Eu vejo com bons olhos essas coisas aí de vlogs



Com minha natural inépcia para achar imagens (o que dá pra ver muito bem graças à imagem do gato aí em cima, uma vez que imagens de gatos são o correspondente literário de seixos, ondas, roupas brancas e braços abertos em livros de empreendedorismo e auto-ajuda) e cunhar títulos, eu inicio.

É a mais pura verdade. E preciso até mesmo confessar que, uma vez que o mês de julho não me nutriu de maneira satisfatória com poesia, pois talvez quem sabe a poesia também entre de férias, eu e minha terrível falta do que fazer durante as madrugadas descobrimos essas coisas chamadas vlogs que, claro, já conhecíamos há um certo tempo mas que, nisso de parar e prestar atenção e mesmo acompanhar, e principalmente se divertir, só recentemente. É a mais pura verdade. Eu me diverti um bocado vendo esse pessoal. Acho que já sei até algumas gírias.

Mas não fiquei só na base do acompanhar canais de alta patente. Se tem pelo menos uma coisa que essa vida de leitor me ensinou, essa coisa foi o prestar atenção no magnífico fenômeno do paulatino crescimento das arestas minúsculas. Transpondo para o assunto: eu me preocupei em acompanhar também, e ouso até mesmo dizer em específico, os vlogs-anões que povoam a internet e até mesmo sustentam o fenômeno dos vlogs como um todo. Afinal de contas, haja vista que estamos falando de algo que não necessita de grandes investimentos e, na prática, é um faça-você-também, nada mais natural do que, uma vez que existem vlogueiros que parecem estar dando certo, nem que seja no sentido do apenas estar ganhando livros de editoras, então é claro que existirão outros que vão querer fazer o mesmo.

E lá estava eu, assistindo esses vlogs-anões. Evidentemente, aqui entra também toda uma questão de condescendência e identificação. Explico: entre o vlog e o blog há a priori a diferença de uma câmera. Existe muito mais, mas a princípio é isso aí. De modo que eu, que sou dono de um humilde bloguinho com menos de 50 mil visitas ao todo, que passo dias e dias sem receber uma viv'alma nos meus aposentos, nem mesmo aquelas curiosas visitas de quem só quer enlarguecer o pênis, eu vejo esses canais que possuem uma estruturação a mais pífia possível, com vídeos filmados em câmeras de qualidade péssima pra pior, com áudios que são tão ruins que, em relação à própria música da abertura, representam uma queda qualitativa impactante (pra dizer o mínimo), com logotipos que unem uma imagem aleatória de livros antigos empilhados retirada da terceira página do Google Imagens com uma fonte de qualidade duvidosa e toda trabalhada no Word Art, com títulos que fazem trocadilhos os mais óbvios possíveis, ou então que adaptam expressões populares graças ao enxerto de qualquer derivado de "ler", e que, por trás do sorriso triunfal dos vídeos de estréia da pessoa, você consegue observar com nitidez uma gota de suor indicando que ele realmente se esforçou pra chegar naquela porcaria; enfim; eu vejo tudo isso e sinto uma identificação direta, pois, afinal de contas, eu também sou assim, eu também sou um de vocês.

Mas como explicar todo esse boom? Eu tenho uma hipótese.

