Manualzinho de versificação.

A versificação saiu de moda e esqueceu o caminho de casa. Por que ensinar como contar sílabas poéticas ou escrever sextinas se é possível começar o sapateado direto na primeira interjeição: "oh meu amor, oh minha flor"? Ao mesmo tempo, como falar de versificação se a única vaga lembrança que os alunos ainda guardam dela é de quando um professor acanhado de literatura rabiscou no quadro que soneto é o poema de quatorze versos? Versificação é só isso?

É bem provável que parte desse desprezo se dê em decorrência de um modelo educacional que transforma literatura num desfile de escolas literárias apto a ser transformado numa questão de vestibular repleta de armadilhas maliciosas, mas convém reconhecer que parte se dá pelo sebo retórico com que muitos de seus ferrenhos cultores fizeram questão de besuntá-la. O gênero da preceptística ou da tratadística, que é a maneira espalhafatosa que temos para designar aquela enxurrada de obras cujo objetivo era o de descrever as leis que deveriam presidir a escrita do verso caso este se quisesse o mais agradável possível, é um gênero que envelheceu demais e que, quando calha de ser ressuscitado por uma ou outra alma penada, o é das maneiras mais odiosas possíveis, sempre seguida da pose antiquada de quem precisa inventar um passado ("no meu tempo as pessoas escandiam!" ― o que talvez seja verdade se seu interlocutor for pelo menos um centenário) para resmungar contra o mundo moderno.

Naturalmente existem exceções. Sei de cursos de escrita criativa em que os professores se incumbem da tarefa de ensinar seus aluninhos a contagem de sílabas poéticas sem, todavia, aquele tipo de pressa que o tema geralmente recebe quando é tratado no ensino médio. Sabe como é: se você passar tempo demais no assunto, pode ser que o adolescente acabe por comparecer na próxima aula trazendo um pantum sobre o sonho de Cipião. No caso da tal da escrita criativa, ao que me consta existem cursos em que os alunos passam a maior parte do tempo aprendendo a contar sílabas poéticas ao invés de, sei lá, fazendo excursões para escrevinhar poemas esperançosos sobre mendigos. O raciocínio capaz de validar esse tipo de coisa é simples, simplicíssimo: a poesia só começou a usar o tal do verso livre muito recentemente, coisa de, quando muito, um século e meio pra cá. Claro que isso da poesia retirar a armadura e ficar mais à vontade já era algo que existia pelo menos desde os românticos, por exemplo a aproximação entre poesia e fala do povo a partir do prefácio às Lyrical Ballads. Todavia, não creio que mude muito a verdade genérica da minha afirmação.

Outra congregação que costuma re-suscitar a discussão sobre métrica é a congregação dos tradutores. Na verdade eu digo até, claro que com muita provocação embutida, que os únicos que hoje em dia possuem o direito legítimo de discutirem sobre métrica sem despejar um caminhão de tédio na cabeça dos ouvintes são os tradutores. Não é pra menos. Fomos colônia de um povo que não dava muita corda para essa coisa de traduzir. Basta que comparemos com o que ocorria na Inglaterra no mesmo período, onde um certo John Harington, inventor da descarga, após permitir que trechos de sua tradução do Orlando Furioso circulassem entre as damas de companhia da rainha, foi condenado a só voltar à corte quando traduzisse os quase quarenta mil versos do poema, punição severa o bastante para que ele não pusesse os pés tão cedo ― não fosse o fato de que alguns anos ele retornaria com a tradução retinindo: "Of Dames, of Knights, of armes, of loves delight".

Sei que existiu o trabalho de nomes como Bocage, Filinto Elísio ou Elpino Duriense com a poesia romana (Virgílio, Ovídio, Horácio), mas não vejo como qualificá-lo de algo além de exceção. Pois eu diria, para prosseguir, que embora em Portugal tenha sido assim, o que percebemos em terras brasílicas é que a tradução tem recebido uma atenção cada vez maior ― a ponto de redundar no panorama contemporâneo, no qual a tradução nacional é de uma efervescência e qualidade de níveis internacionais. No plano do esqueleto formal do texto poético, isso pode ser visto a partir da minúcia empregada no ofício, buscando reproduzir características cada vez mais microscópicas do original, por exemplo trocadilhos, aliterações, relances etimológicos, paranomásias ou a cadência, tintim por tintim. Daí que, para tanto, tenham levado a discussão sobre métrica a um nível de profundidade sem precedentes em nossa língua. Logo, mesmo se pessoa com quem conversamos for uma múmia matraqueando que a poesia morreu pois hoje os poetas não sabem mais nadica de nada sobre os arcanos do alexandrino, cabe refutá-la lembrando que muitos poetas são tradutores e os tradutores, a seu turno, trabalham com uma obsessão e domínio que a própria madame-dodecassílabos à nossa frente talvez não seja capaz de acompanhar.

Pode-se lembrar, por fim, que se o se o poeta de minorias, entendido o termo naquela acepção que a esquerda de meados do século passado lhe dava, ou seja, um poeta que escreve para um público consumidor restrito; se o poeta de minorias, com os avanços da modernidade poética, pôde se dar ao luxo de dispensar o conhecimento versificatório e a técnica da construção da cadência, isto não se deu nem se dá com a poesia popular. Certa feita o linguista russo Roman Jakobson lançou a hipótese, tida como bastante plausível, de que nenhuma cultura humana ignora a versificação. Realmente: o verso cadenciado e as formas fixas são fonte de apoio importantíssima para aquela poesia produzida à roda de uma fogueira e ao som da viola. E mesmo os jovens que se agrupam para ouvir uma batalha de rimas, mesmo eles costumam criar versos cadenciados com facilidade e fluência que denotam uma perícia supomos inata, diversa portanto da maneira livresca com que o assunto tende a ser tratado. Com isto quero dizer que dificilmente esta juventude abrirá mão do prazer dos versos se encaixando ao som da batida e das rimas mirabolantes despontando ― assim como um cordelista dificilmente sairá das sextilhas a fim de que se ensaie nas aventuras do verso livre. A possibilidade de contar com uma estrutura prévia sobre a qual construa suas narrativas e expresse suas emoções é o alicerce do poeta popular, que, assim, consegue com maior desenvoltura improvisar e ajustar a matéria artística às reações do público. Sem esse esqueleto pré-constituído e sem um acervo de fórmulas prontas e esboços úteis, não sei se a poesia do povo alcança metade do garbo que sua arte é capaz de oferecer.

Além disto, note bem que a cadência subjaz a muitas frases, cantigas e ditados populares que usamos de forma corrente. Pensemos no caso daquela que começa com "Batatinha quando nasce". Sempre que nas reuniões de pauta num jornal local se constata que o marasmo da região não foi capaz de completar a programação diária, é costume convidar algum gramático para que estufe o peito e preencha aquele lapso. Sabemos o que esperar: lições enlatadas e entediantes sobre como usar a crase, a vírgula, os porquês ou, ainda, diletantismos ínfimos, entre eles o de que o segundo verso da nossa cantiga não seria "Se esparrama pelo chão" e sim "Espalha ramas pelo chão". Tudo muito revelador, a princípio se pensa, não fosse o fato de que ignora a estrutura poética elementar da cantiga. Emmanuel Santiago possui um excelente texto sobre o assunto, explicando para o leitor que a cantiga, pelo fato de ser escrita em redondilhas maiores com cesura na terceira sílaba, deve se valer da fórmula "Se esparrama" por uma necessidade interna. Não possui o menor cabimento cogitar "Espalha ramas": isso destruiria a cuidadosa métrica do poeminha e tornaria a sua própria permanência social uma empresa malfadada. Noutras palavras: é justamente graças à cadência bem distribuída do texto que nós conseguimos memorizá-lo de forma tão eficiente, e de tal modo que, para tanto, nos valermos da ideia certo modo absurda (de um absurdo, contudo, muito menor do que nos levam a crer) da batatinha se esparramar pelo chão é uma concessão que fazemos a fim de que a cantiga se fixe e se torne moeda de troca com mais facilidade. Crer, noutra senda, que a forma correta foi se "degradando" com o uso popular ― isso sim é um verdadeiro absurdo, ignorando a correlação íntima entre uma cadência sólida e a fixação do poema na memória coletiva.

Com estes comentários penso mostrar que a discussão sobre as bases métricas do verso segue presente. E é querendo partilhar o que aprendi que aqui estou. Meu propósito não é o de te fazer marcar a assertiva correta nem muito menos te capacitar a escrever um artigo acadêmico robusto. Intenciono, quando muito, o meio termo, habilitando-te, na medida do possível e do que estiver a meu alcance, a conhecer um pouco do caminho das pedras, de modo a que consiga acompanhar a mais recente discussão sobre métrica sem que aquilo lhe pareça algo tão inacessível. Não esperem muito: é o texto de um leigo que espiou pela claraboia.






POESIA, VERSO, RITMO, MÉTRICA...

...todos conceitos arredios a qualquer definição. A teoria literária, embora recente (começou na Rússia pré-revolucionária), deitou rios de tinta sobre o assunto, tentando entender o que diabos era a tal da poesia e o que fazia de um texto um texto poético, ou então qual a natureza e a função estrutural do ritmo nos poemas etc etc. As respostas foram várias e inventivas e importantíssimas e, com o passar do tempo, pouco a pouco desbaratadas. É dizer: aquelas características que as correntes teóricas até então (formalismo russo, nova crítica, estilística, estruturalismo) haviam logrado apontar não pareciam tão distintas do que esticando as pernas e perambulando nas ruas de uma cidade nós também seríamos capazes de encontrar.

Assim, para ficarmos com apenas um exemplo, tomemos aquela definição instintiva de que poesia é o que está escrito em verso. Parece bom para muito do que encontramos nas gôndolas de livrarias, mas não explica o que diabos seriam os poemas em prosa de Cruz e Souza ou a razão para que críticos de calibre mencionem uns tais momentos poéticos na prosa de José de Alencar ou Euclides da Cunha. Machado de Assis, por exemplo, chamou o Iracema de poema em prosa, definição admirável. De modo análogo, Guilherme de Almeida e depois Augusto de Campos se empenharam em achar versos completinhos e momentos poéticos de alta voltagem na prosa estupenda de Os Sertões. E veja que nós poderíamos complicar ainda mais se nos lembrarmos que Aristóteles, no comecinho da Poética, já advertia para o fato de que nem todo aquele que compunha em verso podia ser chamado de poeta.

Claro que com a lembrança de Aristóteles as coisas mudam um pouco, afinal de contas o conceito que hoje temos de poesia, essencialmente moderno, burguês e pós-romântico, não era o mesmo de Aristóteles ou o de, sei lá, Tomás Antonio Gonzaga. Aristóteles reconhece que na sua época não havia um termo que unisse os mimos de Sófron aos diálogos platônicos, mas também negava que quem escrevesse um tratado sobre medicina em verso (e isso realmente podia ocorrer na Antiguidade) pudesse ser chamado de poeta, mesmo porque ao falar do poeta ele pensava em critérios distintivos como o da mimese. Mas hoje as coisas permanecem voláteis a seu modo, e se considerarmos que mesmo com uma pequena dosagem de teoria literária nós conseguimos esgarçar os limites da literatura de forma irremediável ― a ponto de Northrop Frye, em meados do século passado, seguindo à sua maneira o raciocínio aristotélico, empregar o termo "poema" até mesmo a textos em prosa muito por reconhecer que nós realmente não temos um termo que sirva para ligar Dryden às irmãs Brontë: "Não temos critérios efetivos para distinguir uma estrutura verbal, que seja literária, de outra que não o seja" (na tradução de Péricles Eugênio) ―; hoje, eu dizia, as coisas permanecem instáveis, e é plenamente possível que você leia a passagem do De rerum natura de Lucrécio sobre a chuva (o tipo de coisa a que o estagirita, se vivo, não chamaria de "poética") como poesia. E das boas.

Nada disso quer dizer, é claro, que seja impossível definir poesia. Comprovar essa impossibilidade seria tão difícil quanto de fato aparecer com uma definição debaixo do braço. A discussão mais recente no campo da filosofia analítica tem se debruçado a respeito desse tema. Morris Weitz, em meados do século passado, lançou a ideia de que não é possível definir arte pois, considerando tudo aquilo que as vanguardas fizeram por décadas a fio, então um conceito de arte seria necessariamente redutor ou, no mínimo, refutável instantes depois por algum experimentalista desocupado.

As respostas ao impasse colocado por Weitz têm sido várias. Há quem recupere por exemplo a definição que Wittgenstein dá para jogo a certa altura de suas Investigações filosóficas: se você colocar todos os jogos do mundo lado a lado, dificilmente vai achar uma essência em comum a coisas como xadrez, peteca, pique-pega e roleta russa. Mas se aplicar a abordagem que fazemos diante de uma foto de família, pode ser que dê certo: isto é, identificando um conjunto de características que pode aparecer em um membro aqui, outro ali, outro acolá... mas não em todos.

Já alguns refutam esse raciocínio de Wittgenstein recordando que ainda assim é virtualmente possível definir jogo ― assim como é possível definir uma família por exemplo a partir da análise de seu código genético e não pelas características físicas numa foto antiga. As teorias de modo geral se dividem em vários grupos: há quem defenda uma essência intrínseca ao texto artístico e há quem defenda que arte seria aquilo que um grupo de indivíduos especializados no assunto ― o chamado mundo da arte ― diz que é.

Algumas das ideias mais interessantes nesse debate vêm de Noël Carroll: uma delas constitui sua teoria narrativista da arte, segundo a qual é arte aquilo que pode ser conectado, por meio de uma narrativa, a obras reconhecidamente artísticas do passado. Outra sugestão, muito curiosa também, é a de abandonarmos a jornada essencialmente romântica de assinalar uma essência comum a manifestações tão diversas como dança, pintura, escultura, poesia ― o que realmente faz sentido, afinal de contas até, pelo menos, os cursos de estética de Hegel, não era tão unânime assim que essas manifestações todas fossem parte de um único conjunto.

Toda essa discussão surge da própria dificuldade da empreitada. O que é definir alguma coisa? Para a filosofia analítica, é apontar características necessárias e suficientes para que algo seja algo. Pense por exemplo na definição de homem. A princípio podemos definir o homem como um organismo multicelular, o que é correto afinal de contas precisamos ter mais de uma célula pra fazer essa geringonça funcionar. O problema é que não seria suficiente já que muitos outros organismos compartilham dessa mesma característica.

Ora: encontrar um conjunto de características que corresponda a esse par é uma tarefa no mínimo inglória. Não necessariamente impossível, já que o fato de que não tenhamos chegado a um bom conceito até hoje não quer dizer que nunca chegaremos algum dia. Todavia, mesmo na ausência de uma definição que realmente funcione, ainda assim o debate pode e deve continuar, afinal de contas ainda é viável elencar características típicas da obra artística que, embora não sejam suficientes para uma boa definição de arte, ainda assim podem ajudar na compreensão e apreciação de um poema, por exemplo.

É motivado por esse pensamento que gostaria de exibir aquela que é minha definição favorita de poesia: a que o poeta francês Paul Valéry escreveu nos seus célebres Cahiers: "Le poeme cette hésitation prolongée entre le son et le sens". O poema: esta hesitação prolongada entre o som e o sentido. A intuição, é certo, ecoa em Mallarmé mencionando que o verso possui uma "têmpera alternada entre o sentido e a sonoridade". Mas segue admirável, não acha? Afinal de contas não basta achar que o poema se perfaz apenas de sentido, tratando a forma como um biscoito chinês descartado logo que descoberto o bilhetinho. Em muitos casos o que é magnífico é a forma como aquilo foi dito, especialmente se considerarmos quão monótona tende a ser a lenga-lenga dos poetas. Nelson Ascher, num parágrafo brincalhão mas nem por isso menos certeiro, a caracteriza nestes termos:

O que os poetas costumam "dizer" é, em linhas gerais, o seguinte: "você é jovem e linda(o) e eu te amo" ou "você é velha(o) e feia(o) e eu não te amo"; "meu filho(a) ou pai(mãe) é uma maravilha ou uma desgraça"; "o gato (ou cachorro, cavalo, leão, tigres etc.) é misterioso e arisco (ou fiel, veloz, altivo, feroz etc.); "a vida (que pode ou não ser um sonho) é boa e breve e tenho medo de morrer" ou "a vida é ruim e longa e estou cansado dela"; "minha aldeia (ou cidade ou região ou país) é mais adorável que existe e sinto falta dela" ou "é detestável e quero ri embora e nunca mais vê-la"; "Javé ou Zeus ou Alá é bom e devemos respeitá-lo ou é cruel e nos maltrata ou simplesmente não existe"; "como nosso rei ou líder ou governante é competente, honesto, justo e bondoso" ou "incompetente, corrupto, despótico e sádico"; "não há nada melhor (ou pior) do que a guerra; "tudo muda no mundo" ou "não há nada de novo sob o sol". Poemas mais longos e/ou complexos habitualmente combinam e recombinam de modos variados esses chavões para chegar a outros tantos como: "você é linda e eu te amo, mas é arisca que nem um gato e não me ama; por causa disso minha vida parece-me ruim e longa e eu, que sou altivo como um leão, deixando a minha aldeia, que é a mais adorável, vou para à guerra, pois não há nada melhor do que ela; lembre-se, porém, que você logo será velha e feia e ninguém mais há de te amar."

Isso posto, conceber forma e sentido como instâncias apartadas parece despropositado, visto que a forma também é sentido, ela também significa, ela também está dizendo alguma coisa. Jakobson, num trecho que merece nossa atenção, diz: "Em poesia, as equações verbais são elevadas à categoria de princípio construtivo do texto." Quando ele menciona "equações verbais", ele pensa em coisas como as "categorias sintáticas e morfológicas, as raízes, os afixos, os fonemas e seus componentes (traços distintivos) ― em suma, todos os constituintes do código verbal" (cito na tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes). Um exemplo pode ser lido no poema abaixo, de Tazio Zambi, que parte do duplo de sentido de "alvo" para traçar toda a cadeia do poema:

         O alvo é breve
         como deve
         ser
         quando nada é breve

         Declarar o alvo
         alvejá-lo

         Um acréscimo
         às evidências do equívoco

O semioticista soviético Iuri Lotman, por outra senda, diz que no texto artístico "cada pormenor e o texto no seu conjunto são introduzidos em diferentes sistemas de relação tendo por resultado a recepção simultânea com mais de uma significação" (na tradução de Maria e Alberto Raposo). O sentido é o mesmo de Jakobson, com a diferença de que Lotman vai além dos fatos linguísticos e chega até a computar neste caldeirão a conduta do leitor diante do texto, por exemplo sua surpresa perante a revelação de que o assassino era o mordomo. Por isso o semioticista diz: "O extra-sistémico na vida reflecte-se na arte enquanto polissistémico." Aquilo que fugiria às malhas da obra artística, por exemplo a careta de espanto, é refletido na própria obra como um modo de ampliar aquele sistema, tornando-o múltiplo e plural.

Com isto eu pediria que voltássemos à definição de Valéry. De uns tempos pra cá, ao retomá-la, gosto de notar alguns detalhes, entre eles o cette e o prolongée. Pois note que o poema é descrito como uma hesitação. Ele parece não se dissolver nem no som e nem no sentido, muito embora existam poemas que pendam quase que totalmente para um dos lados, a exemplo de versos prosaicos em que os recursos sonoros são quase que silenciados ou de poemas que batem seu chocalho e beiram o nonsense. Todavia, com o cette, o "esta", Valéry adiciona toda uma concretude a sua definição. Ele não conseguiria o mesmo se tivesse grafado apenas une, "uma". É como se ele partisse do princípio que o leitor de antemão sente a hesitação que existe no poema. No poema de Tazio Zambi, a transformação de "alvo" no verbo "alvejar" é algo que começa na semelhança fonética entre os termos, atravessa a ambiguidade do poema e chega às raias de uma realidade social terrível. Entretanto, observe que para Valéry a hesitação é prolongée. É como se ele adicionasse, de forma implícita, um importante critério qualitativo.

Pois poderíamos dizer com facilidade que nem todo poema consegue uma hesitação tão prolongada assim. Isso de certo modo iria contra o postulado que acabei de lhes apresentar, ou seja, de que num poema tudo está comunicando alguma coisa e que, portanto, a forma e o conteúdo são indissociáveis: logo, a hesitação deve existir a todo instante. Claro que um postulado assim não é absoluto, já tendo recebido importantes contrarrespostas por parte de um crítico como Terry Eagleton. O autor americano, curiosamente partindo da noção de Lotman de que o texto poético é um sistema de sistemas, isto é, ele, se metaforizado num relógio de bolso com o tampo aberto, é o encaixe das engrenagens da forma nas do conteúdo, e vice-versa e todas num único conjunto; bem, partindo dessa ideia de Lotman, Eagleton aponta que a chamada "falácia incarnacional" (de que a forma deve sempre encarnar o conteúdo) nem sempre é verificável pelo fato de que em alguns poemas o "sistema da forma", digamos de maneira mais ampla, não corresponde ao "sistema da temática". Um bom exemplo para se percebê-lo é o do poema do romântico inglês William Blake sobre um Tigre, em que, a partir de uma estrutura formal que já foi descrita como própria da poesia infantil, o eu lírico indaga, diante do animal feroz, quem foi capaz de criar uma máquina mortífera tão assustadora como aquela. A resposta revela um claro descompasso: só pode ter sido a Natureza, muitas vezes associada pelo poeta inglês à morte.

Mesmo com tais ponderações, é comum que um poema apresente apenas um ou outro momento da hesitação a que se refere Valéry. O crítico inglês Matthew Arnold cunhou para isso o termo touchstone, pedra-de-toque, aquele tipo de passagem ou verso tão admirável num texto que parece demandar do leitor até mesmo uma sensibilidade especial. É dizer: se eu leio um poema procurando por seus versos mais belos e mais engenhosos, eu me posicionarei diante daquele texto de uma maneira essencialmente distinta de se buscar lê-lo na íntegra. Claro que ambas as posturas podem ser feitas e é recomendável que o sejam, mas não deixa de ser uma maneira peculiar de ler poemas e que, traduzindo para a sugestão que enxergo em Valéry, corresponderia ao sair à cata dos momentos em que as hesitações se revelam com maior pujança. É certo que Aristófanes já ridicularizou as pedras-de-toque do crítico inglês milênios antes em As rãs, mas de todo modo é importante lembrar que a diferença entre as posturas expostas é que enquanto um poema longo, ruim e fastidioso pode ostentar eventualmente um momentozinho desses espremido, o critério estabelecido por Valéry ilumina a necessidade de que este momento seja prolongée.

Se me for permitido uma última problematização, eu diria que apesar da ideia ser deslumbrante, ela não é perfeita. Edgar Allan Poe, em dois ensaios importantes, defende a ideia de que um poema longo é uma contradição de termos, visto que na prática você teria poemas menores colados, momentos de carga poética elevada que seriam amarrados entre si. T. S. Eliot especifica ainda mais ao dizer que essas amarras deveriam ser momentos prosaicos, como se, portanto, o poema longo, pelo menos na modernidade, devesse possuir focos de elevada carga poética necessariamente seguidos de espraiamentos prosaicos. É curioso que esse tipo de raciocínio tenha sido feito, ainda mais se considerarmos que a poesia de séculos atrás permitia (e os leitores toleravam e demandavam, claro) a seus artistas a criação de coisas como poemas de recorte épico sobre a vida de santos (as chamadas vitae metricae, gênero específico das hagiografias que floresceu durante o período Carolíngio). Característica da época, por certo, quando as mudanças na velocidade da rotina mudou também nossa paciência para poemas mastodônticos, levando, ainda, os grandes nomes do modernismo (com atenção aos de língua inglesa) a soluções engenhosas que contornassem tal problema. De todo modo, é apenas um rápido apontamento de como o prolongée de Valéry possui seus limites.

Com toda essa digressão eu não sei se consegui esclarecer algo. Não se trata de defender a impossibilidade de se definir de forma explícita e bem-sucedida poesia. A existência de poemas conceituais problematiza nossa concepção do que o poema é, mas daí não se segue que a certeza que temos ao definir o As primaveras como poesia seja por conseguinte abalada. Existem zonas socialmente consolidadas do que seria poesia, e partir delas me parece uma forma promissora de lidar com o problema. De todo modo, caso o leitor queira continuar com sua busca por uma definição de poesia, eu recomendaria que colasse em alguma parede do quarto o primeiro parágrafo de O arco e a lira de Octávio Paz, que, da forma mais memorável possível e sem incorrer em paradoxos (não só por cada uma das assertivas ser plenamente defensável como, dentro do conceito de Paz da poesia como emancipação da linguagem, por todas as assertivas coexistirem sem que uma anule a outra), diz (na tradução de Olga Savary):

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une; Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, orienta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda a obra humana!

Se com a poesia é assim, com a noção de verso as coisas continuam igualmente obscuras. Ósip Brik, crítico literário russo a que voltarei mais tarde, diz: "A atitude correta seria considerar o verso como um complexo necessariamente linguístico, mas que repousa sobre as leis particulares que não coincidem com as da língua falada" (difícil precisar de quem é a tradução, pois que vem de uma força-tarefa coordenada pelo saudoso Bóris Schnaiderman). Isso mostra que ao considerarmos o verso não podemos nos restringir apenas às leis gramaticais ou linguísticas.

O leitor certamente já deve ter ouvido uma conversa sobre o assunto a partir da célebre "licença poética". Durante um tempo eu, naquela inocência que só vendo, acreditei que a licença poética era um certificado que os poetas profissionais (isso mesmo, profissionais) recebiam e que podiam ostentar sempre que alguém viesse lhes corrigir. É uma expressão que, na sua genealogia íntima, busca servir de desculpa para o fato de que os poetas seriam de algum modo influências nocivas à República ideal. Desvairados quase que por natureza e propensos a raptos sentimentais e espirituais, os poetas se permitem arroubos que podem ser prejudiciais ao funcionamento saudável das congregações humanas civilizadas, por exemplo quando ameaçam a manutenção das leis da verossimilhança ou dos princípios morais.

O critério da correção gramatical, do português correto ou mesmo da correção estilística são critérios de longa data que alicerçaram boa parte das gramáticas já escritas (por exemplo a pioneira de Dionísio da Trácia), que descreviam o funcionamento da língua com base na autoridade e exemplo dos clássicos. No entanto, o leitor deve entender que a gramática como hoje a concebemos, ou seja, uma sistematização da língua que prescreva as regras que deverão presidir a escrita científica, jornalística, legislativa, judiciária etc; o leitor deve entender que uma gramática assim, de amplitude universal, o que pressupõe uma sistematização prévia a partir das estruturas da própria língua portuguesa, uma gramática assim nem sempre esteve à disposição dos escritores antigos, que ou já recorriam direto aos clássicos e, com base no mecanismo da imitação, nutriam o que tinham de nutrir, ou então lançavam mão de gramáticas de forte procedência latina. Grosso modo, podemos dizer que a sistematização da norma culta portuguesa e um abandono do latim como fundamento e modelo de descrição gramatical só foi realizado em meados do século XVIII.

Hoje as coisas mudaram muito. As gramáticas normativas já não dependem tanto da autoridade dos clássicos. O critério da imitação, alicerce do antigo modelo gramatical, se encontra carcomido o suficiente para que mal e mal sustente o casebre todo, e, de resto, a padronização da norma se encontra muito mais feliz e realizada quando opera a partir dos dados extraídos da ciência linguística do que da prática de escritores que já há um bom tempo não recorrem com tanto afinco à gramática normativa, e, quando recorrem, recorrem sem todo aquele afã emulativo de outrora. Depois da modernidade poética ou depois, digamos assim, de um marco como o Pronominais do Oswald de Andrade, já estamos carecas de saber que a literatura está livre para encontrar outras fontes verbais que não os tomos encapados a couro das obras completas de barrocos e árcades. Além do mais, a retórica da licença poética já se adentrou na corrente sanguínea das pessoas (que muitas vezes confundem escrever poesia com tirar o sono do seu professor de português), e mesmo quando erguemos o dedo e alegamos um erro qualquer na página impressa, é sempre muito pertinente lembrar que na maioria das vezes se trata de uma questão que não pode ser relegada a gramáticos incautos, cientistas insensíveis ou qualquer outro indivíduo que de um modo geral não consiga entender a função que o desvio (pra usar uma designação certo modo genérica) possui no seio artístico. Para voltarmos a Lotman, as "irregularidades" na arte possuem um sentido estrutural. É o mesmo que foi dito por Brik quando retirava do domínio exclusivo da gramática (mais amplamente, da linguística) a existência do verso.

Ocorre que o verso guarda em seu cálcio etimológico o vocábulo latino uersus, que grosso modo significa retorno. Massaud Moisés resume: "Ao pé da letra, [verso] designa o movimento de retorno, para a segunda linha métrica, depois que a primeira se completou." Marcus Fabiano Gonçalves, poeta gaúcho contemporâneo, escreveu certa feita um poema lapidar sobre o assunto ― O verso (Andar):

        contra o fluir da frase
        o verso é a volta

        à outra ponta onde
        a ideia se forma

        não (só) da história
        que se conta
     
        como da estrofe
        que se canta

        o verso é contra
        e contudo anda.

Graças a esse retorno a carga poética progressivamente aglomera suas faíscas à medida que vencemos as estrofes, mas de modo que exista uma condução, algum princípio que nos permita, como que no íntimo, sentir que alguma coisa está se repetindo, que algum ciclo está se renovando e que algo, embora permeado de uma descontinuidade e de um recorte, permanece. É muito mais simples perceber considerável parcela do que seria este "algo" se nos atentarmos ao verso metrificado, a partir do qual, graças a uma cadência de maior ou menor rigidez, somos capazes de criar uma intensa expectativa. Todavia, creio que podemos enxergar tal permanência mesmo nos poemas em versos livres, primeiro pois é comum que o verso livre possua lá o seu recorte rítmico e segundo pois o verso livre também compartilha da dinâmica entre a ruptura do final da linha e o retorno na próxima.

Reconheço que às vezes a força do retorno implícito no termo "verso" é tão fraca que só com muita boa vontade poderíamos continuar a falar de algo do tipo. Posso ir até além e dizer que é o tipo de proposta que você só constata se de antemão aceita ou simpatiza. Seja como for, se ao menos um esforço puder ser feito neste sentido, eu gostaria de comparar dois poemas de Manuel Bandeira com o título "Belo Belo". Comecemos pelo segundo:

        Belo belo minha bela
        Tenho tudo que não quero
        Não tenho nada que quero
        Não quero óculos nem tosse
        Nem obrigação de voto
        Quero quero
        Quero a solidão dos píncaros
        A água da fonte escondida
        A rosa que floresceu
        Sobre a escarpa inacessível
        A luz da primeira estrela
        Piscando no lusco-fusco
        Quero quero
        Quero dar a volta ao mundo
        Só num navio de vela
        Quero rever Pernambuco
        Quero ver Bagdá e Cusco
        Quero quero
        Quero o moreno de Estela
        Quero a brancura de Elisa
        Quero a saliva de Bela
        Quero as sardas de Adalgisa
        Quero quero tanta coisa
        Belo belo
        Mas basta de lero-lero
        Vida noves fora zero.

Está escrito num tipo de verso que chamamos de redondilha maior, de largo uso na poesia popular. O funcionamento do ritmo aqui é muito explícito: você lê o poema e parece que consegue prever como será o ritmo dos versos seguintes, em grande medida pois o poema conta também com outros recursos como rimas e anáforas, criando, no conjunto, uma espécie de tom obsessivo. Ou seja, é como se o poema nos ensinasse a lê-lo e a dar-lhe a ênfase adequada, aspecto especialmente assombroso quando tomamos conta que está todo sem pontuação nenhuma. Compare com o primeiro da sequência:

        Belo belo belo,
        Tenho tudo quanto quero.

        Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
        E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

        A aurora apaga-se,
        E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

        O dia vem, e dia adentro
        Continuo a possuir o segredo grande da noite.

        Belo belo belo,
        Tenho tudo quanto quero.

        Não quero o êxtase nem os tormentos.
        Não quero o que a terra só dá com trabalho.

        As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
        Os anjos não compreendem os homens.
       
        Não quero amar,
        Não quero ser amado.
        Não quero combater,
        Não quero ser soldado.

        - Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

Está em versos livres, mas isso não quer dizer que ficamos desnorteados com a leitura de algo assim. Embora os versos não contenham nem a medida métrica fixa do anterior e nem as rimas amarrando sua estrutura, ele conta com um ritmo próprio, ele faz com que leiamos suas estrofes isoladas de uma maneira especial, quase como se fossem constatações vagando à solta na cabeça do poeta. No caso de:

        A aurora apaga-se,
        E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O corte do verso, que coincide com a pausa da vírgula, dá uma força muito especial à conjunção "E", que, aqui, não tem apenas valor aditivo. Essa liçãozinha está presente quando passamos para a estrofe seguinte:

        O dia vem, e dia adentro
        Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Mais uma vez, a conjunção "e" não tem valor apenas aditivo; no entanto, note o leitor que ela já não aparece de maneira enfática no início do verso. Por que motivo então afirmamos que seu valor vai muito além da coordenação de ideias? De todas as respostas possíveis, parte é porque guardamos a experiência do verso anterior e parte porque sabemos que no universo deste poema, se trata de um movimento possível. Pois é justamente tal tipo de experiência acumulada, ligada ao ritmo do texto, à sua sonoridade, às ênfases e pausas que ele distribui, que faz com que o poema não seja tão caótico e imprevisível quanto a definição de verso livre num primeiro momento dá a entender. Na verdade eu diria que é justamente o contrário. Veja que as duas estrofes pinceladas trazem ideias complementares: numa, a aurora se apaga e o poeta guarda as lágrimas da aurora; na outra, o dia surge e o poeta segue guardando o segredo da noite. A coincidência de ideias é notável, seja pela imagem do dia nascente, seja pelos segredos guardados da aurora e da noite. Ora: a coincidência de ideias não seria a mesma se não houvesse um ritmo e um recorte específico dos versos contribuindo com o contraste de ideias. E é por isso que quando chegamos na penúltima estrofe, uma estrofe que funcionaria muito bem por exemplo no poema anterior, nós a estranhamos e a seu ritmo uniforme, sua rima, sua anáfora e, principalmente, sua discrepância em relação ao padrão a que estávamos até então acostumados.

Isso tudo quanto ao verso. O ritmo é um aspecto crucial para que o retorno no bojo da noção de verso seja realçado; não obstante, é dever de um manualzinho como este lembrar ao leitor que do conceito de ritmo floresce o de métrica, e se realçamos a importância do ritmo para um poema, realçar o papel da métrica parece no mínimo automático, desde que, com isto, não se esqueça do que o velho Aristóteles já nos dizia: métrica e ritmo em absoluto não se confundem. Quando falamos na métrica, falamos em esquemas de criação de verso que estabelecem uma correta sucessão das ênfases sonoras de modo a criar um efeito rítmico ou mesmo um ritmo qualquer. É comum que a métrica seja reduzida a matemática abstraída, muito ao contrário do que ocorre com o ritmo, que parece ser uma noção essencialmente pulsátil. Ora: mesmo um poema em versos livres, ou seja, um poema que a princípio despreza a métrica, poderia possuir vértebras que sem muita dificuldade batizaríamos de métricas.

