"A poeira da glória", Martim Vasques da Cunha.


Editora: Record
R$ 65,00
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Não estou nem um pouco certo que "Uma (inesperada) história da literatura brasileira" seja um bom subtítulo para o livro de Martim Vasques da Cunha. Afinal de contas, já no prefácio somos informados que o livro se avizinha do que se pode entender como crítica cultural, algo que será importante de termos em mente para que percebamos com mais nitidez algumas análises empreendidas, algumas conclusões e mesmo alguns autores trazidos à baila (por exemplo Sérgio Buarque de Holanda).

Soprar a tal poeira da glória que cobre alguns nomes de nossa vida literária é o objetivo imediato do livro, o que, claro, não quer dizer que ele se limite a isso. Soprar a poeira da glória é uma necessidade em tempos onde o descaso pela literatura, segundo o autor, chegou ao limite (p. 17). Já não podemos mais aceitar a configuração de uma vida literária que enganaria, dissimularia e retiraria nossa atenção da complexidade do real.

Sairmos desse "Carandiru intelectual" (metáfora que o autor desenvolve a partir de um poema de Gregório de Matos) requer que entendamos que a estrutura da realidade se articula "em três pólos de uma tensão orgânica e insuperável: o Bem, o Belo e o Verdadeiro." (p. 90; talvez a parte mais importante do livro todo). Uma vez que a posição central que Deus ocupava na cultura foi passada para o homem moderno ensimesmado, essa tensão se desintegra e nós ficamos sempre com desfalque de pelo menos um dos três transcendentais.

Essa tensão orgânica vai de encontro aos estádios de Kierkegaard. Para o pensador dinamarquês, a vida humana passava por três deles: o estético, "em que o sujeito vê a sua vida e a dos outros como um quadro ou uma escultura", o ético, "em que percebe que há escolhas morais a fazer e que envolvem um compromisso", e o religioso, "em que há uma abertura para o transcendente" e onde o ser se depara "com o Bem, agora em função de uma dor muito mais profunda, uma tristeza permanente alimentada do seu próprio ensimesmamento e que, paradoxalmente, reforça o Bem que orienta o Verdadeiro e o Belo (...)" (p. 93-94).

As formas tortuosas com que o brasileiro deixa de enfrentar a tensão da realidade estimulam e norteiam as teses centrais abordadas ao longo de todo o livro. São formas tortuosas traduzidas na tensão orgânica entre os três transcendentais e na forma com que o brasileiro parece empacar logo no primeiro estádio. Deste empacar-se, deste aceitar o princípio estético da vida e não o ético também (haja vista que a vida interior dá trabalho, pois "Ela se desenvolve não só no contato consigo mesmo, mas também no contato com os outros.", p. 92), veja-se: "O brasileiro é possuído por uma ideia de Belo que não precisa do Bom nem muito menos do Verdadeiro." (p. 96) Várias consequências disso serão apresentadas ao longo do livro, dentre as quais podemos citar o desprezo que o esteticista ostenta para com outras pessoas: "(...) o esteta acredita que o melhor é ser o próprio texto, como se fosse reescrito por uma mão invisível, e que todos ― principalmente os próximos que o acompanham ― devem estar submetidos a uma estrutura que só ele conhece perfeitamente." (p. 96)

E este é, a meu ver, o miolo do livro. Não que o livro realmente necessite que o resenhista o esclareça; pelo contrário. A obra está escrita num estilo realmente admirável, claro, límpido e encantador. Não raro poético. Veja-se: "Neste sentido, Cecília Meireles é uma espécie de realista espiritual, uma artista que não recusa a concretude e os dilemas carnais de uma condição meramente humana e repleta de anseios mal articulados e, ao mesmo tempo, te plena noção de que a vida não é apenas sangue e osso e de que ela pode ser apreendida pelos nossos sentidos em função de um canto poético que ilumina o invisível que nos faz ver que existe algo além dessa balbúrdia." (p. 180) Posto ao lado do formato dos capítulos e subcapítulos, pequenos e na medida certa, e até mesmo ao formato do livro, um tanto quanto leve e com uma diagramação bem espaçada, é uma obra que, dentro de uma mochila ou de uma bolsa, vai ser uma companhia agradável por dias.

Já quanto às análises em si, não bastaria que eu simplesmente dissesse que não concordo com todas, pois seria dizer nada. A perspectiva de análise do autor é interessante, em grande medida pois é algo que eu, pelo menos, pressuponho que a maior parte de nós não temos contato (se bem que o trabalho de editoras como a É Realizações tem mudado este cenário), e vou até mais além: classifico-a também como promissora, haja vista que as passagens do livro se amarram bem e que o autor se faz didático sem simplismo. Tendo em vista que ele não passa por toda nossa literatura, mas sim por alguns autores representativos para a tese central do livro, eu julgo que até mesmo a seleção de nomes foi bem feita e instigante. Veja-se por exemplo o caso de Sérgio Buarque de Holanda lado a lado com Cecília Meireles em discussões como por exemplo a respeito da necessidade de que mantenhamos uma nobreza do estudo do passado (p. 213; mas atenção: "do estudo do" e não "do").

Assim, para voltarmos ao início da resenha, é preciso notarmos que o livro não é bem uma análise literária. É uma análise da cultura brasileira mediada, mas não exclusivamente, pelo enfoque no campo literário. Isso faz com que certos argumentos, que numa análise literária dificilmente seriam convincentes, ganhem relevância aqui, como quando o autor aponta o "quietismo político" de Machado Assis como seu erro capital como artista e como homem (p. 34).