Vivemos num país que lê muito pouco. Qualquer um pode tirar da cartola aquela pesquisa da Fecomércio-RJ realizada ano passado e se espantar com o fatídico 70%, mas é preciso observar, usando ainda a mesma instituição de pesquisa, que em 2007 o número era 69%, em 2008 era 72%, em 2009 era 77%, em 2010 era 66%, em 2011 era 72%, em 2012 era 70% e em 2013 era 65%. Não estamos bem na fita, sabe. Quem gosta de ler, assim sendo, é muito provável que, do seu círculo de amizades, não conheça ninguém que goste de ler como ele gosta. O amigo pode até ler de vez em quando ou fingir que gosta, isto é, cair naquela longa lorota do "eu só não leio mais porque não tenho tempo". Mas gostar pra valer, a ponto de reservar com muito carinho uma parte de seu orçamento para alimentar sua biblioteca, ou se divertir à beça discutindo com muito afinco sobre a capa de um livro qualquer, ou sobre cheiro de livro, sobre preferências de leitura e todas essas coisas miudinhas que, assim que estamos entre amigos, se engrandecem; nada disso essa pessoa vai poder fazer no seu círculo direto de amizades. E, à maneira de quem tinha que trocar correspondência com leitores de outros estados há algumas décadas atrás, essa pessoa, hoje, pode entrar na internet e de repente ver que existem pessoas assim como ele, só que, pra seu infortúnio, do outro lado do país. O que acontece é simples: troca de experiências. Um laço eu não chego a dizer de amizade, mas ao menos de proximidade que é feito entre pessoas do mesmo nicho que, de repente e graças aos mecanismos de publicação eficientes que uma ferramenta como o YouTube oferece, podem se tornar mais próximas.

Esta seria a gênese dos vlogs. É o que explica o conteúdo de muitos deles. Não podemos mais esperar que eles veiculem resenhas bem acabadas ou então críticas literárias com um padrão costumeiro de qualidade. Em muitos casos, tudo isso é alheio ao que de fato estão fazendo. A ideia dos vlogs é recente, e, tal como ocorrera com os blogs durante o balbucios da internet, ainda existe um tom amador na maior parte da produção desses vlogs. Nós estamos entrando na intimidade dessas pessoas (algumas vezes a ponto de enxergar uma parede mal rebocada ou um ventilador posto de maneira imponente, necessária e universal em cima da TV de tubo) que, mesmo que na prática se profissionalizem, ainda assim vendem um conteúdo um tanto quanto caseiro para quem os assiste.

E aqui voltamos à questão da profissionalização que discuti em texto passado. Não é uma questão tão passiva assim. Mas, antes mesmo de tocar nela, eu gostaria de lançar a questão que pode ajudar: esses vlogueiros, ou booktubers como alguns preferem. Eles são críticos literários ou não?

A crítica literária está em estado periclitante, dizem. O espaço dado à crítica nos jornais está arrochando cada vez mais, espaço este que, pelo menos desde a segunda metade do século passado pra cá, já era exíguo. É uma pena, claro, pois o desenvolvimento de nossa cultura literária esteve muito próximo do jornal, e de repente a crítica perder esse liame é um negócio aí a ser lamentado. Mas não podemos ficar só nisso. A crítica precisa redescobrir as potencialidades de seu espaço no sentido de que precisa redescobrir as táticas de guerrilha da crítica de rodapé caso queira manter a bola mesmo com um espaço tão minúsculo como o que ela na prática tem tido.

Mas eu não chego nem tanto até aí.

Nós ainda temos uma dificuldade enorme e que já passou das raias do suportável para com a crítica feita na internet. A produção literária, de modo mais amplo, feita na internet. Nós já não somos mais uns vislumbrados com a internet. Ela já faz parte de nossa rotina. Tem gente sendo atropelada por isso, ora essa. E no entanto, a atenção ao que se tem feito na internet é, na maior parte dos casos, simplificada a termos de um subsídio condescendente. A produção literária feita na internet é vista e tratada como mero ponto de apoio ou até mesmo como um substituto de segunda categoria dos veículos tradicionais. Isso é um absurdo em muitos sentidos. Já passou da hora de percebermos e considerarmos com seriedade as potencialidades do ambiente virtual, pra não dizer no fato de que já passou da hora de nos habituarmos a esse ambiente como não apenas um substituto, mas um novo campo genuíno e de sendas próprias.