Creio, todavia, que é preciso pontuar algumas distinções. Mencionei por métrica a ideia de esquemas de verso. Seria mais correto, todavia, pensarmos na métrica como o conjunto de ferramentas que permitem o estudo do ritmo. É como, sendo assim, se ela fosse uma espécie de notação científica usada para que consigamos descrever o funcionamento rítmico de certas passagens. A ideia de estipularmos cânones de esquemas prescritíveis à prática poética visando suscitar alguma eficácia rítmica é algo a ser lido à luz das convenções que tipificam os estilos artísticos. Porque se estabeleço uma distinção entre o que a métrica é, ou seja, ferramenta, e aquilo que as leis versificatórias de um período são, ou seja, arranjo e prescrição de cadências possíveis e desejáveis; então eu por conseguinte tiro o fardo que a simples menção à métrica incute no auditório, abrindo, na mesma oportunidade, passagem para o fato de que a métrica pode ser usada com o intuito de analisar o ritmo que eventualmente presida outras formas de produção textual e até mesmo a fala. Neste sentido o estudo da métrica ampliaria sobremaneira seus ares e sairia das várzeas da poesia, aportando no ritmo que preside os parágrafos de algum prosador ou o latejo por trás da fala das ruas. Avizinhar-se-ia, em suma, da chamada prosódia, ramo da linguística fundamentalíssimo para qualquer pessoa que queira estudar a métrica a fundo.

A fundo. Não é meu propósito apresentar ainda que rudimentos de prosódia. Sua ciência é obviamente muito mais ampla que o estudo da produção em verso de alguns artistas, mas, como dito, é ferramenta de grande valia para o estudo da versificação. Com isto não se quer dizer que os poetas, na hora de escandir seus poemas, ou seja, de contar as sílabas poéticas, sigam a maneira com que as palavras são ditas pelos homens de seu tempo, ou mesmo a pronúncia das classes sociais abastadas. A versificação se caracteriza por convenções que fazem com que não raro a maneira de conceber o recorte métrico do verso seja uma maneira não só distinta das leis gramaticais, como também da maneira com que de fato um determinado texto é lido por um organismo humanoide com apenas um aparelho fônico.

De todo modo, tenhamos apenas bem clara a distinção de que a métrica não se confunde com o ritmo, sendo, antes e como dito, uma ferramenta de estudo do ritmo. Querermos algo além disto ignoraria o fenômeno da própria enunciação do poema, onde o projeto cadencial que ela idealmente traça é sempre mudado quando lido a plenos pulmões. Noutras palavras, a ossatura ideal do poema projetada por seu autor é quase sempre alterada quando declamada numa ocasião qualquer, quando aquelas palavras que apenas em teoria deveriam receber forte ênfase são preteridas por outras até então secundárias.

Pensando nisto Alfredo Bosi faz por bem acompanhar suas estupendas reflexões sobre o ritmo de outras a respeito do andamento e da entonação. Do primeiro, grifa: "O ritmo da linguagem funda-se, em última análise, na alternância." No caso, a alternância de que "depois de uma série de sílabas não acentuadas sobrevirá sempre uma sílaba forte." Mas continuando: "Mas os grupos de sílabas que alternam, ou seja, o momento forte e o momento fraco, não são necessariamente isócronos." O que faz com que este processo deixe de ser isócrono é, precisamente, o andamento e a entonação. Andamento é "tempo qualificado", é "efeito móvel de compreensão": toda leitura que a realce "recolhe em feixes expressivos as células rítmicas tão diversas e, por si mesmas, tendentes à dispersão ou, em outro extremo, à rigidez da escansão." E que fique bem claro: é impossível que uma leitura não o faça, uma vez que o veículo pelo qual todo discurso se move é o veículo de "um ser vivo, falante e situado." Veja-se:

no discurso ritmado, a imagem, prestes a ser superada pelo conceito, renasce corporeamente nas inflexões da corrente vocal. Se, na prosa abstrata, se passa resolutamente da imagem à ideia como quem vai do sensível ao conceitual (eidos-idea), na leitura poética o andamento impede que as propriedades sensíveis se cancelem.

O ritmo, portanto, que para Alfredo Bosi é "movimento que muda as coisas para, depois, reproduzi-las", reproduzindo, por conseguinte, "para de novo mudá-las", o ritmo "Não se limita a acompanhar simplesmente o significado do corpo: arrasta-o para os esquemas do corpo." É, noutras palavras, o impacto da estrutura sonora tão bem acabada do poema em nossos órgãos internos. A neurolinguística já provou que quando lemos ativamos áreas do cérebro relativas não apenas à decodificação da mancha gráfica em chácaras e cotovias; antes, quando se lê uma palavra como "cinamomo", partes relativas ao olfato são ativadas. Com isto bem se nota que a leitura é imersão profunda, tornando certas a palavra do crítico. Mas não acaba por aí. Ao lado do andamento existe a entonação, que é quando nos lançamos afetivamente no texto que lemos ou enunciamos. "A melodia [ou entonação], como o andamento, move-se por força da intencionalidade, do querer-dizer, ao passo que o ritmo está, em boa parte, determinado pela natureza prosódica de cada vocábulo." Um pouco depois:

Na prática viva da linguagem, a curva melódica varia conforme a interpretação que cada falante dá ao enunciado, ao passo que o acento de qualquer palavra (e, ainda mais, o timbre de qualquer fonema) remete a um sistema dado e transmitido socialmente: a língua.

E assim o crítico explicita as razões da frase lapidar que líamos páginas antes em sua obra: "o poema belo é sempre, de algum modo, representativo do seu objeto, e é sempre, de algum modo, expressivo do seu sujeito." Ora: óbvio está que com as ferramentas da métrica e os cânones prescritos pela versificação não se alcança toda a complexidade que o tema consegue oferecer. Por isso Ósip Brik usa para diferenciar o ritmo da métrica a metáfora do movimento e do resultado do movimento: "Se uma pessoa salta sobre um terreno lamacento de um pântano e nele deixa suas pegadas, a sucessão dessas busca em vão ser regular, não é um ritmo. Os saltos têm frequentemente um ritmo, mas os traços que eles deixam no solo não são mais que dados que servem para julgá-los. Falando cientificamente, não podemos dizer que a disposição das pegadas constitui um ritmo." Um pouco adiante: "O movimento rítmico é anterior ao verso. Não podemos compreender o ritmo a partir da linha do verso; ao contrário, compreender-se-á o verso a partir do movimento rítmico."





REGRINHAS

Adentrando agora de maneira mais prática na contagem de sílabas poéticas, que também é comumente chamada de escansão poética, cabe ressaltar que quando dividimos as sílabas seguindo as regras gramaticais, chegamos com frequência a um resultado diferente do que ocorre no caso da divisão das sílabas poéticas. E o motivo é que estas últimas buscam seguir os mesmos fundamentos que presidem a enunciação das palavras, onde é comum que por exemplo mesclemos vogais em apenas um ditongo ou mesmo que venhamos a separá-las a depender do que for mais cômodo. Tomemos como exemplo um verso belíssimo de um poeta romântico obscuro de nome José Maria do Amaral:

        E a saudade do tempo é poesia

Se fôssemos dividir de acordo com a gramática, teríamos:

        E / a / sau/da/de / do / tem/po / é / po/e/si/a

Agora se viermos a contar as sílabas poéticas, teremos:

        E a / sau/da/de / do / tem/po é / po/e/si/(a)

Note: "E a", "po é-". Por que razão aparecem juntas na contagem de sílabas poéticas? É simples: pois quando pronunciamos dificilmente as separamos. Nós, pelo contrário, enunciamos tudo num só ímpeto. Ninguém pronuncia "E" e só depois, de forma pausada, "a". Dizemos tudo junto, como se se tornassem uma única sílaba: "Ea".

A este efeito é comum que se dê o nome de elisão. É assim que você encontrará na maior parte dos livros e ensaios sobre o assunto, e muito provavelmente na maior parte das discussões a respeito. Todavia, convém lembrar que existem termos mais específicos para estes encontros vocálicos existentes no interior de um verso e que, pelo fato de que os pronunciamos juntos, fazem com que contemos apenas uma sílaba poética.

Três, na verdade, são os termos para as possibilidades existentes de encontros vocálicos entre palavras dentro do verso: sinalefa, elisão e crase. A sinalefa ocorre quando, desse encontro, uma das sílabas, geralmente a primeira, continua audível, embora de maneira fraca. No caso de "E a" no verso citado, no encontro vocálico é como se o "E" se transformasse num "i" mas de modo que ainda o ouçamos, assim transformado, ao ler de um só ímpeto: "E a"→"Ea"→"Ia". A isto se dá o nome de sinalefa. Caso ligeiramente distinto é o que ocorre com a elisão, entendida aqui de maneira específica e não mais de forma genérica. Nesta acepção, ela designa aquele encontro vocálico em que uma das sílabas como que desaparece na hora da pronúncia. Assim, no caso de "tempo é", não é incomum que se imagine o leitor lendo como apenas "tempé", fazendo com que o "o" de "tempo" desapareça. Se isto ocorrer, ou seja, se uma das sílabas desparecer, se ela for elidida na hora da pronúncia, então você estará diante de uma elisão. Agora se acontecer de você encontrar duas vogais idênticas no meio do encontro, então tudo o que você precisa fazer na hora da pronúncia é estender a pronúncia de uma só delas, englobando por conseguinte a outra. O exemplo mais comum desse tipo de encontro é aquele que ocorre numa expressão como "Minha alma", no qual as duas vogais que fecham e abrem as palavras se encontram de tal jeito que o leitor apenas diz: "Minhalma". E a tal ponto isto ocorre que os poetas frequentemente grafam: "Minh'alma". O nome desse efeito é crase.

Simples, não acha? Como dito, hoje em dia se aplica o termo "elisão" de forma indiscriminada, mais ou menos como antigamente se designava "sinalefa" também.

Essa regrinha encontra um detalhe curioso que é a questão de saber até que ponto esse encontro vocálico conta como uma só sílaba poética ou não. Afinal de contas posso ter quatro, cinco vogais lado a lado num trecho determinado ("eu a amo"). O que fazer? Bem. Aqui entra a questão das sílabas tônicas. Ora: em "E a" o encontro não comporta nenhuma sílaba tônica, de modo que o fenômeno da elisão ocorre de maneira natural. O problema é que em "tempo é" eu já tenho a tônica de "é" fazendo parte do encontro vocálico. Só que como o final de "tempo" é átono, então eu consigo fazer a crase sem trauma algum. A coisa começa a mudar quando os poetas fazem tais junções de maneira mais intensa, aplicando o que podemos chamar genericamente de uma única elisão gorda e rechonchuda, ou então uma mistura de crases, sinalefas e elisões. Um exemplo tirado de Olavo Bilac:

        Tudo vozeia e estala em estos de pletora

Escandindo:

        Tu/do / vo/zeia / e es/ta/la em / es/tos / de / ple/to/(ra)

A par da sonoridade encantatória da passagem, sugerindo os estalos que ouvimos na mata, o segundo encontro vocálico é uma elisão simples com átona e átona. Agora o primeiro (-zeia) envolve uma sinérese (logo descrevo do que se trata) seguida de uma crase (e+e). O resultado é muito forte e parece deixar o verso carregado. Em situações assim, muitos são os procedimentos que podem deixar o verso menor carregado, por exemplo sua sonoridade, o ritmo geral do poema, a poética do autor, do período ou, ainda, o uso da crase em alguns encontros vocálicos como que encurtando o espaço da enunciação. No exemplo citado, o fato de que contemos com uma crase dentro da sílaba poética a torna, por conseguinte, mais fácil de ser pronunciada, já que se assemelha à contração "ae". Seria muito mais difícil se o verso grafasse "vozeia e urra", não apenas porque o "ur-" de "urra" é tônico como, ainda, pelo fato de que teríamos na prática fenômenos fonéticos carregados como uma sinérese seguida de uma sinalefa (e+u).

Se com o verso de Bilac o efeito é de agilidade, noutros casos o uso consecutivo de encontros vocálicos pode dar a impressão de que o verso alongou-se. É o caso do seguinte verso de Francisca Júlia:

         Pompeia, ao largo, à alvura uma barca veleira

Escandindo:

         Pom/pei/a, ao / lar/go, à al/vu/ra u/ma / bar/ca / ve/lei/(ra)

Pois bem. Esse tipo de efeito, que de forma genérica chamamos de elisão, pode ocorrer dentro de uma única palavra. Aqui é quando um hiato se transforma num ditongo ou um ditongo num hiato. Pense, neste sentido, na própria palavra "hiato". Segundo a gramática nós separamos suas sílabas assim: "hi-a-to". Percebe que a vogal "i" e a vogal "a", de dentro da palavra "hiato", foram separadas? Pois então. Isso é, precisamente, um hiato. Agora imagine que eu contasse ambas como uma só. Não é assim que nós fazemos quando pronunciamos "hiato"? É como se déssemos um golpe marcial e bradássemos: "hiá"! Pois bem. Em "saudade" eu não pronuncio o "sau-" de forma separada por se tratar de um ditongo. O problema é que no caso da poesia eu posso transformar um ditongo num hiato e um hiato num ditongo. São fenômenos comuns. Se eu transformo um hiato num ditongo, então eu faço uma sinérese: seria o transformar as três sílabas de "hiato" em só duas ("hia-to"). Agora se eu percorro o caminho reverso e transformo um ditongo num hiato, por exemplo ao contar as três sílabas de "saudade" em quatro ("sa-u-da-de"), eu faço uma diérese.

Não é tão complicado assim, você não concorda? São poucas regras. Existem outras relativas à maneira com que os poetas suprimem algumas letras ou adicionam outras dentro de uma palavra. Se eu retiro uma sílaba do início, tenho uma aférese. Se no meio, uma síncope. Se no final, apócope. Um exemplo comum de aférese é aquela que transforma "coroa" em "c'roa". Uma de síncope é a que transforma "esperança" em "esp'rança". E uma famosa de apócope é a que transforma "mármore" em "mármor". Pode acontecer de você ter mais de uma, embora seja raro, à guisa de transformar "espírito" em "sprito".

A última que deve ser aprendida pelo leitor é aquela de que você só conta as sílabas até a última sílaba tônica. Nos versos, portanto, de José Maria do Amaral e Olavo Bilac, a contagem deverá parar no "-si-" de "poesia" e no "-to-" de "pletora".





MAS FOI SEMPRE ASSIM?

Antes de prosseguirmos um pouquinho mais, convém nos atentarmos à última regra. O leitor mais curioso vai se perguntar se foi sempre assim que funcionou em nossa língua, ou seja, se nós sempre contamos as sílabas até a última tônica. A resposta, surpreendente para alguns, é que não. Durante a poesia trovadoresca, segundo informam Carolina de Michaëlis e Segismundo Spina, o padrão de contagem era o mesmo de hoje, ou seja, o padrão agudo, francês ou masculino de contar até a última sílaba tônica e desprezar as que vierem depois.

Para tanto, é importantíssimo levar em conta a chamada lei de Mussafia. Ela ela designa a calibragem necessária que o poeta, muitas vezes por necessidade melódica ou rítmica, tinha que fazer pra que a composição funcionasse. Ocorre quando nos deparamos com uma estrofe de versos terminados em oxítona e outros em paroxítona, mas de tal modo que os versos oxítonos coloquem a medida do poema pra fora dos eixos haja vista possuírem uma sílaba poética a mais que o necessário. A lei de Mussafia é um modo de corrigi-lo, fazendo com que o cômputo de sílabas da estrofe se uniformize graças ao procedimento de atonizar o verso oxítono. Veja-se a seguinte estrofe de D. Dinis:

        Que trist' oj' é meu amigo,
        amiga, no seu coraçom!
        ca nom póde falar migo
        nem veer-me. Faz gram razom
             meu amigo de trist' andar,
             pois m' el nom vir, e lh' eu nembrar.

Como se nota, temos uma combinação de versos de sete sílabas terminados em paroxítona e versos de oito terminados em oxítona. A lei de Mussafia é a tendência da sílaba final oxítona atonizar-se, fazendo com que desloquemos o acento de uma palavra como "coraçom" de "-çom" para "-ra-", haja vista que o acento em "-çom", antes tônico, atonizou-se, enfraqueceu-se. Aplicando-a, ganhamos a chance de regularizar a contagem das sílabas poéticas, afinal de contas os versos manteriam as sete sílabas. Ora: a lei de Mussafia só pode ser aplicada num sistema acentual agudo, francês ou masculino. Não fosse assim, então qual a necessidade de aplicarmo-la se, contando todas as sílabas do verso oxítono, chegamos ao número ansiado? Ou seja: se conto, no verso "Que trist' oj' é meu amigo", todas as sílabas, incluindo as que vêm depois da última tônica, eu chego a oito, as mesmas oito de "amiga, no seu coraçom!". Logo, a lei de Mussafia não precisaria ser aplicada!

Pois bem. Como dizia, se num início era assim, já na renascença portuguesa encontramos um padrão distinto, qual seja, um padrão grave, ibérico ou feminino. Filipe Nunes em sua Arte Poética (1615), das pioneiras no gênero em nossa língua, define o verso de maneira admirável como "uma oração travada e presa com certa limitação[,] sujeita a certo número de sílabas com sonora quantidade." Claro que numa definição assim o leitor se espanta com a recorrência de ideias constritoras, por exemplo isso do "travada e presa", do "limitação", do "sujeita" e da repetição de "certo". Antes mesmo de se interpretar que o objetivo da Arte poética do autor era um objetivo de castração, o que por certo ignoraria a mecânica da poesia naquele período, compensa observar que tudo deságua na "sonora quantidade" do final da frase e que poesia, para o autor, seguindo o argumento de Platão, era "um hábito do entendimento que rege ao Poeta, e lhe dá regras para compor versos com facilidade". O conceito do "entendimento" avulta, nada muito espantoso se considerarmos o contexto renascentista português, e avulta ainda mais porque é transformada em "hábito", o que pressupõe um treino exaustivo por parte do poeta, bem como porque "rege" o Poeta. Para nossos parâmetros pós-românticos, é muito estranho que esse hábito do entendimento (do entendimento!, vejam só) reja o poeta, quando deveria ser, pelo contrário, o poeta regendo ou quando muito o sentimento tomando a dianteira. Mas note que toda essa disciplina deságua na facilidade, a que Filipe Nunes, logo após, especificará: "[Poesia] Ou é arte que ensina a falar com limitação, ordem, e ornato."

Pois bem. O fato é que Filipe Nunes assim caracteriza a contagem de sílabas poéticas à sua época:

Todo verso há de ter comumente a penúltima sílaba longa, que é a vogal que está antes da última: tirando quando o verso acaba em dicções agudas ou longas, que tem na última o acento. Exemplo: perder, animal, amarás. O verso que acabar em aguda, terá uma sílaba menos do que costuma a ter, e a razão é porque na pronunciação de tal sílaba aguda se tarda, e gasta tanto tempo, como em pronunciar as duas que não foram, e assim aquela última aguda vale por si e pela penúltima.

Traduzindo, o que Filipe Nunes chama de palavra aguda é o que chamamos de oxítona e os franceses de masculina, ao passo que o que ele chama de grave é o que chamamos de paroxítona e os franceses de feminina. Manuel Bandeira, que escreveu um estupendo verbete de enciclopédia sobre o tema versificação, resume assim a contagem de sílabas poéticas para os clássicos:

Antes dele [do sistema contemporâneo], contava-se todas as sílabas do verso grave, não se contava a última do verso esdrúxulo, e considerava-se incompleto o verso agudo, pelo que contava como duas a última sílaba métrica.

Tomemos como base aqueles dois versos da estrofe em que Camões descreve o Gigante Adamastor:

        Não acabava, quando uma figura
        Se nos mostra no ar, robusta e válida,
        De disforme e grandíssima estatura,
        O rosto carregado, a barba esquálida,
        Os olhos encovados, e a postura
        Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
        Cheios de terra e crespos os cabelos,
        A boca negra, os dentes amarelos.

Hoje nós lemos estes versos como decassílabos e só, mas, considerando a antiga contagem de sílabas poéticas, eles devem ser tidos como versos hendecassílabos, ou seja, versos de onze sílabas. É assim que ainda hoje os espanhóis e os italianos contam. E é um aspecto importante, pois se considerarmos que o número três possui papel estrutural na Divina Comédia, por exemplo, saber que a contagem total de sílabas poéticas nas terzinas de Dante é 33 e não 30 é um aspecto importantíssimo. No caso dos versos camonianos, no primeiro nós contamos até a última sílaba e não até a última sílaba tônica. Por isso que, de fato, nós contamos como hendecassílabo. No segundo nós também contamos como possuindo onze, isso porque, como disse Bandeira, uma das sílabas era desconsiderada. Claro que os versos esdrúxulos, assim como em grau menor os agudos, eram versos só com muita reserva recomendados ao poetas, e um dos motivos é que não fechavam o esqueleto métrico de maneira ideal. Existiam outros fatores também, como os de relegar os versos de final agudo ou esdrúxulo a produções no geral satíricas, sem exclusão de raras passagens como esta, de Camões, em que os versos graves alternados aos esdrúxulos conseguem um memorável efeito poético. De todo modo, apesar de nos primórdios de nossa poesia, com os trovadores, os versos de final agudo terem tido um largo reinado, o fato é que já os clássicos, os barrocos e os neoclássicos os prescreviam com reservas.

Uma explicação para que se exclua uma sílaba durante a contagem das palavras esdrúxulas é dada por Pedro José da Fonseca em seu Tratado de versificação de 1817 ― obra curiosa em que, a título de ilustração, o autor adota como critério da qualidade da rima o número de consoantes envolvidas: "as melhores rimas são as que se fazem nas palavras compostas de vogais mais sonoras, e que da sílaba com acento por diante estão cheias de letras consoantes", de modo que "forte―morte" ("-rt-", duas consoantes) é melhor que "segredo―ledo" ("-d-", apenas uma). Lá o autor diz que como a última palavra "se termina tão precipitadamente", então ela "quase em certo modo escorrega da língua", no que pede que imaginemos um verso de onze sílabas que termine em palavra esdrúxula. Eu lhe ajudo: "Onze sílabas, final esdrúxulo". Seria o caso de dizermos que é um hendecassílabo? Para o autor, não: "será da espécie dos decassílabos, por ser formalmente um decassílabo inteiro com acrescentamento no fim de uma sílaba breve." Trocando em miúdos, na palavra "esdrúxulo" do exemplo citado é como se não contássemos a última sílaba depois da tônica: ou seja, pronunciamos tão baixinho o "-lo" que ele sequer é considerado na contagem. Exatamente como dito por Bandeira.

O primeiro a questionar a regra foi Miguel Couto Guerreiro em seu Tratado da versificação portuguesa, de 1784, em que, falando a respeito do número de sílabas que deve ter o verso, e até onde devemos contar:

        Contudo até o acento dominante
        (Que basta para o verso ser constante)
        Dez sílabas o heroico inteiro tem;
        A sexta muito aguda lhe convém

O poeminha é um pouco mais longo mas isso basta. Acento dominante é o mesmo que último acento tônico do verso. Logo, o que ele está dizendo é exatamente o que lhes disse há pouco: você só vai contar até a última sílaba tônica. O tratadista desenvolve, agora em prosa, a ideia:

Atendo à brevidade, que afeto, por evitar a frequente repetição de agudo, grave e esdrúxulo, ponho por novo método, como baliza ou termo da medição do verso português, a sílaba sobre que cai seu acento predominante inclusivamente; porque estando ele certo até essa sílaba, infalivelmente estará certo daí por diante, ou cresça uma ou cresçam duas, que de nenhum modo podem crescer mais; porque o acento predominante nunca pode estar em sílaba que anteceda a antepenúltima.

(Um rápido parêntesis é o de indicar que na verdade é possível sim que o último acento caia antes da antepenúltima. São aquelas palavras que Cavalcanti Proença chamou de ultra-esdrúxulas, a exemplo de "perdoáram-no-lo". Veja-se: "Os agiotas até então cobravam de Caio o débito devido, mas, diante dos fatos, perdoáram-no-lo", com "-no-", objeto direto, remetendo ao débito devido e "-lo", objeto indireto, a Caio.)

Não foi o Tratado de Couto Guerreiro que realmente mudou a ordem das coisas, e sim aquele escrito pelo romântico português Feliciano de Castilho em 1851. Nele se estipulou de forma definitiva o padrão francês em nossa língua. Embora desde então ele seja majoritariamente aceito, cabe frisar que Manuel de Said Ali, grande filólogo, em sua Versificação portuguesa, de 1948, manifestou seu descontentamento com o padrão francês, contrário, argumenta, à índole de nossa língua: "não compreendemos a ficção do eclipsamento da átona terminal justamente nos versos mais numerosos e considerados capitais, nem a necessidade de acomodar a metrificação a um sistema forçado". Manuel Bandeira afirmou seu apreço pela contagem de Castilho (e isso curiosamente no prefácio ao livro de Said Ali), informando que embora as sílabas pós-tônicas desconsideradas não influam para a contagem do verso em análise, eventualmente podem influir na contagem do próximo.





E OS POETAS SEMPRE CONTARAM ASSIM?

A pergunta é importante. As regrinhas de versificação são poucas. Partindo da constatação de que quando ocorre, por exemplo, uma apócope os poetas no geral indicam que ela ocorreu suprimindo um dos caracteres da palavra, podemos dizer que na prática as regrinhas se resumem a duas: contar só até a última tônica e ficar atento aos encontros vocálicos entre e dentro das palavras. Esta última pode esparramar algumas pecinhas no chão, mas isso não impediu Rogério Chociay de recolhê-las sob a alcunha de "regras de acomodação". É uma expressão utilíssima. De todo modo, os manuais e tratados mais abalizados reduzem as regras versificatórias a umas poucas somente. Feliciano de Castilho, por exemplo, a três:

  1. "Uma vogal antes de outra vogal absorve-se nela, ficando as duas sílabas a formar uma só sílaba";
  2. "Uma vogal será tanto mais fácil de absorver na seguinte, quanto for menos forte sua natureza, menos acentuada, e menos pausada";
  3. "Não só duas vogais concorrentes se elidem, no caso da primeira não ser longa, mas poderão elidir-se mais, se mais aí concorrerem com o mesmo requisito".

Cavalcanti Proença, a seu turno, fala de cinco:

  1. "antes da última tônica deve vir uma átona que permita realçar a duração maior daquela";
  2. "Quando, pelo contrário, colidem duas sílabas fortes de vocábulos diferentes, sem pausa separativa, atenua-se a intensidade da primeira, que terá valor de sílaba fraca" (regra retirada de Said Ali);
  3. "A sucessão imediata de duas cesuras (acento tônico) é interdita, desde que entre elas não gaja pontuação" (regra retirada de M. Carmo);
  4. "São duros os versos (...) em que abundam monossílabos fortemente acentuados" (regra retirada de Bilac e Guimaraens Passos);
  5. "É princípio geralmente observado rematar os versos com _/_ (fraca, forte, fraca)" (regra retirada de Said Ali).

Evocando Said Ali o que se pretende dizer, quanto ao encontro de duas sílabas fortes, é que uma delas necessariamente se tornará fraca. Assim, no verso "Minha rua está cheia de pregões", de Mário Quintana, notamos que existe um encontro de tônicas em "está cheia", de modo que uma deverá necessariamente perder a força. De acordo com a mecânica própria do tipo de verso usado pelo poeta, um decassílabo heroico (logo mais chegaremos nisto), então a sílaba que transfere sua força é "está", no que "cheia" recebe toda a carga: estratégia, é claro, arriscada e que com muita facilidade tornaria o verso cacofônico, ou seja, desagradável de ler, mas que, nas mãos de Quintana, pelo contrário robustece a imagem...

A questão é que se tomarmos como base as regras de acomodação mencionadas por Chociay, veremos que os poetas podem aplicá-las com maior ou menor extensão. É um ponto importante e capaz de gerar curioso debate na hora de contarmos sílabas poéticas. Pois nem sempre é algo preto no branco, e o leitor que porventura não conheça as convenções de certo período ou mesmo de certo poeta pode achar que está diante de um verso fora da medida quando na verdade é bem o oposto.

Dois períodos históricos escandiam de forma peculiar. O primeiro é o Romantismo, quando os poetas aplicavam hiatos com relativa liberdade, às vezes até mesmo onde deveria haver uma sinalefa, uma elisão ou uma crase. No caso dos chamados versos compostos isso passa a ser um princípio estrutural, mas não quero adentrar neles por enquanto. Fique apenas dito que é como se os românticos interpretassem algumas pausas dentro do verso como sendo uma sílaba poética, ou às vezes, como dito, aplicassem um hiato com efeitos expressivos variados. Manuel Bandeira dá como exemplo versos supostamente decassílabos de Gonçalves Dias em O que mais dói na vida:

        Não! o que mais dói não é do mundo
        Não! o que mais dói não é sentir-se
        Não! não são as queixas amargadas

E cita uma hipótese desenvolvida por Sousa da Silveira ao ler o verso "Vem! a noite é linda, o mar é calmo" de Casimiro de Abreu: qual seja, a de que era possível que os românticos grafassem apenas uma interjeição ("Não!", "Vem!") querendo com isso dizer duas ("Não! não!", "Vem! vem!"). Entretanto, alicerçado em Said Ali entende Bandeira que o que Gonçalves Dias fez foi adicionar uma pausa implícita depois do "Não!", indicando ênfase e com isso contando uma sílaba poética, implícita.

Outro efeito comum nos românticos era o de que embebessem uma vogal do verso no final do anterior. É a isso que Bandeira se referia quando manifestou preferência pelo padrão francês, mesmo diante dos argumentos de Said Ali. Assim, cita como exemplo, também de Gonçalves Dias:

        O gigante vulcão borbulha e ferve
        E sulfúrea chama pelos ares lança

O segundo verso a princípio possui onze sílabas, mas se você fizer uma crase entre "ferve" no primeiro verso e a vogal no segundo, aí a contagem entra nos eixos. O nome desse efeito para a versificação medieval era sinafia.

Uma última característica peculiar dos românticos seria a questão das supressões de vogais ao longo da palavra ou mesmo sua adição. A supressão eu mencionei antes, e você a encontrará com relativa facilidade em vários poetas do período, por exemplo Castro Alves. Claro que é preciso tomar cuidado ao classificarmos como artifício romântico um procedimento tal. Ao se deparar com o verso "No último arcar da esp'rança", de Gonçalves Dias, Bandeira nota que a aférese em "c'roa" e a apócope em "esp'rança" eram comuns nos românticos, mas que deviam ser tomadas como fatos prosódicos, ou seja, era esta a pronúncia daquele tempo. O poeta poderia portanto muito bem ter escrito "No último arcar da esperança" que daria na mesma (isto é, o público leria "esp'rança" de qualquer jeito); antes, preferiu fazer um hiato em "No úl-" ― algo que dificilmente seria feito pelas correntes poéticas posteriores...

Pois bem. Ocorre que existe a possibilidade de adicionar uma vogal entre consoantes mudas. É aquilo que recebe o nome genérico e feio de suarabácti, ou, mais especificamente, de prótese, se no começo, de epêntese, se no meio, e de paragoge se no fim. Feliciano de Castilho resume tudo num poeminha:

        Princípios come  a Aférese;
        A Prótese os inventa;
        No meio tira a Síncope;
        A Epêntese os acrescenta;
        Corta nos fins a Apócope;
        Paragoge os aumenta.

É a coisa mais corriqueira do mundo. É mais prático para qualquer um de nós falar "adevogado" do que "advogado". O esforço em pronunciar sílabas mudas não é tão simples quanto parece. A fala, aliás, é uma atividade complexa que movimenta inúmeros músculos do corpo. As soluções encontradas por qualquer indivíduo que não converse feito um rato de laboratório são caminhos que viabilizam a falação nossa de todo dia.

Mas isto é com os românticos, que ainda por cima aplicavam processos de ectlipse, que é o desconsiderar a consoante "m" (efeito no geral usado quando o poema apresenta a preposição "em" seguida de uma vogal, no que o "m", visando a acomodação, é apagado), ou de haplologia, que é quando uma sílaba inteira da palavra cai, à maneira de lermos a preposição "desde" e desconsiderarmos, na contagem, o "-de", ficando apenas com "des" (que, de resto, às vezes já era grafado como "dês", preposição arcaica e ela mesma anterior a "desde"). Os parnasianos são outra conversa. Quando Alberto de Oliveira, comumente chamado de o mais rígido dos parnasianos, se viu diante dos poemas de Gonçalves Dias, ele anotou supostas correções à margem de seu exemplar. Por quê? É que os parnasianos se inscrevem numa poética radicalmente distinta, em que o sistema de contagem de sílabas poéticas havia mudado e uma forte influência da versificação francesa se instalou na prática do período, a ponto de, por exemplo, o chamado alexandrino francês ter ameaçado até mesmo o império do decassílabo de raiz italiana.

Os parnasianos de um modo geral banem o hiato. Sempre que você encontrar um hiato em alguma palavra e sempre que constatar que aquele texto é de safra parnasiana, pode tratar de aplicar uma sinérese que só assim a conta vai fechar. O exemplo mais cabal deste apreço parnasiano é o de Francisca Júlia, que chegou a reescrever versos de poemas seus anteriormente publicados apenas para encaixá-los na métrica: veja-se, da passagem de Mármores para Esfinges, o caso de "De trevas, o silêncio, a nuvem que esvoaça", mudado em "De trevas, o silêncio, esta nuvem que esvoaça". Aqui, graças ao talento da autora, o artigo definido tornado pronome demonstrativo significou um ganho em concreção e pungência ao texto. Claro que isso contribui para tornar o verso parnasiano algo com muita facilidade pesado, ainda mais se considerarmos que ele por vezes aplica regras de acomodação com toda uma intensidade e amplitude maior. Naquele verso que citei anteriormente de Olavo Bilac, "Tudo vozeia e estala em estos de pletora", é improvável que um romântico contasse todas as sílabas de "-a e es-" como uma só.

Com esta simples exposição creio que consegui mostrar como a contagem de sílabas poéticas depende muito das características de uma época. Os poetas clássicos, barrocos e neoclássicos, a seu turno, viam a versificação de uma forma, vejam só, também distinta. Assim, se quiséssemos ficar com os versos de Camões descrevendo o Gigante Adamastor, antes citados, poderíamos notar a maneira com que a elisão de "quando uma", no primeiro verso, é seguida do hiato em "no ar", já no próximo.

Com os trovadores a situação também é diversa. Carolina de Michaëlis nota que os processos de acomodação dos trovadores eram os mesmos que os nossos, onde vogal antes de vogal se absorvia a não ser que topasse com um ditongo, uma pausa ou um forte acento, e Celso Cunha, ao estudar o assunto com mais tardar, chegou à conclusão que os trovadores aplicavam hiatos com parcimônia, revelando, antes, "acentuada inclinação para elidir a vogal do encontro, quando átona". Afirma também que "o regime da elisão estava ligado ao ritmo do verso e era contra regrado por impedimentos fonéticos, fonêmicos e morfológicos" e que "a sinalefa era aparentemente rara". Assim, numa estrofe como esta, de D. Dinis:

        O voss'amig', ai amiga,
        de que vos muito fiades,
        tanto quer'eu que sabiades:
        que ũa, que Deus maldiga,
                vo-lo tem louc'e tolheito,
                e moir'end'eu com despeito.

