Casimiro de Abreu (1839 - 1860).



Dele eu costumo dizer: insípido. O problema é que sempre me pareceu também insípido não se inundar de sentimentos lendo a primeira estrofe de Meus oito anos, em especial aquelas bananeiras e aqueles laranjais. Como não sentir o aroma? Como, lendo a quinta estrofe

         Livre filho das montanhas,
         Eu ia bem satisfeito,
         Da camisa aberta o peito,
         ― Pés descalços, braços nus ―
         Correndo pelas campinas
         À roda das cachoeiras,
         Atrás das asas ligeiras
         Das borboletas azuis! 

não sentir um ímpeto de liberdade, irrefreável? "Livre filho das montanhas" é um dos versos mais belos de nossa língua, capaz de sustentar uma estrofe inteirinha. Como essa mesmo, um tanto quanto desigual, apresentando, apesar da bela imagem "das asas ligeiras / Das borboletas azuis", rimas forçadas como entre "bem satisfeito" e "peito" ― embora o peito aberto da camisa insufle ainda mais frescor à passagem.

Depois disso, o que mais?

A singeleza em Deus, é claro, em especial com aquele início infantil: "Eu me lembro! Eu me lembro!" Uma crença abalada em Deus pode ser renovada se entrar em contato, com os poros abertos o suficiente, com um poema desses. Tudo muito simples, até meio previsível ― uma criança que brinca na praia, contempla a grandeza da paisagem e pergunta pra mãe. Qualquer poeta com um pé atrás que fosse conseguiria escrever algo capaz de rivalizar e quem sabe até mesmo superar o efeito artístico destes versos, do mesmo modo que algum poeta com um fervor religioso mais acentuado transbordaria emoções muito mais intensas. Mas será que um ou outro chegariam na medida exata deste poema de Casimiro? "Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus." Literal e literariamente existem muitas formas de ser mais forte do que isso. Mas tem como ser mais marcante?

Do mesmo modo, se me fosse dado voltar ao passado e bater um papo que fosse com aquele adolescente que fui, seria bom tentar convencê-lo a ler um poema como Amor e Medo. Aquele aprendizado chato dessa fase da vida seria menos doloroso se pudesse contar com a ajuda de estrofes como:

         Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
         Cedendo ao raio que a tormenta envia:
         Diz: — que seria da plantinha humilde,
         Que à sombra dela tão feliz crescia?

Das notas melancólicas que permeiam o livro As Primaveras (sempre me lembro de um professor de vestibular dizendo que, apesar do título falar da primavera, nós podemos ler quase que todas as estações dentro do livro), a estrutura paralelística meio rude e meio tosca de Minh'alma é triste é digna de alguma menção que seja, ainda mais se considerarmos que no início da parte IV o poeta consegue uma metáfora tão feliz como:

         Minh'alma é triste como o grito agudo
         Das arapongas no sertão deserto;

A teia aliterativa é muito bem tecida, mas sempre me pareceu que o que realmente encanta sonoramente são as assonâncias, abarcando de forma significativa praticamente todas as vogais, com exceção do E. Tão logo alguém escuta uma araponga gritando — um som que é comumente descrito como o de um martelo sobre uma bigorna, mas que me parece também o de uma enferrujada cadeira de balanço rangendo —, e tão logo se imagina o que seria um grito desses no sertão deserto — o mormaço, o vazio, o silêncio... Isso é bonito demais.

Mas é aí que entra um poema como A valsa. É uma pena que ele tenha se reduzido ao dado de uma efeméride em livros de versificação — aquele poema que se encaixa como uma luva na hora de se exemplificar versos de duas sílabas. Ou então versos de ritmo jâmbico. Tudo isso imprimindo um ritmo que imita à perfeição uma valsa. Forma e conteúdo nunca estiveram tão juntinhos. Que beleza, não é mesmo? Ainda mais graças à velocidade que o poema imprime à leitura, num ritmo que vai se tornando frenético.

Creio que a partir daqui nós já podemos ensaiar algumas considerações um pouco mais reveladoras. É uma valsa, mas, a bem da verdade, uma valsa num ambiente como que palaciano ("Nas galas / Das salas"), o que faz com que exista, podemos supor, toda uma pesada túnica de convenções sociais atuando por ali ("Na valsa / Tão falsa"). O eu lírico se dirige a sua amada, e podemos partir do princípio que os dois são jovens nem tanto porque Casimiro é jovem e porque a imensa maioria de seus eus líricos são jovens (digo "a imensa maioria" mas tenho a impressão de que podemos dizer todos), mas também pelo que o próprio texto nos diz, quando trata a amada como uma "Donzela" e quando fala das "faces / Em rosas / Formosas / De vivo, / Lascivo / Carmim". Só que o eu lírico parece chantagear essa amada, ou, se quisermos usar um termo menos forte, ele parece saber de uma coisa reveladora: "— Não negues, / Não mintas... / — Eu vi!..."

O quê, exatamente? Isto:

         E os olhos
         Escuros
         Tão puros,
         Os olhos
         Perjuros
         Volvias,
         Tremias,
         Sorrias,
         P'ra outro
         Não eu!