Quando nos perguntamos se a crítica está em crise, uma vez passado aquele instante de questionamento da própria pergunta, haja vista que, como nota João Cezar de Castro Rocha, de Gonçalves de Magalhães (1836) pra cá a cada 20 ou 30 anos tem alguém proclamando a crise da crítica; uma vez plantadas essas caraminholas, então é hora de vermos o que a internet tem feito e, sem espanto algum, nos impressionarmos. Ouso até mesmo dizer que o que tem sustentado a produção literária hoje é a internet, e a tendência é de que assim seja cada vez mais. Desse modo, se por um lado me parece evidente que a crítica literária dependente dos veículos tradicionais está uma modorra que só, do outro a crítica literária veiculada virtualmente tem feito seu dever de casa e tem dado mostras de que não pretende baixar a guarda. Tem gente muito competente fazendo um serviço de primeira. Tem muita gente também, é claro, fazendo serviço de quinta assim como tem muita gente fazendo um serviço que até seja digno de uma metralhadora de likes. Mas tem gente. Dentro da redoma amaldiçoada dos 30% de leitores do país, tem gente, sim, senhor.

Mas aqui a necessidade de pensar o que seria a crítica literária alcançou seu limite de urgência. Sem mais delongas. Podemos pensar a crítica literária numa perspectiva lato sensu e numa perspectiva stricto sensu. Lato sensu, mais amplamente falando, crítica literária seria todo discurso feito a respeito de um texto literário. Qualquer coisa. Por exemplo uma tese de doutorado com abordagem filológica, onde as preocupações valorativas praticamente inexistem. Stricto sensu, por outro lado, a crítica literária seria simplesmente o se preocupar em dizer se um livro é bom ou ruim. De minha parte, quando eu falo em crítica literária eu penso numa ideia stricto sensu (reservo todo um estojinho de termos para colorir as outras possibilidades de leitura, de modo que, por exemplo, a tese de doutorado que citei antes seria pra mim mais precisamente um "estudo"), e é com base nela que eu faço as elucubrações a seguir.

Crítica literária é basicamente uma questão de argumentos. "Basicamente" pois essa é sua base: ou seja, se eu tiver de peneirar a crítica literária, o que restar na bateia é isso: argumentos. Pretensões de universalidade ou mesmo de prova são estranhas à crítica. Ela é sempre subjetiva e, o que houver de mais objetivo nela, por assim dizer, está respaldado numa realidade intersubjetiva à qual ela se lança, por um lado, e que, por outro, a trespassa. É dizer: essa fundamentação subjetiva da crítica literária vai de encontro à comunidade de leitores como um todo e ao nicho (ou nichos), mais especificamente, a que o sujeito faz parte, e busca aí encontrar sua validade, sua eficiência, seu funcionamento. Um leitor nunca está sozinho. Mesmo que de fato ele esteja (vamos supôr que ele comprou uma ilha), a partir do momento em que ele mexe com literatura, que é uma coisa que mexe, por sua vez, com algo eminentemente coletivo chamado "língua", pra não dizer no fato de que essa coisa literatura sempre possui todo um arcabouço de saberes próprio; uma vez que se une tudo isso, mesmo que esse leitor seja um misantropo da vida, ele sempre será um leitor em meio a outros leitores. E se digo, por outro lado, que esse plano intersubjetivo de leitores trespassa a estruturação subjetiva primeira da crítica literária, é no sentido de que o leitor não está apartado de sua realidade fática nem de valores e posturas que a comunidade de leitores como um todo (bem como o nicho ou os nichos a que esse leitor faz parte) lança sobre ele e literalmente o trespassa. Quando eu leio, por exemplo, um poema, eu faço referência e uso os saberes que aprendi enquanto membro dessa comunidade de leitores (por exemplo indo à escola, lendo livros sobre literatura, discutindo etc). E não só no sentido de saber que por exemplo no verso 15 o poeta faz uma referência ao poema de fulano de tal. É também no sentido daquilo que Jonathan Culler chama mais amplamente de competência literária, ou seja, saber o que fazer e como fruir de um texto poético que vai me apresentar, sei lá, rimas. Ou no sentido de me referir ao cânone que essa comunidade de leitores possui, e que não precisa ser necessariamente o que eu uso durante minha leitura, bem como a posturas e interpretações balizadas por essa mesma comunidade de leitores.