O leitor observa que em "voss'amig', ai" encontramos duas elisões fazendo com que a vogal "o", que fecha as palavras "vosso" e "amigo", tombem e se apaguem. Dificilmente isto seria feito na versificação moderna, que muito provavelmente aplicaria uma sinalefa transformando a segunda vogal de "vosso" num "u": "vossuamigo". Notável também, ainda no primeiro verso, é ver que existe todo um comedimento no processo de acomodação, incapaz, como mencionado por Michaëlis, de abarcar um ditongo: o mesmo se repetirá no quarto, com o hiato em "que ũa".





E É ASSIM EM TODAS AS LÍNGUAS?

Existem basicamente três sistemas métricos: o acentual, o acentual-silábico e o silábico.

O sistema acentual é regido pela ênfase dada aos acentos. Sua preocupação é com a disposição das sílabas longas e breves no interior do verso. Não quer dizer que ele permita que você componha versos de qualquer tamanho, possuam eles dez ou vinte sílabas, de maneira indiscriminada. Na verdade, você precisa entender que é um sistema métrico que possui íntima conexão com a estrutura rítmica, de modo que a possibilidade de alternar por exemplo uma sílaba longa com duas breves no interior do verso era algo que se dava não graças a um princípio abstrato, e sim ao que na prática podia ser feito.

Realmente: quando abordamos um sistema acentual na teoria, ele parece difícil de ser apreendido, mas tão logo metemos a mão na massa, vemos quão simples ele é. Seu alicerce maior é o de que uma sílaba longa possui uma duração maior do que uma breve, no geral sob a razão de uma sílaba longa equivalendo a duas breves. O nome da unidade de tempo usada é mora, e, do que ficou exposto, conclui-se que enquanto uma sílaba breve possui apenas um mora, uma longa possuiria dois morae. Mas o importante mesmo é que você se atente para o fato de que uma sílaba longa não é exatamente uma tônica, visto que uma sílaba longa pode recair até mesmo sobre uma átona ou recair sobre uma tônica que se sobressaia em relação às outras. Quer um exemplo? Fiquemos com:

        Parabéns pra você
        Nessa data querida
        Muitas felicidades
        Muitos anos de vida

São versos de seis sílabas que dão ênfase à terceira e à sexta. Ou seja: se imagine cantando o poeminha. Já no primeiro verso você sempre dá uma animada quando chega no final de "parabéns", não é mesmo? É como se tivéssemos:

        paraBÉNS pra voCÊ
        nessa DAta queRIda
        muitas FEliciDAdes
        muitos Anos de VIda

Confesse: não é exatamente assim que ocorre quando cantamos? Pois então. Sílabas como o "-béns" de "parabéns" ou o "-cê" de "você" são as chamadas sílabas longas. Nós damos mais ênfase e como que nos demoramos mais ao pronunciá-las, de um modo maior que por exemplo ao pronunciarmos o "pra" ou o "de". Mas note que tais sílabas longas não se confundem com as tônicas. No segundo verso, o "da-" de "data" recebe uma ênfase muito maior que o "nes-" de "nessa", embora tanto um quanto outro sejam tônicos. O motivo? É que um é longa e o outro é breve. O motivo? É que na hora de cantar precisa ser assim. Tente dar a mesma ênfase no "nes-" que as pessoas vão olhar torto e perguntar quem te convidou pra festa (ainda que você seja o dono da festa). O mesmo ocorre com o "fe-" de "felicidades", que nem sílaba tônica é. Ora: e no entanto, recebe mais ênfase que o "mui-" de "muitas". Compreende?

Aqui será necessário adicionar a noção de pé métrico, ou apenas pé. Cavalcanti Proença tentou incutir a ideia de célula métrica, designação me parece útil mas que de todo modo pode acabar por confundir o leitor, uma vez que quase não é usada no debate sobre métrica. A ideia é simples. Imagine que você possui uma linda caixinha com, suponhamos, dois espaços vagos. Você deve preenchê-los com uma sílaba longa e outra breve. Se você coloca uma sílaba longa e outra breve logo depois, essa sua caixinha receberá um nome. Agora se você coloca uma breve e outra longa, vai receber outro. Pois bem. Essa caixinha é o que chamamos de pé. Ela pode possuir mais espaços, nada que chegue a exceder quatro. Vai depender muito de cada língua. Há um debate acalorado sobre se o português aceita caixinhas com quatro espaços, visto que a tendência majoritária parece ser a de que aceitemos apenas aquelas com três. A discussão é boa, mas não creio que me caiba avançar muito nela. Digamos, apenas, que se eu, dentro dessa caixinha, dessa célula ou desse pé, incluo uma sílaba longa e uma breve, então eu terei composto um troqueu. Agora se eu faço o contrário, isto é, uma breve e uma longa, eu terei composto um jambo.

Existem muitos nomes a serem decorados nessa parte, mas os principais são esses:

        [forte] [breve] → troqueu
        [breve] [forte] → jambo
        [forte] [breve] [breve] → dátilo
        [breve] [breve] [forte] → anapesto
        [breve] [forte] [breve] → anfímbraco
        [forte] [forte] → espondeu

A notação mais usada é aquela que usa uma meia-lua, "ᴗ" (braquia), para a sílaba breve e um travessão (mácron) para a longa. Há também aquela que usa o travessão para ambas mas coloca um sinal agudo sobre um deles para indicar a longa. Não sei se existem esquemas mnemônicos para decorar estes nomes, mas, quanto ao dátilo, acaba sendo fácil uma vez que o termo advém de "dedo". A partir daí fica simples: imagine um dedo em riste. Se você observar bem, seu dedo é dividido em três pedaços, isto é, falanges. A maior dela, a falange proximal, seria a sílaba longa, ao passo que as falanges medial e distal, a última correspondente à pontinha do seu dedo, seriam as sílabas breves. À sílaba longa dentro do dátilo se chama também de thesis e à longa se chama de arsis, querendo dizer com isto o ato de afundar o pé no chão e depois erguê-lo.

Além da noção de pé, é importante ter uma ideia do que viria a ser o período métrico e o colon (plural: cola). Como explicado por M. L. West, na poesia antiga existia uma unidade métrica e de enunciação que extrapola o que chamamos de verso, e isto a tal ponto que se torna muito mais produtivo abandonarmos a noção, veja só, de verso e adotarmos a de período métrico, que nada mais era que uma sequência de tamanho qualquer e discernível, e mensurável com clareza pelo ouvinte. A principal decorrência do conceito de período métrico é reconhecer que eles não se confinam no que estabelecemos como verso, podendo, antes, percorrer vários deles. Caso análogo é o do colon, espécie de subdivisão do período métrico que também se caracteriza por uma continuidade, quase como se o colon fosse um tijolinho e o período métrico o trecho de um muro que sabemos pertencer a determinada casa. Como dito por West, "O período é definido como aquele segmento de composição ― seja de quarenta sílabas ou se de apenas quatro ― dentro do qual existe uma continuidade prosódica [de enunciação], é dizer, a escansão de uma palavra pode ser afetada pela seguinte ou porque a união de vogais ou consoantes pode vir a ser criada."

Sei que parece abstrato, e pelo jeito só piora se eu te disser que os pés residiriam dentro do colon. Mas aqui é importante lembrar que a terminologia busca corresponder à natureza performática de parte significativa da poesia antiga. A partir do momento em que temos isto em mente, a confusão se dissipa. Quando ouço uma música no rádio, nem sempre é fácil saber quando um verso começa e quando acaba. Se eu tiver o encarte em mãos eu encontro a resposta, mas e quando falamos de uma poesia que não era reduzida a termo? Realmente não faz sentido falar em verso num contexto assim. O que o espectador ouvia eram palavras seguindo uma sequência de determinado tamanho (longo, curto, tanto faz) discernível por marcações diversas como o fim de uma frase ou a própria recorrência rítmica dos cola. Ou seja: a partir do momento em que o colon era como que a ossatura rítmica do período métrico (afinal de contas, a seu turno, na própria estrutura atômica dos cola nós encontramos pés distribuídos), e a partir do momento em que os cola se imiscuíam a um ritmo determinado na performance, então é claro que o ritmo desempenhava um papel importante na demarcação do período métrico, de uma importância muito além do que hoje concebemos por verso ritmado.

Compare com o uso da sextilha pela cantoria nordestina. Muitos desses poetas, a rigor, não contam as sílabas poéticas enquanto compõem, mas, na verdade, ajustam as palavras à toada. Na verdade, falar em acompanhamento é muito pouco, já que a toada está entranhada na cantoria a tal ponto que o texto como que irrompe dela. O que quero dizer com isso é que descrever a sextilha como uma estrofe de seis versos rimados é pouco, já que para o cantador e para o próprio público a percepção da sextilha dependerá não de conhecer um esquema prévio e, sim, da toada. É mais comum, por exemplo, que os seis versos da sextilha sejam sentidos pelo ouvinte como três, pontuados cada qual pelas rimas, não sendo à toa que muitos cantadores descrevam o improviso de uma sextilha como, na prática, improvisar dois versos de cada vez.

Com isto o que de imediato se observa é que a contagem acentual possuía uma enorme maleabilidade, caso contrário os ouvintes morreriam de tédio. Era corriqueiro que esquemas de verso permitissem um trânsito de sílabas longas e breves, desde que o tempo fosse mantido. Uma maneira interessante de entender como isso funcionava é recuperando a distinção que Quintiliano faz entre ritmo e metro no nono livro de sua Instituição Oratória. Cito na tradução de Bruno Bassetto:

Com efeito, em primeiro lugar os ritmos constam de espaços de tempo, enquanto os metros abrangem também a ordem sequencial: por isso, o primeiro diz respeito à quantidade e o segundo, à qualidade.

Ou seja, o ritmo é apenas um espaço de tempo que pode ser preenchido de diversas maneiras. Se ele tem quatro tempos, então ele pode ser preenchido, por exemplo, por uma sílaba longa e depois por duas breves, constituindo, assim, um dátilo perfeito. Mas eu também posso substituir as duas breves por outra longa, já que duas breves é igual a dois tempos, que por sua vez é igual a uma sílaba longa.

Com o metro a situação é diversa, pois, para Quintiliano, ele diz respeito a uma ordem rígida. Não há a possibilidade de troca. Ele introduz essa discussão pois está pensando nas maneiras com que um orador pode finalizar um parágrafo: em especial, o tipo de ritmo que ele pode criar seguindo padrões métricos específicos.

Um dos esquemas métricos antigos mais importantes de se aprender é o chamado hexâmetro datílico:

        ―× / ―× / ―× / ―× / ―ᴗᴗ / ―×

Mais importante porque usado por grandes nomes da Antiguidade greco-latina: Homero, Hesíodo, Virgílio, Lucano etc etc. Embora comum, é equivocado associá-lo apenas à poesia épica, afinal de contas também era usado na poesia didática por exemplo (vide o De rerum natura e as Geórgicas). Naturalmente que, do que ficou exposto, poder-se-á perceber que o conjunto da Odisseia não era uma interminável sucessão de dátilos ao infinito e avante. Evitando incorrer numa monotonia infernal, o poeta variava com muita liberdade os pés a serem aplicados no interior do metro. Grosso modo, os quatro primeiros pés podem ser substituídos por espondeus, ao passo que o quinto quase sempre é composto de um dátilo e, aspecto curioso, o sexto pé na verdade possui espaço só pra duas sílabas, sendo que a primeira é longa e a segunda é o que chamamos de ancípite, ou seja, pode ser tanto longa quanto breve. Na notação acima, ― é sílaba longa, ᴗ é breve e × pode ser uma longa ou duas breves, com exceção do último deles, que precisa ser ou uma longa ou uma breve.

Além dela, o leitor deve se atentar para as cesuras que podem incidir dentro dele. Embora sejam várias, as mais célebres e enfáticas, quer dizer, aquelas que não necessitam do apoio de outra, são chamadas de cesura pentemímere e cesura heftemímere. Ambas dividem o verso em dois hemiepes, ou seja, duas metades (hemiepes quer dizer, precisamente, "metade do heroico"). A pentemímere ocorre, segundo Frederico Lourenço em sua útil iniciativa de sistematizar a terminologia métrica grega, após a primeira posição do terceiro metro e a heftemímere após a primeira posição do quarto. Por posição, basta que o leitor imagine que um dátilo [―ᴗᴗ] é composto de três posições: a primeira, que é a posição da sílaba longa, e a segunda e a terceira, correspondentes às sílabas breves. Sendo assim, as cesuras pentemímeres e heftemímeres ocorrem, respectivamente, em:

        [―ᴗᴗ] [―ᴗᴗ] [― | ᴗᴗ] [―ᴗᴗ] [―ᴗᴗ] [―ᴗᴗ]
        [―ᴗᴗ] [―ᴗᴗ] [―ᴗᴗ] [― | ᴗᴗ] [―ᴗᴗ] [―ᴗᴗ]

A capacidade de suportar substituições de acentos em seu bojo era também fundamental para que o hexâmetro datílico viabilizasse a performance do poeta. Ora: dentro do fato de que os poemas homéricos, por exemplo, eram poemas orais, o sustentáculo métrico é algo importante para que o poeta consiga improvisar ou mesmo relembrar alguma passagem à medida que declama. Na verdade é mais do que isso: o poeta também precisa de um estoque mental de fórmulas prontas que sirvam de estepe para quando ameace perder a compostura. Tal mecanismo nos poemas homéricos era especialmente preenchido pelos epítetos, aquelas passagens que explicavam para o leitor quem era a personagem sob enfoque, por exemplo um Aquiles pés-velozes ou um Heitor doma-cavalos. Com epítetos assim ("pés-velozes", "doma-cavalos"), Homero não apenas educava a plateia como se permitia uma margem de manobra fundamental para que sua declamação fosse viável. Agradeçamos a Milman Parry por ter em 1928 estudado tal característica da poesia homérica.

Muitos outros esquemas métricos podem ser descritos a partir daqui. O hexâmetro datílico se combinava a um pentâmetro também datílico para formar o dístico elegíaco. Apesar desse nome sugerir que seria o esquema poético para a construção de textos entristecidos, na verdade ele apenas quer dizer que os poemas escritos nessa configuração tinham um ritmo poético característico e, num período mais antigo, o acompanhamento de um tipo de flauta chamada aulós.

É importante sublinhar isso: os gêneros antigos eram definidos por características formais. A divisão que aprendemos na escola só ganhou ares de definitivo pelo menos depois dos cursos de Estética de Hegel. Quando falamos da antiguidade greco-romana, boa parte de nossas noções a respeito de épica ou lírica não servem muito.

O esquema do dístico elegíaco era:

        ―× / ―× / ―× / ―× / ―ᴗᴗ / ―×
                ―× / ―× / ―|―ᴗᴗ / ―ᴗᴗ / ―

Note que esse nome, pentâmetro, pode dar a entender que ele é composto de cinco pés. É um rótulo bem inconveniente, na verdade. É mais interessante se você tratar o pentâmetro como duas metades de um hexâmetro, entendendo por metade do hexâmetro tudo que vai até a cesura pentemímere. Veja como exemplo a tradução de Leonardo Antunes para o poema 85 de Catulo:

        Amo e odeio. Por que faço assim tu talvez me perguntes.
                Eu desconheço. Porém, sinto fazer-se e excrucio-me.

Outro esquema importante é o do trímetro iâmbico e o do senário iâmbico. Os dois são quase que a mesma coisa, já que na contagem totalizam seis pés de andamento tipicamente iâmbico. No entanto, o trímetro é feito de dipodias, isto é, pares de pés, enquanto o senário é realmente uma sequência de seis pés em fila indiana.

Aristóteles descreve o trímetro iâmbico como o mais coloquial dos metros. Ele realmente é muito usado em passagens dialogadas do teatro antigo e aceitava uma gama enorme de substituições dentro de si. Passo ao largo disso tudo e me limito a citar a tradução de Sérgio Maciel para a abertura do Édipo de Sêneca:

        A cinza atroz da astuta fera contra nós
        se insurge e Tebas sofre com a cólera
        extinta. Resta-nos só uma salvação,
        se Febo alguma rota a ela revelar.

Para encerrar esta curta apresentação de metros antigos, cito os chamados versos logaédicos. Eles recebem esse nome pois mesclam pés típicos da poesia épica com pés típicos da poesia dos aedos. Os dois esquemas mais célebres são a estrofe sáfica e a estrofe alcaica:

                Estrofe sáfica:
        ―ᴗ / ― ― / ―ᴗᴗ / ―ᴗ / ―×
        ―ᴗ / ― ― / ―ᴗᴗ / ―ᴗ / ―×
        ―ᴗ / ― ― / ―ᴗᴗ / ―ᴗ / ―×
        ―ᴗᴗ / ―×

                Estrofe alcaica:
        × / ―ᴗ / ― ― / ―ᴗᴗ / ―ᴗ / ×
        × / ―ᴗ / ― ― / ―ᴗᴗ / ―ᴗ / ×
        × / ―ᴗ / ― ― / ―ᴗ / ―×
        ―ᴗᴗ / ―ᴗᴗ / ―ᴗ / ―×

Leia em voz alto essas duas odes de Horácio, traduzidas por Guilherme Gontijo Flores, e diga depois qual delas é sáfica e qual é alcaica:

        1.26
        As Musas me amam; medo, tristeza e dor
        no mar de Creta entrego pro despudor
                do vento: acaso um rei temível
        manda sob a Ursa nas margens frias?

        Algo aterrou Tirídates? Eu estou
        seguro. Ó tu que adoras as íntegras
                nascentes, trança em flor aprica,
        trança a coroa ao querido Lâmia,

        sutil Pipleia! Pois meu louvor sem ti
        de nada vale. A ele em novíssimo
                cordame, a ele em lésbio plectro
        tu sagrarás com tua irmandade.

        1.38
        Pérsicos e pompas, garoto - odeio,
        eu desprezo a tília ao trançar coroas,
        nem procures onde talvez a rosa
                tarda perdura.

        Nada ponhas sobre uma simples murta,
        é o que peço. A ti, que me serves, nunca
        desconvém, e a mim, que por sob a densa
                vinha hoje bebo.

Adiante. O sistema acentual-silábico, a seu turno, é o usado em línguas como o inglês. Muito parecido com o acentual, a diferença reside no fato de que o acentual-silábico não possui o esteio oral daquele, de modo que a contagem de sílabas tende a ser seguida de maneira mais detida pelo poeta e mesmo o grau de variações de pés métricos no interior do verso tende a ser menos intenso. Nada, claro, que impeça substituições aqui e acolá: no início do verso e após uma pausa elas por exemplo são comuns. Assim, cite-se o caso do pentâmetro jâmbico, o tipo de verso mais célebre do sistema acentual silábico, usado por Shakespeare, Milton, Wordsworth, Byron, Browning e uma infinidade de outros. Pound passou boa parte de sua obra fugindo de forma consciente do pentâmetro, mas se rendeu a seus encantos ao escrever o final do Canto 81, uma das mais belas páginas de quantas deixou. Como exemplo de pentâmetro, fiquemos com este, celebérrimo, do Bardo:

        To be, or not to be, that is the question.

Sua escansão:

        ᴗ― / ᴗ― / ᴗ― / ―ᴗ / ᴗ―

Note que o quarto pé inverteu a ordem dos fatores: ao invés de um jambo, incluiu um troqueu. Usado com a suprema habilidade que caracteriza sua produção, a substituição realça o that, permitindo assim que a estrutura rítmica acompanhe a mudança da ideia e se encaminhe direto à dúvida que assola a personagem. Como dito, é uma troca corriqueira dentro do esquema do pentâmetro jâmbico, visto que surgida logo após uma pausa: "not to be, || that is". Exemplo de troca no início é aquela do primeiro verso do soneto 18, onde o primeiro jambo é substituído por um troqueu: "Shall I compare thee to a summer's day?" Mas, você já sabe: nem sempre a contagem pode bater. Eventualmente é o caso de considerarmos que uma das sílabas, geralmente a inicial, a final ou a posterior a uma pausa, está em anacruse, ou seja, é uma sílaba extra sobre a qual se deve aplicar uma catalexe, que é o ato de truncar ou de desconsiderar tal sílaba para efeitos de escansão.

Caso o leitor queira sentir o sabor jâmbico em português, fique com o início de um famoso monólogo de Hamlet traduzido por Péricles Eugênio da Silva Ramos:

         Ser ou não ser, eis a questão: pois que é mais nobre?
         Sofrer passivamente as setas e balistas
         Com que a fortuna, enfurecida, nos alveja,
         Ou insurgir-nos contra um mar de provações
         E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.

O pentâmetro jâmbico também foi muito usado em língua inglesa para se compor os chamados heroic couplets ou dísticos heroicos, compostos de dois pentâmetros rimados entre si (em alguns casos o poeta podia rimar três versos ou empregar um de seis pés). De origem antiquíssima, remetendo a Chaucer, tiveram grande voga nos séculos XVII e XVIII, quando, nas mãos de poetas como Alexander Pope e John Dryden, receberam tratamento esplêndido. Na França os dísticos rimados também possuem longa e venerável história, coisa que as canções de gesta e o teatro clássico de Corneille, Racine e Molière bem atestam.

A segunda forma estrófica digna de nota no sistema acentual-silábico inglês é o metro de balada. De acentuação predominantemente jâmbica, seu formato mais comum é aquele que o dispõe em versos de quatro, três, quatro e depois três pés. No entanto, a este chamado metro comum (common meter) também se acrescentam as variações do metro longo (todo composto de quatro pés), do metro curto (onde apenas o terceiro pé possui quatro sílabas, os outros possuindo três) e do meio metro (três em todos).

Como o leitor já deve ter suspeitado, no âmbito das línguas capitaneadas pela métrica acentual-silábica existem momentos em que a concepção abre as asinhas e abrange as outras práticas. É o que ocorre quando Coleridge compõe seu Christabel, em que, embebendo seu verso em fontes acentuais, elastece-o a ponto de ir das sete às doze sílabas, uma vez que lhe bastava computar apenas quatro longas para que o verso se completasse. Exemplo meio que parecido é o da modernista Marianne Moore, que contava as sílabas de seus poemas seguindo um sistema puramente silábico, sem que se preocupasse com a distribuição dos pés e da cadência, fomentando, assim, um ritmo que se aproximava admiravelmente da fala. Um terceiro e último caso a ser citado seria o do poeta Gerard Manley Hopkins, autor de algumas das mais fecundas obras da língua e forte sustentáculo da poesia moderna. No prefácio a uma coletânea o autor menciona um certo sprung rythm usado em alguns poemas, e que consistia em se pautar na contagem de uma a quatro sílabas fortes no interior do verso, sem se preocupar com quantas sejam as sílabas fracas que lhe acompanhem. Numa carta de 1878, o poeta o resume assim: "consiste em escandir por acentos ou tônicas somente, sem qualquer preocupação com o número de sílabas". Essencialmente ligado ao experimento de Coleridge quase um século antes, enquanto no poeta romântico as mudanças convinham à transição ou à "natureza da imagética da paixão", em Hopkins o "novo ritmo" era pura e simplesmente o mesmo que o ritmo da fala popular, da prosa escrita, dos jingles e das cantigas infantis.

E por fim chegamos ao sistema métrico silábico, que é o nosso. Já explicado anteriormente para o leitor como ele funciona, convém especificar de que modo os tradutores hoje em dia têm buscado traduzir poemas escritos em sistemas acentuais e acentuais-silábicos. Valendo-se apenas das sílabas tônicas de nossa língua? Não exatamente. Usam-se também do que se chama de acento secundário.

O primeiro a dar ênfase à questão do acento secundário foi Carlos Alberto Nunes em suas traduções de Homero publicadas no início da década de 40, em que, procurando manter a lógica do hexâmetro datílico, fatalmente se valeu deste utilíssimo recurso. Seria depois secundado pelo importante estudo de Cavalcanti Proença e pelo Hamlet traduzido por Péricles Eugênio da Silva Ramos, ambos em 55. No entanto, ressalto o alerta de Érico Nogueira e Antonio Medina Rodrigues de que já haviam hexâmetros em português antes disso (a princípio tratados por Feliciano de Castilho como "uma quimera sem o mínimo vislumbre de possibilidade", opinião mitigada depois: se escritos com zelo e lidos apreciando o peso das sílabas, poderiam "achar música aceitável") e adiciono que outras línguas de sistema silábico já fizeram experimentos acentuais, como é o caso das Chansonnettes de Baïf na renascença francesa e o da tradução romântica alemã de Homero por Heinrich Voss, ou, se quisermos passar para um sistema acentual-silábico, o caso do Evangeline de Longfellow ou da conclamação de Matthew Arnold em On translating Homer para que os tradutores abracem o hexâmetro a fim de que ele pudesse "gradualmente se tornar familiar ao ouvido do público inglês". No caso do português, porém, nenhuma das tentativas anteriores possuiu o mesmo esplendor adquirido nas mãos do maranhense, que prosseguiu seu trabalho com a Eneida de Virgílio. Na prática o seu verso possui cinco dátilos acentuados na 1ª, na 4ª, na 7ª, na 10ª, na 13ª e na 16ª sílaba. Um exemplo, retirado da Ilíada:

        Cobre-lhe os olhos brilhantes depressa a caligem da Noite.
        [CObre-lhe os] [OLhos bril][HANtes de][PREssa a ca][LIgem da NOI]te
        [―ᴗᴗ]                  [―ᴗᴗ]              [―ᴗᴗ]             [―ᴗᴗ]              [―ᴗᴗ]

João Angelo Oliva Neto, que também apontou a procedência do hexâmetro usado por Carlos Alberto Nunes na prática de outros poetas de nossa língua e outros tradutores, aponta que embora o tipo de metro usado seja um verso estranho à nossa língua, graças ao mecanismo da cesura ele pode ser dividido em versos menores que apresentam medida capaz de se ajustar a nosso ouvido. Já aproveitando o ensejo, portanto, fique dito que cesura é uma pausa no interior do verso, distinta das demais pela força com que é instaurada. Trata-se de noção que pode ser mais ou menos perceptível, mas que virtualmente é aplicável a todo tipo de verso. No que citei, existe uma cesura a meu ver muito bem marcada após "brilhantes", fazendo com que o verso original como que se reparta em dois, o primeiro de sete e o segundo de oito sílabas, cada qual realçando as luminosidades opostas dos olhos brilhantes e da caligem da Noite:

        Cobre-lhe os olhos brilhantes
                                                        depressa a caligem da Noite

O professor cita casos em que a cesura reparte o verso em três pedaços, por exemplo em:

        No meu cortejo se encontram quatorze belíssimas ninfas
        No meu cortejo
                                  se encontram quatorze
                                                                       belíssimas ninfas

Mas voltando ao acento secundário. Seu funcionamento é muito simples. Quando lemos uma palavra de considerável extensão, nós não deixamos para empostar a voz apenas na sílaba tônica, como se o restante fosse dito de forma monótona e necessariamente baixa. Numa palavra como "felicidade", sua pronúncia envolve um aumento da voz no "fe-" justamente para que tenhamos um impulso capaz de chegar ao "-da-", que é o acento tônico. A este aumento de voz numa sílaba que não é a tônica da palavra, mas que é essencial para que a pronúncia da própria palavra seja viabilizada; a este aumento chamamos de acento secundário.

Hoje temos uma gama de tradutores que conseguem resultados magníficos em termos de tradução da cadência de obras poéticas. Já ouvi chamarem de tradução "em metro original", "núnica" ou de "rítmica" simplesmente. Enfim. Nomenclaturas. As iniciativas pioneiras dos intelectuais citados foi fundamental neste quesito. Portanto mencione-se, apenas a título de ilustração, a prática contemporânea de nomes como Leonardo Antunes, Guilherme Gontijo Flores, Érico Nogueira ou Marcelo Tápia. Enquanto os dois primeiros dão destaque especialíssimo à matriz performática dos textos antigos, no que a preservação dos acentos tende a ser um momento crucial da tradução, os dois últimos, também partindo de um princípio acentual, já trabalham com um verso muito mais maleável, afastando, de uma vez por todas, qualquer injusta acusação de monotonia que se possa fazer. 

Uma das grandes sacadas desses tradutores é sublinhar que nós convivemos sim com ritmos clássicos o tempo todo. Se você fizer a escansão do início da canção Amigo de Roberto Carlos e desconsiderar a primeira sílaba na contagem, vai notar que os versos são compostos de um ritmo iâmbico:

        (Vo)cê meu amigo de fé, meu irmão camarada
        (A)migo de tantos caminhos e tantas jornadas
        (Ca)beça de homem mas o coração de menino
        (A)quele que está do meu lado em qualquer caminhada

Outro exemplo ótimo que dão é o da pergunta ― até hoje, na data em que atualizo este manualzinho, sem resposta ―: quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes? Repetindo e remanejando, você chega numa estrofe sáfica perfeita:

        Quem mandou matar Marielle Franco?
        Quem mandou matar Marielle Franco?
        Quem mandou matar Marielle Franco
                e Anderson Gomes?

Outra sacada muitíssimo importante é que a resposta definitiva para o funcionamento do hexâmetro numa tradução não será dada pelo esqueleto puramente formal do texto e sim pela performance. Foi assim que o alemão Heinrich Voss, em sua célebre tradução para a Odisseia, procedeu, criando um verso que deveria ter seis tônicas mas que, entre uma e outra, poderia usar duas átona ou então somente uma. O princípio é que, caso a sílaba tônica se faça seguir de duas átonas, então teremos um legítimo dátilo, mas, caso se faça seguir de somente uma, então esta será alongada pela performance. Um exemplo, retirado da tradução de Guilherme Gontijo Flores para a Arte Poética de Horácio:

        Como nos bosques que mudam de folhas todos os anos
        caem as velhas, também fenecem antigas palavras,
        mas as recém-nascidas, iguais a jovens, florescem.

Note que o primeiro verso é quase todo composto de dátilos, mas, quando chega no quarto pé, usa somente duas sílabas, uma tônica e uma átona: "FO-lhas". Como dito, a solução desse impasse será dada durante a performance, que é quando o tradutor poderá alongar a sílabas átona e transformá-la numa longa, procedimento este que, embora fosse possível na literatura greco-romana, não chegava a ser propriamente estimulado. No segundo verso, note que os dois primeiros pés são dátilos, mas os dois seguintes são compostos também de uma mescla de sílaba átona e tônica: "fe-ne-", seguido de "-cem an-". Será somente no penúltimo verso que encontraremos uma estrutura datílica novamente, "-ti-gas pa-", arrematado por um último pé com somente duas sílabas, "-la-vras". Sendo assim, as possibilidades de recriação se tornam muito maleáveis, desobrigando o tradutor de ir em caça tão somente de acentos primários ou secundários, uma vez que pode se valer até mesmo de uma sílaba átona que, na performance, será alongada.

Agora, seguindo por outra senda, dois exemplos da importância de se atentar para os pés de um verso poderão servir para que o leitor se convença de seu estudo. O primeiro parte dos românticos brasileiros, que possuíam um apreço praticamente irrepetido pelos versos de nove e onze sílabas, em especial aqueles regidos por uma cadência saliente. Assim, era comum que o verso de onze sílabas desse uma passada jâmbica seguida de três saltos anapésticos:

        ᴗ― / ᴗᴗ― / ᴗᴗ― / ᴗᴗ―

Gonçalves Dias possui versos maravilhosos com notações assim. Veja-se o início do I-Juca Pirama, onde a batida do tambor encontra tradução perfeita no hendecassílabo anapéstico, ou então, no início da quarta estrofe da primeira parte de O canto do Piaga, a maneira com que o bailado do eneassílabo usado ao longo do poema, com dois troqueus, um anfíbraco e um jambo, cede espaço e se permite arejar de uma corrente contrária que acentua o surgimento do fantasma e a sua proporção:

        Eis rebenta a meus pés um fantasma,
        Um fantasma d'imensa extensão;

É uma pena que depois dos românticos esses ritmos tenham sido ostracizados de maneira tão gritante. Possuem uma sonoridade quase que encantatória, perfeita e às vezes me parece insuperável em nossa língua.

Um segundo exemplo está em saber como contar os pés de um poema, o que por vezes pode dar ensejo a discussões realmente acaloradas. No caso dos hendecassílabos anapésticos, por exemplo, nada impede que eu os leia como anfíbracos arrematados por um jambo:

        ᴗ―ᴗ / ᴗ―ᴗ /ᴗ―ᴗ /ᴗ―

Ou realmente existe algo que me impeça de fazê-lo?

Excetuando aqueles metros já cristalizados na prática poética de uma língua, à maneira dos pentâmetros jâmbicos, não acho que exista obstáculo. Na verdade até vou além e reconheço que embora por vezes a discussão pareça muito abstrata, considerar novas formas de ler a disposição de tônicas dentro de um verso é um exercício instigante que pode chegar a sugestões dignas de nota. Glauco Mattoso, debatendo-o, diz que o primeiro verso de Os Lusíadas pode ser lido como possuindo quatro pés, desde que forcemos um jambo a partir do acento secundário no "-si" de "assinalados":

        As armas e os barões assinalados
        [As ARmas] [e os  baRÕES]  [asSI][naLA]dos
        [ᴗ―ᴗ]          [ᴗᴗ―]                 [ᴗ―][ᴗ―]

Ou seja, temos um anfíbraco, um anapesto e dois jambos. Todavia, aponta o tratadista, o que nos impede de enxergamos um jambo seguido de dois péons quartos que, assim estabelecidos, imprimiriam gravidade militar ao verso?

        [As AR][mas e os baRÕES] [assinaLA]dos
        [ᴗ―]          [ᴗᴗᴗ―]                [ᴗᴗᴗ―]

No qual péon quarto é aquele feito de três sílabas breves seguidas de uma longa (ᴗᴗᴗ―), o oposto do péon primo: uma longa seguida de três breves (―ᴗᴗᴗ). Abstrato, eu disse, mas por um momento mentalize um pelotão que execute o tropel de um e de outro esquema de batidas. Qual deles você acha que traduz melhor o ímpeto de guerra arrematado por um estrondo? O ritmo, com pequenas alterações e ênfase aos péons seguidos, também se acha noutras passagens da epopeia, a exemplo desta, também de fundo marcial nítido, no Canto III: "Pelas concavidades retumbando."