Esse quietismo político, ligado ao tema "do desejo de passar despercebido entre as pessoas" (p. 25) e à ontologia do abandono, temas capitais na obra de Machado, pode ter consequências tão devastadoras quanto o querer mudar o mundo a qualquer custo. É como se Machado não tivesse encarado a complexidade do real acima referida: antes, Machado encarou nas estruturas do real uma procissão de efemeridades em que tudo muda e se metamorfoseia numa outra coisa num piscar de olhos, e, ao invés de se apoiar na categoria dos três transcendentais como forma de entender o abismo do real (o que mesclaria a ideia do abismo conforme desenvolvida por Lionel Trilling [p. 356] à ideia da imaginação moral de Russell Kirk), ele parece que se absteve. Ele dissimulou, tanto a si mesmo quanto ao que estava a seu redor, usando "a literatura como uma poética para esconder uma visão da existência repleta de baixeza moral." (p. 34) Visto que o brasileiro se guia pelo princípio estético da vida, esse mesmo brasileiro se interessa só pela aparência, pelo disfarce, pela dissimulação ― "e não é por acaso que o mundo literário escolheu Machado de Assis para ser o seu 'gênio maior', cujo trabalho de vida inteira foi esconder dos outros o que realmente pensou sobre si mesmo, jogando a culpa em uma 'ontologia do abandono'." (p. 96) Esta última afirmação se ligará, algumas páginas depois, ao ressentimento como caracterização do comportamento do esteticista: "Disfarçado de uma ética que finge se preocupar com o homem, na verdade percebe-se que a moral é apenas um artifício para camuflar a escolha pelo princípio estético da vida (...)" (p. 152).

O leitor se espanta com uma afirmação assim: "para esconder uma visão da existência repleta de baixeza moral". Não seria esta uma forma moralista de enxergar a literatura? O retrato moral dos romances de Machado é dos piores, mas se simplesmente com base nisso chegássemos à conclusão de que estamos diante de um artista ruim, então aí sim estaríamos incorrendo em moralismo. A concepção de Martim Vasques, todavia, é moralmente embasada, e sua crítica se direciona ao quadro moral machadiano decorrente de uma falta de percepção da complexidade do real mediada pelas tais tríades (como se Machado incorresse no que Eliot chamou de imaginação diabólica). Mas não creio que isso seja o bastante para afastarmos os perigos da ideia. O problema que levanto adentra duas vias, basicamente: 1) como se chega à conclusão de que houve uma ausência de percepção?; e 2) mesmo que tenhamos subsídios razoáveis para apontarmos essa ausência perceptiva, de que modo ela se traduz em qualidade artística?

A ideia da imaginação moral, de Russell Kirk, por exemplo, implica que o artista apreenda a correta ordem da alma e do bem público, sendo o propósito dos grandes livros um propósito ético (ensinar-nos a sermos genuinamente humanos) que assegure normas de conduta privada e pública e que dependa de uma distinção por parte do artista de categorias como o Bem e o Mal, o Belo e o Feio etc. Embora vivamos num mundo imperfeito, a ideia de Kirk pressupõe uma busca por valores positivos, de modo que, mesmo que o artista nos exponha uma terra devastada, a imaginação moral teria que se fundamentar de algum modo no reconhecimento de que o artista foi capaz de fazer as distinções necessárias e que sua obra possui o propósito ético aludido (e aqui, creio, a concepção do artista como devendo contemplar o abismo da condição humana, desenvolvida por Lionel Trilling, se acopla). É uma concepção que pressupõe uma moral edificante. Lendo esses livros, nós entramos em contato com uma moral que nos permita sermos seres humanos melhores. (A pergunta que farei daqui a pouco será: mas será que nos tornamos seres humanos melhores só com obras que gozem dessa imaginação moral?)

Se esclareço isto, então a segunda pergunta que fiz parece estar respondida. A moral apontada não se traduz em regras superficiais de conduta. Moral, aqui, quer dizer excelência e profundidade de uma existência. "Baixeza moral" estaria, portanto, intimamente ligada a não enxergar o ser humano como um ser sempre passível de superação. A ontologia do abandono machadiana e seu quietismo político seriam visões tacanhas e mesquinhas do ser humano. Ou seja: visão da existência repleta de baixeza moral e escondida pela obra literária.

Mas será isso mesmo?

Não é nada implausível que a literatura apresente uma dimensão moral nefasta e, mesmo assim, seja tida em alta conta por argumentos que não precisam passar pela identificação moral expressa ou recôndita entre a obra e seu público leitor. Existem formas de valoração artística que passam longe da dimensão moral de uma obra, o que representa um perigo tanto quanto qualquer outra forma de valoração. Ou seja: posso perfeitamente apontar a qualidade artística de um livro e mesmo sua profundidade humana sem que enxergue qualquer propensão que seja à edificação moral ou ao reconhecimento da tensão orgânica triádica.

