ganha concretude quando é lido em contraste aos porões da existência humana, aquelas hórridas masmorras que explicações bombásticas tentam ignorar. Se a voz do narrador foi caracterizada pelo próprio McEwan como existencial e suspensa, ela progressivamente coloca os pés no chão e dá contorno a seus desígnios. Das oposições que marcam o livro (e Yuri Al’Hanati nota que são muitas, a mais evidente, quem sabe, sendo aquela entre o nascimento e a morte), não é que tenhamos a solução de tal conflito pela eleição pacífica de um dos lados. O final de Enclausurado nos leva uma última vez ao percurso do jovem príncipe, transformando "O resto é silêncio" em "O resto é caos". Penso que se me demorar demais nas razões do desfecho eu acabarei estragando um pouco o que o final do livro eventualmente revele ao leitor, mas, de todo modo, é justamente pela aceitação daquilo que Bruno Tolentino chamava de aspereza do real que o feto enfim se amadurece e se vê pronto para a vida.