Todavia, é tosco o meu esquema, tosco como sói àqueles que se afiguram como básicos. Existem outros sistemas de contagem, por exemplo o dos versos aliterativos, usado pela antiga poesia germânica, inglesa e nórdica. De um modo geral ele como que divide o verso em duas metades de tal modo que um número de acentos na segunda metade deva aliterar com um ou dois pontos da primeira metade. É assim pelo menos que ocorre no chamado fornyrðislag da poesia nórdica, usado na composição das Eddas. O leitor só deve se atentar que a divisão em duas metades pode ser lida como sendo na verdade dois versos unidos, um pouco à maneira dos versos compostos na nossa versificação arcaica, e que outros tipos de verso apresentavam mecanismo ligeiramente diverso, à guisa do ljóðaháttr, geralmente usado em canções e baladas e que, em boa parte análogo ao fornyrðislag, distanciava-se ao valer-se de um segundo verso que não se repartia em dois e que possuía medida um pouco mais extensa que as duas metades do primeiro. Como exemplo de verso aliterativo, cite-se o trabalho levado a cabo por Erick Ramalho em sua competente tradução do Beowulf, bem como o de Théo da Borba Moosburger ao traduzir a passagem do Hávamál sobre a listagem das runas (o Rútanal). Respectivamente:

        Com efeito, conhecemos os feitos
        dos louvados Reis dos Danos-de-Lanças,
        e a glória do povo em tempos antigos.
        Scyld Scefing, chefe dos Danos, cessou
        os bródios com hidromel dos bandos
        rivais, cujos varões, de várias raças,
        ruíram pelo medo. Medrou Scyld:
        privações experimentara (pobre
        criança, crescera sob céu-de-nuvens),
        mas lograra honra e glória, para, logo,
        ver, além do mar, via-de-baleias,
        povos prestar-lhe preito. Foi bom rei!

        Num tronco ventoso eu estava suspenso
                por nove inteiras noites,
        por dardo ferido e dado a Odin,
                eu mesmo imolado a mim mesmo,
        naquela árvore que os homens não sabem
                seu cepo de onde insurge.

No que o leitor deve observar também o uso de expressões como "via-de-baleias" caracterizando o mar. É aquilo que na poesia nórdica se chama de kenning, uma espécie de operação sinonímica que, além de cumprir efeitos estéticos múltiplos e admiráveis, servia para dar concreção à cena de maneira concisa e lapidar. Borges possui um belo ensaio sobre as kenningar, a que remeto o leitor.





COMO SE CLASSIFICAM OS VERSOS.

Questão a partir da qual se pode avançar muito, chegando ao pormenor histórico, sempre muito imenso, ou à vertigem taxonômica, sempre muito minúscula. Via de regra costuma-se usar duas classificações para os versos em português: aquela que os divide em versos de medida velha ou de medida nova e aquela que os divide em versos de arte menor ou de arte maior. De um modo geral, medida velha ou arte menor designa os versos de até oito sílabas poéticas, ao passo que medida nova ou arte maior designa os de nove até os de doze. Quando se cogitam versos com treze sílabas ou mais, é comum que se use a designação verso bárbaro, visto serem medidas não canonizadas que, para alguns, não sustentariam uma constância rítmica interna, ou seja, um verso de treze na verdade seria um verso de cinco e um de oito camuflados, posto que duvidosa a hipótese de que alguém o leia sem que reparta o fôlego e reparta por conseguinte os arrimos do próprio verso.

Naturalmente que uma explicação dessas perca por abstração. O verso clássico era composto de tal modo que seu perímetro comportasse uma unidade sintática discernível. Isto não impediu o surgimento ocasional de cavalgamentos (em francês enjambement) ― algumas vezes, é certo, de recorrência ilustre, à guisa do que está nos versos de muitos trovadores e nos do Vila Rica de Cláudio Manuel da Costa. Cavalgamento, já aproveitando a deixa, é quando o verso não comporta a aludida suficiência semântico-sintática, fazendo com que o leitor deva lançar-se ao verso seguinte a fim de que o sentido da frase lida se complete. Isto não quer dizer que a frase deva terminar no próximo verso e sim que, no caso de um corte brusco (e brusquidão é a palavra chave) como o de um verbo transitivo e seu objeto direto, devamos ter o deslinde daquela informação que havia ficado suspensa. Um exemplo particularmente expressivo é este, de Vinicius de Moraes nos tercetos do Soneto de véspera:

        Como ocultar a sombra em mim suspensa
        Pelo martírio da memória imensa
        Que a distância criou ― fria de vida

        Imagem tua que eu compus serena
        Atenta ao meu apelo e à minha pena
        E que quisera nunca mais perdida...

Tenho a plena convicção de que ler poesia envolve mobilizar capacidades imaginativas que, sem possuírem a mesma intensidade e liberdade próprias à criação, no mínimo desempenham um importante papel no que se pode entender como sensibilidade e gosto. Pois ao contrário do que a retórica mais embalsamada dá a entender, estes não se confundem com chancelar o que um esclarecido de plantão esbraveja no púlpito; ligam-se muito mais à capacidade de saborear um admirável compêndio e resumo das capacidades expressivas humanas a partir de todos os seus nuances. Daí o poder da imaginação, uma vez que quando dizemos que um poema pode significar muitas coisas, parte do que sustenta uma afirmação assim é o desembaraço com que cogitamos hipóteses que jamais passaram pela cabeça do escritor sem que isto implique uma invasão ou excesso de nossa parte enquanto leitores. Porque é com isto em mente que, diante dos tercetos de Vinicius e do forte cavalgamento interestrófico ("forte" pois supomos que a pausa entre estrofes é maior que aquela entre versos, de maneira que o salto efetuado pelo cavalgamento necessita de uma energia enunciativa maior), me vejo, um pouco à maneira de quem elucubra, sentindo o travessão grafado logo após a pausa central do verso acentuar a frieza da imagem composta pelo eu lírico, o que a cisão abrupta no final e a própria estrutura do hipérbato, dando total força expressiva ao vocábulo "vida" precedido do adjetivo "fria", podem sugerir.

O cavalgamento não é um procedimento qualquer na história da poesia. O uso constante de cavalgamentos entre versos já era sentido entre os poetas antigos. A experiência de ler os hexâmetros de Virgílio, por exemplo, é sensivelmente distinta da de ler os de Ênio em grande parte pois Virgílio usa cavalgamentos com maior liberdade, fazendo com que a unidade de sentido não se complete quase sempre num único verso mas necessite de outros. No caso da poesia moderna, o procedimento chegou a ser usado sugerindo (à maneira do que se pode ver num Bruno Tolentino) uma fluência que aproximava o texto da fala. Noutras palavras: o cavalgamento exige do leitor um tipo de postura que, ao elastecer o dimensionamento que fazemos entre sintaxe e cadência, encare o correr dos versos como um fluir contínuo e não um conjunto de ondas que ritmadamente irrompam e tragam consigo doses sintaticamente bem ordenadas e dispostas de sentido. Noutros casos o cavalgamento também foi usado a ponto do poeta repartir a palavra ao meio, à maneira do que Nelson Ascher fez ao rimar extremidades com adestre―mestre―rupestre, fatiando o vocábulo em "extre- / midades". O fato bruto, contudo, é que o preceito clássico era de que o verso deveria comportar uma unidade de sentido. E se assim é, então se torna certo modo razoável que se exija da unidade sintática do verso o ser confrontada pelo leitor a partir de um impulso ou de um fôlego único que por conseguinte não reparta esta unidade sintática em unidades menores ― e com isto se explica o porquê designar bárbaros os versos de mais de treze sílabas. Entretanto, deve-se ter em mente que a hipótese do verso bárbaro, embora tenha sido praticada até por alguns parnasianos, ainda hoje é raramente cogitada. É verdade sim que o verso livre ou polimétrico pode chegar a tanto com facilidade, mas a ideia de compor um poema todo em versos bárbaros, ainda que livres, é incomum. Do mesmo modo, cabe lembrar que isso que apontam, do verso bárbaro ser repartível em outros com mais facilidade, não constitui por si só um crime de lesa-majestade, bastando que se recorde o dátilo de dezesseis sílabas de Carlos Alberto Nunes.

Antes, porém, de expor de maneira breve e ligeiramente suficiente os tipos clássicos de verso, cabe ressaltar que nós possuímos basicamente três grandes famílias, de acordo com a uniformidade do seu recorte: ou são versos isométricos, ou versos polimétricos ou versos livres. É meio instintivo dizer que o verso isométrico é aquele feito de apenas uma medida, de modo que os versos de um poema, se acaso escritos só em decassílabos, seriam por tabela isométricos. Caso diverso, seguindo o raciocínio, é o do polimétrico, que se permitiria algumas inserções aqui e acolá, e do livre, onde nenhuma medida seria reconhecível.

Felizmente as coisas são mais elásticas. Mesmo na versificação clássica, a depender da composição escolhida (se por exemplo uma ode), era hábito combinar versos de medidas variadas. Aliás, parece-me até defensável a afirmação de que na história da poesia lírica combinações métricas são corriqueiras a ponto do uso de uma só medida fixa ser ela própria a exceção. Basta que o leitor perscrute a amplitude encontrada na poesia de Horácio, dos nossos trovadores ou dos italianos do dolce stil nuovo para que o ateste. A inclusão de versos de seis sílabas entre versos de dez, arranjo tido como totalmente canonizado, era aplicável até mesmo aos sonetos italianos de um primeiro momento, à guisa do que se vê em tantos de Dante. E esta simples informação torna por conseguinte inviável dizer que se você se deparar com um poema com duas ou mais medidas servindo de alicerce, estará diante de versos polimétricos. A isometria de um poema tem muito mais a ver com a constância e lógica interna de uma sequência do que com a variação interna de fato.

Se considerarmos aquelas composições que durante muito tempo se tentou fixar sob a nomenclatura de ode anacreôntica, por exemplo, veremos que era comum que o poeta usasse de uma plêiade de medidas ― o mesmo podendo ser dito daquelas odes em que um tom festivo e jovial prevalecia. Tal possibilidade seria expandida com o Romantismo, de modo que ao se folhear uma obra inaugural como Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, bem se nota a maneira com que a mudança do recorte métrico das passagens corresponde aos estados de espírito do poeta, instáveis, sensíveis, com o uso dos decassílabos brancos (isto é, não rimados) correspondendo a contemplações meditabundas e as redondilhas rimadas correspondendo a passagens ligeiras, cantantes e muitas vezes alegres. Com isto se observa, por tabela, que a ruptura da estética romântica para com a neoclássica já era antevista na concepção do poema, uma vez que embora tais recortes, como dito, também pudessem ser encontrados na produção de um árcade (a exemplo de saborosos momentos em Filinto Elísio), somente o eram de acordo com convenções e lugares poéticos consagrados.

Um exemplo de isometria mas com várias medidas é a Cantata de Dido, de Correia Garção. Cito seu final:

        Depois, atenta na lustrosa malha
                  Do prófugo Dardânio,
        Estas últimas vozes repetia,
        E os lastimosos, lúgubres acentos,
        Pelas áureas abóbodas voando
        Longo tempo depois gemer se ouviram:
                  Doces despojos
                  Tão bem logrados
                  Dos olhos meus,
                  Enquanto os fados,
                  Enquanto Deus
                  O consentiam.
                  Da triste Dido
                  A alma aceitai,
                  Destes cuidados
                  Me libertai.
                  Dido infelice
                  Assaz viveu;
                  D'alta Cartago
                  O muro ergueu:
                  Agora, nua,
                  Já de Caronte
                  A sombra sua
                  Na barca feia
                  De Flegetonte
                  A negra Veia
                  Sulcando vai.

Massaud Moisés chama esta de uma das "mais felizes composições poéticas do Arcadismo português" e Almeida Garrett de "das mais sublimes concepções do engenho humano, das mais perfeitas obras executadas da mão do homem". Vem de uma peça em que o poeta retrata a apreensão de uma família que, endividada por viver no luxo e na riqueza, agora se vê à beira da bancarrota. Estão todos congregados recitando poemas de ocasião, dentre elas a Cantata. Realmente: o contorno dos versos é memorável, donde se pode, ainda na esteira do crítico, observar a maneira com que o solene dos decassílabos mesclados a hexassílabos imprime uma força poética que lembra o episódio da morte de Inês na epopeia camoniana; contudo, o que pareceu mais impressionante ao crítico e provavelmente ao poeta é que nos tetrassílabos existe um quê de popular que parece prenunciar o Romantismo vindouro. Neles é como se o sentimento de piedade para com a cena da rainha se suicidando se condensasse a ponto de salientar tão somente a dor sentida, ao invés dos volteios que a cena até então trazia, a exemplo de quando contrapõe os "lastimosos, lúgubres acentos" às "áureas abóbodas".

A polimetria, por outro lado, indica um recorte nos versos muito mais intenso, a ponto de parecerem até, numa análise menos atenta, livres. É o tipo de verso que foi usado à exaustão por muitos poetas daquele período que mal e mal chamamos de pré-modernismo. Verso polimétrico, portanto, é o verso que a princípio rompendo com a métrica, tão logo dissecado pelo bisturi revela o que T. S. Eliot uma vez chamou de "metro fantasma". Ou seja: um punhado considerável de decassílabos, dodecassílabos ou redondilhas que jamais deixaria de ser percebido pela audição do leitor mais sensível, ainda mais considerando as rimas que comumente amarram o invólucro de sua expressão. Mesmo um poeta que costuma ter uma das fases lidas sob a clave do verso livre, como é o caso do Drummond dos primeiros livros, foi analisado à luz da polimetria por Antonio Carlos Secchin, o que rendeu conclusões notáveis. Cabe observar também que a polimetria é um fenômeno eu reputo corriqueiro hoje em dia, de modo que se tomarmos muitos dos melhores poemas de Leminski, encontraremos neles um punhado de versos de medida mais ou menos constante, o que, a par das rimas e da estrutura paranomásica firme, cria aquele maciço sonoro que deu fama ao poeta.

Um bom exemplo do uso destes versos em nossa literatura advém da pena de Gilka Machado:

        Os teus meneios
        são
        cheios
        de meus anseios;
        a tua dança é a exteriorização
        de tudo quanto sinto:
        minha imaginação
        e meu instinto
        movem-se nela alternadamente;
        minha volúpia, vejo-a torça, no ar,
        quando teu corpo lânguido, indolente,
        sensibiliza a quietação do ambiente,
        ora a crescer, ora a minguar
        numa flexuosidade de serpente
        a se enroscar
        e a se desenroscar.

A justa e aguardada reedição da obra poética da autora trouxe consigo a lembrança de que ela foi a primeira mulher a escrever versos eróticos no país. Ato de extrema coragem, sem dúvidas, realçado pela qualidade e intenso sensualismo que marcou sua produção: nos versos citados, o recorte polimétrico parece aderir-se ao corpo da voz lírica e representar um arfar erótico, à maneira do que a enunciação fortemente pausada e enfática nos quatro primeiros versos dá a entender. Ora: quem for escandir o trecho notará que existem decassílabos heroicos perfeitos, à maneira de "minha volúpia, vejo-a torça, no ar", onde a marcação tônica de todas as cinco vogais dá uma sonoridade estupenda ao verso. Comentário análogo pode ser feito ao verso anterior, no qual a elevação de nossa voz ao pronunciarmos o "al-" de "alternadamente" (que aparece inculcando um hiato) parece sobressaltar a pele do poema.

O verso livre, por fim, é aquele em que a possibilidade de falarmos de uma cadência quantificada se torna distante a ponto de ser improvável. Manuel Bandeira dizia que só chegou ao verso livre de fato em seu Carnaval, de sorte que aqueles livros anteriores, caracterizados por alguns críticos como possuidores de versos livres (um exemplo é Ritmo dissoluto, de título sugestivo), não possuíam na verdade versos que se pudesse dizer como livres, uma vez que a sombra do decassílabo ou do dodecassílabo se fazia presente.

O primeiro a usar o verso livre no país foi um poeta de recorte parnasiano chamado Guerra-Durval. De lá pra cá sua voga e fama só cresceu. Todavia, a liberdade implícita em seu conceito é falsa com muita facilidade. T. S. Eliot certa feita disse que o poeta que realmente intenta fazer um bom trabalho não escreve, em absoluto, um verso "livre". Os cânones versificatórios, diz Alfredo Bosi, tratavam as sílabas acentuáveis com rigor e prescrição, mas nem por isso iam contra "a natureza do sistema expiratório, que é cíclica: vigora, no verso metrificado, o processo de alternância dos contrários." Assim, seja com base na métrica, em que se destaca "do fluxo oral a essência nua da alternância", fixando-a logo após, seja com base no verso livre, em que se potencializa "o caráter ondeante, aberto e vário da fala" ― em ambos os casos deve presidir uma preocupação com a fisionomia do discurso poético, "tecido de sons" crescido "nas fibras espessas das palavras". E tão difícil é fazê-lo no verso livre sem que se caia no desleixo e na ilusão das expressividades miúdas, que uma educação no verso isométrico ou mesmo polimétrico pode ser de grande valia, no que podemos nos lembrar de Mário Quinana chamando-a de "bela ginástica" e sugerindo ao jovem poeta "que só tem capacidade e moral para criar ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico." Parece exagerado, mas vindo de quem um dia definiu o poema como "parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo)", merece no mínimo atenção.

Nestes termos cabe mencionar o fato de que embora, por assim dizer, emancipado, isto não isentou o verso livre de sofrer classificações. Podemos pensar, por exemplo, naquele verso livre que mantém a pontuação e naquele que a dispensa: opções simples que possuem impactos profundos para a experiência do leitor. Do mesmo modo, podemos, conforme tem sido feito por Paulo Henriques Britto ao estudar o tema e aplicá-lo à poesia contemporânea, distinguir entre uma matriz whitmaniana e uma matriz williamsiana. A primeira se liga ao verso livre praticado pelo americano Walt Whitman, que em 1855 publicou um livro a que se chama no mínimo de criador da modernidade poética. Não é pra menos: impresso de maneira zelosa e poder-se-ia dizer quase que artesanal, onde até a escolha da fonte usada no título guarda significados, a extensão dos versos whitmanianos era tão grande que o livro precisou ser estampado em folhas de quase 20 centímetros de largura. Neles o poeta usa uma estrutura largamente enumerativa em que retrata a vida moderna com uma vivacidade raramente igualada na poesia que viria depois. É um tipo de verso que exigia do poeta uma consciência rítmica muito marcada, e prova disso é que Whitman amarrou as peças com uma cadência presente, embora livre e aprazível, bem como com recursos que iam das aliterações às assonâncias. Só raramente esse tipo de verso foi praticado depois. Em português cabe citar as grandes odes de Álvaro de Campos, um livro como o Raça, de Guilherme de Almeida, ou os pesadamente reflexivos de parte da obra de Alexei Bueno.

        Eu vi
        boi de carro, emasculado.
        Castrado.
        Tortura das glândulas esmagadas
        ― torquês, macete.
        Infecundo, manteúdo, forte.
        Boa caixa ― boi de guia, boi do coice, boi do meio.

É uma estrofe de um forte poema de Cora Coralina chamado Evém Boiada. Sempre que posso tenho me perguntado se a simplicidade da poesia da autora não é uma espécie de armadilha que nós leitores, impressionados pela carta de Drummond e pela narrativa da simpática velhinha doceira numa cidade do interior, com frequência caímos. Como, porém, manter a mesma postura perante uma mulher que se dizia simpatizar com "a vida mera das obscuras" e que, no trecho citado, ao ver um vagão de gado contempla as genitálias castradas dos animais? A brutalidade da situação é terrível: torquês é um alicate que se usa para prensar o testículo e o macete é uma marreta. Pense na cena e busque manter a inteireza do discurso. O verso livre, indo e vindo, o verso livre, partindo da maneira enfática com que a primeira pessoa do verbo "ver" arremata o primeiro verso da estrofe, me parece uma maneira eficiente da autora retratar a cena e escancarar o profundo incômodo que aquilo lhe causava. Afinal de contas não custa lembrar que "vi" é o único verbo do trecho citado, no que se faz seguir de um enfoque conciso na figura dos bois, retratando a maneira com que a castração violenta que sofrem é feita com o objetivo de realçar o artifício de uma força agropecuária: neste sentido, ver a hábil transição das vogais tônicas no verso "Infecundo, manteúdo, forte".

Caso contrário ocorre com aquele verso livre desenvolvido pelo também americano William Carlos Williams, onde a extensão menor e a tendência para construções lapidares, ágeis e compactas é o que lhe marca de maneira mais detida. Prova disso é o renomado poema sobre o red wheelbarrow, cuja simplicidade e trato sem rodeios do carrinho de mão conseguem insuflar até mesmo uma misteriosa beleza à cena. Se o verso livre whitmaniano encontrou poucos adeptos com o passar dos anos, o verso livre williamsiano parece ser o predominante hoje em dia, usado com mais ênfase e consciência a partir da segunda metade do século por poetas tão díspares e ao mesmo tempo tão hábeis como Ferreira Gullar ou Orides Fontela. Do Poema Sujo:

                                         claro claro
                                         mais que claro
                                                                raro
        o relâmpago clareia os continentes passados:
                                                                                  noite e jasmim
                                                                                  junto à casa

Conheço poucos momentos líricos que consigam tanto mobilizando tão pouco. Nele observamos dois temas fundamentais na poesia do autor: o relâmpago, sinônimo de deslumbre e poesia, e o perfume do jasmim, de função análoga mas nem sempre perceptível, sendo capaz, a seu turno, de envolver o poeta de maneira mais ampla e permanente que a súbita aparição do relâmpago. Ora: o recorte dos versos permite que as frases e as palavras como que levitem na superfície da página em branco, de modo que a caracterização de "claro" e "raro" não é atribuível de forma tão automática por exemplo ao relâmpago do terceiro verso, podendo, antes, se referir a uma terceira coisa que permanece implícita e que não obstante parece ser a responsável por energizar os vocábulos do texto longe da linearidade discursiva do verso tradicional. Em suma, frases soltas que em suas pequeninas indeterminações levam o leitor a conectar e a preencher de maneira íntima as sinfonias que os espaços da página em branco oferecem. E veja que com o uso do termo "sinfonias" não me fantasio ou invento ― o primeiro poeta a se valer deste recurso e a usar a comparação com a Sinfonia foi o grande simbolista Stephane Mallarmé em seu Un coup de dés, obra de modernidade e radicalidade ainda hoje embasbacantes...





MEDIDA VELHA, ARTE MENOR.

Já como forma de visar a exposição dos versos canônicos de nossa poesia, caberia, por fim, remeter o leitor ao conceito de contrato métrico. Certo modo abstrata, a ideia também pode ser chamada de modelo de verso (verse design) e atua sobre o que se chama exemplo de verso (verse instance). Sobre o assunto Roman Jakobson se expressou: "O modelo de verso determina as características invariáveis dos exemplos de verso e estabelece o limite de variações." Muito usado no Brasil por Paulo Henriques Britto, o conceito de contrato métrico envolve um padrão rítmico ideal proposto pelo poema a seu leitor, de modo que este, iniciando a leitura, pouco a pouco cria e mantém uma expectativa de acordo com o contrato tacitamente firmado, isso mesmo sabendo que o texto pode mudar algumas de suas estratégias no correr dos versos desde que não o faça de maneira ostensiva a ponto de negar o esboço geral do próprio contrato.

O conceito tende a ser muito útil se trabalhado com o de contraponto métrico, também desenvolvido por Paulo Henriques Britto a partir da prosódia inglesa, especificamente Gerard Manley Hopkins. Designa, resumidamente, a possibilidade de que existam padrões internos de cadência dentro de um mesmo poema ― mas um poema que, a partir de uma análise superficial (posto que limitada à contagem das sílabas e não à detecção dos acentos), críamos como possuidor de um único padrão. Assim, da existência de dois ou mais padrões métricos inerentes ao texto, temos o contraponto métrico teorizado por Hopkins, de modo que o novo ritmo atua sobre o poema sem que o anterior, a que estávamos acostumados e com o qual firmamos o contrato, desapareça de nossa percepção. Paulo Henriques Britto estudou o contraponto métrico de forma notável a partir de poemas de Drummond e Pessoa: do primeiro, por exemplo, basta que o leitor perceba a maneria com que, em José, a passagem "Se você gritasse / se você gemesse / etc" instaura um ritmo ternário que se contrapõe ao que até então era desenvolvido no poema.

Além destes conceitos, cabe rememorar a noção da cesura. Do que ficou exposto, pôde-se perceber que a métrica silábica não se preocupa com a distribuição dos acentos no interior de um número determinado de sílabas. Ocorre que isto é apenas em tese e não, especificamente, para aqueles versos de arte maior, onde a exigência da chamada cesura se torna imperiosa. Cesura, como dito antes, é uma pausa mais forte no interior do verso capaz de estabelecer uma espécie de padrão interno. Dependendo do tipo de verso é comum dizer que a cesura cria dois hemistíquios, ou seja, duas metades. É uma designação importante para que se conceba a dinâmica interna por exemplo do alexandrino francês.

No caso dos versos de arte menor, não existem exigências que demandem por parte do poeta a colocação de cesuras em lugares específicos. Eventualmente se pode exigir que coloque a cesura aqui ou ali a fim de criar um ritmo especial ao texto, mas isto será uma opção do poeta e não uma condição sine qua non de existência do verso. De modo análogo, deve-se ter em mente que dos versos de arte menor, só os de cinco, de sete e de oito sílabas receberam maior atenção. Os outros são usados apenas de forma esporádica.

Trocando em miúdos, abordar os versos de uma ou de duas sílabas seria quando muito efeméride. Segismundo Spina lembra que Jean Molinet em sua Art de Rhétorique (século XV, senhoras e senhores, século XV!) já dava exemplos abobalhados disto:

        Je
        Boy,
        Se
        Je
        He
        Voy,
        Je
        Boys

        Ton nom
        Me plait,
        Hennon;
        Ton nom;
        Mais non
        Ton plaist
        Ton nom
        Me plait.

Modernamente podemos nos lembrar de Rimbaud no soneto Le cocher ivre, que uma vez Augusto de Campos definiu como um "miniantisoneto, para acabar com todos os sonetos". Realmente: incluso no Album Zutique, a mesma publicação onde Rimbaud e Verlaine publicariam um soneto do olho do cu, me parece francamente inacreditável que pelo menos depois de experiências assim se queira abordar, hoje, o soneto com a mesma sacralização de antanho, valendo-se de toda aquele cabedal de imagens sobre uma escada dando para o Inefável etc etc. Mas também podemos pensar no Casimiro de Abreu de A valsa ou naquele Fernando Pessoa a barlavento, quando a concisão chega a seu ápice e arrebenta um dique de sabedoria a cada pergunta e resposta:

        Dizem?
        Esquecem.
        Não dizem?
        Disseram.

        Fazem?
        Fatal.
        Não fazem?
        Igual.

        Por quê
        Esperar?
        Tudo é
        Sonhar.

Os versos de cinco e sete sílabas, como dito, são respectivamente chamados de redondilha menor e maior. São os versos esmagadoramente usados na poesia popular, muito embora recebam comumente atenção de poetas eruditos do quilate de Fernando Pessoa ortônimo ou de João Cabral. A eles se acrescenta o verso de oito sílabas, que é apontado como o mais antigo da literatura francesa, base para a escrita de tantas obras célebres naquela literatura, a exemplo do Roman de la Rose. Em português ele só foi praticado de maneira enfática pelos trovadores, que, graças à lei de Mussafia, conseguiam mesclar de forma harmônica os octossílabos agudos a heptassílabos graves.

Uma vez que a versificação trovadoresca, como demonstrado pelo estudo alentado de Gladis Massini-Cagliari, possuía forte influência provençal, então o uso do octossilábico se explica. Esse estudo acaba por apontar também uma curiosa relação entre os versos de oito e sete sílabas, já que, como dito, se já no século XVI possuíamos uma inegável ascendência ibérica em nossa versificação, isso consolidou como que por conseguinte a prática do verso de sete sílabas, a qual, embora não tivesse tamanha predominância e proeminência nas cantigas trovadorescas, no mínimo era tida como recurso expressivo corriqueiro pelos poetas de então. De todo modo, quanto ao octossílabo o fato é que, afora este apreço inicial, de origem provençal, depois o que claramente se nota é que ele foi praticado com parcimônia e relativo interesse pelos românticos, parnasianos, simbolistas e modernos (destes últimos cabendo citar o nível de excelência e insistência logrado por Alberto da Cunha Melo), coisa que, por óbvio, em absoluto não lhe retira o interesse.

Cito novamente Pessoa como exemplo de redondilha menor:

        Que angústia me enlaça?
        Que amor não se explica
        É a vela que passa
        Na noite que fica.

Não sou muito bom em decorar poemas, mas guardo esta estrofe como quem guarda uma razão para viver. A maneira com que o poeta reinventa o sentido do "que" nos dois primeiros versos é magnífica: sai da ênfase interrogativa e chega na resposta. Transposto para exemplos mais claros, enquanto o primeiro "que" cumpre a mesma função de na pergunta "que bicho me mordeu?", o segundo cumpre a mesma de respondermos a um amigo que nos confessa ter perdido uma partida de futebol: "que você não tenha vencido é óbvio, pois é um perna de pau". Isto, todavia, com uma concisão poderosíssima e dando ensejo a uma estupenda metáfora para a passagem inexplicável e cativante do amor, pequenina luz que aclara nossa existência e depois desaparece: brief candle, certa feita disse Macbeth.

        Procurando o céu, aflitos
        e varando o céu de gritos.

Já este trecho, exemplificando a redondilha maior, é de um poema de Cruz e Sousa chamado Litania dos pobres. Comovente, comovente. A transposição do sentido litúrgico da litania, composta de pequenas deprecações que erigem uma única prece, foi apropriado pelos poetas simbolistas com grande efeito expressivo. Se considerarmos que Cruz e Sousa conseguia escrever estrofes e mais estrofes sem que verbo algum movimentasse a cena, baseando-se, antes, na intensa sugestão que seus versos eram capazes de evocar no leitor (e, o que é curioso, a partir destas evocações, suscitar um movimento mental), então parece que a forma da litania se amolda muito bem ao poema, ajudada pela escolha de um verso curto que imprime toda uma agilidade diversa do que a solenidade dos alexandrinos, geralmente usados nas litanias simbolistas (algumas de tom fortemente iconoclasta como aquela, satânica, de Baudelaire), tende a sugerir. Da passagem, ressalto que existe uma rima tripla que amarra o texto: é aquela entre os verbos no gerúndio, é aquela que correlaciona o vocábulo "céu" em cima e embaixo, e é aquela última, aflitos―gritos, talvez a mais importante por instituir um corte na enunciação do primeiro e verso e deixar portanto sua ideia em aberto, fazendo, assim, com que a ênfase recebida acelere a leitura do próximo e recrudesça, ouso dizer, a dor expressa da imagem retratada.

        Donas do campo, as ondas rugem;
        E o monstro, impando de ousadia,
        Pragueja, insulta, desafia
        O céu, cuspindo-lhe a salsugem.

Por fim, nestes, octossílabos saídos de um poema de Vicente de Carvalho em que o poeta descreve a luta enfurecida entre o vento e o mar seguida, como reza o título, de sugestões crepusculares; nestes bem se nota a vivacidade com que a cena é retratada, repleta de sons anasalados que dão a impressão de estrondos na superfície do texto. E, verdade seja dita, não só esta impressão, mas também aquela de que poucos são os poetas brasileiros que ousaram retratar o mar com a mesma graciosidade do poeta paulista. A escolha das oito sílabas implica uma tímida expansão se comparável à redondilha menor, sem, contudo, que adentre a região dos versos de maior fôlego. É como, sendo assim, o artista tencionasse um verso que lhe permitisse o retrato preciso da cena, consentindo que maciços compactos de sonoridades permeassem as estrofes, à maneira do modo com que os verbos povoando a segunda metade realçam a altivez celeste no último deles ou, já neste, o modo com que a força da vogal tônica fechando a estrofe dilata a potência com que o último verbo, "cuspindo", aparece.





MEDIDA NOVA, ARTE MAIOR.

Os versos de arte maior, a seu turno, exigem distribuição das cesuras, a tal ponto que alguns dos esquemas internos são agraciados com títulos específicos. Em língua portuguesa o mais usado é o decassílabo, que recebe principalmente as designações de heroico ou de sáfico: heroico se apresenta um acento obrigatório na sexta sílaba e sáfico se apresenta dois acentos obrigatórios na quarta e na oitava. Como exemplos respectivos, cite-se o verso de abertura de um soneto de Ariano Suassuna e o último do célebre episódio da morte de Lindoia em O Uraguay:

        Aqui morava um Rei quando eu menino
        [Aqui morava um REI] [quando eu menino]
     
        Tanto era bela no seu rosto a morte!
        [Tanto era BEla] [no seu ROSto a morte!]

O verso sáfico é comumente concebido como muleta do heroico. Quer dizer que se o poeta em algum trecho não conseguir manter o heroico, ele pode se valer do sáfico que em tese não haveria problema algum. Se para os clássicos isto havia de ser reduzido a um mínimo, com os modernos a proporção chega a níveis elevados, a ponto do poema se tornar uma espécie de híbrido. Todavia, deve-se ter em mente que a sonoridade de um decassílabo heroico não é a mesma do sáfico, o que a dupla pausa obrigatória no interior deste último bem atesta. Uma forma de observá-lo é ver como no verso de Ariano Suassuna o monossílabo grafado em maiúscula denota imponência. Existem, por óbvio, outros acentos dentro do verso, mas é como se todos se subordinassem a este vocábulo, muito à maneira do que ocorre com a tônica de "quando" surgindo combalida ao ter sua entonação deslocada. Compare-se, a seu turno, com o verso de Basílio da Gama. Péricles Eugênio da Silva Ramos, comentando aquele fato já conhecido de que o poeta árcade imitou o último verso do Trionfo della morte de Petrarca, "Morte bella parea nel suo bel viso", comenta que a mudança da acentuação heroica no original petrarquiano para uma acentuação sáfica, aliada a uma distribuição harmônica das assonâncias, é o bastante para que o verso do brasileiro ganhe em garbo e lirismo, opinião me parece acertada.

Existe ainda a possibilidade de que um verso possa ser lido tanto como heroico quanto como sáfico. É aquilo que Glauco Mattoso chamou de verso hermafrodita. Isto é: verso acentuado na quarta, na sexta e na oitava. Um exemplo é este verso, que abre um soneto de B. Lopes: "Senhora, adeus! Troveja. Em cada frincha" ― onde o tripé das cesuras demarca três roupagens que o eu lírico adota diante dos sentimentos e da cena retratada.

De todo modo, o decassílabo moderno, de forte impacto italiano, pois que italiana é a predominância das acentuações heroicas e sáficas, possui uma ojeriza a acentos que recaiam na quinta ou na sétima sílaba, o que faria destes versos versos defeituosos. É uma opinião que deve ser rechaçada, afinal de contas na poesia trovadoresca, conforme argumentam estudiosos do porte de Segismundo Spina ou Rodrigues Lapa, a tendência era de se apresentar um decassílabo com andamento anapéstico ou datílico que possuía como liame interno a forte tendência para um acento na sétima (como no caso do verso de abertura de uma belíssima cantiga de amigo de D. Duarte: "Tôdalas cousas eu vejo partir"), não sendo de todo incomuns os acentos na quinta. Logo, é preciso cautela antes de cair no automatismo da narrativa oficial, achando que pelo fato de que Sá de Miranda trouxe consigo novidades da Itália, ele tenha trazido, grosso modo, o conceito e a prática do decassílabo. O decassílabo como medida nova é tão somente o decassílabo de acento majoritariamente heroico ou sáfico que relega a segundo plano os andamentos datílicos e anapésticos e, por conseguinte, os acentos na sétima e na quinta.