Afinal de contas, eu aponto que uma obra possui um impacto humano mesmo que de moralmente edificante ela não pareça ter nada. A concepção que temos, correntemente, de uma obra com uma carga humana poderosa, é aplicável mesmo aos retratos morais mais corruptos que se possa pensar. Ou seja: qualquer coisa que se pareça com moralidade, uma obra pode muito bem querer passar por cima. Talvez num âmbito artístico isto nos deixe classificar esse livro como moralmente baixo. Talvez. Até aqui é difícil dizer. Apontar, por exemplo, a moralidade em obras intensamente irônicas é espinhoso, dando até a entender que este não é um bom caminho de análise. Muitas vezes o movimento propiciado pela ironia é mais importante que as extremidades interpostas. Chega uma hora em que a ideia de uma moralidade subjacente se torna forçada, e ou passa a cooptar informações da vida do artista num grau maior do que o aceitável (afinal de contas, a obra literária é uma obra de invenção), ou passa a cair num tipo de reconhecimento que é, quando muito, uma leitura em meio a outras (podemos aceitar que ela exista, mas também podemos aceitar que não).

De todo modo, atribui-se uma importância moral excessiva ao texto artístico. Mesmo que uma obra possa ser moralmente edificante, nem sempre eu leio literatura com esses fins e muitas vezes obras com fins e realizações diversas podem me fornecer material que resulta moralmente edificante. É o que sabemos bem: pérolas de moral edificante podem não ter o mesmo impacto para meu desenvolvimento moral do que uma obra que traga uma moral perversa, e isso em grande parte pois quando eu vou ler literatura, esse retrato moral edificante é um propósito secundário. A participação ativa do leitor no processo da leitura anula boa parte das investidas morais que uma obra carregue em seu íntimo.

Afinal, temos que notar que, dentro da ideia da imaginação moral, o artista não precisa professar homilias em embalagem artística. As formas de se manifestar a imaginação moral, como o próprio Kirk diz, também são possíveis por via da alegoria, analogia ou empunhando um espelho da natureza. Só que, como em formas tais as tensões triádicas não são patentes, fica a questão: aquela tal capacidade de distinção que o artista tem, própria da imaginação moral; ela precisa ser explícita ou pelo menos explicitável? E se explicitável, nós voltamos ao que tenho questionado: onde podemos encontrar apoio para fundamentarmos nossa análise? Na pessoa do artista ou numa leitura cerrada da obra que a compreenda como objeto inventivo mais do que apenas inventado?

As perguntas parecem a princípio escapar do assunto. Acho que não exatamente pois é necessário que tenhamos todo esse cuidado para podermos notar onde, exatamente, o autor não poderia estar incluindo as categorias dos transcendentais mais com base no autor do que na obra (e se algo assim seria ou não um problema) ou então de maneira mal fundamentada. Isto é: se ele enxerga a existência da tensão orgânica entre eles numa obra X, então é razoável que ele enxergue numa obra Y que compartilha de características literárias análogas. Se ele não o faz, e fundamenta sua justificativa com base na trajetória pessoal dos dois artistas, então é o caso de nos perguntarmos se isso não representaria, de novo, um enfoque mais na figura do artista do que na obra em si. E isso pra não dizer, claro, num argumento quem sabe embromado, coisa que, de resto, é um perigo latente de qualquer forma de abordagem que aproxime demais artista e obra. Isto é: se aproximo demais artista e obra, pode ser que eu leia a obra de maneira marcada, deixando de entendê-la como objetivo inventivo e inventado, ou pode ser que eu leia, ao contrário, a vida do artista com marcações trazidas da obra, pra não contar nas possibilidades de que eu rearranje a vida do artista pra que se encaixe em minha leitura da obra ou que eu resolva dar enfoques que legitimem uma leitura com fins a trazer uma coerência total que parece ser o objetivo de muitas dessas aproximações artista-e-obra.

Mudarei o exemplo e buscarei apontar em que partes do livro o autor chegou perto demais desses perigos, marcadamente os decorrentes de uma leitura alicerçada em critérios morais e os de uma leitura que aproxime artista e obra de forma excessiva.

Ao caracterizar livros como Amar, verbo intransitivo e Macunaíma, de Mário de Andrade, o autor diz que são dois livros impublicáveis em qualquer lugar no mundo, "mas que aqui no Brasil, por algum motivo misterioso, são objeto de teses e mais teses. Como romances, são mal escritos e mal desenvolvidos; como estilo, não têm substância nenhuma; e como estopim para algum debate de ideias revelam-se de uma esterilidade ímpar para quem procura algum sentido nesta marmita em que nos encontramos." (p. 278)

A última frase é digna de nota pois parece escancarar a postura do autor em relação a uma boa fatia de autores discutidos. Em não poucos casos, o mérito artístico parece ser posto de lado ou relativizado de algum modo para que a captação de uma ordem maior da alma ou qualquer outro propósito moralmente edificante, conforme expus, seja posto em primeiro plano.

Assim, fica difícil entender, por exemplo, o que o autor entende por estilo sem substância nenhuma num livro como Macunaíma. O que lhe incomoda seria a forma como Macunaíma representaria um primeiro passo numa futura dissolução entre escritor e público que alcançaria seu estopim em Guimarães Rosa. Assim, enquanto Mário buscava por uma gramática do brasileiro, buscava por uma estilização da fala popular, o que parecia ser uma contradição para uma mentalidade urbano-paulista-de-gabinete como a dele (isto é, alguém que não conheceria exatamente qual seria a fala popular), o objetivo de Rosa era o de uma purificação linguística. Eis aí o fracasso tanto de um escritor quanto de outro em relação a seus objetivos, embora Martim Vasques aponte que Guimarães Rosa foi muito mais bem sucedido que Mário (p. 446-447).