É uma explicação talvez enfadonha, essa que acabei de dar, a qual, a bem da verdade, ainda possui o que ser desenvolvido, mas que tem como cerne o fato de que eu, enquanto leitor, estou em meio a outros leitores e que o simples fato de estar em meio a outros leitores como que ajuda a que eu próprio me estruture e funde enquanto um leitor. Estou emaranhado de maneira indissolúvel na sociedade, em suma. Só aqui nós já podemos observar que ajuizamentos que se queiram objetivos, no sentido de provar de maneira incontestável a qualidade de algo, é um verdadeiro absurdo independente do número de canudos acadêmicos que a pessoa guarde consigo. Afinal de contas, boa parte da Teoria Literária (que é recente: começou no século XX, na Rússia pré-revolucionária) não se preocupou com questões de valor. Para muitos teóricos, a crítica literária entendida como valoração de obras era um verdadeiro atraso. A Teoria Literária se preocupou com questões como a da intencionalidade (quando eu leio, eu estou tentando reconstituir a intenção do autor?), da mímesis (a relação entre literatura e realidade), o estilo, a literariedade (o que faz com que um texto seja literário?) etc. Além do mais, quando se começou a prestar atenção ao cânone e aos chamados clássicos (isso mais ou menos na segunda metade do século, com o advento de correntes teóricas sociológicas, feministas, pós-colonialistas, queer etc), descobriu-se que essa questão de autoridade e do que se chama de clássico ou cânone é uma questão pura e simples de convenções. A crítica literária é uma questão de convenções. Nada impede que eu leia de maneira distinta ou que enxergue um cânone distinto do que a comunidade de leitores enxerga (o que, na prática, significa dizer distinto do que a escola ensina). Bastam-me argumentos, mesmo porque, por mais que tentem, com base nos argumentos mais claustrofóbicos possíveis, empurrar pela goela do leitor a aceitação irrestrita de que o cânone ensinado é incontestável, esse mesmo cânone necessita a todo instante de novas leituras para que se atualize (visto que novas leituras estão sendo sempre feitas e, logo, estão sempre mudando nossa concepção da literatura como um todo) e que esse cânone não abrange toda a literatura nem é funcional para todo tipo de leitura a que a pessoa se proponha: por exemplo se, ao invés de ler a poesia parnasiana como sendo apenas uma repristinação formal, tal como a comunidade de leitores a lê, eu resolver lê-la sob o signo do erotismo e da sensualidade, isso demandará de minha parte não só posturas distintas enquanto leitor como também demandará um cânone diferente.

(Um pequeno parêntesis: as pessoas costumam ensebar demais quando vão falar de clássicos e cânones, mas aqui as definições são simples demais. Clássico é uma obra de referência, podendo ser em relação a qualquer coisa, e cânone é um punhado representativo de obras representativas, o que de novo pode representar qualquer coisa. Dizer que clássico é o livro que será sempre lido ou que pode ser lido de muitas maneiras é uma verdade só até certo ponto, haja vista que toda obra literária pode ser relida ou lida muitas vezes, e o que faz com que os clássicos ou o cânone sejam mais lidos em determinado tempo é uma questão que vai tanto de encontro aos argumentos que estão sendo emitidos pelos leitores como um todo, quanto ao que a realidade fática da literatura, que envolve a produção, divulgação e recepção literária, propicia, isto é, se um escritor não é editado há muito tempo, por exemplo, esse escritor dificilmente conseguirá manter sua posição canônica, a não ser que o faça a partir de argumentos no mais genuíno estilo do empurra-pela-goela.)