Prova disso é que os versos de nove e de onze sílabas guardam consigo a exigência de que o acento recaia, ora pois, na quinta ou na sétima sílaba. Se de um modo geral só casualmente são praticados, não custa assinalar que o de nove sílabas foi muito praticado pelos simbolistas, que o acentuavam na quarta, nem custa reafirmar que nas mãos dos românticos ambos os versos, como dito, se tornaram um dos prodígios de nossa histórica poética. Lembremos uma estrofe do Crepúsculo sertanejo de Castro Alves:

        A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
        Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
        As trevas rasteiras com o ventre por terra
        Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

Toda a capacidade do jovem poeta, um dos mais talentosos de nossa literatura, está resumida neste quarteto fabuloso, onde os anapestos imprimem um ritmo extremamente agradável à caçada furtiva e instigante de algo que se move por toda parte, à guisa do que está expresso nos dois primeiros versos ― situação esta que é arrematada pelo aparecimento dos leopardos, absolutamente memorável graças não só à maneira com que a cena nos foi apresentada, imagem e ritmo mesclando-se de maneira perfeita, como, ainda, à maneira com que a forte teia aliterativa do terceiro verso se estende e incute rapidez e velocidade ao texto.

Por fim, no âmbito do decassílabo, mencione-se o caso dos decassílabos de tipo gaita moinheira, também chamado de gaita galega, ainda usados na poesia popular. É a ele que Segismundo Spina chama de verdeiro verso de arte maior no contexto da poesia medieval, visto manter o acento na sétima e permitir a lógica anapéstica ou datílica do decassílabo daquele período. Com isto nós por certo afastamos a pretensão de tratar as medidas velhas da poesia trovadoresca como algo ultrapassado... Mencione-se também o caso do martelo agalopado, tipo de verso que poderia ser incluso no âmbito dos heroicos não fosse a acentuação obrigatória também na terceira sílaba. Cavalcanti Proença sobre ele assim se manifesta:

O nome dado a esse verso fica, em parte, compreensível: agalopado, porque apresenta dois tempos de galope 3+3, embora se alargue num segmento final de quatro sílabas. Um vaqueiro só poderia defini-lo em termos de uma andadura de cavalo: dois tempos de galope (3+3) e dois de trote curto para esbarrar o animal (2-2).

Um belo exemplo, que certa feita chamou a atenção de Augusto de Campos num instigante ensaio a respeito da arte poética dos cantadores, posteriormente incluso no livro em que reúne suas traduções para os metafísicos ingleses e para os provençais, é este, de uma peleja entre Domingos Fonseca e o cego Aderaldo, dois célebres cantadores nordestinos. Augusto, citando Câmara Cascudo, nota que a improvisação usando o martelo agalopado é das mais difíceis e prezadas na poesia popular, sendo que ela com frequência se reveste da jactância e nonsense encontráveis na melhor tradição do chamado ἀδύνατα, termo grego para designar um lugar-comum poético em que coisas impossíveis são cantadas. As estrofes de abertura e encerramento, de Domingos Fonseca e do cego Aderaldo respectivamente, são:

        Faço o ano mudar-se em uma hora,
        Faço a noite mudar-se em linda aurora,
        Faço uma rua mudar-se em cinco becos,
        Faço um fogo de folhas e paus secos,
        Toco fogo no mundo e vou-me embora.

        Faço lobo na cova se esconder,
        Gibóia ao me sentir fica a tremer,
        Hipopótamo me serve de cavalo,
        Faço o Eixo da Terra das estalo,
        Faço a morte ter medo de morrer.

Se apenas lendo estes versos já consigo me embalar no ritmo da coisa, imagino como estaria se pudesse presenciar seu improviso. O martelo agalopado aqui cumpre função importantíssima, uma vez que o acento obrigatório na terceira sílaba e aquele outro na sexta demarcam e fixam na mente do leitor o objeto a ser mudado e o próprio ato da mudança.

Por fim, chegamos ao verso de doze sílabas. Majoritariamente usado na poesia francesa, tornou-se célebre de início nas canções de gesta mas depois se expandiu a ponto de abarcar a quase totalidade da poesia francesa, tornando-se o metro padrão daquela língua. Lá, portanto, temos um caso diverso do que ocorre aqui: enquanto o decassílabo é para os franceses o verso arcaico, o alexandrino é o moderno e padrão. Curioso exemplo é o de Paul Valéry, que, seguindo a senda aberta por Edgar Allan Poe, quis aplicar uma medida que lhe parecesse corresponder ao sabor ancestral do poema que gestava, no que se afastou do alexandrino e abraçou o decassílabo, resultando, desta escolha, o Cimitière marin.

Em português o dodecassílabo já era praticado pelos trovadores nas cantigas paralelísticas (como a De que morredes, filha, a do corpo velido, de D. Dinis), mas foi só séculos depois, com os parnasianos, que ele se espraiou a ponto de ameaçar a hegemonia decassilábica. Possui dois modelos de acentuação principais: aquele que faz a cesura recair na sexta sílaba, o que geralmente lhe dá o nome de verso alexandrino (todavia, parêntesis necessário, o leitor deve notar que a designação só surgiu no século XV e que ela acaba sendo virtualmente aplicável a qualquer dodecassílabo), e aquele que faz a cesura recair na quarta e na oitava, o que geralmente lhe dá o nome de romântico, posto que usado com relativa insistência por um poeta do porte de Victor Hugo, que, assim procedendo, contribuiu para retirar a densa energia que recaía no alexandrino acentuado na sexta, projeto este que significou um passo inicial a princípio tímido mas importante para o desmantelo progressivo que o verso sofreria décadas depois com os grandes mestres simbolistas.

Alexandrino com acento na sexta, de corte devidamente francês, é este, de Machado de Assis:

        Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

É de um poema chamado Uma criatura, em que o Mestre passa o texto todo descrevendo uma "criatura antiga e formidável" que em tudo se assemelha à Morte. Um exemplo: "Friamente contempla o desespero e o gozo, / gosta do colibri, como gosta do verme, / e cinge ao coração o belo e o monstruoso." Ocorre, todavia, que a mudança de sentido expressa admiravelmente no último verso nos impele a reler todo o poema e redescobrirmos um sentido que estava como que debaixo do nosso nariz, ao mesmo tempo que nos leva a meditar como Vida e Morte com facilidade se confundem ou, o que me parece mais próximo da visão desoladora de Machado, como a Vida também corrompe e desgasta: "E é nesse destruir que suas forças dobra". No âmbito do verso utilizado, Machado foi um mestre reconhecido em seu tempo: prova disto é que para Feliciano de Castilho ele era príncipe dos alexandrinos. Lendo-o, outra não é a impressão: a transição entre as duas metades do verso é harmônica, no que a sinalefa interna entre a sexta e a sétima sílaba, requisito essencial para que o chamado alexandrino francês pudesse vir à tona (logo mais o veremos), eleva-se a ponto de se tornar requisito fundamental para que a surpresa do fecho surja e desbarate o castelinho de cartas até então apresentado.

Romântico, a seu turno, é este de Caetano Veloso:

        Da cajuína cristalina em Teresina.

É de uma canção em que Caetano narra o encontro que teve com o pai de Torquato Neto, talentoso artista e nome central da Tropicália. Torquato havia se matado anos antes, mas seu pai até então nunca havia desabafado sobre o assunto. Naquela situação, contudo, tomando uma bebida levemente alcoólica chamada cajuína e conversando com Caetano, ele desabou em prantos. Num poema que parte de uma fina investigação metafísica ("Existirmos, a que é que se destina?"), a rima interna na exata posição das cesuras do alexandrino romântico parece criar pontadas de dor lancinantes dentro do poema. Mas não só: a cajuína passa a ser exemplo perfeito daquilo que T. S. Eliot chamou de "correlato objetivo": um conjunto de eventos, uma situação ou objetos que consigam dar concretude a um sentimento abstrato. No caso da bela canção, a dor incomparável da perda de um filho e o questionamento sobre a existência.

Antes, porém, de chegarmos ao alexandrino francês, cabe fazer um interlúdio. Nos tratados de arte poética antigos, mencionava-se a existência, ao lado do chamado verso italiano ou heroico, de um dito verso de arte maior. Este nada mais é que um verso composto, é dizer, para ser escrito era necessário literalmente escrever dois. No caso, dois redondilhos maiores (o que o faria ter quatorze sílabas) ou menores (o que o faria ter doze). Filipe Nunes, na sua Arte poética, conceitua assim o verso de arte maior:

O verso de arte maior se compõe de dois versos juntos em um dos de redondilho menor: de modo que vem a ter doze sílabas, e o mais perfeito é aquele que se compõe de dois menores que tenham a segunda sílaba longa. Exemplo: Perdone quien puede peccados tan grandes. Também pode ter duas sílabas menos como se compõem de dois versos, uma noite meio e outra no fim. Exemplo: Entré en un jardin, herido de amor.

Os versos citados podem ser perfeitamente repartidos da seguinte forma:

        Perdone quien puede peccados tan grandes
        Perdone quien puede
                                          peccados tan grandes

        Entré em un jardin, herido de amor
        Entré em un jardin,
                                        herido de amor.

O verso de arte maior chegou a ser praticado com relativa constância até os românticos. Isso explica a razão de alguns versos destes poetas parecerem possuir uma métrica "frouxa". Não é que a possuam: é que aplicavam um tipo de verso que depois se tornou obsoleto. É possível que o leitor com um pouco mais de leitura sobre versificação já tenha ouvido falar de uns tais alexandrinos espanhóis ou arcaicos que eram praticados antes dos parnasianos, no que se costuma citar muito o Castro Alves de O Vidente ou o Basílio da Gama tradutor de Dorat em A declamação trágica.

Pois bem. É uma forma equivocada de conceber a questão. Primeiro porque designá-los espanhóis é errado, uma vez que, embora sejam realmente antigos na poesia espanhola, bastando que se note o chamado mester de clerecía, já na França havia um verso de mecanismo análogo em que o primeiro hemistíquio recebia cesura masculina (a chamada cesura épica) e com isto desprezava as sílabas postônicas de seu final. Segundo pelo fato da designação "arcaico" ter sido feita por um parnasiano: Alberto de Oliveira. E terceiro pois dá uma descrição do funcionamento do suposto alexandrino espanhol que ignora detalhes importantes de sua concepção. Ou seja: diz-se que o poeta, quando chegasse na palavra que ocupava a posição da sexta sílaba poética, deveria, caso fosse paroxítona ou proparoxítona, ter suas sílabas postônicas inteiramente desconsideradas. Logo, num poema de Castro Alves como Poeta, se nos deparamos com três versos tais como:

        1) Sentes a alma de Deus na criação brilhar!
        2) Poeta, às horas mortas que o cálice azulado
        3) Eu vi-te ao clarão, trêmulo dos astros lá n'altura

Devemos nos comportar pensando: ― como no primeiro caso a palavra que ocupa a posição da sexta sílaba tônica do verso é "Deus", então tudo certo, não precisamos desconsiderar nada; agora como no segundo verso a palavra é "mortas", então devemos desconsiderar o "-tas" de "mortas", o mesmo ocorrendo no terceiro verso, onde, diante da palavra "trêmulo", que ocupa tal posição, é nosso dever desconsiderar "-mulo".

Nada disso! O que Castro Alves fez aqui foi compor segundo a sistemática do verso de arte maior. Veja:

        Sentes a alma de Deus
                                             na criação brilhar!
        Poeta, às horas mortas
                                              que o cálice azulado
        Eu vi-te ao clarão, trêmulo
                                                     dos astros lá n'altura

(De se lembrar que, pela contagem vigente à época, os versos do composto possuíam sete sílabas cada ― no que o verso totaliza quatorze e não treze nem doze ―, de modo que "Deus" devia ser contado como duas, pois que aguda, e "trêmulo" apenas duas, pois que esdrúxulo.)

Trata-se de uma observação importante pois se seguirmos a lógica do que chamam de alexandrino espanhol, tem-se que nos versos de alguns românticos teríamos aqui e ali verdadeiros alexandrinos franceses avant la lettre (ou "alexandrinos mistos", como também chegaram a batizar). E no entanto, não é o que ocorre. Péricles Eugênio da Silva Ramos, que estudou de forma profunda o verso usado pelos românticos, dá como exemplo este de Fagundes Varela:

        O mato virgem dorme. As ondas de verdura

Aqui pode-se pensar que estamos diante de um alexandrino francês, conforme será logo mais explicado. Todavia, o leitor deve ter em mente que sempre existe um hiato forçado, como de costume, no caso daquele verso composto romântico em que um dos hemistíquios finda com a vogal de uma palavra grave e o segundo principia com vogal. Claro que nem sempre os românticos respeitaram a proporção entre as duas metades do verso de arte maior, e prova disso é que Quirino dos Santos, prefaciando uma célebre edição das obras de Varela, chama o poeta de versificador imperfeito por não ter dado a devida importância à simetria dos versos compostos. Cita como exemplo "Conteve-se o bárbaro. ― Mísero cão!" e "Humilha-te, abaixa-te, é tempo senão".

Obviamente que com uma informação desta em mãos o leitor mais atento passará a ver muitos versos românticos de maneira distinta, o que é em absoluto desejável. Mas não só: o verso composto ou de arte maior, embora quase não usado depois, encontrou um adepto ilustre em Bruno Tolentino, que em seu último livro publicado em vida, A imitação do amanhecer, longa sequência de sonetos escritos em versos compostos, conseguiu, graças a tal procedimento, uma elasticidade capaz de imprimir a seu texto uma força coloquial notável, além de dramatizar a maneira com que princípios formais mais elevados, por exemplo a lógica silogística intrínseca ao soneto, entram em tensão com a maleabilidade própria do verso utilizado, tudo estabelecendo um palco para os embates metafísicos que a busca pela transcendência numa contingência humana crepuscular tende a sugerir. Apenas um exemplo, colhido do soneto 61 da primeira parte:

        O tronco a que se abraça a grácil trepadeira,
        a lâmina na mão de uma breve vitória
        abrindo, abrindo uma clareira na memória
        dentro da selva estrita de uma existência inteira,

É como se existisse uma aquarela dodecassilábica nesta simples estrofe, saindo de um primeiro verso que se passa facilmente como alexandrino francês com crase entre os hemistíquios para outro alexandrino francês com monossílabo oxítono na sexta sílaba, e, após, um verso romântico e um alexandrino espanhol — ou, como defendido, um legítimo verso composto. Ora: enquanto no primeiro a crase interna reforça o liame sonoro entre os vocábulos "abraça" e "grácil", que amarram o verso numa unidade harmônica e coesa, no segundo damos uma passada enfática quando chegamos no monossílabo, seguida logo após da dispersão interna que as cesuras do terceiro acarretam consigo. Já no quarto, a seu turno, o evolar-se da última sílaba de "estrita" indica a densidade com que o verso se constrói, exacerbada pela alusão ao início da saga dantesca. Arbitrário ou tênue que a princípio se pense, uma estrofe assim denota que o poeta insufla uma carga emocional significativa a cada sílaba poética, retirando o solene artifício do passado parnasiano dos dodecassílabos e permitindo ao leitor uma relação muito mais íntima com a música interior dos sonetos encadeados.

Com isto podemos voltar ao alexandrino francês. Feliciano de Castilho, no seu Tratado, dá um golpe de misericórdia nos versos compostos. A forte influência francesa de sua obra também reside no fato de que sistematizou o alexandrino francês em nossa língua, assim se manifestando:

[o verso de doze sílabas] se compõe de dois d'aqueles [de seis]. Cabe, porém, advertir aqui por precaução, que muitos, e não só principiantes, facilmente erram nesta espécie de medida, por suporem que tenham dois versos de seis sílabas terão um de doze; não é assim, requer-se indispensavelmente que se a última palavra do primeiro é grave, a sua final breve se perca, elidida em outra vogal, por onde comece a segunda parte.

Quer dizer, noutras palavras, que o alexandrino francês bane em absoluto que a palavra sobre a qual recaia a sexta sílaba do verso seja proparoxítona. Ela pode ser, naturalmente, oxítona, o que faria com que a contagem terminasse por ali mesmo, mas, caso fosse paroxítona, ela deveria obrigatoriamente fazer com que seu final se acomodasse à vogal seguinte, o que implica dizer por conseguinte que caso o poeta escolha uma palavra paroxítona para ocupar a sexta sílaba do verso, então essa palavra não pode estar por exemplo no plural e nem a próxima palavra pode começar com consoante. Difícil, não acha? Realmente. No francês a regra flui pois existe uma esmagadora maioria de palavras masculinas ou oxítonas na língua, bem o contrário do português, de tendência paroxítona. Isto ajuda a explicar o apreço dos parnasianos pela forma, que não só exigia mais esforço, dedicação e labor por parte do poeta, como fazia com que ele se aproximasse um pouco mais dos grandes modelos franceses. Como exemplo, citemos a abertura de um belo soneto de Alphonsus de Guimaraens:

        Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
        Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março

A palavra que ocupa a posição de sexta sílaba do primeiro verso é "mês". Como ela é oxítona, a contagem está perfeita. Agora no segundo verso citado, temos "maio". Ora: é paroxítona... Logo, deve se acomodar à vogal seguinte a partir de uma sinalefa.





RIMA, FORMAS E ESTROFES.

A rima é um dos recursos mais importantes da história da poesia. Se talvez pela comodidade com que polvilha aromas musicais num amontoado de caracteres, o fato é que a partir do momento em que cogitamos a pausa ao final de cada verso como, conforme Alfredo Bosi, índice "de um pensamento que toma fôlego para potenciar o que já disse e chamar o que vai dizer", então muito bem, ela energiza esse fôlego e realça a "fórmula própria do discurso ritmado": "Jogo de diferenças que se compensam e se recuperam na volta ao semelhante."

Todavia, ao abordarmos a rima, um recurso tão querido na composição poética de nossa língua, cabe lembrar que nem sempre ela se perfaz apenas de semelhanças fônicas. Ainda hoje, a depender de em que matagal você encontrou o livro que empunha, pode ser que se tope com um poeta rimando "céu" e "meu". Que mágica é essa? Simples: pelo fato de que em antologias escolares nós fatalmente encontraremos um filho de Tupã que também fazia o mesmo, o poeta, séculos depois, foi lá e o repetiu. Defeito? Nem sempre. A rima educa nossa audição, mas ao mesmo tempo ela se ressente de convenções absolutamente corriqueiras na prática poética, onde a semelhança gráfica serve de chave adequada para que se aferrolhe o cristal da fôrma com maior segurança.

Mas não só. Roman Jakobson já notava que a rima não pode ser resumida apenas à discussão a respeito do som pois ela, a rima, "implica necessàriamente uma relação semântica entre unidades rímicas". Ou seja, ela também diz respeito ao sentido, a ponto de Iuri Lotman, de maneira lapidar, dizer que "a rima não é de modo nenhum um fenômeno fonético de repetição dos sons, mas um fenômeno semântico de combinação numa repetição de sons e duma não coincidência de conceitos." Um pouco à frente, alude a um "processo complexo, dialecticamente contraditório: realce da diferença pela revelação da semelhança, por um lado, e descoberta do que é comum no que aparecia profundamente diferente, por outro."

Das classificações aplicáveis à rima, a quase totalidade foi estudada por Mello e Nóbrega no seu fundamentalíssimo Rima e poesia. Podemos apontar uma divisão da rima segundo sua disposição no espaço, no que chegaríamos a conceitos como os de rimas emparelhadas (aabb), alternadas (abab), abraçadas (abba) etc etc, ou, internamente, em rimas leoninas (quando dentro de um mesmo verso, de preferência entre um hemistíquio e outro) ou coroadas (quando a rima leonina se internaliza a ponto de rimar dentro de um só hemistíquio). Ou então podemos ir direto àquela divisão que no geral é a mais importante: a de rimas consoantes e toantes.

Enquanto a primeira diz respeito àquele tipo de rima em que a vogal tônica e as sílabas postônicas, em sua inteireza, rimam, a segunda diz respeito àquele tipo em que as vogais tônicas é que rimam apenas, e, no caso das sílabas postônicas também coincidirem sonoramente, basta que as vogais coincidam, inexistindo exigência quanto à coincidência das consoantes. A primeira foi majoritariamente usada pela poesia livresca e erudita, ao passo que a segunda se manteve viva pela prática secular da poesia popular. Claro que imbricamentos existiram e hoje se difundiram de forma admirável, libertando o poeta de mais esta exigência na hora da escrita: assim, cabe mencionar que embora a rima toante já seja encontrável na produção por exemplo de um Cláudio Manuel da Costa, ela foi largamente usada por João Cabral, o que lhe deu valor poético e dignidade incontestável.

Vejamos dois trechos da lavra deste último. É do Morte e Vida Severina. Um trecho com rimas consoantes:

       — Passo para o dos industriários,
       que também é o dos ferroviários,
       de todos os rodoviários
       e praças-de-pré dos comerciários.
       — Passas para o dos operários,
       deixas o dos pobres vários;

De quando o Severino, ao sentar pra descansar, ouve a conversa entre dois coveiros. Como o leitor nota, nas rimas com "-ários" temos uma coincidência da vogal tônica "-á-" e de todas as sílabas posteriores: "-rios", incluindo a consoante "-r-". A repetição da rima no trecho todo parece que nos dá náuseas, ainda mais porque fica martelando um sufixo na cabeça, com exceção do último verso, que, de resto, funciona como arremate à sequência. O fato de que as palavras participem da mesma zona semântica parece deixar ainda mais claro que a rima aqui é tecido adiposo, e só piora quando notamos que é das raras passagens do livro em que Cabral usa um verso de medida maior: e a razão, vejam só, do verso espichar é justamente pelo uso de palavras enervantes como "industriários" e "ferroviários". Pois bem. Comparemos com estoutra passagem, quando a personagem principal vê a procissão de um enterro. Como não pensar que o uso da rima toante, ao contrário da pseudo-opulência das rimas consoantes da conversa entre os coveiros, não sugere alguma coisa de despojamento após a morte?

        — É uma cova grande
        para teu pouco defunto,
        mas estarás mais ancho
        que estavas no mundo.
        — É uma cova grande
        para teu defunto parco,
        porém mais que no mundo
        te sentirás largo.

Realmente. A coincidência agora é apenas da sílaba tônica, seja com manutenção de alguns dos sons posteriores, como em defunto―mundo, seja com a manutenção só da coincidência tônica, como em grande―ancho, rimando a sílaba "-an-" e nada mais.

Alguns aplicam para as rimas consoante e toante as designações total e parcial, de modo que se a coincidência é sonora e gráfica em sua inteireza, então temos uma rima total. Parece-me uma designação utilíssima, em especial porque, assim, podemos mensurar a parcialidade da rima que tratamos. Afinal de contas bem se sabe que às vezes o que nos leva a classificar uma rima como toante é um simples detalhe, por exemplo no caso de holocausto―claustro. Guilherme de Almeida batizou esse tipo de rima de "símil-rima". Ela pode chegar a resultados admiráveis. Exemplo é o Bilac de Inania verba, onde, nos quartetos, o poeta maneja as semelhanças rímicas de maneira inteligentíssima, criando maciços sonoros que permitem ao leitor descobrir a opulência verbal de que o poeta se queixa não só nas posições consagradas pela rima como, também, em posições distintas. Observe, nos primeiros versos, "escrava" e "escreve". O que as une é tão eficiente quanto a rima dos versos vindouros... Compensa citá-lo na íntegra até para que o leitor note alguns processos de acomodação tipicamente parnasianos, como aquele, túrgido, na sétima sílaba poética do quinto verso, bem como pra que note a maneira com que Bilac estrategicamente os abandona, como no caso do hiato em "tua" no terceiro. Décio Pignatari uma vez resumiu bem: o Bilac sabia das coisas.

        Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
        O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
        — Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
        Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

        O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
        A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
        E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
        Que, perfume e dano, refulgia e voava.

        Quem o molde achará para a expressão de tudo?
        Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
        Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

        E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
        E as palavras de fé que nunca foram ditas?
        E as confissões de amor que morrem na garganta?!

Cita-se também como classificação das rimas aquela que as reparte em pobre, rica e rara. Pobre é a feita entre palavras da mesma classe gramatical; rica, aquela entre palavras de classes gramaticais distintas; e rara aquela inusitada, encontrando rimas para vocábulos que a princípio não rimavam. Exemplo clássico desta última é a rima entre "cisne" e "tisne", do verbo "tisnar", usada por Bilac em Milagre. Ou então, os exemplos que se poderia extrair da Cantiga das rimas paupérrimas e da Berceuse das rimas riquíssimas de Guilherme de Almeida — exemplos, concordo, que caem como uma luva, mas que devem ser aproveitados a partir do que outros detalhes de sua fatura são capazes de expôr e, principalmente no caso da Berceuse, pelo fato de também serem exemplares daquilo que Mello e Nóbrega chamou de "rima em mosaico", ou seja, rima em que uma palavra completa vai de encontro a duas ou mais que com ela rimem. Na obra do poeta paulistano encontraremos outros exemplos admiráveis de rimas assim, onde o virtuosismo não raro gratuito se põe a serviço de uma fluidez impressionante. Veja-se o caso desta passagem do poema As duas mãos:

        Mão côncava e mão convexa,
        justapostas como dois
        hemisférios: destes é que se há
        de formar o mundo, pois

Realmente, o critério parece arbitrário e artificial, mas não se pode negar que o abuso de rimas tidas como pobres posto que comuns e fáceis, à guisa de rimas no infinitivo, em "-ão", em "-ente" etc, com facilidade é um dos fatores que agridem a qualidade da obra. Isto não nos permite concluir, entretanto, que a rima rica, tal como preconizada pelos parnasianos, seja realmente a solução, visto que encontrar um verso terminado em "estrela" nos quartetos de um soneto é quase que por definição preparar-se espiritualmente para uma enxurrada de formas enclíticas de verbos de segunda conjugação ("vê-la", "querê-la" etc). Seguindo o caminho reverso, na maioria dos casos em que um verbo desponta numa oitava camoniana o leitor pode esperar por outros dois que o circundem. Rima, portanto, pobre? Claro que não.

Muito mais produtivo é seguirmos com Alexander Pope, que, numa passagem saborosa de seu An Essay on Criticism, ridiculariza assim a previsibilidade provocada pelas rimas óbvias, sejam elas pobres, ricas e às vezes até mesmo raras (cito na tradução da Marquesa de Alorna, que teve a boa iniciativa de pincelar a rima com "sono", séculos depois também atacada por Drummond):

        Enquanto o carrilhão sabido toca
        Vem sem falência a rima já sabida.
        Onde acharmos que o Zéfiro suspira,
        No que segue, entre as folhas se retira.
        Se vai sereno o rio, que abandono
        Arrisco o meu leitor a ganhar o sono.

Postas ao lado da rima estão as aliterações, as assonâncias e as paranomásias. São ferramentas simples que contribuem sobremaneira para a apreciação do verso. As primeiras dizem respeito a uma recorrência de sons consonantais em passagens do poema, ao passo que as segundas dizem respeito a recorrências de sons vocálicos. As terceiras, por fim, dizem respeito a uma semelhança estabelecida entre duas palavras tão grande a ponto de uma ser quase a reescrita embaralhada ou com pequenos acréscimos da outra.

Como exemplo de aliteração pensemos nesta, formosíssima, de Airas Nunes:

        Bailemos nós já todas três, ai amigas,
        sô aquestas avelaneiras frolidas,
        e quem for velida, como nós, velidas,
               se amigo amar,
        sô aquestas avelaneiras frolidas
               verrá bailar.

É como se a aliteração da consoante líquida "l" mimetizasse de algum modo o baile das belas (velidas) moçoilas sob (sô) as avelaneiras, árvores que trazem consigo uma simbologia nupcial. Prova disto, ou seja, do como a sintaxe e a sonoridade do poema influem na imagem que vemos ser traçada, é que o ritmo pausado do terceiro verso, retificando a beleza daquelas que já se encontram dançando, é seguido de um verso curto em que a semelhança fônica entre "amigo" e "amar" acelera a leitura, muito em decorrência do fato de que enquanto nos dois primeiros versos tínhamos vírgulas repartindo as orações com parcimônia e enquanto no terceiro as vírgulas, ao dividirem-no em três retalhos, nitidamente adicionam outro compasso à dança, neste quarto defrontaremos um verso de medida menor isolado na mancha gráfica da página, seguido de outros dois, sem vírgula, que dão uma última passada na coreografia da estrofe.

Já como exemplo de assonância, pensemos nestes versos de Bandeira:

        Bandeiras tatalavam no alto mastro
        Do meu desejo. No fervor da espera
        Clareou à distância o súbito alabastro.

A maneira com que a primeira vogal do alfabeto se firma no primeiro verso é intensa e se imiscui com graciosidade à imagem retratada, como que sugerindo uma liberdade que embriagou o eu lírico de uma experiência sem igual. Prova disto é que quando chegamos ao último verso do terceto nós notamos a maneira com que a rima guarda muito daquela experiência assonântica há pouco sentida, efeito este que é ajudado pelo contraste com a vogal "u" tônica da palavra que antecede o vocábulo: ou seja, pelo fato de que após o "súbito" temos a erupção de "alabastro".

Frise-se contudo, ainda no tema da assonância, que ela nem sempre se energiza como nos versos de Bandeira, às vezes preferindo se distribuir de maneira agradabilíssima no correr dos versos — por exemplo nos deste quarteto de Cláudio Manuel da Costa, elogiado por José Guilherme Merquior:

        Aqui, onde não geme, nem murmura
        Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
        Sentado sobre o tosco de um penedo
        Chorava Fido a sua desventura.

Ou seja, possuímos todas as vogais acentuadas tonicamente ao longo da estrofe, criando, como notado por Merquior, uma aquarela vocálica impressionante: i—o—a—e—e—u / e—a—u—e / a—o—o—e / a—i—u—u. É como se o poeta mostrasse por variados ângulos a desolação na alma do pastor, dando igualmente destaque aos contrastes existentes na paisagem, à maneira de notarmos o modo com que o adjetivo "brando" de Zéfiro se contrapõe ao "fúnebre" do arvoredo.

E como exemplo de paranomásia, esta, de Drummond, notada uma vez por Carlito Azevedo:

        e me penetras, lâmina de Ogum,
        e sou uma lagoa iluminada.

Quando pensamos em paranomásias, tendemos a pensá-las apenas a partir de palavras isoladas, dificilmente estendendo-as a ponto de alcançar uma frase quase que toda. É o que ocorre nestes versos de Drummond, em que o eu lírico, embalado em memórias afetivas, retrata a luz da lua sobre o apartamento onde mora como uma lâmina que o acerta e desordena, mantendo, todavia, as mesmas partículas: daí a perfeita paranomásia existente entre "lâmina de Ogum" e "lagoa iluminada".

Obviamente outras figuras de linguagem são recorrentes na escrita poética, à guisa do hipérbato, inversão sintática que aparece de formas simples, por exemplo quando coloca um adjetivo antes de um substantivo, ou rebuscadas, quando a sintaxe, remodelada, desloca a posição habitual das palavras e com isso ganha a possibilidade de suscitar novos acordes. Para Longino o uso de hipérbatos era uma das características da linguagem elevada, desde que não em excesso. Mas não é muito árduo encontrar em nossa literatura poetas que conseguiram resultados admiráveis mesmo pesando a mão nos hipérbatos, à maneira do que vemos em alguns momentos de Basílio da Gama, de Sousândrade ou nas odes de Ricardo Reis. Vejamos, nestes termos, aquela passagem da Eneida que descreve a entrada do Aorno, tal como a verteu Odorico Mendes:

        De amplo hiato espelunca alta e lapídea,
        Fusca selva a munia e lago imano,
        Sobre o qual transvoar impune as aves
        Nunca puderam, tal das fauces turvas
        Odor exala pelo azul convexo;
        Donde em grego o lugar chamou-se Aornon.

Não se pense, como já se pensou, que os hipérbatos usados por Odorico são gratuitos. Os efeitos sonoros e sintáticos a que se chega num cômputo final são memoráveis, e os desta passagem servem de exemplo. Ora: se notarmos a maneira com que uma assonância em "a" se imiscui de uma forte assonância em "u", e se notarmos que esta ambivalência vocálica traduz a treva profunda naquela caverna contraposta à limpidez do céu, então observamos que o deslocamento das palavras de sua ordem sintática corriqueira, além de sugerir a arquitetura tortuosa da gruta, serve para retratar um embate que já era visto na própria descrição: "tal das fauces turvas / Odor exala pelo azul convexo".

Prosseguindo, pode-se citar a sinestesia, antevista na poesia de um Sosígenes Costa:

        O papa-vento nos jardins de maio
        e o verde no seu mar de leite.
        O mar já não é azul, é verde-gaio
        num clarão que é relâmpago de azeite.

Versos em que não apenas o colorido encanta a vista do leitor como, ainda, seu paladar, se considerarmos que termos como "leite" ou "azeite" caracterizando o mar e o relâmpago se impõem de maneira muito expressiva. Mas também cabendo observar que a cena é retratada de maneira dinâmica e não simplesmente estática: ou seja, partimos dos jardins para a sugestão da cor verde e desta para o mar, no que, já na próxima frase, retificamos o azul das águas com o verde antes sugerido só que agora a partir de um relâmpago que irrompe silenciosamente naquela paisagem pacata, cuja composição, "de azeite", preconiza uma união entre ambas as cores.

Outra figura é a anáfora, muito expressiva em românticos como Junqueira Freire:

        Se ali se sente o que jamais na vida
                  O desespero inspira:
        Se o suplício maior, que a mente finge,
                  A mente ali respira;

        Se é de compacta, de infinita brasa
                  O solo que se pisa:
        Se é fogo, e fumo e súlfur, e terrores
                  Tudo que ali se visa;

Nas reiterações anafóricas o poeta conseguiu chegar a algumas de suas notas mais pungentes. É como se, lançando estratos de sentido só a princípio ou superficialmente idênticos uns sobre os outros, o poeta realçasse a todo instante a profundíssima dor que sente. Dor que apenas se expressa com as constantes ratificações dando ao leitor um vislumbre, entre renovado e idêntico, de um quadro humano triste. E dentro de estruturas assim, contemple as agradáveis surpresas de uma aliteração macia no segundo verso da primeira estrofe ou da mórbida assonância no terceiro verso da segunda.

Por fim, os neologismos, que receberam nas mãos mais uma vez de Sousândrade e Odorico Mendes um tratamento esplêndido:

        E d'esmeralda luze veludosa
             Do insondável abismo a superfície!
             Prostituição do abismo! insidiosa
             Luz! sepulcro infernal face-ledice!

A bela aliteração do primeiro verso parece levar o leitor a se encantar pelo abismo adiante. Naturalmente: até os dois primeiros versos, contemplamos apenas a superfície. Quando, todavia, lançamos fundo o nosso olhar... Ah, a situação é muito diversa, no que o uso de um vocábulo tão forte como "Prostituição" bem o atesta, ou, ainda, a maneira com que o adjetivo "insidiosa", de sentido análogo, rompe violentamente o nexo discursivo e exila a luz para o próximo verso, onde ela, cingida de sugestões nefastas, pode pouco contra o avanço do texto rumo ao habilidoso neologismo — "face-ledice" — indicando, de uma só tacada e num toque de mestre, que a alegria estampada na face é uma forma oblíqua de zombaria.