Exemplo contrário de autor que conseguiu trabalhar a forma do poema de maneira eminente foi o de Juó Bananére e seu português macarrônico e sua virtuosidade técnica. Martim Vasques cita como exemplo O studenti do Bó Retiro. "Esta é uma das pérolas da literatura brasileira porque mostra todo o engenho e toda a mestria de Bananére naquilo que ele sabia fazer melhor: o humor como forma necessária de resistência ao poder que quer massacrar qualquer ato que ouse ir contra a corrente do progresso e da modernidade." (p. 291) Frases depois, e na mesma página: "O poema vai num crescendo dramático que nem Mário de Andrade, muito menos Oswald, conseguiram realizar em seus poemas mais bem-sucedidos."

Casos assim parecem apontar para o fato de que Martim Vasques não parece ser lá um bom leitor do que a literatura tenha a oferecer de forma mais do que apenas conteúdo. Se aceitamos a carga dramática de um poema como o de Bananére, então nós podemos aceitar sem muitos problemas a carga dramática de muitos outros poemas de Mário e Oswald como, por exemplo, "Acalanto para um seringueiro" ou o "Cântico dos cânticos para flauta e violão". A diferença aqui parece residir muito mais na ideia ou percepção da realidade mediada pela tríade, isto é, uma diferença de ordem moral, do que de fato uma diferença artística. Assim, o trabalho linguístico de Rosa é uma pirâmide que se tornou um "biscoitinho muito delicioso, mas pouco nutritivo", ao passo que a prosa de Otto Lara Resende, que aparentemente seria uma questão de biscoitinhos com sabor esquisito, se revelou como "o alimento que nos sustentaria na longa noite escura que ainda atravessamos", posto que Otto Lara Resende teria reconhecido o princípio ético da vida.

Na verdade, só este último exemplo entre Rosa e Lara Resende já me parece de certo interesse dentro da discussão que venho trazendo pois a impressão que tive foi a de que Rosa, de acordo com as leituras e argumentos apresentados, poderia muito bem ter sido um autor que demonstrou ter compreendido a tensão do real. Assim: você lê e pensa "agora vai!" Mas fuém. Por quê? Bem; os argumentos que justificam seu afastamento desta senda são apresentados na última sub-seção do capítulo, que culminam nas páginas 464-465, onde Rosa é retratado como um narcisista que estaria imerso no princípio estético e não ético. "Sua consequência principal foi, ao fazer isto [imergir-se no princípio estético], radicalizar a visão utópica da literatura brasileira, trocando a realidade por uma ilusão diabólica, que traz apenas divisão, nunca unidade (...)" (p. 465) O que me parece, contudo, é que há um certo artificialismo no argumento, talvez até mesmo um certo deus ex machina que progressivamente vai afastando a leitura da obra de Rosa propriamente dita e, escorada na figura do artista e em seus propósitos, chega aos comentários finais. Ou, melhor reformulando para deixar mais clara minha impressão: não simplesmente escorada e sim dependente de que estas informações venham, tirem, de certo modo, o foco na obra e sejam suficientes para que um juízo da obra se possibilite, o que, como tenho argumentado, é depender de uma aproximação excessiva entre o artista e a obra.

Um outro exemplo dessa defasagem de leitura formal da obra literária ou de subordinação da forma ao conteúdo, para voltarmos a Machado de Assis, é: frases depois do trecho que mencionei sobre a baixeza moral machadiana, sua técnica literária é caracterizada como suprema, e, páginas depois, o autor se refere à "genialidade" e à "elegância estilística" de Machado em contraponto à de Mário de Andrade (p. 268). Mas esse comentário não parece dizer muito. Afinal de contas, essa técnica suprema seria usada para "enganar os outros e, sobretudo, a si mesmo" (p. 35). É como se o crítico, ao invés de tratar a forma de uma obra literária como uma fonte semântica, a reduzisse a um adorno mais ou menos elegante, a uma informação de segunda ordem... Consigo ver isso quando o autor, por exemplo, aborda um soneto de Marco Catalão nas páginas 565-566 (o soneto Síndrome do Pânico). Não vejo lá muita coisa neste soneto que não possamos encontrar literalmente aos milhares em Glauco Mattoso ou mesmo, com um refinamento formal muito mais apurado, em Paulo Henriques Britto. Para Martim Vasques, o poema exibe uma "dicção, firme, forte, imitando o respiro de alguém que se encontra aprisionado" (algo que no máximo me parece detectável pelo jogo de rimas nos quartetos em "-ope" e "-orro"), para além de seu humor: e quanto ao humor, é preciso primeiro entendermos que a literatura "pode ser radiografia de crises muito mais profundas" do que "ser reflexo de anseios sociais" para, então, entendermos o humor como "não aquele que provoca gargalhadas tolas, mas sim aquele que nos faz pensar a partir de um certo absurdo da condição humana." (p. 561) Até aí tudo bem. Tooooooodavia...: "Mas o que impressiona mesmo é a visão de mundo por trás de cada verso, uma visão terrível (...)". O conteúdo sempre se sobrepuja. Ele redime tudo. Impressionante!