Mas eu disse que a crítica literária é basicamente uma questão de argumentos. Nós, enquanto leitores, estamos valorando a todo momento. Da hora de comprar o livro à hora de indicá-lo pra outra pessoa ou à hora de sublinhá-lo até a tampa, nós estamos valorando, o que é um resultado direto do fato de que fazemos parte de um plano intersubjetivo de leitores. Mas nem sempre nós nos preocupamos em argumentar a respeito. Ou seja: suponhamos que tem alguém junto conosco que, observando que estou ensebando um livrinho debaixo do braço, me pergunta o que estou achando. Eu respondo que estou achando legal, no que a pessoa: "Mas por que legal?" "Ah, legal por que está bem escrito." "Mas como bem escrito?" E aqui, como você já deve ter notado, numa conversa assim eu vou aos poucos tendo que argumentar a respeito. Crítica é isso: argumentar a respeito de um juízo valorativo. O crítico não é aquele que tem bagagem pra que consiga provar algo, isto é, que passa anos e anos sentado a bunda na cadeira de faculdade pra construir um medidor-de-qualidade. O crítico é aquele que fornece um argumento, e argumentos são bons ou ruins. Bons críticos fornecem bons argumentos, e um bom argumento tende a prevalecer em relação a um argumento ruim ― não exatamente por refutá-lo, visto que bons argumentos coexistem entre si e visto que o que faz um argumento ruim naufragar é muito mais uma inconsistência interna.

Se temos como base uma concepção assim do que é a crítica, e é isto o que eu pelo menos entendo, então não creio ser nenhum absurdo dizer que muitos vlogueiros podem ocupar a posição de críticos literários. Aqui não se trata de querer, por assim dizer, banalizar a crítica literária permitindo a inclusão de pessoas que estejam longe de serem bons críticos. Do mesmo modo que a maior parte das obras literárias é ruim mas ainda assim é literatura, a maior parte da crítica é ruim mas ainda assim é crítica. Se, no vídeo apresentado, a pessoa se preocupa em valorar e oferecer razões, mesmo que sejam razões pífias, então não vejo como poderia negar que estamos diante de um vídeo de crítica literária. Não há mistificação alguma nem uma titulação que faça com que tenhamos de encher a boca ao nos referirmos. Crítica literária é só isso: argumentação, ou, até mais especificamente, uma postura valorativa articulada, isto é, o leitor se posta diante da obra de uma maneira que seja valorativa, de uma maneira que valore a obra, e que também seja articulada, no sentido de que essa postura gere uma leitura que se sustente por si própria e possa, ela mesma, ser lida por outros. Afinal de contas, quanto mais nós desenvolvemos as potencialidades do verbo "ler", e isso é algo que eu repito muitas vezes aqui no meu bloguinho, mais nós, enquanto leitores, passamos a ser lidos por outros leitores. Nesse sentido a crítica é até mesmo um ato de coragem, pois, enquanto nós nos escondemos por trás do escudo cristalino do gosto pura e simplesmente, isto é, nós não nos preocupamos em argumentar a respeito, esquivando-nos, antes, com a resposta-pronta do "eu gosto"; enquanto nós leitores nos escondemos assim, então não há debate algum. Agora a partir do instante em que eu argumento, eu estou dando corda pra discussão e estou sendo mais franco com meu leitor, haja vista que toda crítica é criticável. Estou pedindo a ele: por favor, participe junto comigo.

Mas nem todo vlog está próximo de algo que se possa chamar sistematicamente de crítica literária. Aquela profusão de vídeos onde os vlogueiros comentam os livros que adquiriram, que receberam, em que eles respondem a TAGs, em que mostram os livros que estão lendo ou fazem um passeio por suas estantes; vídeos assim estão, no geral, muito longe de qualquer coisa que se possa chamar razoavelmente de crítica literária. Afinal de contas, seria nos vídeos de resenha de um livro em que o vlogueiro exerceria a atividade crítica de maneira mais inegável, sem querer dizer com isso que é apenas no gênero textual da resenha que a crítica pode ser feita (na verdade, a concepção que tenho de crítica aponta pro contrário: a crítica literária não tem gênero e pode até mesmo existir de forma subsidiária em outras atividades como a tradução ou a editoração). Mas algumas vezes esses vídeos são raros ou então, na prática, apesar de se intitularem resenhas, parecem se limitar a parafrasear o enredo, a polvilhar estrelinhas em cima da coisa toda e a indicar os personagens preferidos. Dum ponto de vista sistemático, pra me valer do termo que usei antes, não dá pra dizer que estamos falando de críticos pois as posturas que eles apresentam nesses vídeos não se querem valorativas articuladas, isto é, argumentativas. Voltamos ao que mencionei como sendo minha hipótese a respeito dos vlogs: querem abrir sua intimidade e se mostrarem leitores frente a outros leitores.