Algumas estrofes depois:

         Mas esse
         Sorriso
         Tão liso
         Que tinhas
         Nos lábios
         De rosa,
         Formosa,
         Tu davas,
         Mandavas
         A quem?!

Portanto, um jogo de sedução. Temos uma amada que não dá muita bola para o eu lírico ("Corrias, / Fugias, / Ardente, / Contente, / Tranqüila, / Serena, / Sem pena / De mim!"), mas que apresenta toda uma carga de sensualidade: só na primeira estrofe temos adjetivos que o demonstram de maneira explícita, tais como "Lascivo / Carmim" ou "Ardente, / Contente". Sendo assim, seria uma espécie de trio amoroso: o eu lírico, que ama e é ignorado, a amada, que seduz a outrem, e esse outrem, que é o seduzido. Não é preciso muito para imaginarmos o como, no alto do século XIX, a simples ideia de que uma donzela seduzisse um outro rapaz era má vista. Portanto, possuir um segredo desses é possuir um segredo e tanto, uma verdadeira arma letal nas mãos do eu lírico.

Mas o que temos, todavia, é um jogo de relances, de flashes que, propiciados pela máquina rítmica extremamente acelerada do poema, fazem com que a cena ganhe um dinamismo tão grande que os sentimentos vão e vêm e as próprias ações das personagens ficam numa dança frenética a tal ponto que mesmo a posse de um segredo desses parece que se inutiliza. Não creio que tenhamos subsídios suficientes para afirmarmos que o eu lírico pretende algo de ruim com a posse de uma informação como a que ele possui, mas, de todo modo, a câmera é tão rápida que, mesmo que ele possuísse, o jogo de cair no encantamento da amada, retrair-se, descrevê-la, vê-la se movendo, observar a sedução acontecendo... Tudo isso é rápido demais. Observe uma estrofe como:

         Calado,
         Sózinho,
         Mesquinho,
         Em zelos
         Ardendo,
         Eu vi-te
         Correndo
         Tão falsa
         Na valsa
         Veloz!
         Eu triste
         Vi tudo!

Três adjetivos descrevem o eu lírico, mesclados por uma rima e pelo ritmo que, é sempre bom lembrar, faz com que a leitura do poema seja a mais acelerada possível. Logo depois, temos duas sequências de frases que ocupam dois versos: "Em zelos ardendo" e "Eu vi-te correndo". Já é um outro movimento que o poema propicia. É como se os passos de dança tivessem mudado, isso pra, logo depois, dizer: "Tão falsa / Na valsa / Veloz!" Voltamos aos passos alternados do início da estrofe que terminam com "Veloz", que, graças ao fato de terminar a frase, de ser oxítona e de se fazer seguir de uma exclamação, pontuam com perícia o final da frase. Logo depois: "Eu triste / Vi tudo!" É uma adição, claro, não das melhores, mas que possui pelo menos a função de conectar esta estrofe com a próxima graças à rima, adicionando outros passos à dança que vai construindo a imagem num esquema de idas e vindas. Idas: a descrição do eu lírico, mais ou menos até "Em zelos / ardendo". Vindas: a descrição da amada que se mescla sutilmente à valsa veloz. E então, idas novamente: o eu lírico que via tudo, triste.

Não espanta tanto assim que a amada empalideça na penúltima estrofe. Desmaios são a coisa mais romântica do mundo, um lugar-comum desgastado até a última unha encravada. Mas aqui nós temos alguns subsídios, se imaginarmos que por algum motivo a amada descobriu que o eu lírico sabia, ou que alguém sabia, ou, então, se imaginarmos que ela dançou tanto que desmaiou de cansaço (lembre-se que o poema fala da "dança / Que cansa"), ou, ainda, se imaginarmos que o simples ritmo do poema parece que exaure as forças, tanto do leitor quanto das próprias personagens.

Todas leituras possíveis que, todavia, não me parecem capazes de abrandar tanto assim o artificialismo do recurso usado por Casimiro neste finalzinho. Mas nada disso tira a beleza que é a construção deste poema, que consegue fazer até mesmo de seus excessos (por exemplo o refrão, que me parece por demais desnecessário, ou sequências como "— Teus belos / Cabelos, / Já soltos, / Revoltos,  / Saltavam, / Voavam", altamente redundante) sejam significativos na dinâmica do que apontei das idas e vindas, ou até mesmo a construção viva de uma amada que não é nem aquela frígida vestal da maior parte dos poemas de então nem, tampouco, aquele maldoso pastiche por exemplo da faceta Calibã de Álvares de Azevedo. É, antes, uma donzela na flor da mocidade que se diverte um bocado ali naquela valsa. Que não saibamos ao certo o que a tenha feito ficar pálida na penúltima estrofe é apenas um mistério que, convenhamos, em nada diminui a beleza do poema. Acho até que pelo contrário: é possível que, dado o jogo frenético da câmera poética, é como se o eu lírico não tivesse conseguido "filmar" aquele instante revelador que a tenha feito ficar pálida, ou, ao contrário, é como se tivéssemos que ler nas entrelinhas o que de fato está acontecendo, bem à maneira do que geralmente deve ser feito quando se está numa valsa tão falsa quanto esta.


A VALSA.

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...

Calado,
Sózinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!

Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!