Os exemplos que trouxe também suscitam outras questões. Devemos notar primeiramente que objetivos como o de Mário, de se criar uma gramática do brasileiro, embora possuam os problemas já apontados por Manuel Bandeira em correspondência (p. 304-307), não parecem nos levar à conclusão de que uma ideia dessas realmente tenha sido responsável pela dissolução entre escritor e público, ou mesmo que a ideia represente um fracasso completo ou mesmo, ainda, que ela não seja linguisticamente embasada. O argumento de Martim Vasques se encaminha no sentido de: é uma concepção falsa de língua pois, na prática, essa tal língua brasileira parece existir muito mais na cabeça de Mário do que de fato na realidade do falar brasileiro. É algo parecido com a linguagem de Rosa, que se distancia do falar corriqueiro e, pior, possuiria muito mais um poder encantatório do que um embasamento neologístico (Martim Vasques usa uma citação de Flusser como apoio: p. 449; um argumento filológico demais e artístico de menos, eu diria). No caso de Rosa, o autor também traz à tona a concepção de utopia conforme desenvolvida por Thomas More, autor que ele conhece muitíssimo bem, dizendo: "Para quem não suporta a tensão implacável da existência, [a utopia] trata-se da escolha mais confortável, uma vez que suprime a vontade de reformar o cosmos e o substitui por um otimismo ou por um pessimismo que tenta imitar a negação do mundo. Assim, os sonhos podem ser voltados para um passado que já não existe mais ou então para um futuro que se insinua nos nossos anseios mais íntimos. Em ambos os casos, trata-se de uma nostalgia pelo paraíso que culminará na adoção de mundos imaginários e de linguagens inventadas ― as utopias e as distopias literárias que contaminarão o nosso imaginário moderno." (p. 445-446)

No caso de Mário, faltou a Martim Vasques entender que a gramática pensada por Mário não se resumia à faceta normativa (a faceta descritiva de sua gramática inundava e norteava qualquer propósito normativo que houvesse), mas faltou também sensatez antes de querer implicar que o projeto de Mário tenha sido todo esse fracasso que ele diz que foi ou mesmo que tenha sido responsável pelo afastamento entre escritor e público (que, por si só, já me parece ser tomado como um fato de maneira evidente demais, sem muito que o embase). É o mesmo com Rosa: Martim Vasques não só exagera em relação ao dito fracasso de ambos os autores em relação a seus intentos, como também exagera nos efeitos que estas propostas e seus respectivos fracassos teriam representado. Podemos, de fato, supor que estilizar a fala popular implique um afastamento do leitor, mas daí a chegarmos a conclusões que dependam de afirmações de que esse afastamento teria sido alienante e fatal, ou que o escritor não punha os pés na realidade brasileira e que sua concepção de fala popular era próxima de uma absurdidade utópica; todas essas conclusões não convencem.

Mas qual seria um problema certo modo mais prático dessas indagações que venho fazendo? No que elas podem afetar as bases do livro? Disse anteriormente que ela é promissora, e não mudo o que disse; o problema é que, tendo em vista que o livro não parte apenas de uma premissa teórica, mas também parte de uma pressuposição de que nosso meio literário (e de que nossa realidade tupiniquim) é assim e assado e que devemos soprar a poeira da glória desse estado de coisas; tendo em vista isso, nós também podemos, com base no que busquei apontar, entender outros problemas que assolam o livro.

Posso equacionar da seguinte forma: o apontamento de méritos artísticos de um autor; a criação de sua fama, pra encurtarmos caminho, não precisa e, na prática, quase não vai de encontro à moralidade desse mesmo autor. Como o propósito de Martim Vasques é mais amplamente o de uma crítica à moralidade nacional, entende-se porque tenha chegado a tanto; mas, ainda que tenhamos claro este objetivo, é de se notar que ele precisa ser empreendido com cautela, e em não poucas passagens do livro o que nós vemos é o autor por vezes encarando um beco sem saída. A saber: pressupõe-se uma moralidade tacanha na alma do brasileiro; observa-se nossos grandes nomes como nomes que necessitam ter sua poeira soprada a fim de que venhamos a revelar a moralidade também tacanha desses nomes, em maior ou menor grau. É certo que a segunda premissa do beco sem saída pode ser retraduzida no sentido de que um autor pode ter uma poeira soprada por não ter reconhecido a tensão orgânica dos três transcendentais, traduzida em: não ter entendido o quão fundo é o buraco da existência; mas, de todo modo, é comum que no livro esta proposição se embase na moralidade tacanha do público e do artista (algo como: ele foi mais um que, como nós, ficou só no primeiro estádio yadda yadda). Só que: tanto uma premissa quanto outra não são tão firmes assim, pois, como tenho exposto e buscarei expor, essa pressuposição de uma moralidade tacanha não é tão clara assim e, como disse no começo deste parágrafo, a glória construída de um autor não precisa levar em conta a moralidade do autor ou da obra pelo simples fato de que existem formas de valoração artística e mesmo formas de se relacionar com a literatura que não precisam pressupô-la da forma intimamente edificante que o autor traz à baila.

Ou seja: Martim Vasques parece não ter entendido direito que a fama ou a glória de um autor não vão de encontro simplesmente a argumentos morais, e que o prestígio ou desprestígio de uma figura qualquer não precisa ir de encontro a uma congruência ou incongruência de sua mensagem moral e a realidade moral brasileira. Quando o autor diz que é um mistério que Macunaíma ainda hoje gere teses, ele provavelmente está incorrendo num erro assim, qual seja, o de minimizar o mérito artístico da obra dentro de outros argumentos que não argumentos moralmente embasados, como por exemplo o de sua inventividade literária. Podemos muito bem pressupor que um critério desses, inventividade literária, não parece dizer muito se comparado à dimensão humana que uma obra tenha a oferecer ou mesmo à sua capacidade edificante; mas isto seria desprezar, como disse anteriormente, a forma literária como uma fonte semântica, ou então partir de uma concepção dela que parece, como eu disse anteriormente, no mínimo estranha, como quando o autor aponta o estilo de Macunaíma como sem substância nenhuma: um argumento vazio.