Aqui também se pode arrematar citando que é comum que em manuais de versificação exista uma discussão sobre a força sugestiva das vogais e consoantes, à maneira de ligarmos um movimento ágil e arrastado à sibilante "s" ou elementos de trevas e claustro à vogal "u". Todavia, não penso que isto poderia ser de alguma utilidade hoje em dia, ainda mais considerando que embora algumas palavras realmente nos pareçam possuir sugestões próprias, devemos nos lembrar que isto se dá pelo conceito que exprimem e não simplesmente pelo significado que o esqueleto acústico por si só representa. A arbitrariedade do signo, aventada pela linguística, embora encontre um antagonista no texto poético, que tende a fazer com que todos os elementos constitutivos signifiquem algo; tal arbitrariedade não deve ser ignorada, de modo que, como lembra Alfredo Bosi, se a partir da palavra "escuro" associamos a vogal ao negror, não se pode esquecer que é também a partir da mesma vogal que o oposto se anuncia: "luz". Assim, cabe termos a parcimônia de entender que as sugestões causadas por um verso não se dão pelo fato de que a consoante aliterada, por exemplo, seja capaz de por si só acarretar um conteúdo determinado, mas, antes, pelo que o complexo jogo de forças atuantes no poema consegue suscitar, onde, portanto, não só os significados aplicáveis ao material fônico das palavras (a "imagem acústica" de Saussure), como seu próprio conceito, é que fazem a "magia".

Por fim, mencione-se que nos manuais é também comum constar uma discussão sobre o uso de palavras poéticas ou não ― e o que seriam essas palavras. Parece realmente estranho e no mínimo desprovido de senso que se queira falar de palavras poéticas depois que Victor Hugo pôs um barrete frígio no dicionário, mas não se pode esquecer que existem palavras que realmente dão a impressão de possuírem uma existência puramente poética, em específico no sentido de que foram cunhadas ou são usadas em contextos assim caracterizáveis, à maneira de "cã" (cabelos brancos) ou "paul" (pântano), em que a brevidade do vocábulo, associada à possibilidade rímica, valida sua existência. Realmente poderíamos ir longe, mas desde que com isto jamais nos esquecêssemos que a liberdade poética de hoje permite ao poeta que qualquer palavra seja usada se e somente se com isto for traduzida num ganho expressivo a ponto de validar aquela definição de Coleridge da poesia como as melhores palavras em sua melhor disposição. Seja como for, fique pelo menos registrado que poucas designações sobre o etéreo dos vocábulos conseguem superar a graciosidade de Dante chamando um certo dialeto italiano de hirsuto e cabeludo ou mencionando que sua busca pela língua vernácula se assemelhava à caça de uma pantera cujo odor está por toda parte ― muito embora não seja vista.

Com isto em mente podemos passar a expor algumas das formas estróficas mais célebres. Pode-se alongar em demasia nesta exposição, esmiuçando formas com nenhum ou ínfimo interesse para o leitor, ou, pior ainda, conceder demasiada atenção àquelas novidades que poetas obscuros em regiões sombrias do globo terrestre andam retirando da cachola. É mais sensato seguirmos uma via concisa, evitando excessos que tornem este manualzinho um cabedal de quinquilharias via de regra ridículas.

Inicio com duas largamente usadas pela poesia popular: a quadrinha e a sextilha. No geral compostas em redondilhas maiores, a primeira é feita de quatro versos onde o segundo e o quarto sempre rimam, ao passo que o primeiro e o terceiro podem rimar ou não. Costuma-se dividir o poema em duas metades, com os dois primeiros expondo uma ideia específica e os seguintes uma genérica ou então um contraponto à anterior. Como dito, é largamente usada por gente do povo, mas isto não a impediu de ser praticada por poetas eruditos como José Albano ou Fernando Pessoa. Já a sextilha, feita de seis versos, possui uma só rima em todos os versos pares. É largamente usada na cantoria. Por sua vez, um pouco mais difícil é a décima. De esquema abbaaccddc, conta em seu rol de adeptos o ilustre Camões de Sôbolos rios. Como exemplo da quadrinha, fiquemos com a lembrança do Bandarra numa trova profética saída da segunda parte de sua obra:

        O mocho está assobiando,
        Dizendo e chamando bois,
        E com medo de depois,
        Tudo se está arreceando.

O mocho, apenas para que o leitor se situe, é uma espécie de coruja que consegue macabramente virar a cabeça toda para trás. Não é a um só tempo belo e instigante que ela sirva de pastor para os bois?

Já como exemplo de sextilha, fiquemos com estas duas estrofes de João de Athayde e José Duda, dois grandes cordelistas que certa feita se propuseram mutuamente o desafio de listarem todos os nomes próprios, as aves do céu e os peixes do mar. Da parte relativa às aves, citemos:

        A ― Garça, guicé e viúva
        Faisão-dourado e condor
        Sereno, abutre e marreca
        João-de-barro e serrador,
        Codorniz, cuco e jandaia
        Tico-tico e beija-flor

        Z ― Jacutinga e margarida
        Maracanã e socó
        Lira, cauã, solitário
        Rabijunco e noitibó
        Periquito e papagaio
        Patativa e curió

Nomeações assim, disparatadas e com o propósito de fluírem afáveis para os ouvintes, nomeações em que as palavras, saídas de uma zona semântica específica, se unem para que juntas façam a magia ― penso que um recurso assim não é em essência muito distinto do que Cruz e Sousa em seus melhores momentos também fará. Só peço, leitor, que não deixe de notar como na estrofe de Athayde versos com duas aves em seu bojo se alternam a versos com três. O mesmo pedido estendo aos pequeninos brilhos melódicos salpicando a superfície do texto, à maneira da rima interna entre "Maracanã" e "cauã" na estrofe de José Duda ou a suave variação existente entre a vogal fechada nas rimas de um e a vogal aberta nas rimas de outro.

E por fim, como exemplo de uma décima, lembremos esta de Gregório de Matos:

        Levou um livreiro a dente
        De alface todo um canteiro,
        E comeu, sendo livreiro,
        Desencadernadamente.
        Porém, eu digo que mente
        A quem disso o quer taxar;
        Antes é para notar
        Que trabalhou como um mouro,
        Pois meter folhas no couro,
        Também é encadernar.

Creio ser uma observação sem valor, posto que óbvia, a de que o uso de uma palavra tão extensa como "Desencadernadamente" no quarto verso sugere a mastigação. O que, obviamente, não retira a engenhosidade da sacada do Boca do Inferno, ainda mais quando sabemos que, no penúltimo verso, "couro" também significa estômago, bucho, barriga ― ou quando notamos que o hiato no último verso, entre o "é" e o início da próxima palavra, parece implicar um suspense a ser seguido por quem o declame.

Com a oitava rima, por sua vez, adentramos o universo das formas marcadamente eruditas. De origem italiana ainda hoje debatida, foi usada inicialmente em contextos épicos por poetas como Boccaccio, Boiardo e Ariosto, estes dois últimos nos longos poemas que cantam os feitos do lendário cavaleiro Orlando. Porque tão grande e feliz foi sua influência e uso nas mãos destes hábeis poetas, veio para português e encontrou em Camões o artífice máximo. Com isto teve sua história continuada novamente em solo italiano a partir do Gerusalemme Liberata de Tasso e, já no Romantismo, em solo inglês com Lord Byron, que a subverteu adicionando um saboroso caráter irônico dotado de acentuado virtuosismo, conforme se vê em poemas como Beppo ou o longo Don Juan. É feita de um esquema de rimas abababcc e versos de arte maior. Citemos esta espantosa estrofe de Alexei Bueno:

        É noite no meu quarto de seis anos
        E eu não quero dormir. A vida brilha
        No espaço como as taças dos tiranos
        Que casam com um canalha a própria filha.
        A vida gira em círculo arcanos
        Na noite de espantosa maravilha.
        Há uma luz dentro dela, há alguém que vive
        No seu bosque sem cor onde eu já estive.

Também de origem italiana é a terça rima, em cuja estrutura as rimas se imbricam umas nas outras até um arremate final numa estrofe de um único verso: aba / bcb / cdc / (...) / yzy / z. Serviu de princípio estrutural para a feitura da Divina Comédia, com seus sustentáculos triádicos permitindo a Dante espelhar simbolicamente a Trindade em todo o texto, bem como a busca do ser humano pela redenção. É verdade que, como argumentado por John Freccero num ótimo ensaio, o fato de que as rimas que ocupam a posição "a" e "z", ou seja, as rimas que abrem e fecham os Canti, sejam rimas começadas e terminadas de chofre (rime rilevate), é um forte indício para que não exageremos nos vislumbres da Trindade; todavia, Freccero o nota apenas pra apontar a maneira como a mecânica da terça rima, fazendo com que uma estrofe conclua uma ideia e ao mesmo tempo, em seu íntimo, literalmente em seu meio, arremesse uma outra a ser desenvolvida pela próxima; tal mecanismo espelha um dos temas centrais do poema dantesco, qual seja, a conversão, entendida não como um movimento de ruptura ao futuro e sim como uma dialética entre a morte e a ressurreição, entre o avanço e a recapitulação (anakephalaiôsis). Por isso o crítico diz, da terça rima, que "é um movimento adiante no tempo que é simultaneamente recapitulação".

Em português a terça rima chegou a ser praticada com relativa constância, no que cabe citar as encantadoras elegias camonianas. Entretanto, a lembrança mais marcante da forma ainda ficará com o Drummond de A máquina do mundo, em que a transcendência implícita no desenho da forma italiana é rememorada pelos tercetos brancos de linguagem clássica do poeta mineiro, todos amputados do arremate do verso final, conseguindo, com tais opções, espelhar o vazio metafísico do homem moderno (ou, caso queiramos uma interpretação oposta, o "compacto humanismo" mencionado por Merquior). Tão bem realizada foi a experiência de Drummond neste grande poema que ela foi responsável por fecundar o projeto de Haroldo de Campos em A máquina do mundo repensada, em que o uso virtuosístico da terça rima e o grau elevado de referências simulam a vertigem informacional contemporânea.

Um exemplo. Bruno Tolentino:

        O Cristo não é
        um belo episódio
        da história ou da fé:

        nem o clavicórdio
        nos dedos da luz,
        nem o monocórdio

        chamado da Cruz.
        O crucificado
        chamado Jesus

        é o encontro marcado
        entre a solidão
        e o significado

        do teu coração:
        de um lado teu medo,
        teu ódio, teu não;

        de outro o segredo
        com seu cofre aberto,
        onde o teu degredo,

        onde o teu deserto,
        vão morrer, mas vão
        morrer muito perto
     
        da ressurreição.

Uma vez o americano Ezra Pound estabeleceu um celebérrimo critério de distinção entre os tipos de níveis detectáveis no poema: fanopeia, melopeia e logopeia. Com o primeiro ele queria dizer o ato de lançar o objeto (parado ou se movendo) na imaginação visual do leitor; com o segundo ele falava das correlações emocionais entre o som e o ritmo da enunciação; e com o terceiro ele falava da dança do intelecto. Como dito, é um critério muito famoso, o tipo de coisa que dá a impressão de ter resumido tudo ― mas de se notar, ainda, que o grande poeta deixou outras e outras formulações lapidares, a exemplo de quando mencionou que a técnica era o teste de sinceridade de um homem. Pois bem. Creio que este poema do Tolentino exemplifica com galhardia esses três níveis: melopaico o poema é pois a terça rima e o uso da redondilha menor criam uma cadência fabulosa, dona de momentos em que toda uma sutileza invade nossa audição e é só com base no leve sopro das vogais abertas e fechadas que divisamos os versos se entrançando; fanopaico, por sua vez, acaba sendo também pelo fato de que reside, nas malhas discursivas, uma metamorfose encantatória e própria, a exemplo do "clavicórdio / nos dedos da luz"; e por fim, óbvia e acima de tudo logopaico pelo modo com que uma concepção tão carinhosa da divindade cristã e da transcendência se marcam no poema, tudo, registre-se, a partir da constatação inicial que de pronto nos desconcerta até o instante em que se redefine num significado muito mais profundo. Ora: o ponto a ser feito é o de que o poema dificilmente conseguiria uma harmonia tão energizada assim se não fosse pelo estupendo mecanismo da terça rima...

Outra forma italiana a ser mencionada é o madrigal, geralmente composto segundo um esquema bb / cdd / eff / (gg) / (hh). O fato de que as duas últimas estrofes possam ser suprimidas indica que o madrigal foi praticado de muitas maneiras ao longo da história. Pietro Bembo, tratadista italiano do século XVI, diz exatamente isto ao comentar, sobre o madrigal: "não possuem lei alguma ou número de versos ou maneira de rimas, mas cada qual, como bem se queira, possuirá sua forma" ("ma ciascuno, sí come ad esso piace, cosí le forma"). Silva Alvarenga, por exemplo, que fez um bom serviço usando-o, empregava-o a partir de uma mescla de versos de dez e seis sílabas, sendo que essa mescla, batizada de "silva" por alguns tratadistas antigos, era uma das bases no madrigal italiano. Cito:

        No ramo da mangueira venturosa
        Triste emblema de amor gravei um dia,
        E às Dríades saudoso oferecia
        Os brandos lírios, e a purpúrea rosa.
                Então Glaura mimosa
        Chega do verde tronco ao doce abrigo...
                Encontra-se comigo...
        Perturbada suspira, e cobre o rosto.
                Entre esperança e gosto
        Deixo lírios, e rosas... deito tudo;
        Mas ela foge (Ó Céus!) e eu fico mudo.

Prosseguindo, mencione-se a canção. Seu recorte é obviamente aberto pois que musicais são suas raízes ― mas isto não impediu Dante, certamente seu melhor teórico, de concebê-la segundo três partes principais, a saber: o início, chamado por ele de frons; a volta ou mudança interna dentro da estrofe, chamada de diesis; e a cauda, chamada de sirima. O ideal é que a frons e a sirima possuam relações internas distintas dentro da estrofe, geralmente pelo fato de que a frons apresenta um esquema determinado de rimas e metros e a sirima outro. A balada, que se distinguia da canção pelo fato de que era musicada, também apresenta uma estrutura tripartida em ripresa, mutazioni e volta, termos que, segundo Minturno em sua Arte poética, foram dados de olho nos movimentos musicais da apresentação, com a mutazioni representando uma mudança na melodia da ripresa e a volta, como o nome diz, um retorno. Não espanta que um batismo triádico, por assim dizer, das partes constituintes tanto da canção quanto da balada tenha sido feito, afinal de contas a mesma prática já era feita na poesia coral mélica arcaica da Grécia, com sua divisão em estrofe, antístrofe e epodo a seguir os movimentos do coro no local da performance.

Um exemplo particularmente claro do esquema dantesco para as canções está na segunda estrofe da canção X de Camões, onde lemos (mudo graficamente a ordem dos versos para que melhor se perceba a frons e a sirima):

        Já me desenganei que de queixar-me
        não se alcança remédio; mas quem pena,
        forçado lhe é gritar se a dor é grande.
        Gritarei; mas é débil e pequena
        a voz para poder desabafar-me,
        porque nem com gritar a dor se abrande.
        Quem me dará sequer que fora mande
        lágrimas e suspiros infinitos
        iguais ao mal que dentro n'alma mora?
        Mas quem pode algu'hora
        medir o mal com lágrimas ou gritos?
                Enfim, direi aquilo que me ensinam
                a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
                que é outra dor por si, mais dura e firme.
                Chegai, desesperados, para ouvir-me,
                e fujam os que vivem de esperança
                ou aqueles que nela se imaginam,
                porque Amor e Fortuna determinam
                de lhe darem poder para entenderem,
                à medida dos males que tiverem.

Da canção também cabe lembrar que é feita de estâncias e remate, isto é, estrofes de disposição rímica e métrica idêntica que são finalizadas por uma derradeira geralmente menor e de rimas e metros distintos. Nos remates é comum que o poeta se dirija metalinguisticamente à Canção e, portanto, diga as últimas palavras que lhe cabem ser ditas antes que ela voe e chegue à sua amada. Na canção X de Camões o remate é aquele que começa com: "Nô mais, Canção, nô mais".

A forma italiana que mais se fixou foi o soneto. Surgido na primeira metade do século XIII, encontrou na Itália dois poetas de excepcional talento: Dante e Petrarca. Com este último ela se cristalizou no mesmo instante em que, como quer Otto Maria Carpeaux, cristalizou toda a tradição lírica ocidental posterior, interrompida enfaticamente somente séculos depois com Baudelaire. Agora a poesia estava devidamente apartada de suas origens musicais, e o soneto podia se consolidar como forma fixa de majoritária preferência por parte dos poetas.

Como é do conhecimento de muitos, o soneto é feito de quatorze versos, sendo que, em sua configuração italiana, recebe divisão em dois quartetos e dois tercetos. Ao ser transposto para a Inglaterra, ganhou configuração diversa, com três quartetos e um dístico. Foi assim que Shakespeare, o maior sonetista daquela língua, o praticou. Com isto o leitor não deve se espantar, pois, embora exista de forma assente e majoritária a ideia de que o soneto é uma forma imutável, deve-se ter em mente que toda a sua história é permeada de mudanças inteligentes e importantes engendradas pelos poetas, a exemplo do ocorrido durante o dolce stil nuovo (Dante, Cavalcanti, Guinizelli): ou seja, era prática corrente que se intercalassem versos de seis sílabas aos sonetos, fazendo com que peças de mais de vinte versos ainda assim recebessem a alcunha. Procedimento este que também será repetido na Inglaterra e em Portugal (Filipe Nunes faz menção a sonetos retrógrados, duplos, encadeados, bilíngues, com coda etc), sendo retomado com ênfase a partir dos românticos, que, arrefecendo um pouco o apreço pelo soneto desenvolvido pelos neoclássicos, ainda assim chegaram a resultados progressivamente notáveis na forma, capazes portanto de preparar o terreno para o surgimento de sonetos em versos brancos ou mesmo experimentos-limite como o já mencionado Le cocher ivre de Rimbaud. Hoje, arrisco dizer, tão grande é a infiltração do soneto em nossa cultura e tão várias as formas em que se desdobrou, que qualquer poema com quatorze versos ou linhas pode se relacionar de algum modo com o soneto, a exemplo do que mais uma vez Rimbaud fez quando, em suas Illuminations, estampou um poema em prosa chamado Sonnet, que guarda com a fôrma a única semelhança de também possuir quatorze linhas.

O aspecto que talvez permita explicar o carinho pelo soneto é o de que nele a expressão se amalgama de tal modo à forma que dá uma ideia bem acabada de perfeição, em especial vista pela chave de ouro, que arremata o soneto de forma memorável, grandiosa, surpreendente. Ferreira Gullar uma vez disse que os parnasianos costumavam escrever primeiro a chave de ouro para só depois escreverem o restante... Seja como for, a disposição silogística do soneto contribui para a força com que a chave de ouro se reveste. E de fato: Hugo Friedrich certa feita chamou o soneto de "silogismo lírico", e quem se predispõe a ler a tratadística neoclássica sobre a forma, verá que a disposição dos argumentos é aspecto crucial de sua estrutura, respeitada até mesmo pelos satíricos ― os quais, ao contrário do que se pensa, também eram regidos por convenções e tópicas poéticas em voga. Filipe Nunes diz:

A ordem de fazer sonetos, é que um soneto não há de ter mais que um conceito, e em cada quatro versos dos primeiros se há de concluir um sentido perfeito; e dos seis derradeiros, a cada três se há de fazer também cláusula. Nestes seis versos há de estar a substância [fuftancia] do soneto. Os oito dantes hão de vir dispondo, e fazendo cama a estes derradeiros. Podem ter comparações, semelhanças, perguntas, respostas, e servem para tudo, para louvar, e vituperar, persuadir, consolar, animar e para tudo o que servem os epigramas latinos.

A comparação com o epigrama latino, dada a amplitude temática possível, também foi apontada por Manuel da Fonseca Borralho em seu Luzes da poesia de 1724, em que chama o soneto de "a melhor composição que se faz em poesia vulgar" ("vulgar", aqui, como tradução literal de vulgari, palavra em latim usada para designar o vernáculo). A diferença é que o autor já expõe de maneira clara a disposição silogística do soneto:

[A disposição do soneto é feita] com tal regra, que não leve mais que um só conceito (nem pode admitir mais) dirigido em forma de um silogismo; convém a saber: no primeiro quarteto a maior, e no segundo a menor, e nos tercetos a consequência: ou nos dois quartetos a maior, e no primeiro terceto a menor, e no segundo terceto a consequência, que val o mesmo que propor no primeiro quarteto, ou em ambos; e no segundo quarteto, ou primeiro terceto, deduzir, e nos dois tercetos, ou no segundo, concluir; por maneira que se hão de guardar para o fim os melhores consoantes, e hão de ir tão deduzidos os pés com a cabeça, que seja tudo a mesma coisa, e por tal ordem, e por tão relevante espírito (como disse um Discreto), que ha o soneto de abrir-se com chave de prata, e fechar com chave de ouro.

Citemos um caso curioso. É o de número 500 da lavra de Glauco Mattoso, intitulado Vicioso:

        Poema lembra amor, que lembra carta,
              que lembra longe, e longe lembra mar,
              que lembra sal, e sal lembra dosar,
              que lembra mão, e mão alguém que parta.
        Partir lembra fatia e mesa farta;
              fartura lembra sobra, e sobra dar;
              dar lembra Deus, e Deus lembra adiar,
              que lembra carnaval, que lembra quarta.
        A quarta lembra três, que lembra fé;
              fé lembra renascer, que lembra gema,
              a gema lembra bolo, e este o café.
        Café lembra Brasil, que lembra um lema:
              progresso lembra andar, que lembra pé,
              e pé recorda alguém que faz poema.

Haveria um silogismo a presidir um soneto assim? Difícil. A coordenação lógica se espraia pelos quatorze versos numa longa cadência que com muita facilidade embala o leitor. O que me parece notável, entretanto, é que quando chegamos ao final nós não contemplamos exatamente um círculo: eu diria, na verdade, que quando se chega ao fim da linha o leitor quer refazer o caminho ao contrário, quem sabe agora tentando entender como os meandros dos versos foram capazes de levá-lo num périplo tão distante e ao mesmo tempo tão admirável. Neste sentido, veja a maneira com que a variação sutil na escolha do verbo no último verso denota perspicácia ao levar o leitor a como que reexercitar a memória e subitamente atentar-se à correnteza em que havia se embalado, porque se com "lembra" ele se aprisionara nos elos de uma corrente, animado e perplexo com os desdobramentos simples que cada uma das células do poema oferecem, com o "recorda" ele volta os olhos para o ponto de partida e cai em si.

De origem francesa, a seu turno, é o rondel, também de várias roupagens. Consiste, grosso modo, de um refrão que é repetido no interior das estrofes, sendo, por fim, arrematado por uma repetição total deste mesmo refrão. Foi praticado na França com delicadeza ímpar por Charles d'Orléans e, na Inglaterra vitoriana, ganhou um entusiasta do porte de Swinburne. No Brasil, depois de já ter recebido múltiplos cognomes de acordo com os delineamentos adotados (o mesmo já ocorria na França, bastando que o leitor se reporte ao Le Jardin de Plaisance, de 1502), recebeu da pena de Silva Alvarenga uma sonora inflexão em que, batizado de "rondó", se alicerçava num esquema de rimas cujas redondilhas maiores, acentuadas na terceira, comportavam rimas em cadeia dentro de si:

        De teu canto a graça pura
        E a ternura não consigo,
        Pois comigo a doce lira
        Mal suspira os sons de Amor.

A balada, a seu turno, é de amplo uso pela poesia popular de várias línguas, tendo achado em alguns poetas eruditos realização universal. Na França, por exemplo, as estrofes costumavam receber esquema rímico ababbcbc ou ababbccdcd, no que eram arrematadas por um envoi, rimado por sua vez em bcbc ou ccdcd. Nada, todavia, que deva ser tratado de maneira muito fixa, mesmo porque a balada em inglês já assumia feição muito diversa graças ao chamado metro de balada (ballad meter). Como exemplos de grandes poemas tanto no francês quanto no inglês, fiquemos com as de Villon e a Old Mariner de Coleridge.

No caso da poesia portuguesa e espanhola, é difícil não mencionarmos o papel que os romanceiros possuem, análogo ao das baladas de matriz popular por exemplo no medievo britânico. Narrações esplêndidas veiculadas num ritmo encantador: eis o cerne de produções assim, em muitos casos escritas com base tão somente no pau a pique das redondilhas maiores. O leitor encontrará exemplos de variadas origens e graus de excelência. Caso queira um ponto de partida, recomendo, em português, os romances de Cecília Meireles e Almeida Garrett e, em espanhol, os de García Lorca. Frise-se, de resto, que a balada, o romanceiro e o cordel são vizinhos, de modo que diferenciá-los de acordo com a ênfase narrativa, a estrutura poética ou mesmo o apoio musical é um gesto importante, desde que com isto não se tente concebê-los à maneira de compartimentos estanques.

Ainda no âmbito de formas de grande apelo popular, cabe citar o caso dos vilancetes e das glosas, composições em que o artista parte de um poema, estrofe, trecho ou verso alheio e compõe, da própria pena, os restantes. Ainda hoje é usado muito por violeiros, mas não custa lembrar que possui marcada em sua carne uma venerável tradição que remonta aos poetas do Cancioneiro Geral e a tantos outros da Renascença portuguesa, a exemplo de ninguém menos que Camões. É composto majoritariamente em redondilhas, mas a lógica intrínseca à glosa poética pode ser aplicável a sequências maiores, por exemplo sonetos.

Outras formas, como dito, podem ser descritas. A vilanela mesmo, forma que passou a ter voga a partir do século XIX primeiro pelas Odes funambulesques de Jean Passerat e depois pela prática inglesa pós-vitoriana; a vilanela envolve a repetição dos termos que abrem e fecham a primeira estrofe, tudo ao correr de tercetos que são finalizados por um quarteto, de modo que teríamos algo como abA / aba / abA / aba / abA / abaA, em que os termos sublinhados são os versos que devem ser no todo ou em parte repetidos. Com exceção do Chama e fumo de Manuel Bandeira, que apresenta oito estrofes (a princípio não existe um número fixo de versos, e prova disso é a Villanelle du Diabe de Rollinat, com 62), não conheço nenhum exemplo digno de nota em português, caso diverso da comunidade anglófona, que conta com poemas maravilhosos compostos nesta forma, a exemplo do One art de Elizabeth Bishop, do Do not go gentle de Dylan Thomas ou das vilanelas inclusas nos livros de James Joyce e Sylvia Plath.

O limerique, de origem inglesa, foi muito usado pelos vitorianos em sua poesia nonsense, com destaque absoluto a Edward Lear. Parece-me que ainda hoje vez ou outra é usada na poesia infantil de lá. Compõe-se de dois versos de medida maior que são intercalados por dois de medida menor e por um último também de medida maior, de modo que os dois primeiros rimem com o último e os menores entre si. No caso dos limeriques de Lear, como os poemas contavam a historieta de uma personalidade bizarra de alguma parte do mundo, no que eram acompanhados de saborosas ilustrações, então o primeiro verso no geral apresentava o nome daquele lugar, nome este que era repetido no último verso, dando assim acabamento circular ao texto. Em português o limerique quase não é praticado, mas isto não o impediu de encontrar em Sousândrade um realizador excelente que, nos trechos hoje batizados de O Inferno de Wall Street, retratou o cosmopolitismo da nação estadunidense em versos de modernidade estarrecedora. Cito, um tanto ao acaso, esta passagem, onde a situação das lavadeiras numa torrente informacional antecipa as figuras míticas num célebre capítulo do Finnegans Wake:

        —Some stain is in that new business
        Que pear-soap não pode lavar!
           Washerwomen 'nodoam'
                E entoam:
        'Herald-Flood-Fund,' a ensaboar! …

A sextina, a seu turno, foi inventada pelo poeta provençal Arnault Daniel, a quem Dante homenageou em seu Purgatório ao chamar de il migglior fabbro, permitindo, inclusive, que falasse em sua língua natal, honra não concedida a mais ninguém no poema. Sua estrutura é a princípio intrincada, revelando um altíssimo grau de consciência artesanal por parte de seu inventor. Parte-se da escrita de uma estrofe de seis versos, geralmente sem rimas, em que as palavras não se repetem. Depois, procede-se a um rearranjo das palavras que findam cada um dos seis versos da primeira estrofe, de modo a criar uma estrutura variacional que graficamente represente uma espiral. Assim, colocando todos os versos da primeira estrofe em uma coluna reta, nas subsequentes teríamos:

        1   6   3   5   4   2
        2   1   6   3   5   4
        3   5   4   2   1   6
        4   2   1   6   3   5
        5   4   2   1   6   3
        6   3   5   4   2   1

A numerologia encontra farto material no caso da sextina. Se dividirmos o quadrado acima em outros quatro de igual tamanho (de modo que, naquele do canto superior esquerdo, teríamos a sequência "1 6 3 / 2 1 6 / 3 5 4"), e se a seu turno somarmos primeiro todos os números de cada um dos quadrados e depois ao mesmo resultado só que do quadrado ao lado, então chegaremos a "2331". Ora: é um número de conotações simbólicas sobressalentes, não só por conter duas vezes o número "3" em seu bojo como, ainda, a partir de uma soma entre o "2" e o "1" em suas extremidades, nos permitir vislumbrar uma variante ainda mais ideal: "333", a tripla aparição da Trindade. Enfim. Jorge de Sena faz uma ilação profunda sobre o tema ao analisar uma sextina de Bernardim Ribeiro escrita em redondilhas maiores. Apenas alerto o leitor de que é dever atentar-se para o fato da sextina ter sido criada como canção, ou seja, possuía em sua carne uma melodia que infelizmente se perdeu. Isto implica dizer que as escolhas do poeta provençal não foram feitas num horizonte puramente gráfico, mas, antes, espelhavam uma consciência artesanal determinada e muito distante da matemática certo modo fria a que a sextina se reduziu com o passar dos séculos. Querendo um exemplo de sextina, socorramo-nos a Jorge de Lima no vigésimo quarto poema do Canto III de Invenção de Orfeu:

        A sextina começa
        de novo uma ária espessa,
        (sextina da procura!)
        Eurídice nas trevas,
        Ó Eurídice obscura.
        Eva entre as outras Evas.

        Repousai aves, Evas,
        que a busca recomeça
        cada vez mais obscura
        da visão mais espessa
        repousada nas trevas
        Ah! difícil procura!

        Incessante procura
        entre noturnas Evas,
        entre divinas trevas,
        Eurídice começa
        a trajetória espessa,
        a trajetória obscura.

        Desceu à pátria obscura
        em que não se procura
        alguém na sombra espessa
        e onde sombras são Evas,
        e onde ninguém começa,
        mas tudo acaba em trevas.

        Infernos, Evas, trevas,
        lua submersa e obscura.
        Aí a ária começa,
        e não finda a procura
        entre as celeste Evas
        a Eva da terra espessa.

        Eurídice, Eva espessa,
        musa de doces trevas,
        mais que todas as Evas —
        musa obscura, Eva obscura;
        sextina que procura
        acabar, e começa.

Um pouco de mitologia e lembranças das aulas de catequese não farão mal. A sextina, aí, não lembra uma espécie de labirinto onde raios de luz irrompem e apartam uma massa escura, pastosa? As rimas internas entre as palavras-chave da sextina contribuem para tanto, mas o jogo vocálico entre a vogal aberta e a fechada também. Às vezes as sextinas eram arrematadas por um terceto em que se incluía, no primeiro verso, as palavras 6 e 5, as 2 e 4 no segundo e as 3 e 1 no terceiro. É assim que você encontrará em Camões, por exemplo. O fato de que Jorge de Lima tenha dispensado um recurso assim serve para sugerir algo?

Fique como lição de casa, amigo leitor.

Duas últimas formas que merecem abordagem são o haikai e o rub'ai. A primeira, de origem nipônica, passou a ser usada por poetas brasileiros no início do século passado principalmente graças ao caráter exótico da forma. Se bem que ainda hoje podemos dizer que pouco mudou: o haikai é interpretado como um poema conciso e lapidar que traz como característica o apagamento da figura do poeta ou da voz lírica, apresentando uma cena de maneira direta a ponto de fotográfica. Com isto se transforma o haikai numa espécie de soneto numa casca de noz, esquecendo-se que, na cultura nipônica, ele se relaciona ao zen-budismo de maneira visceral, representando um caminho em direção ao zen do mesmo modo que o caminho da espada ou do chá. Por isso aqueles virtuosismos com que o haikai nacional se revestiu, a exemplo da opulência neoparnasiana no haikai guilhermino ou da engenhosidade foliã nos haikais leminskianos e millorianos, são estranhos ao que a filosofia subjacente à forma tem a oferecer, em que conceitos como o de wabi e sabi, relativos à contemplação solitária e desprendida das coisas bem como à consciência da mudança ínsita a tudo a nosso redor, desempenham papel central. Sem demérito aos resultados admiráveis a que muito do haikai nacional logrou chegar, alguns inclusive de legítimo sabor nipônico, em que o termo ou expressão referente à estação do ano (o chamado kigô) é mantido, o leitor que pretenda vislumbrar o que seria praticar o haikai em solo nacional conservando, com isto, suas raízes orientais, pode encontrar resultados admiráveis na obra de um Masuda Goga. Não é uma operação simples, naturalmente, ainda mais quando a natureza é vista pós-romanticamente como espelho da alma e a mudança das coisas na Terra é vista de forma adversa, uma e outra posição contrárias à integração absoluta do homem à natureza e à compreensão desembaraçada da mudança como fator necessário para que o mundo exista. De Masuda Goga, portanto, cito estes dois, em que o poeta consegue com enorme felicidade aquilo que para um haikaísta é a obra de uma vida inteira: a descoberta de legítimos kigôs regionais.

             Toque de buzina:
        atravessa o rio seco
             a boiada em ordem

             Eco dos trovões:
        O aguaceiro, de repente,
             faz subir o rio

O rub'ai, de procedência persa, não fica muito atrás neste processo de simplificação. Vertido de maneira radicalmente livre pelo poeta vitoriano Edward Fitzgerald, o rub'ai foi transformado em forma fixa, significando, com isto, todo quarteto em versos de arte maior que recebesse uma disposição rímica aaba. A isto se complementaria uma visão de mundo hedonista, espécie de carpe diem regado a jarras de vinho sem as garras da morte constringissem a matéria humana. Todavia, cabe lembrar que rub'ai (plural: rub'aiyat) designa de maneira genérica qualquer quadra escrita em persa, ou, até pra ser mais exato, designa um dístico que é dividido em dois hemistíquios que parecem funcionar à maneira de versos compostos, no que repartíveis com relativa facilidade em dois versos cada, totalizando quatro. Analogamente portanto, o conhecimento que se tem dos rub'aiyat é mediado por traduções nem sempre preocupadas com um conceito estrito ou mínimo de fidelidade. Isto não o impediu de impactar positivamente a obra de um Fernando Pessoa, em que não só na poesia ortônima encontraremos rub'aiyat escritos segundo o esquema rímico de Fitzgerald, como também na obra heteronímica. Fiquemos com o final de um célebre rub'aiyat seu, do qual é difícil não pensar que o verso não rimado no interior da estrofe serve habilmente de ponto final ao jogo de alternâncias até então estabelecido:

        Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta.
        Ora o vinho bebemos porque é festa,
        Ora o vinho bebemos porque há dor.
        Mas de um e de outro vinho nada resta.