Assim, essa proximidade excessiva entre autor e obra, que embasa muitos argumentos no livro, pode até nos levar a algumas conclusões (por exemplo a de que a obra de Rosa, embora seja uma pirâmide, numa perspectiva moral representaria coisa de biscoitinhos). Só que não a outras, em específico conclusões concernentes ao mérito artístico de um autor. Isso faz com que, se nossa perspectiva de análise é moral e tem um escopo mais propriamente cultural do que apenas literário, então nós devemos ter todo um cuidado para que não dependamos de conclusões ou mesmo de pressuposições que nossa análise não tem como nos fornecer.

E é aqui que a coisa complica, pois, se bem entendermos que os questionamentos de Martim Vasques parecem achar apoio muito mais na relação estabelecida entre a moralidade de artista-obra e a do homem brasileiro, é de se perguntar até que ponto as reflexões trazidas são suficientes para soprar a poeira da glória em sentidos propriamente qualitativos. Isto é: tenhamos primeiro em mente a relação que estabelecemos com a moralidade de uma obra de arte vista ou numa perspectiva edificante ou mesmo numa perspectiva moral que pareça possuir um fundo de positividade latente. A tensão orgânica dos três transcendentais, por exemplo, é positiva, por mais que vivamos num mar de negatividades e assim permaneçamos. Páginas depois, o autor citará Bruno Tolentino (uma citação que pode servir de suma de muitas ideias defendidas no livro), para quem "O escritor deve ter o dever consigo mesmo e com quem está ao seu lado de ter 'a capacidade de servir ao passado com reverencia, o presente com audácia e o futuro com fé' (...)" (p. 527-528)

A pressuposição de uma positividade latente é expressa em muitas outras passagens do livro; grande parte do que podemos apontar como uma defasagem de percepção do real está justamente neste sentido, o que, dentro do argumento apresentado, é dizer: nós nos contentamos com o Belo e não estamos nem aí com o Bem e o Verdadeiro. Assim, caso queiramos sair do âmbito literário, seria, quando o autor fala de Sérgio Buarque de Holanda, após uma problematização realmente muito bem feita (p. 220), apontar que a visão social do Sérgio decorreria do fato dele ter sido um cabeça-dura: "Ao analisar a realidade concreta por meio dos tipos ideais, Sérgio Buarque ficou na via de mão única, preferindo estudar a História como um processo em que a estrutura é indefinida e cujo sentido está dentro dela. Como sua visão é imanente (dentro do próprio objeto que está sendo estudado) à História, sua noção sempre será de mudança com unidade, não de mudança na unidade e unidade na mudança. Por isso ele não consegue ir além das representações ideais, ocultando o verdadeiro problema da ordem que seus livros querem expressar, ao observar a via simbólica como mero artefato que o homem produz, para dar algum sentido a seu irracionalismo e também para fugir constantemente das portas da morte." (p. 221) A discussão sobre as vias simbólicas encontra em páginas como 221-225 ou 494-498, mas também, esparsa, ao longo do livro.

Um último exemplo de pressuposição de uma positividade latente está quando o autor discute as formas de manifestação da inveja e do ressentimento nos nossos círculos intelectuais. Uma delas é a de "(...) querer compreender o passado sem querer entender também o presente." (p. 509) Oras: "Domar o presente é ter uma virtude, compreender que há um valor que coloca o presente do tempo que você vive sob o julgamento moral desta presença que lhe é compreendida como além dos seus olhos. Não é apenas um problema contemporâneo ou moderno, mas algo que afeta a todos os homens." (p. 509-510)

Mas o problema a que quero chegar é: tendo em vista que esta compreensão moral nem sempre é explícita, desejável ou mesmo levada em conta no ajuizamento estético de um autor determinado, então é de nos perguntarmos se a forma com que Martim Vasques soprou a poeira da glória de alguns autores teve ou não a efetividade aludida. Afinal de contas, é certo que o livro se assenta na afirmação de uma moralidade tacanha do brasileiro. Essa moralidade tacanha é coisa de antanho, e o objetivo do autor não é exatamente o de carpir uma mudança dos tempos; é, antes, romper com essa constante em nossa cultura. O método que ele possui para apontar essa moralidade tacanha precisa ser posto em seu devido escopo, haja vista que, entendendo esse mesmo escopo (soprar glórias empoeiradas), de certo modo é certo dizermos que a análise, representativa que seja, de alguns nomes, possa oferecer subsídios a que de fato aceitemos as bases em que o livro se assenta. Mas só de certo modo.

Oras: os perigos de que venhamos a trata de tipos gerais e fiquemos apenas nestas raias da generalidade e não lancemos olhar na particularidade de uma existência que busca sobreviver; este perigo é latente em todo o livro, sendo, até, apontado como causa de fracasso da análise social de autores como Sérgio Buarque de Holanda (p. 186-187). Mas me pergunto se o perigo não chegou a assolar, quem sabe perto demais, o próprio autor de A poeira da glória. Pois não se trata de negar que categorias gerais são necessárias para a análise de fenômenos sociais e humanos; trata-se, na verdade, de criticar uma dependência exclusiva delas. Só que como sairíamos dessa dependência? Podemos aceitar, claro, que Martim Vasques se sai bem, pois sempre considera, nas análises que empreende e dentro do escopo teórico trazido à baila, o artista em sua intimidade e as marcas do espírito do tempo, por assim dizer.

O que quero sugerir, todavia, é que há um ponto cego nessa história toda: a base que suporta o livro, eu disse, é a da baixa moralidade da alma brasileira. Existem afirmações que encontram fundamentos mais firmes, como por exemplo ao dizer que o Brasil estaria no cúmulo de seu desprezo pela literatura, que encontra razões nas páginas 514-524 ― eeeeeembora as estatísticas apresentadas e a péssima realidade do mercado editorial não sejam desculpas para a qualidade da literatura produzida pelos próprios escritores: "Mesmo no seu relacionamento silencioso com o leitor e a sociedade, é seu dever [do escritor] capturar a voz do 'fundo insubordinável do ser' [expressão de Ortega y Gasset; p. 38] que não pode emudecer devido a motivos materialistas ou ideológicos." (p. 522) Mas não creio que seja bem o que aconteça com a ideia da moralidade tacanha do brasileiro. Por exemplo aquilo do brasileiro ter empacado no primeiro estádio. O que incomoda é que esta categoria não parece convencer muito, a não ser que o leitor de antemão já concorde com ela. Oras: eu defendi que a glória de alguns autores não se deu apenas em decorrência de uma congruência ou identificação entre o que artista e obra expressam e o que a moralidade do brasileiro vê. Assim, o que sustenta a glória desses autores não precisa ser visto apenas em termos morais. E, logo, o estudo de autores representativos para a vida cultural brasileira não nos faz chegar facilmente à conclusão de que a moralidade do brasileiro é tacanha. Na verdade, como o livro pressupõe essa moralidade tacanha, ele já parte do princípio que o intelectual que não consegue enxergá-la ou explorá-la é um dos que merecem ter sua glória no mínimo espanada. Sendo assim, onde estaria realmente o fundamento da moralidade tacanha do brasileiro? Nós ficamos sem entender. Se o autor tivesse feito o mesmo percurso, com as mesmas bases de análise, mas sem depender dessa constatação, por assim dizer, é certo que o título de seu livro até poderia ser o mesmo, mas alguns argumentos apresentados necessitariam ser melhor colocados.

Machado e Mário fazem parte de uma linhagem que inclui nomes como Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. Em todos temos uma mesquinharia "que reduz o homem a um mero organismo ideológico que precisa da fome para justificar qualquer impulso, seja nobre ou devasso." (p. 348) Ou, pelo menos, é este o argumento apresentado. Digo isso pois nem sempre a leitura convence. Com Antonio Candido a coisa é um tanto quanto gritante: a leitura feita das ideias de Candido é péssima. Mas é preciso, desde já, que se note que, embora Martim Vasques diga que essas ideias são rasas "como um pires de café" (p. 343), ele não chega a rejeitar a obra de Candido como um todo (há uma diferença, sutil e nem sempre existente mas aqui, ao menos, bem captada, entre as ideias de um autor e suas análises).

O problema, gritante, como eu disse, é que o autor trata o pensamento de Candido como se o objetivo de Candido fosse realmente o de reduzir a literatura brasileira a um produto das condições sociais. Isso faz com que o autor constantemente leia em Candido o que Candido expressamente não disse (e há um forte afã em ler as entrelinhas que descamba em correlações forçadas), ou que ele descontextualize Candido e mutile sua concepção de literatura brasileira (intimamente ligada à de sistema literário), enxergando intenções secretas que supostamente habitam a alma do crítico. Num dos trechos mais inacreditáveis do livro, o autor chega até mesmo a dizer que Candido tornou o Brasil numa Cuba literária "onde a liberdade de discordar é paga com desprezo solene de quem não se opõe às ideias superficiais de seu líder" (p. 384)!

Essa imagem de Cuba vem de um texto de 1979 onde Candido elogiava a revolução. Um pouco depois: "O mito da 'revolução permanente' contribuiu para que as contradições de Antonio Candido se transformassem em insanidades ratificadas pelas nossas instituições nacionais. Pois foi isso que aconteceu: atordoados por sonhos que não conseguiram transformar em realidade, elas destruíram definitivamente a sensibilidade moral do país, contribuindo para aumentar o abismo que há entre o Brasil real e o Brasil oficial." (p. 384 também) Algumas páginas depois, falando a respeito do ódio que Antonio Candido teria institucionalizado no Brasil ao enxergar que a libertação do homem brasileiro só se daria sob vias políticas e classistas: "Ao promover, na sensibilidade moral das nossas letras, a organização intelectual do ódio, destruiu o brasileiro em sua vida interior, impedindo-o de alcançar as verdadeiras possibilidades de uma liberdade real e efetiva, uma liberdade que lhe permitira superar todo o ambiente de subdesenvolvimento espiritual que se tornou a norma cultural do Brasil." (p. 386) É um movimento que ajudaria a constituir um chamado patrimonialismo literário, "iniciado quando Machado e Assis fundou a Academia Brasileira de Letras, moldado de forma definitiva pelo Modernismo Brasileiro e tornado em instituição permanente pelo 'paradigma uspiano' articulado por Antonio Candido. (...) Já o patrimonialismo literário é uma síntese perturbadora de dois outros que insistem na luta pelos grupos dentro do Estado: o patrimonialismo tecnocrata, de influência positiva e progressista, e o revolucionário, cujos pais são o socialismo e o comunismo." (p. 528) A correlação com um regime como o cubano, ditatorial, vai de encontro à caracterização do estado atual da cultura no país como padecendo de um totalitarismo cultural (p. 491-494), sendo, porém, de se notar que um regime ditatorial é distinto de um totalitário: neste último temos "(...) uma entidade (governo, instituição) que usa da sua autoridade instituída para impor alguma ordem em uma situação que está fora (ou pode sair) do controle." (p. 491)