Um último comentário diz respeito à versificação trovadoresca, em que os termos aplicados são outros. O leitor que desejar se aprofundar no assunto fará bem começando pela Arte de trovar, texto anônimo que abre o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, bem como pelas Leys d'amors. Para um resumo sucinto, fiquemos com este, utilíssimo, feito pelo saudoso Segismundo Spina:

ao verso se dava o nome de palavra, à estrofe cobra, à estrutura poemática talho, ao verso sem rima palavra perduda; à repetição da mesma palavra na estrofe se dava o nome de dobre, à repetição da palavra nos seus cognatos mordobre, ao remate ideológico da composição fiinda, e ao processo que consiste em conduzir o pensamento até ao fim do poema sem interrupção atafinda.

Para que as coisas não fiquem muito abstratas para o leitor, vejamos um bom exemplo de palavra perduda na primeira cobra de uma cantiga de mestria de D. Dinis:

        Quant'eu, fremosa mia senhor,
        de vós receei a veer,
        muit'er sei que nom hei poder
        de m'agora guardar que nom
        veja; mais [sei] que morrerei
        aquel dia (tal confort'hei),
        e perderei coitas d'amor.

Puxe da memória o sabor entediante e entorpecente das aulas de literatura no ensino médio. Ali você aprendeu a batizar as cantigas trovadorescas em de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer. Segundo o anônimo na Arte de trovar, as de amor "se move a razom dele", ao passo que nas de amigo "elas falam na primeira cobra". As de escárnio, a seu turno, são "aquelas que os trobadores fazem querendo dizer mal d'alguém em elas, e dizem-lho per palavras cobertas que hajam dous entendimentos", o contrário das de maldizer, em que "descobertamente" se fala e o sentido é apenas "aquel que querem dizer chaam[ente]".

Pois bem. Além destas, existe uma divisão muito simples mas de profundos impactos no talhe do poema: aquela que divide as cantigas em de refrão e de mestria. Uma vez postas em contraste, fica óbvio saber o que cada uma é: as de mestria não possuíam refrão, sendo portanto usadas, conforme relata o anônimo, por aqueles trovadores que queriam mostrar "moor meestria". O leitor só deve entender que não rimar com nenhuma outra dentro da cobra não queria dizer rimar com mais nenhuma ao longo do poema; antes, a palavra perduda fazia parte da tessitura fônica ou talhe da cantiga, uma vez que era frequente que rimasse com o verso correspondente nas cobras seguintes: é o que D. Dinis faz na cobra citada ao rimar o quarto verso (e só aqui, parêntesis necessário, já se pode vislumbrar a maestria do poeta, afinal de contas inclui a palavra perduda no centro da cobra, mas inclui de tal modo que a reparte num cavalgamento a realçar toda a negatividade do "nom", o que, convenhamos, cai muitíssimo bem às queixas do eu lírico); ao rimar o quarto verso, eu dizia, com o quarto de todas as outras cobras: "nom", "perdom" e "coraçom".

A respeito do dobre, por sua vez, diz o anônimo que é "ũa palavra cada [em] cobra [por] duas vezes ou mais", alertando porém que o dobre só deve surgir "mui gardadamente: e convém, como a meterem em ũa das cobras, que assi o metam nas outras todas." Veja-se o caso da segunda cobra desta formosa (ou "fremosa", como diziam) cantiga de amigo de D. Duarte:

        O que morria, mia filha, por vós
        como nunca vi morrer por molher
        home no mundo, já morrer nom quer,
        mais, se queredes que moira por vós,
               dizede que morre por vós alguém
               e veredes home morrer por en.

O dobre, claro está, é "morrer", repetido em todas as cobras, nalgumas porém flexionado. É ele que explica boa parte da sonoridade encantatória a amarrar os termos centrais da cantiga ("morrer", "molher", "home", "mundo"), aliado ainda ao procedimento de pôr em choque a força anasalada da consoante "m", presente no poema todo, com as rimas internas entre "queredes", "dizede" e "veredes".

Quanto ao mordobre, continuemos com a palavra do anônimo: "é tanto come dobre quanto é no entendimento das palavras, mas as palavras desvairam-se, porque mudam os tempos". Por "desvairam-se" ele quer dizer que as palavras aparecem com mudanças sutis, muitas vezes de grande argúcia, tal como o que se vê na cobra de abertura de uma cantiga de amigo de D. Afonso X:

        Par Deus, senhor,
        enquant'eu for
        de vós tam alongado,
        nunc'em maior
        coita d'amor,
        [e] nem atam coitado
        foi en'o mundo
        por sa senhor
        homem que fosse nado,
               penado, penado.

Em que o mordobre consiste na variação de "coita" em "coitado". Convém notar a graciosidade com que o poeta brinca com as palavras, reiterando-as em pontos estratégicos (é o caso de "tam" e "atam" ou, melhor ainda, entre "maior" e "amor", muito mais ricos quando rimando entre si) e chegando ao ápice de aproximar "nado" e "penado", dois vocábulos que juntos sintetizam de maneira memorável a coita amorosa.

Como exemplo de atafinda, este, de D. Dinis, é excelente:

        Em gram coita, senhor,
        que peior que mort'é,
        vivo, per bõa fé;
        e polo voss'amor
               esta coita sofr'eu
               por vós, senhor, que eu

        vi polo meu gram mal;
        (...)

Antíteses como aquela entre "morte" e "vivo" nos versos dois e três são excelentes, excelentes, principalmente porque implícitas ao sentido da coita amorosa e porque invertem por inteiro a polaridade do verso, fazendo com que o "peior" caracterizando a morte entre em contraste com a positividade e inocência da "bõa fé". O fato de que exista um forte cavalgamento entre as estrofes é um sinal curioso da composição, não de todo chocante se notarmos que os cavalgamentos surgiam com relativa naturalidade na poesia trovadoresca (o leitor mesmo já deve ter percebido vários na pequeníssima seleção que tenho feito), aqui ganhando, todavia, um poder expressivo excepcional por se tratar do refrão da cantiga, o que, vejam só, impõe o mesmo mecanismo a todas as outras cobras e, por conseguinte, cria um compasso quase que único ao texto.

Pois bem. A tais mecanismos citados por Segismundo Spina se pode complementar com aqueles, occitanos, de coblas unissonans, isto é, com o mesmo esquema rímico por todo o poema, coblas singulars, com esquemas rímicos variando de uma estrofe a outra, cobla dobla, com duas estrofes de mesmo esquema, cobla capcaudada, espécie de cobla singular em que o último termo da estrofe rima com o seguinte, e por fim cobla retrograda, com a segunda estrofe a rimar em ordem inversa com a primeira. Outro universo, bem se percebe, onde as opções eram feitas de acordo com o que o amálgama poético-melódico permitia. Embora tenhamos infelizmente perdido contato com a grande poesia produzida neste período, como se fôssemos uma cultura que se desse ao luxo de dispensar a leitura de grandes poetas, cabe citar que alguns de seus conceitos permanecem vivos à sua maneira na poesia de séculos depois, a exemplo do uso de procedimentos análogos ao dobre e ao mordobre na poesia de vanguarda de Mário Chamie ou Affonso Ávila.





O DEBATE SOBRE A HISTORICIDADE DAS FORMAS LITERÁRIAS.

Em seu A educação dos cívicos sentidos, cujo título remete ao livro de Haroldo de Campos publicado em 85, Ricardo Domeneck pergunta ao poeta se ele sabe que dia é hoje no seu poema. A questão parece despropositada, mas quando vemos que sucede a indagação de se o poeta seria inofensivo e de se, talvez prevendo a resposta na ponta da língua, seria possível dizermos isto a "Ossip Mandelshtam, que morreu na Sibéria por causa de um poema"; bem, quando vemos o desenrolar destas e de outras perguntas ao longo do texto, podemos vislumbrar que para Domeneck a escrita artística não se dissocia do contexto em que é produzida. Intuição correta, pois um pouco depois teremos: "A poesia silencia do mundo dos eventos?" Ou, o que talvez nos toque mais de perto:

Escrever sonetos ou concretos tem implicações políticas? Política é conteúdo ou política é forma? Essa pergunta é a mesma se mudarmos o substantivo "política" pelo substantivo "poética"? Talvez a ética da escrita configure-se nesta resposta?

Com isto entramos no terreno dos questionamentos que Domeneck batiza de "est-É-ticos". Forma curiosa de implicar que o estético é também ético, não acha? Mas o que significa?

Lembremos do aforismo 6.421 de Wittgenstein em seu Tractatus. Está incluso naquela área mais ampla de aforismos que versam sobre as leis da verdade e a natureza das proposições. Enquanto o aforismo 6.41 diz que o sentido do mundo deve estar fora do mundo uma vez que o mundo é aquilo que é, o aforismo 6.42 afirma que não podem haver proposições de ética. O motivo? As proposições não podem expressar nada de mais elevado. Ou seja: as proposições não podem lidar com o inefável valendo-se, para tanto, dos instrumentos da linguagem (o que mais tarde desaguará no célebre aforismo 7: do que não se pode falar, é melhor calar-se). Por isso que Wittgenstein, no aforismo 6.421, diz ser claro que a ética não se pode expressar: ela é transcendental, ao que complementa, fechando o aforismo com um parêntesis: "(Ética e estética são o mesmo)".

A leitura que Domeneck faz deste aforismo de Wittgenstein é uma leitura pessoal, não obstante interessantíssima. A união entre ética e estética é uma parte importante de seu pensamento crítico. Com o neologismo est-É-tica, o poeta mostra que opções estéticas refratam opções éticas, e que pensar a estética sem a ética seria uma maneira perigosa de proceder. A princípio, lendo de maneira incauta o que foi exposto, pensa-se que a ideia redunda numa execrável sociologia positivista da literatura, cujas leituras "facciosas e redutoras" Alfredo Bosi diz deixarem um "travo de azedume" na boca:

Não que se deva calar a presença do nexo entre poesia e ideologia. Mas, ao descobrir pontos de cruzamento, convirá ir mais longe, sabendo que a abordagem dialética, porque é dialética, não pode deter-se no momento da tese (literatura, espelho da ideologia); ela deve avançar firmemente para a antítese, que está na vida social e na linguagem poética (poesia, resistência à ideologia).

Banir tais excrescências leva a resultados promissores:

Contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo: é inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional; uma trama em que o eu lírico vive ora experiências novas,ora lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em cada poema.

Todos estes cuidados são tomados por Domeneck. Num texto chamado Ideologia da percepção, publicado há cerca de dez anos e a meu ver indispensável, o poeta, perante a constatação de que a poesia se reduzira "a uma espécie de bibelô cultural, sofrendo a perda do papel de investigação sistemática e de processo epistemológico" e retornando "ao contexto de entretenimento sofisticado, prática de bom gosto, catequese moral" — o poeta se indaga até que ponto a recorrente afirmação de que a prática poética contemporânea goza de uma liberdade ilimitada no uso das formas poéticas seria de fato uma ideia crível. Citando a estocada irônica de Augusto de Campos sobre o "ecletismo de segunda categoria da poesia contemporânea", Domeneck diz:

Porque é inevitável que as escolhas formais de um poeta denunciem as distorções ideológicas de sua invenção da realidade. Mas toda forma está ligada ao momento cultural em que surgiu, como resposta às questões que premiam os poetas em seus contextos.

Parece-me a passagem central de todo o texto. Um pouco à frente, complementa:

Assim, a história literária deveria prover-nos não tanto fórmulas ou técnicas quanto métodos, não aprendendo ou copiando as soluções finais (geralmente as características mais superficiais das invenções literárias), mas entendo as formas históricas como soluções apresentadas por artistas para problemas específicos de seu contexto, não reproduzíveis, a não ser em laboratório, para aprendizagem, como sugeriu Mário Faustino. (Copiar para aprender, criar para superar.) Estudando os contextos e problemas específicos dos nossos predecessores, poderíamos aprender como lidar com nossos próprios problemas, e não simplesmente copiar suas soluções. Assim, eu insisto que o desgaste das formas dá-se menos pela hipertrofia do uso que pela atrofia do contexto.

O trabalho de Domeneck como crítico e tradutor é amplo e consegue fornecer fartos exemplos de como uma preocupação est-É-tica recusa o ecletismo mágico em prol de uma concepção crítica que cultive olhos de lince na cara dos leitores. É uma formulação que lhe permitiu bailar inteiramente à vontade da poesia de Catulo à dos provençais e trovadores (Afonso X, Raimbaut de Vaqueiras, Beatriz de Diá) e destes à vanguarda dos poetas da L=A=N=G=U=A=G=E e à dupla de cantadores de embolada Bem-te-vi de Pernambuco e Passarinho de Alagoas. Enfim. Pode-se pensar a princípio que o raciocínio seria aplicável apenas às formas fixas, o que é facilmente refutável se observarmos que Domeneck, mais cedo, mencionava ter em vista até mesmo a prática do poema de matriz concretista ou um de essência vocal, à maneira das utterances dos beats. Assim, num texto em que debate a sextina, lemos:

Conhecemos a forma da sextina, mas eu sentia a vontade de perguntar: qual a função e qual o contexto para essa prática, além do satisfazer do ego técnico de um poeta e seus críticos, além do prazer artístico que o leitor tem ao ler uma sextina bem-feita? Alguém poderá dizer: não basta esse prazer artístico da forma bem arquitetada? É claro que basta. É o motivo principal por que lemos ou ouvimos um poema. Mas eu tentarei elaborar aqui, se possível, a maneira como a sextina pode ilustrar minha preocupação com a noção de "forma fixa", que me parece equivocada, quando a solução formal de um poeta, com sua funcionalidade e contexto específicos, passam a ser tratadas como fórmula para o uso de qualquer poeta, em qualquer momento histórico.

Num outro, a respeito do soneto em Bruno Tolentino, Domeneck se indaga se os quatorze versos seriam apenas um invólucro vazio nas mãos do poeta ou se denotariam entendimento da função histórica da forma literária:

além do debate formal, acredito ser necessário hoje discutir material, função e contexto, ou seja: a escolha formal do poeta em seu manejo da materialidade da linguagem, a função que tal forma assume em seu trabalho e o contexto histórico em que este se insere.

O debate foi profícuo e se enveredou por outros rumos. Ainda no tópico sobre Bruno Tolentino, por exemplo, há que se lembrar que Marcos Siscar lhe dedicou um ensaio em que questiona a concepção de história na obra do poeta, bem como que leitores capacitados tais como Érico Nogueira ou Jessé de Almeida Primo vieram cada qual em sua defesa. Infelizmente boa parte dos textos produzidos nesta "contenda" estão apagados, e, embora manifeste discordância das leituras de Domeneck e Siscar quanto à poesia tolentiniana, reputo como interessantíssimo o tópico. Fundamental, podemos dizer de maneira mais enfática, no que poderíamos nos lembrar de Chamie criticando o "escamoetamento dos mecanismos sócio-culturais" na prática poética de vanguarda do seu período, em que a tradição "sempre ganha a partida, mesmo que esteja sem nenhum laço eficaz com a atualidade." Ou:

Fica patente o escamoteamento da praxis individual do artista, já que, naquele paideuma, o que uniformiza os precursores é uma coincidência nominal de técnicas e não a finalidade específica dessas técnicas nem o compromisso intrínseco que cada uma, de per si, tem com a formulação e a reformulação de um devir antropo-cultural.

Mas também cabe trazer à mente Iumna Simon, que, detentora de opiniões ácidas sobre a poesia feita hoje, cerca de dois anos depois dos textos de Domeneck sobre Tolentino publicou um chamado Condenados à tradição, onde levanta o mesmo problema: constatando que a relação dos poetas com a tradição se dava no mero sentido de abordá-la como um generoso estoque de procedimentos prontos, o que constitui aquilo que ela batiza de "retradicionalização frívola", a crítica diz:

A tradição, que passou a ter o mesmo valor de um artigo de comércio, já não representa uma experiência nacional e popular em curso, ou um fator decisivo para se pensar e combater a dependência. Sem desenvolvimento ou integração nacional à vista, num quadro em que o atraso educacional e mesmo a alfabetização parecem agravados pela entrada maciça da tecnologia no cotidiano, os poetas não deixam de ter motivos para mandar às favas a responsabilidade esclarecida e crítica.

Como se percebe, a crítica à maneira com que a historicidade do fazer poético tem sido tratada por alguns contemporâneos não se confunde com uma detecção de contextos originários. Não se trata de simplesmente fotografar os arrabaldes de onde uma determinada forma literária irrompeu. Se pudermos desvirtuar a nosso modo as propostas heideggerianas a respeito da historicidade do Ser, então podemos começar ilustrando que a relação entre o Ser e o Tempo não se dá no sentido de que o tempo empurra o Ser para o futuro ou de que o Tempo passa pelo Ser à maneira de uma brisa:

        →→→→→→●
        →→→●→→→

No quinto capítulo de sua obra central, quando o filósofo investiga a temporalidade e a historicidade, ele diz, especificamente no § 72: "A pre-sença [o célebre Dasein ou Ser-aí] não existe como soma das realidades momentâneas de vivências que vêm e desaparecem uma após a outra. Esse um após o outro também não chega a preencher aos poucos uma moldura" (na tradução de Marcia Sá Cavalcante). Na verdade, a pre-sença "já preenche a si mesma de tal maneira que seu próprio ser já se constitui como ex-tensão." Ou: "A movimentação da existência não é o movimento de algo simplesmente dado. Ela se determina pela ex-tensão da pre-sença. Chamamos de acontecer da pre-sença a movimentação específica deste estender-se na ex-tensão." Graficamente, arrisco-me a dispor:

        →→→█████

Com o objetivo de investigar aquele que julga problema essencial da filosofia, ou seja, o problema do Ser, Heidegger elege esta categoria do Dasein, do Ser-aí, da pre-sença como categoria de análise que viabilize suas elucubrações. Dentro das ideias toscamente transcritas do filósofo, o que se observa é que o Ser se protrai no tempo, à maneira de um firme bloco que se prolongasse com o passar dos anos. Ora: este bloco — todo ele é o Ser. Concebendo-o assim nós conseguimos lidar com alguns problemas essenciais postos pela filosofia: assim, por exemplo, quando considero que sou a mesma pessoa de dez anos atrás não obstante ser, hoje e ao mesmo tempo, alguém muito diferente, com outros projetos, sonhos e angústias, não será recorrendo ao primeiro esquema que conseguirei resolver o incômodo problema da identidade e da diferença entre eu e meu passado, pois se sou apenas um ponto que é empurrado incessantemente para o infinito graças ao fluxo do tempo, então como manter a identidade simultânea de ser o mesmo que um dia eu fui? O mesmo ocorre com o segundo esquema: se o tempo passa por mim, eu, enquanto um ponto fixo, não posso ser ao mesmo tempo o que está muito à frente na correnteza. Respostas assim só são dadas quando concebemos o Ser como uma ex-tensão capaz de gerar a historicidade: porque a partir do momento em que me protraio no tempo continuo sendo o mesmo, pronto. Encaro o problema de uma nova maneira.

Ora: o raciocínio é útil ao ser aplicado para a historicidade do fazer poético. A sextina ao ser inventada por Arnault Daniel respondia a um contexto específico. Neste sentido, ela valida a necessidade est-É-tica suscitada por Domeneck. Contudo, cabe lembrarmos que esta mesma sextina é outra nas mãos de Camões e na de Wladimir Saldanha, não obstante o fato de ser a mesma. Com isto a consciência crítica exigida para a escrita artística se acentua, uma vez que já não basta compreender o que aquela forma representou em seu contexto de origem (algo que, nas mentes mais incautas, se resume a detectar um ano, um país e um sobrenome), mas também as múltiplas transformações que recebeu com o correr dos anos. Escrever um soneto redondo e cheio de espasmos líricos pode ser para muitos um sonho análogo ao das adolescentes com sua festa de debutantes; por outro lado, buscar não apenas compreender, como também acentuar a relevância histórica da escrita de sonetos parece ser uma tarefa muito mais árdua e refratária a fórmulas simplistas. Considerando que textos sobre versificação com muita facilidade se reduzem a alfarrábios de possibilidades estéreis, discutir a historicidade do fazer poético não é gratuito. Ainda com Domeneck:

O perigo de uma leitura meramente formalista, portanto, é a de tomar formas poéticas condicionadas por contextos históricos como se fossem essências universais, que podem ser usadas a qualquer momento, levando-nos à prática da poesia como mero jogo entre literatos, sem qualquer relação com seu momento histórico e, consequentemente, com seu público. Assim, são copiadas as respostas de poetas tão diversos quanto Catulo, Góngora ou Celan, sem a pesquisa contextual sobre as perguntas a que se ligam. Copiar as soluções de problemas específicos, como se estes se aplicassem a todo e qualquer problema.





CRISE DO VERSO.

Atribuído ao Dr. Pancrácio ou ao Professor Tronchee, dois heterônimos menos conhecidos de Fernando Pessoa, o parágrafo abaixo, extraído de um texto dirigido ao jovem poeta, visando fornecer-lhe alguns macetes, consegue formular de maneira instigante um problema verdadeiramente atemporal: poesia ruim e baixo rigor técnico. Cito na tradução de Luísa Medeiros:

Primeiro penso que seria oportuno chamar a atenção do pretenso poeta para um facto que não é habitualmente considerado e que ainda é digno de consideração. Espero escapar ao ridículo universal ao afirmar que, teoricamente, a poesia é susceptível de escansão. Gostaria, porém, que ficasse claro que concordo com o Sr. A. B. quando afirma que a escansão estrita não é de todo necessária para o sucesso e mesmo para o mérito de uma composição poética. E creio não parecer excessivamente pedante se procurar no armazém do Tempo, para citar como autoridade, algumas das obras de um certo William Shakespeare ou Shakspere que viveu há alguns séculos e que desfrutava de alguma reputação como dramaturgo. Esta pessoa tinha por hábito cortar, ou acrescentar, uma ou mais sílabas nos versos das suas numerosas produções, e se era inteiramente permitido naquela época de beleza quebrar as regras do bom senso artístico e imitar algum obscuro escriba, ousarei recomendar ao principiante o prazer desta liberdade poética. Não que o aconselhe a acrescentar quaisquer sílabas aos seus versos, mas a subtracção de algumas é muitas vezes conveniente e desejável. Posso ainda recomendar que, por esta mesma regra limitativa, tendo o jovem poeta cortado algumas sílabas ao seu poema, prossiga com o mesmo método e corte as restantes sílabas, embora possa não alcançar qualquer espécie de popularidade, terá todavia revelado um extraordinário senso-comum poético.

Embora me pareça ser lido de um modo geral com ênfase no "o prazer desta liberdade poética", penso que o propósito tende muito mais ao irônico de passagens como "e corte as restantes sílabas". Realmente, porque o desprezo pela escansão teria chegado a níveis exacerbados, o heterônimo ridiculariza a indiferenciação que poesia e prosa alcançaram àquele tempo. Exemplo disto é o divertido causo contado sobre quando recebeu a incumbência de analisar o poema de um amigo. Inicialmente sem entender como interpretá-lo, logo que recebeu a informação de que era um poema ele começou a tecer elogios ao verso branco, mas, quando foi informado novamente que se tratava de um verso spenseriano, por um instante voltou a não entender, pontuando por fim que o tratamento era original.

Ao devolver o papel ao meu amigo, este passou-lhe uma vista de olhos para me mostrar algo de especial, o seu rosto nublou-se e pareceu intrigado.
«Raios», disse ele, «dei-lhe o papel errado. Isto é a conta do meu alfaiate!»

Com isto, bem se nota, o heterônimo caçoa da falta de apuro e amarração de boa parte dos versos de seu tempo, ao que chega até a citar uma receita de como compor versos sem rima: basta escrever em prosa, valer-se de uma régua, mensurar o tamanho de trechos determinados e reparti-los, eventualmente iniciando-os ou pontuando-os com interjeições. "Depois de algum estudo, descobri que pode ser geralmente considerada poesia quando cada linha começa com letra maiúscula. Se o leitor conseguir descobrir outra diferença, ficaria muito grato que ma desse a conhecer."

A discussão não é vazia. Paulo Franchetti, num texto publicado há cerca de dez anos, questiona a consciência dos contemporâneos perante a construção e artesanato do poema, focando em específico no recorte dos versos e demais efeitos que daí advenham. Ele não é o primeiro e certamente não será o último a fazê-lo, haja vista que a liberdade conquistada pelo poeta contemporâneo, invejável do ponto de vista histórico por rechaçar qualquer narrativa globalizante ou qualquer estipulação de regras que não envolvam o princípio da autonomia como centro basilar; bem, tal liberdade não parece se fazer acompanhar sempre de uma reflexão detida não só a respeito das bases históricas das formas poéticas, à maneira do que foi visto no tópico passado, como, ainda, nos ganhos a um nível artístico que as opções utilizadas eventualmente representem. É quando encontramos poetas mediocremente hábeis escrevendo sonetos comportados a respeito de temas irrelevantes ou com uma espúria temática transcendental que só reluz na roupagem conservadora de seus pares, bem como poetas desfiando um rosário de prosaísmos à deriva das opressões de cada dia.

Registre-se, por oportuno, que na mesma época em que Franchetti publicava seu texto, Luis Dolhnikoff também dava a lume outro em que, interpretando um importante texto de Marcos Siscar saído há pouco sobre a cisma da poesia brasileira, redarguia alguns pontos levantados, entre eles o de que haveria uma cisma entre a poesia de propensão semiológica, tecnológica, de que o Concretismo seria o grande exemplo, e a poesia de recorte cotidiano, social. Aquilo, em suma, que poderia ser expresso por uma oposição global entre formalismo e informalidade. Pois bem. Para Dolhnikoff, a questão peca por simplismo, bastando que se observe o salto conteudístico-participante intentado pelas vanguardas na década de 60. Ainda: bastaria notar que as balizas norteadoras da poesia daquele período, apontadas por Siscar, dificilmente se tornam defensáveis quando se verifica a profusão de poéticas praticadas naquele tempo. Para o crítico, é mais viável substituirmos o pólo formalismo/informalidade por outro que contemple os dois formalismos da poesia do período, haja vista que para Dolhnikoff tachar qualquer poesia de informal iria contra a natureza do trabalho poético, o qual, segundo Mallarmé, se faz com palavras e não com ideias.

Dois formalismos, quais sejam: a poesia visual e a poesia verbalista. Ocorre, porém, que o primeiro formalismo, advindo do debate poético instaurado pelas vanguardas da metade do século, se encontra arrefecido com o fim das próprias vanguardas e da utopia, relegando, portanto, a própria poesia visual àquilo que Dolhnikoff chamou de "subcultura". Aqui entra um ponto especialmente sensível do texto. Dolhnikoff se refere ao fato de que, com o fim das vanguardas e a perda da centralidade da poesia visual dentro de um projeto específico, a poesia brasileira voltou ao verso "por inércia". Com isto o crítico não quer dizer que tenha perdido qualidade, posto que usa o termo inércia em seu sentido físico, designando a tendência de um corpo a manter seu estado, seja ele de repouso ou em movimento. O voluntarismo teleológico das vanguardas pretendia abalar o ciclo histórico do verso, mas não calculou a "tremenda inércia histórico-cultural do verso" e nem uma certa fragilidade própria de sua narrativa interior, voltada para uma "evolução das formas" que se preocupava menos com a ampliação do repertório do que com uma "linguagem adequada ao futuro".

É nestes termos que Dolhnikoff se volta ao texto de Siscar e à defesa da tese de que a ausência de grandes questões na poesia contemporânea seria sinal de que as coisas estão mudando ou a ponto de mudar, apontando aquele que seria o segundo equívoco de tal leitura: aborda-se a ausência de questionamentos apenas no âmbito da poesia em verso, esquecendo-se que o retorno ao verso na poesia contemporânea foi feito, como dito, por inércia. Inércia porque uma das opções havia se demitido ― demissão esta que seria complementada, a médio prazo, pela demissão da crítica. E é mencionando esta "demissão da crítica", título de um artigo de Paulo Franchetti publicado também no mesmo período, que Dolhnikoff chega ao que entende como a raiz da ausência de grandes questionamentos da poesia contemporânea: não exatamente na poética, uma vez que "passado o momento vanguardista, não cabe questionar a poesia, mas apenas os poemas", mas sim na atividade crítica, empobrecida e a todo instante se furtando da manutenção da noção de valor como sustentáculo do fenômeno literário.

Não é uma preocupação menosprezível. Já é fato conhecido que Sócrates baniu os poetas da República ao argumento de que sua prática mimética de terceira categoria pode corromper até o mais honesto dos homens, afastando-o da verdade. Com isto o filósofo intentava não exatamente um ataque à atividade poética per se e sim um ataque à hegemonia e enormíssimo prestígio que a poesia tinha na educação cívica do homem grego. O que se esquece é que logo após sua exposição de motivos, Sócrates confessa que o faz apenas pela razão, afinal de contas a poesia homérica possui um agradável poder sedutor. Ora: se alguém puder demonstrar, em prosa, que a poesia é útil e agradável ao Estado e à vida humana, então isto pode fazer com que os decretos sejam mudados... Pois bem. Projetando a deixa socrática para os séculos vindouros, como deixar de reconhecer que este papel é precisamente o da crítica? Demitir a crítica e alijar a literatura da noção de excelência é uma maneira de impedir que a escrita artística se consolide como veiculação deleitosa de valores desejáveis.

A resposta de Marcos Siscar, a seu turno, retomaria o célebre texto de Mallarmé intitulado "Crise de vers", buscando lê-lo não mais sob a clave de prenúncio do fim do verso ou de uma poesia que o dispensasse, mas, antes, buscando entender de que modo o poeta francês reflete sobre uma escrita poética apta a realçar o chamado "interregno":

A crise não designa um fato histórico que atinge a poesia, ou que teria conseqüências sobre a poesia, como normalmente se pensa, mas é um modo de nomear um estado de poesia, um determinado tratamento dispensado ao poema que oscila entre o repouso da tradição e o interregno interessantíssimo do “quase”. A manifestação da crise não resulta na degenerescência da forma verso, mas no florescimento inusitado de estratégias versificatórias que Mallarmé descreve, neste texto, como estratégias de “transposição” e de “estrutura”, conceitos que ajudam a entender sua própria produção poética, dividida entre a sugestão divinatória e o ritmo total do “poema mudo”.

Mallarmé caracteriza a poesia francesa como intermitente: seu apego à exuberância proporcionada pelas regras versificatórias a leva de tempos em tempos a um "orgíaco excesso". Ocorre que, tão logo este se vê esgotado, então a poesia manifestaria um momento de aguardo e de espera. Ora: com a morte de Victor Hugo, cuja influência sobre a poesia francesa foi titânica a ponto de Mallarmé ter dado a entender que o poeta romântico confiscou o verso, então a poesia se via liberta e podia se propor a escrita de "deliciosos quases". Aqui ele já abre um prenúncio de uma estética da sugestão capaz de abolir "a pretensão, esteticamente um equívoco, de incluir no papel sutil do volume algo além de, por exemplo, o horror da floresta, ou o trovão mudo disseminado na folhagem; não o bosque intrínseco e denso das árvores." (Cito na tradução esmerada de Ana de Alencar, que soube captar muito bem a potência poética deste enigmático texto.) Pois é precisamente neste momento histórico em que o verso francês se encontra que Mallarmé dirá:

No tratamento, interessantíssimo, dispensado à versificação, entre repouso e interregno, jaz, menos do que em nossas circunstâncias mentais virgens, a crise.

Ora: ocorre que desta alegada crise da poesia, a qual, segundo o poeta, já era vislumbrada até mesmo pelos jornais, é inviável concluir que defrontamos a abolição do verso. Mallarmé pensa num desmantelo do alexandrino que pouco a pouco conduzisse ao verso livre, mas se e somente se este último se fizesse acompanhar de uma cadência marcada: após chamar a novidade do verso livre de "polimorfa", o poeta aborda "a dissolução agora do número oficial, como quisermos, no infinito, contanto que algum prazer ali se reitere." Do mesmo modo, com a crise do verso Mallarmé designa um momento em que o repouso e o interregno do verso se acentuam, sem que, para repetirmos, isto implique sua dissolução. Na verdade, nem mesmo a dissolução do verso clássico era antevista pelo poeta: "não vejo, e isso permanece intenso em minha opinião, apagamento de nada que tenha sido belo no passado", no que, logo após, desenvolve a ideia de que a poesia poderia se modular a grado do artista: "Toda uma alma é uma melodia, que se deve reatar, e para tanto, existem a flauta e a viola de cada um." A própria noção de verso, aliás, é positiva de se manter na mentalidade dos leitores, a fim de que, em tempos de "afrouxar as regras e diminuir o zelo, em que se adulterou a escola", algo de sua essência mais pura, capaz de remunerar "o defeito das línguas" enquanto "complemento superior" (é uma passagem célebre do texto), permaneça.

Sendo assim, a partir da lembrança do texto mallarmaico Siscar ressalta que não se pode falar em ruptura com o verso pelo simples motivo de que nunca se abandonou o verso: "não há nada além do verso, em poesia. Mesmo as propostas mais radicais de prosificação, como a do poeta francês contemporâneo Jean-Marie Gleize, que interpreta a poesia objetiva em oposição ao verso, entendido como lirismo, são formuladas a partir do verso e em simbiose com sua tradição particular." É nestes termos que se reata a discussão levantada por Dolhnikoff, da demissão da poesia visual e do retorno ao verso por inércia, e afirma que a poesia, por ser "aquilo que falta", não depende de apontar esta ou aqueloutra falta do cenário artístico ― ela, por si mesma, é que se transforma "no terreno ou no interregno dessa falta".

Tal discussão, simploriamente apresentada, encontra ressonância na histórica poética mais recente. Se nas narrativas oficiais lê-se que com o fim da estética romântica as bandeirolas parnasianas magicamente irromperam dos parapeitos, numa análise mais detida o que se observa é que dos últimos voos dos condores se seguiu um interlúdio de poesia realista, desdobrável em vertentes urbanas, socialistas e científicas. Redundando em obras de parco interesse, alguns de seus caracteres seriam depois retomados por Augusto dos Anjos, que lhes deu força expressiva universal. Outrossim, convém notar que sementes simbolistas geneticamente selecionadas já estavam sendo lançadas, bastando-lhes, apenas, o devido repouso em incubadoras volatizantes. O que há para ser notado, porém, é que este interlúdio se interpôs frontalmente à estética romântica, à guisa do que se pode ler neste quarteto de Carvalho Júnior:

        Sofismas de mulher, ilusões óticas,
        Raquíticos abortos de lirismo,
        Sonhos de carne, compleições exóticas,
        Desfazem-se perante o realismo.

Já sabemos que veios irônicos bombeando um sangue genuinamente realista eram encontráveis na melhor sátira dos ultrarromânticos, a exemplo da faceta Calibã de Álvares de Azevedo. Isto, contudo, não muda o feitio da exposição, de modo que a substância epocal era realmente a de um tiroteio de tendências que estilhaçou a vidraça da imprensa num episódio que depois de Manuel Bandeira ficou conhecido como "Guerra do Parnaso" ― não porque brandiam baionetas do l'art pour l'art e sim por, simplesmente, efetuarem seus ataques em verso.

Não é meu propósito esmiuçar o que significou tal episódio. Frise-se, apenas, que ao contrário do que se pode pensar, um autor como Machado de Assis, satirizado ora por seu pseudônimo "Elazar", ora por menções diretas a seus romances de primeira fase, se colocava ao lado não das hostes realistas, e sim das hostes românticas. Não há ironia nem paradoxo nisto. Se ainda hoje designações como "realismo" ou "naturalismo" se ressentem de uma falta de zelo por parte de seus intérpretes, o vocábulo, à época, possuía uma acepção sensivelmente distinta, voltada, para alguns (Machado entre eles), como um apreço por aquilo que revelasse uma crueza chocante. É este o sentido que surge na poesia realista do período, de que se pode citar a lascívia metaforizada em "lúbricas jumentas" num soneto de Carvalho Júnior em que o poeta contempla uma mulher nua sobre o leito.

É, portanto, não só ao desvario dos românticos retardatários como também a esse tipo de postura realista, hoje quem sabe classificável sob o rótulo educacional de "naturalista", que a estética parnasiana contesta. Olavo Bilac, numa conferência dedicada a Alberto de Oliveira, nega que algum dia tenha havido uma escola parnasiana, rotulando-a, antes, de "disciplina do bom gosto" apenas. O poeta elogia a poesia popular de autores "sem apuro gramatical e métrico, versejando com o falar da gente rústica", comentando que esta talvez seja "a verdade poesia, sentimento instintivo e pensamento espontâneo da terra e dos homens" capaz de verdadeiramente durar. A grande questão é que a esta poesia "espontânea" Bilac complementa com outra, relacionada "ao sacerdócio do poetar artístico".

Ora: que a poesia praticada pelos parnasianos seja comparada a estratos religiosos de sentido nós já sabemos a partir do título daquele que é tido como a suma poética do próprio parnasianismo: Profissão de fé, primeiro poema da primeira coletânea de Olavo Bilac, no qual o sentido religioso de expressar e renovar o amor por Cristo é transposto para o empenho do artista em prol do Estilo e da Arte e contra o bando blasfemo de bárbaros que vocifera e se aproxima. Na conferência, Bilac diz:

Não tragam os aprendizes para a oficina da joalheria um material indigno, vocação errada, incapacidade, pechibesque e miçangas [difícil conter o riso com este último objeto], em vez de ouro e pérolas, preguiça em vez de paciência, negligência em vez de vontade e gosto. Não entrem no verso culto o calão e o solecismo, a sintaxe truncada, o metro cambaio, a indigência das imagens e do vocabulário, a vulgaridade do pensar e do dizer. Não seja a arte fancaria e biscate: seja tarefa difícil, consciente, asseada, em que haja sacrifício e orgulho! Só assim será bela e simples a obra. A própria Natureza não trabalha de improviso!

Esta concepção pautada pelo sacrifício e pelo orgulho também norteará as concepções cívicas do poeta, nas quais a construção de uma Nação pujante e forte não deveria se alicerçar apenas na descoberta e louvor de belezas naturais ou nos elogios à língua (construção textual que já fincara a estaca de suas convenções desde o século XVI pelo menos); para Bilac, era necessário que se arregaçasse as mangas e se conquistasse aquela beleza, tarefa duplamente difícil numa época em que as mudanças sociais exigiam do escritor um engajamento próprio em função da arte, mas de tal modo que essa literatura como missão (para me valer, de forma grosseira, da expressão de Nicolau Sevcenko) espelhasse não um alienamento ― antes, a defesa de valores supremos que encontravam na Arte e na Beleza uma realização plena.

Com isto bem se vê que a leitura comumente feita do parnasianismo, repetida por autores das mais variadas tendências, de modernistas a antimodernistas (penso em Bruno Tolentino, que usava o termo "parnasiano" como insulto), peca por simplismo. Porque é seguindo esta senda que se deve entender que o modernismo de 22 não teve como propósito maior a demolição e ataque à estética parnasiana, primeiro pois a estética parnasiana já não tinha adesão consensual àquele tempo e segundo pois dentro da obra dos próprios modernistas encontraremos uma avaliação muito mais favorável aos parnasianos. Parece estranho dizê-lo, ainda mais quando se vêm à lembrança a memória de um Bandeira compondo Os Sapos ― mas aqui é preciso compreender que Bandeira está tecendo uma crítica muito mais específica do que se supõe: dirige-se a um contemporâneo chamado Goulart de Andrade, que havia tentado instituir o critério das consoantes de apoio como critério de qualidade rímica. Ora: o critério, retirado da poesia francesa, onde a distribuição equivalente de rimas no plural e no singular, masculinas e femininas, era um critério cujas raízes remontam pelo menos à Art poétique de Jean Molinet; o critério era dificultado pela exigência da consoante de apoio, que nada mais era o praticar a rima de modo que a consoante imediatamente anterior à vogal tônica também fosse computada, no que, ao se buscar uma rima para "porte", dever-se-ia levar em conta o "p" que antecede "-orte".

Se a sátira de Bandeira, deveras, consegue bons resultados quando lida contra a prática parnasiana, isto deve ser feito com cautela e consciência. Pois o poeta, de resto, em suas memórias deixa claro que os modernistas não se colocaram como antagônicos à versificação. Mário de Andrade, exemplo ainda mais flagrante, um ano antes da Semana publicou na imprensa uma série de artigos com o nome Mestres do passado, nos quais, com a admirável imersão crítica que lhe era característica, realiza leituras apaixonadas da poesia dos grandes mestres parnasianos, indicando, todavia, que por terem cumprido sua função histórica deviam ser devidamente sepultados enquanto estética: "Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas e de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos!" A isto se adiciona a carta aberta que escreveu para Alberto de Oliveira, mais uma vez de grande força sentimental, indicando com isto que em momento algum rechaçava por completo a prática poética daquele período: "Não tenho prevenção [contra você], Alberto de Oliveira. Tive amor. Tive raiva. Agora tenho admiração bem fundada e outras censuras. Posso dizer que tenho amor outra vez." Que tipo de amor, que tipo de raiva? A de que recalcaram "o lirismo bonito que tinham dentro do coração e o que é muito pior, com mau exemplo de artífices cueras [destemidos] que foram, azaranzaram [transtornaram] pelo menos duas ninhas de poetas brasileiros."

Tais apontamentos devem ser complementados com aqueles relativos à própria tomada de opinião por parte de alguns poetas envolvidos. Prosseguindo com Mário de Andrade, cabe notar, com Wilson Martins, que o rechaço da estética futurista, realizado pouco depois da Semana de 22, indica que o fervor vanguardista do início da década pouco a pouco arrefeceu, retirando da prática artística do grupo o sufixo e preparando terreno para uma infiltração cultural mais profunda, bem como para que obras mais bem acabadas pudessem ser feitas, seguindo, agora, não mais o ditame do impacto e da sincronia das novidades, mas sim da investigação da realidade nacional. Portanto, se pudermos reputar como plausível a hipótese aventada por Wilson Martins, não só o clima cultural da segunda década do século passado denotava que uma mudança nos parâmetros estéticos vigentes estava para ser feita, ocorresse ou não um evento como o da Semana (que teve, a princípio, alcance muito mais restrito do que se tenta sugerir), como também os momentos posteriores a 22 denotaram que os artistas envolvidos ampliavam seus ares, a exemplo daquela tomada de posição sutil mas de ampla repercussão que Oswald de Andrade fez ao sair de uma proposta de poesia Pau-Brasil (poesia, portanto, de escrutínio do solo nacional e posterior exportação) para uma clave interpretativa antropofágica (fornecendo, agora, uma interessantíssima teoria antropológica).

Nestes termos me parece que a transição do modernismo para a geração de 45 não possuiu aquele trauma que muitos apontam, em grande medida pois muitos dos envolvidos na fase áurea do modernismo brasileiro fizeram suas transições pessoais para a prática poética da época seguinte. Muitos, aliás, dos melhores livros escritos neste período são de poetas já maduros, a exemplo do que livros capitais de Drummond, Cecília, Murilo ou Jorge de Lima conseguem indicar. Contudo, frise-se que a geração de 45 representou uma característica epocal mais ampla, quando a iminência de uma destruição total da cultura humana e quiçá da própria espécie rondava o ambiente cultural daquele período, fazendo, assim, com que as bases do verso tradicional fossem retomadas num trabalho que com muita frequência se batiza de austero e solene, ou, com Gilberto Mendonça Teles, num trabalho que denotava uma certa "nostalgia do estético". Designações reputo corretas, mas não devendo ser desconsiderado que muitos dos poetas envolvidos nas revistas principais da geração de 45 adotavam posturas mais enérgicas diante do legado imediato de 22, em tudo opostos àqueles caracteres com que via de regra são descritos, isto é, como velhinhos caquéticos num corpo juvenil ou, pior ainda, como um destacamento de bons meninos incapazes "de fazer pipi na cama da literatura", tal como certa feita escreveu um jovem Merquior se ensaiando num azedume desengonçado. Assim, entenda-se que o retorno ao verso metrificado já não tinha mais o mesmo pano de fundo parnasiano, uma vez que os poetas permitiam que repiques de uma imagética surrealista surgissem dentro do texto, ou mesmo que um clima apocalíptico se insinuasse com frequência digna de nota. Se com o parnasiano a Forma ou o Estilo representavam a concreção de valores que deveriam ser batalhados para que pudessem ser conseguidos, é duvidoso crermos que o poeta da geração de 45 em algum momento compartilhasse uma crença tão positiva, ainda mais considerando a conjetura do momento e o arsenal de autores consumidos (penso em específico nas Elegias de Duíno, que começaram a circular por aquele momento).

Ora: é precisamente contra este cenário de coisas que as vanguardas de metade do século se interpunham. Seguindo a fórmula proposta por Domeneck, muito mais realista do que cogitarmos um esgotamento das formas poéticas é cogitarmos uma atrofia do contexto. Realmente: ao penumbrismo e ao retorno às bases clássicas do verso como forma de se agarrar e na medida do possível salvar parcela relevante de um mundo em ruínas, vanguardas como o Concretismo também buscaram estabelecer íntimo contato com uma tradição erudita da arte da palavra, mas de tal modo que visasse responder a estímulos e necessidades de seu próprio tempo. No caso, uma época em que a comunicação se acelerava e os avanços tecnológicos inundavam o cotidiano.

Aqui conseguimos entrar na proposta exposta logo no pórtico do Plano-piloto da poesia concretista, de que se dava por encerrado o ciclo histórico do verso. A leitura mais comum de ser feita de uma proposta assim é de que o verso estava abolido. Adeus, adeus.  Adeus? — Não me parece uma leitura adequada. O uso da expressão "ciclo histórico (unidade rítmico-formal)" é digna de nota. A poesia do período, argumentavam os concretistas, já não respondia mais aos ditames culturmorfológicos do período (útil neologismo criado por Haroldo de Campos envolvendo os vocábulos "cultura" e "morfologia", o primeiro, entretanto, entendido também nos termos poundianos de uma Kulchur, arcabouço cultural capaz de responder criativamente a estímulos do presente). Aquele penumbrismo da geração de 45, que à essa época já havia se tornado nos mais odiosos clichês, podia ser facilmente lido nos títulos de muitas composições poéticas do período, que costumavam, como notou Décio Pignatari, sempre aludir a trevas, escuridão, noite etc etc. Era necessário uma prática poética que tomasse a dianteira do processo culturmorfológico, haurindo os dados mais inventivos da tradição poética disponível a fim de que se projetasse como prática artística de total responsabilidade ante a linguagem.

É assim, num tempo em que a cultura de massas consolidava-se e em que, como dito, a comunicação se acelerava graças à descoberta de novos meios tecnológicos e informacionais, que os concretistas entenderam que a esta comunicação rápida deve corresponder um objeto estético que consiga também se comunicar de maneira rápida e eficiente. O fim do ciclo histórico do verso, portanto, não significava aboli-lo como meio expressivo. Marcos Siscar aponta que numa análise mais detida observa-se que nenhum dos envolvidos o fez: Haroldo de Campos sempre o praticou, de seus primeiros poemas, quando ainda era um Novíssimo (vinculado, mas já radicalizando, propostas da geração de 45), à poesia neobarroca e passando pelo interstício do Galáxias; Décio Pignatari o retomaria na década de 80; Augusto de Campos apresenta, em muitos de seus poemas visuais (penso em Greve e Canção noturna da baleia), versos devidamente cadenciados; e Pedro Xisto dividia sua produção entre poemas visuais e haikais. E isto, bem se entenda, sem nem considerar a prática tradutória, pois que aí teríamos outros quinhentos e encontraríamos a vanguarda toda amolando as arestas da tradução para manter o corte da lâmina original...

O fato, contudo, é que com a poesia visual o verso perdia a circularidade do ciclo histórico. A prática poética agora seria concebida como trabalho com a palavra em suas acepções verbivocovisuais, isto é, neologismo joyceano que implica dizer uma investigação dos ângulos verbais, visuais e vocais da linguagem. Agora é como se no circuito das práticas poéticas existisse um novo elemento que impedisse o império absoluto do verso como único recurso expressivo. A investida contra o verso de fato possuiu momentos enérgicos, a exemplo de quando Décio Pignatari diz que com o advento do Concretismo a linha divisória entre a poesia e a prosa havia se deslocado de modo que toda poesia escrita em versos passa a ser taxável de prosaica; porém, tal energia era menos deslocada para o verso em si do que para uma forma de comunicação discursivo-linear, imprópria, portanto, para o instantâneo que a cultura de massas desenvolvera e a que o poema concreto buscava corresponder.

Nestes termos é que manifesto discordância tanto do que ficou expresso por Dolhnikoff quanto por Siscar. O fim do ciclo histórico do verso deve ser entendido em termos mais modestos do que a formulação bombástica a princípio tende a sugerir. O poema concreto buscava unir uma preocupação dupla e por isso contraditória em si mesma, qual seja: fazer com que uma pesquisa estética refinada se aliasse a uma pretensão interna de fazer do poema um objeto útil, aqui entendido no contexto de uma cultura de massas. Se é verdade que, quando a tecnológica poemática ou artística do poema concretista, nesta busca, arrefecia, então o conjunto deixava de honrar a primeira das pretensões ― resultando em obra de arte, como diz Paulo Franchetti, datada ―, por outro não se pode esquecer que a pretensão abriu novos caminhos expressivos à prática poética. Com isto não chego a dizer que a poesia visual se tornou subcultura, bastando que se observe que do processo de desenergização das vanguardas, operado pela geração de poetas imediatamente posterior; tal processo seria responsável por ampliação o acesso a tais recursos, naturalizando-os como mais um compartimento no leque de opções disponível ao poeta contemporâneo. Sendo assim, não espanta que aquele que se lança nas agruras da poesia viral, escrevendo-a em guardanapos, meias, lençóis, camisetas ou sabe-se lá o quê, com frequência se valha de recursos visuais de comunicação direta a fim de que amplie o impacto da obra produzida perante seu público. Poesia, claro, quase desprovida de valor artístico, mas que nem por isso deixa de dizer menos sobre nosso tempo ou de estabelecer correlações tímidas, mas significativas, com um passado imediato.

Com esta explicação mais uma vez simplória, quis sugerir que as metamorfoses que a prática do verso na poesia brasileira de um século e meio sofreu não dizem respeito a um processo menor de caprichos e substituições. Falamos, na verdade, de autores que se relacionaram com seu tempo e souberam retirar meios expressivos dos que lhes eram disponíveis, ou, ainda, buscaram simplesmente cunhar novas formas que se comunicassem de maneira mais eficiente com suas percepções de mundo. Incluir esta discussão após um debate sobre a historicidade das formas poéticas, e especificamente dentro de um manualzinho de versificação, é uma maneira de mostrar que a escrita artística não envolve apenas o uso beletrista de apetrechos convenientes para que pequeninas células de prazer sejam ativadas na epiderme do leitor ― perigo, me parece, sempre muito presente neste tipo de texto.





SUGESTÕES DE ESTUDO E DE UMA BIBLIOTECA BÁSICA.

Aquele versejador que se deslumbra com as possibilidades em larga medida ilusórias da autopublicação — caso não saiba, amigo leitor, e por estranho que possa parecer, esse poeta aprecia inventar formas fixas na calada da noite ou então se ensaiar em outras que estipulam regras esdrúxulas quando muito capazes de novas modalidades de poesia ruim. Ora. Não parece estranho que um indivíduo simplório revele um apreço por esse tipo de formalidade quando lhe bastaria entornar um balde de lirismo em cinco mil caracteres?

Não, não parece. Existe uma forte propensão lúdica na questão das formas fixas e mesmo da poesia metrificada que seus defensores mais tenazes nem sempre querem aceitar. Se por um lado é ela que entorpece o poeta e o afasta de um trabalho consciente, por outro, o que deveria ser o bastante para que se varra as ilusões de que "trabalho consciente" equivale a contorcionismo ou que "forma fixa" equivale a aroma classicizante; por outro essa propensão lúdica é o que nivela o trabalho do artista pseudoerudito com o do mero versejador municipal. Ora: certa feita lancei a hipótese de que, ao contrário do que se pensa, a escrita poética em formas fixas pode se revelar como sendo de um automatismo tão fútil quanto a criação de fragmentos de auto-ajuda com quebra aleatória de linha. E de fato. Não podemos menosprezar a criatividade imbatível dos poetas ruins em transformarem tudo o que tocam em porcaria. Se isto vem precedido de um discurso sobre a importância dos clássicos para a formação cívica do cidadão, pouco importa — mera questão de invólucros.

Claro que ao falarmos desta poesia simplória nós falamos de uma zona da produção poética que parece estar abaixo da crítica. Uma zona que demande por parte do leitor uma compreensão em bloco a ponto de qualquer escrutínio tornar-se extravagância. São poemas em que tudo parece ter dado errado, de modo que o crítico que realmente se disponha a explicar as razões do "ter dado errado" acabaria se vendo numa encruzilhada: ou evocaria o melhor de si para que argumentasse com brio e suficiência, o que demandaria longas digressões que terminariam por estafá-lo antes do fim da primeira estrofe, ou então se comprazeria com o ataque rápido e cínico. Inútil dizer qual das opções diz mais sobre o crítico do que sobre a obra criticada. O poeta anglo-americano W. H. Auden uma vez disse que atacar livros ruins é perda de tempo e faz mal para o caráter. Considerando que a zona poética que menciono aqui é composta de simpáticas professoras aposentadas e eletricistas que apenas encontram na poesia um alívio para a vidinha que levam, realmente parece estranho querer vociferar contra esse tipo de coisa sem um mínimo de compaixão e impulso por tentar compreender que tipo de força secreta empurra figuras assim para a escrita de tercetos que uma vez desembaraçados revelam uma legítima selva de acrósticos.

Ludismo, eu disse. Brincadeira. Diversão. Dá pra passar um longo parágrafo teorizando sobre nossa criança interior. E penso que estaria tudo muito correto.

Ou seja: em frequências assim todas as soluções poéticas são fagocitadas. Se a escrita de poesia visual já era compendiada na preceptística espanhola barroca, a exemplo de Rengifo — numa Arte poética que, à maneira da Gramática de João de Barros, é dona de uma leveza muito maior que boa parte do chumbo intragável a que o gênero se resumiu —, sabemos que o passado imediato trouxe consigo a exigência de que a poesia visual se acoplasse a uma densa concepção poética armada até os dentes de semiótica avançada. Pois bem. Hoje a coisa é muito distinta, e, como dito no final da parte passada, mesmo o adolescente que pretenda apenas estilizar a grafia das palavras e sugerir pelos volteios das letras a paixão que sente — mesmo ele poderá fazê-lo sem que se reporte a Mallarmé.

Isto serve de sustentáculo para a afirmação de que a poesia hoje é plural. Todos os recursos disponíveis para que o poeta se lambuze. Tão lindo... — Já o discutimos. O ponto a ser feito agora é que a propensão lúdica perante as formas poéticas não exclui aquele domínio capitaneado pela métrica. Eu diria que pelo contrário. É tolice achar que uma educação métrica afasta por si só o poeta da aldeia em que eternamente parecia se encontrar. A única diferença realmente substancial no quadro é que o poeta, ao invés de conceber a poesia como soluços líricos, agora concebe a métrica como um emplastro que de algum modo substituísse, porque internalizado, a consciência crítica, estética e histórica necessárias para um trabalho relevante. Ele se pretende bom, mas é no mesmo ludismo inocente que se engambela. Se na retórica de alguns basta correr os olhos na mancha gráfica de livros encapados a couro para que o indivíduo magicamente se torne civilizado, com direito a um monóculo e debates arrefecidos sobre a decadência cultural do Ocidente, a partir de uma análise mais detida se observa que não existem caminhos mágicos para a escrita de obras de excelência, e mesmo uma vivência ininterrupta com o melhor da poesia seiscentista pode levar o artista a, quando muito, parafraseá-la com um anacronismo um pouco menos enervante.

O que pretendo sugerir com esta fábula é que o estudo da métrica ou é uma espécie de suplício ou uma forma secreta de prazer — nem metade, contudo, da panaceia que alardeiam. Entenda: não é por aí que você vai se tornar um bom escritor. Está errando o alvo, sinto muito. A fluência e o domínio da técnica, quando sozinhos, não designam nada de substancial. Se o seu guru literário não te disse, tudo bem, eu te digo: tudo o que se pode fazer no seu caso é te ensinar a ler poesia com olhos de escritor e lidar melhor com a massa pastosa das ideias e emoções eventualmente expelidas. Só. Não existe uma vereda espinhosa o bastante que leve o efebo a se tornar um grande poeta. Oswald de Andrade em suas memórias dizia que nunca soube versejar: julgava aquilo uma couraça entorpecente. Isto não o impediu de escrever poemas importantes e de escrever o Cântico dos cânticos para flauta e violão. Pode-se apenas supor, como dito mais cedo, que a métrica é capaz de fornecer boas ferramentas de aprendizado ao poeta. Tudo o que extrapolar este pressuposto corre o sério risco de redundar em mais uma lei poética milagrosa e infecunda.

De todo modo, há muito o que ser estudado e que não foi incluso neste manualzinho, a exemplo de investigações a respeito daquelas regiões soberbas da produção literária batizadas de ode e elegia. Analogamente, cabe entender que um vasto cabedal teórico ficou por definir, no que a ausência de menção a termos como mímesis, metáfora ou imitação, essencialíssimos, bem atesta. E poderíamos prosseguir pincelando faltas, seja perante aqueles gêneros retóricos que serviram de esteio para a escrita por séculos, como é o caso do panegírico, seja diante de conceitos mesmo que básicos de linguística ou semiótica, sem os quais dificilmente o leitor conseguirá acompanhar parcela relevante da produção crítica feita sobre poesia nas últimas décadas.

Ciente de todas estas deficiências, cabe-me, apenas, remeter o leitor a obras que complementem os pontos estudados até aqui. As indicações bibliográficas podem crescer de forma desordenada, mas, querendo um pouco de concisão e economia, o leitor estará em boas mãos se puder acompanhar as sensíveis reflexões de Alfredo Bosi (O Ser e o Tempo da Poesia) ou Octavio Paz (O Arco e a Lira) sobre a natureza da poesia, ou, já nos arredores da versificação, se puder adquirir a gramática de Celso Cunha, que conta com um frutífero e suficiente resumo de versificação no seu final. O Tratado de Versificação de Bilac e Guimarães Passos, célebre, célebre, segue indispensável, malgrado o fato de ser difícil de encontrar fisicamente. Se o leitor conseguir fazê-lo, ou se não tiver problema em lê-lo virtualmente, então tanto melhor.

Após, creio que o Manual de versificação românica medieval de Segismundo Spina é uma obra de consulta quase que obrigatória e encontrável a preço módico. Se for possível adquirir o seu Lírica trovadoresca, o que demandará um investimento maior, faça-o, afinal de contas a qualidade da obra é patente: mapeamento erudito da produção lírica medieval. Não sendo possível, e sabendo de antemão que aqueles livros de Cavalcanti Proença e Rogério Chociay sobre versificação se encontram esgotados e raríssimos, será um bom aprofundamento procurar pelo Tratado de versificação do Glauco Mattoso (antes chamado de O sexo do verso), um dos mais recentes sobre o tema e sem dúvidas um dos mais completos.

O Dicionário de arte poética de Geir Campos e o Dicionário de termos literários de Massaud Moisés são obras de consulta excelentes, destas que o leitor quererá ter por perto. No Pequeno dicionário de literatura brasileira, inicialmente sob organização de José Paulo Paes e depois de Massaud Moisés, existem vocábulos aprofundados da lavra de Péricles Eugênio da Silva Ramos, a que remeto o leitor. Porque deste último, embora o ensaio sobre o verso romântico esteja esgotado e de difícil acesso, ainda assim o ensaio sobre o verso composto e outros que mapeiam a produção poética nacional dos primórdios até a metade do século passado podem ser lidos naquele intitulado Do barroco ao modernismo, encontrável com relativa facilidade em sebos. É um bom complemento que acaba servindo muito bem para que se complete aquela área da estante destinada a uma história da poesia nacional, área esta que, de resto, hoje encontra em Alexei Bueno um leitor sensível e capacitado para tanto.

Para o estudo das rimas, o livro de Mello e Nóbrega sobre o tema, Rima e poesia, é indispensável. Já no quesito das antologias, penso que aquelas organizadas por Massaud Moisés cumprem bem sua função, pois que, embora abordem a literatura brasileira de maneira mais ampla, ainda assim foram montadas com didática impecável e senso crítico digno de nota. No entanto, caso se queira algo específico, então as antologias montadas por Sérgio Buarque de Hollanda e Manuel Bandeira são obras de qualidade garantida, ao lado daquelas da lavra de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Uma seleção mais concisa pode ser encontrada na antologia escolar de Frederico Barbosa, e uma emparelhada aos estudos acadêmicos mais recentes é aquela de Sérgio Cohn, que inicia com a poética ameríndia.

De resto, a leitura atenta da obra de autores como Camões, Gonçalves Dias ou Fernando Pessoa é quase que o suficiente para que um estudo apaixonado da arte da versificação seja feito pelo leitor. Como dito, muito pode ser adquirido, mas se o leitor não souber mergulhar nos nuances métricos de um poema como A tempestade, então presumo que toda essa papelada será peso morto.

A seu turno, se me for dado sugerir alguns exercícios a fim de que se melhore um pouco a escrita de versos cadenciados, eu sugeriria três. O primeiro é o de atentar-se e até mesmo procurar por versos prontos no seu dia a dia. Fazendo-o, o leitor perceberá que a métrica é algo que surge com naturalidade, fazendo parte de seu cotidiano e sendo um recurso encontrável com facilidade. Assim, quando se nota que numa frase como "Restaurante Fulano abriu as portas" temos um decassílabo heroico, se torna menos opressivo querer estudá-lo apenas a partir dos grandes exemplos camonianos. O mesmo quanto a "A falta foi batida e a bola entrou na rede": todo o peso constritor que os alexandrinos franceses possuíam nas mãos dos parnasianos se transforma na admirável leveza desta frase...

O segundo exercício é o de traduzir poemas. Digo, aliás, que nenhum exercício pode ser mais benéfico. Certa feita Nelson Ascher comparou o trabalho da tradução a uma espécie de engenharia reversa: toma-se um produto de alta tecnologia e, uma vez desmontada e analisada todas as suas peças, tenta-se, a partir do que este trabalho de destrinchamento logrou apontar, construir um objeto análogo àquele e de mesmo funcionamento, valendo-se, para tanto, dos meios expressivos pertinentes. Ora: não só o próprio ato de analisar o texto alheio é de grande ajuda para o poeta, que agora vê acuradamente a maneira com que aquele texto funciona e suscita abalos estéticos em nossa cútis, como o ato de mobilizar recursos expressivos e construir, por sua vez, um objeto análogo; isto também é de grande ajuda para o poeta, que assim continua mobilizando seus recursos e continua, a seu jeito e com as incumbências próprias do ofício do tradutor, escrevendo. Não espanta que se exija do tradutor de poesia um conhecimento do ofício a ponto de se exigir, em suma, que ele seja um poeta propriamente falando, sem que isto implique um ato prévio ou posterior de sacramentar interjeições no quadrilátero de uma brochura. É que como todo o arsenal poético mobilizável para a escrita de um poema, por exemplo o sapateado da cadência ou as estocadas da rima, é por si só mobilizado com enorme furor por quem se põe a traduzir um poema mantendo um saldo tradutório aceitável e mantendo o garbo ― se todo este arsenal é mobilizável, então testá-lo no campo de batalha de um soneto shakespeariano pode ser muito mais instrutivo do que usá-lo para embalar mais um pacote de analgésicos morais contra as ruínas da modernidade.

Já o terceiro exercício é o de ler a obra de contemporâneos. E com isto não incorro num partidarismo qualquer e nem peço ao leitor que se afaste do jardim das estrelinhas do cânone. É apenas que pode ser mais instrutivo, ao invés de fitar um escritor à maneira de quem fita uma estátua, saber que um organismo ainda em funcionamento está fazendo um trabalho muito melhor do que o seu. Assim, os gêneros clássicos nas mãos de Guilherme Gontijo Flores, a poesia lírico-amorosa nas mãos de Ricardo Domeneck, a poesia satírica em Angélica Freitas, o poema em prosa em Fabiano Calixto ou formas literárias individuais como o soneto nas mãos de Paulo Henriques Britto denotam que indivíduos, abrindo o jornal e lendo as mesmas notícias que a gente ou pagando a mesma alíquota no pão francês, seguem capazes de escrever poesia de forma inteligente, ao contrário do que o apocalipse terapêutico de alguns tende a sugerir. Tudo o que falta para que se tome nota disto é entender que as gôndolas de grandes livrarias não representam, nem de longe, o que a poesia contemporânea é.

Dados os exercícios, arrematemos com duas lembranças: uma aleatória e outra concreta.

A primeira diz respeito a uma frase que li ser atribuída salvo engano a W. H. Auden. Dizia algo como: "Benditas as leis da versificação, que fazem o poeta ficar um pouco mais consigo mesmo". Havia sido compartilhada numa rede social e infelizmente não tive a esperteza suficiente de compartilhar ou de guardar para que pudesse checar melhor a informação. Seja como for, uma ideia admirável: é comum que o poeta julgue que a cadência fixa de algum modo aprisiona e cerceia sua inspiração, quando, pelo contrário, permanecer naquele jogo de encaixes pode levá-lo a se esmerar um pouco mais no trabalho em andamento. Só que como um trabalho assim é uma obra de arte, e como uma obra de arte envolve sempre muito de quem a faz (às vezes sem que o transpareça), então sacrificar-se mais naquilo é um modo de permanecer consigo mesmo, ao invés de apenas desovar e partir para o próximo lampejo. Lição, bem se entende, importante, e à qual se pode adicionar que a camisa de força da métrica, que, como dito um pouco acima, pode ser facilmente contornável se o poeta encarar a métrica com a naturalidade necessária; essa camisa de força a que aludem, ela pode ser muito bem um ganho, especialmente se nos lembrarmos que a necessidade de chegar a um projeto traçado e estipulado anteriormente pode fazer com que o poeta trilhe outras sendas e ao menos cogite possibilidades que, guiado apenas pela torrente emocional, o poeta não conseguiria chegar com facilidade. Portanto, a métrica pode servir facilmente de estímulo criativo, o que é algo positivo e que merece no mínimo uma consideração por parte do poeta.

A segunda é uma citação de Marcus Fabiano Gonçalves, poeta já apresentado ao leitor que, num curto texto sobre o ritmo, chega a notas tão esclarecedoras quanto:

Da escuta cardíaca aos work songs do eito, o ritmo organiza a ciclicidade do tempo humano de um modo pré-cronométrico. Ele instaura a duração como a experiência vivida de um transcurso ordenável. A regularidade dos intervalos e a natureza forte ou fraca, alta ou baixa dos sons marcados conduziu à ideia de uma métrica poética, arte que pretende dispor sobre o tamanho e a tonicidade das sequências enunciativas conforme modelos mais ou menos determinados pela experiência da fala que se registrou por escrito. Portanto, a métrica não é, como muitos crêem, uma simples ortodoxia das formas fixas. Ao contrário: ela é uma educação da respiração, sobretudo para aqueles povos que, como os gregos, não conheceram os sinais de pontuação. Contudo, a despeito das maravilhas alcançadas por tais sistemas, novos e surpreendentes ritmos sempre podem nascer da recusa e da violação dos metros clássicos. A pesquisa com esquemas acústicos multimétricos é hoje capaz de alcançar fôlegos e modulações inéditos e mesmo de ousar a apropriação inovadora daqueles há muito já experimentados. Entretanto, o advento moderno do verso livre e branco (sem métrica e sem rima) proporcionou uma certa vulgarização da forma poética, que passou a ser frequentemente exercida como um miniconto desmembrado em frases cujos finais gráficos são aleatoriamente interrompidos sem uma maior consciência de seus efeitos rítmicos. Essa devoração do ritmo poético pelo fluxo prosódico processou-se também em razão de uma enganosa facilidade que a concentração textual da poesia aparenta oferecer: a forma breve seduz por parecer singela, rápida e acessível. Todavia, a verdade é que a alta consciência do ritmo poético trará sempre consigo a vitalidade de um reenvio temporal na sua definição mesma de linha escrita, ainda hoje chamada verso, palavra que se origina do latim versare: voltar, retornar.

O parágrafo não aparece completo: seu final, que de forma concisa sugere que o retorno rítmico permitiu à raça humana paulatinamente construir uma ideia de futuro, nos levaria a uma outra discussão que, embora profunda e necessária, não seria cabível para um encerramento e nem para um texto que sempre se pretendeu introdutório. Lendo a passagem da forma como foi citada, o que espero é que se perceba a maneira com que o ritmo se imiscui no íntimo de nossa experiência cotidiana, lançando bases para um aprendizado cultural mais arraigado, à maneira do que a notável definição da métrica como "uma educação da respiração" consegue expressar. O mesmo digo quanto ao tempo como organizador "pré-cronométrico", isto é, embora lide com um "transcurso ordenável" (pense num hexâmetro datílico: não podemos, afinal, reduzir seu esqueleto a notações que traduzam sua cadência?), ele "instaura a duração como a experiência vivida", o que implica dizer que é no transcurso ordenável dos dátilos virgilianos que sentimos o peso do velho Anquises sobre os ombros de Eneias. Para tanto Marcus Fabiano Gonçalves remete o leitor ao documentário FOLI, palavra usada pelas tribos malincas para designar o ritmo, em que bem se vê a maneira com que a noção de ritmo preside nossa percepção do movimento: dos golpes do pilão de socar e do martelo aos tambores e passos alegres da população, o ritmo ali está, palpitante, reinventando a duração como experiência vivida.