Afora o exagero que parece advir de passagens assim, devemos notar que ela parte de uma congruência excessiva demais entre a concepção política de um homem e sua concepção literária. É certo que, como falamos de um crítico e não de um artista, o que implica dizer basicamente a diferença entre se produzir obras de invenção e obras de crítica, então a alegada proximidade que venho apontando pode alcançar níveis de aceitabilidade distintos. Mas isso não quer dizer que podemos supor uma espécie de congruência entre ambas as ideias que se faça excessiva, como é o caso nesta leitura de Martim Vasques. Ou seja: podemos concordar sem muitos problemas com a patifaria do regime cubano, mas partir do princípio de que um intelectual que exaltou o regime tinha planos secretos ou que, no mínimo, não sabia diferenciar entre interpretar a realidade social e interpretar a realidade literária é duvidoso. Parece partir do princípio que quem é de esquerda não sabe diferenciar as duas coisas, o que, não preciso nem dizer, é uma premissa muito frágil.

Mas também flagra um momento em que a amplitude do livro falha, em que aquelas sendas abertas pela interpretação cultural e não somente literária, em específico a de usar aspectos da biografia e das opiniões pessoais como embasamento para um comentário final, entornam o caldo. Ou seja: interpretar a literatura e a realidade social como um conjunto mediado pelas estruturas de dominação da segunda e pela inventividade da primeira, isso é algo que pode ser feito com séria isenção mesmo por quem compartilhe de ideologias políticas "fortes", por assim dizer. No afã de defender uma tese e manter uma coerência na linhagem traçada, Martim Vasques passa por cima dos argumentos de Candido e simplifica de forma deliberada o que em Candido possui um escopo muito maior.

Assim, o autor se detém com demora na passagem instigante, de fato, em que Candido diz que nossa literatura é um ramo secundário da literatura portuguesa, e numa passagem de um prefácio escrito para um resumo publicado em 1997 em que Candido afirma uma suposta violência e inexistência do conceito de literatura brasileira. Se tomadas de maneira literal e partindo de uma leitura mutilada, repito, das ideias de Candido, elas parecem dizer que nossa literatura é uma imposição grotesca, o que implica um reducionismo de qualquer capacidade humana que o brasileiro um dia intentou esboçar. Mas quando entendemos que Candido está se referindo à literatura enquanto sistema, o que implica a consideração de aspectos que vão muito além do mérito individual computado ou da percepção artística da realidade (isto é, implica considerarmos a realidade propriamente sociológica da literatura, como a formação de um público), e quando entendemos que estamos falando da literatura de um país marcado pelo ferrete colonial, nenhuma das duas afirmações parece absurda. Pelo contrário. A consideração entre as tensões sociais e artisticamente inventivas do fenômeno literário poucas vezes foi feita de maneira tão realista quanto em Candido!... Se quiséssemos ficar com uma ideia de Candido fora das expostas no Formação, podemos ficar com estas, escritas em prefácio ao livro O homem político em Shakespeare, de Barbara Heliodora (editora Agir, 2005, p. 11-12): "A tarefa do crítico não é obrigar o texto a conformar-se com os seus pressupostos políticos pessoais, ou com a ausência deles. A sua real tarefa é a que a autora executou aqui, definindo o arcabouço político de Shakespeare e mostrando como ele se traduz em estrutura dramática. No texto literário, o elemento político não vale em si e por si, mas como fator desta estrutura."

Na única passagem em que Martim Vasques parece ter chegado próximo de realmente entender o escopo de Candido (a saber, páginas 375-376), ele se sai com: "Poucos conseguiram escrever este trecho com tamanha ignorância de seus propósitos e de seus meios. Para controlar as nuances do real, Candido sufoca a voz inarticulada que lhe avisava da nobreza do fracasso [ideia desenvolvida nas páginas 338-339], preferindo a limpidez do método e a clareza de uma ordem que nunca existiu." (p. 376) Ou seja: a citação que realmente o permitiria entrar em contato com as ideias de Candido é tida como um momento menor ao longo do livro, uma espécie de contradição nos verdadeiros intentos de Candido, o que, traduzindo pra prática, quer dizer: são ideias que vão contra a leitura que Martim Vasques insiste em fazer de Antonio Candido, e por isso a questão toda da "ignorância de seus propósitos e meios" yadda yadda.

A péssima qualidade do argumento do autor nesta passagem não retira outros méritos do livro. Se concentrei minha resenha nestes comentários, é para, de coração aberto, aceitar a discussão que o livro é capaz de oferecer. Mesmo porque, o que afirmei a respeito de ser um livro com um embasamento teórico promissor e muito bem amarrado não muda. Existem passagens em que a obra consegue cumprir tudo aquilo que esperamos de um bom livro do gênero: posso citar os comentários a respeito de Juó Bananére e Antônio de Alcântara Machado como exemplos de gratas descobertas que o livro tem a oferecer, ou então os comentários sobre o Grande Sertão: Veredas que, dadas as bases teóricas do livro (não o linguístico e sim o concernente ao Mal, nas pp. 429-433), seriam suficientes pra gerar todo um livro em separado, ou até mesmo o entusiasmo com que o autor comenta a poesia de Cecília Meireles.