Não quer dizer que sejam isentos de crítica precisamente por isso. Chega uma hora em que, mais cedo ou mais tarde, o vlog vai ter que mostrar a que veio, e a pessoa que acompanha o canal vai exigir uma postura propriamente crítica por parte do vlogueiro e não simplesmente um passeio por sua biblioteca. Mesmo porque a biblioteca de nenhum de nós é imperial. A gente mal tem estante montada. Podemos passar 4, 5 vídeos assistindo o vlogueiro sem saber se segura a câmera ou empunha o livro. Mas uma hora satura. Pra qualquer um. O mesmo pros tais cinquenta fatos sobre a pessoa, que na verdade devem ser no máximo 8 (o restante servindo de enxerto: "sou uma pessoa que gosta de viajar", "que gosta de dormir", "que gosta de cheirar livros", "que pisca os olhos em certos intervalos de tempos" etc). O caminho ladrilhado de livros da resenha continua sendo o aconchegante espaço a que todos os leitores voltam cedo ou tarde. O vlogueiro vai ter que vestir as vestes críticas. Há espaço e momento, afinal de contas, para as duas coisas dentro da cumbuca de um vlog: intimismo e exposição de argumentos. Não podemos reduzir o vlog como um todo nem a um nem a outro. Do tempo que passei acompanhando vlogs, o que pude ver foi em muitos casos leitores defasados, isto é, vi um número eu diria preocupante de leitores que mal e mal conseguem sustentar uma leitura de determinada obra. Digo isso nem tanto no sentido de que não conseguem fazer análises profundas ― seja lá o que estivermos chamando de "profundo". São leituras mal estruturadas pois se arvoram numa percepção simples do enredo da obra e parece que só, isto é, o leitor aparentemente se contenta com o simples fato de acompanhar o enredo e nada de mais. Quando se ensaia numa valoração a respeito da obra ou mesmo de algo que necessite eu não digo nem tanto o famoso ler as entrelinhas, mas às vezes simplesmente o conectar pontos distantes de uma obra, isto é, pontos que não estão numa sucessão narrativa retilínea; quando o vlogueiro se vê diante disso, são poucos os que realmente conseguem se sair bem.

E não quero implicar com isso que vlogueiros não possuam cacife pra falar de literatura. A discussão, encetada em 2013 por um vídeo da Tatiana Feltrin, foi muito frutífera. Achei bonito ― de verdade! ― ver tanta gente dando seus pitacos a respeito do assunto. Não curso Letras, de modo que não sei dizer qual é a opinião acadêmica a respeito dos vlogs. A impressão que tenho, do que acompanho da produção acadêmica das universidades de Letras ao longo do país (e posso pelo menos dizer que eu acompanho com um afinco considerável), é que a maior parte simplesmente ignora. Por um lado não há problema algum, pois em muitos sentidos os vlogs não apresentariam academicamente uma referência bibliográfica de algum interesse que seja. Mas por outro é uma pena, no que voltaríamos à desconsideração das possibilidades críticas que o ambiente virtual apresenta. Os vlogs conseguem usar a linguagem da internet com muita facilidade e felicidade, e conseguem incorporar, por assim dizer, a vanguarda do entretenimento e comunicação de canais maiores para dentro de suas estruturas. É algo que está muito distante tanto do crítico que proclama a crise da crítica mas parece não ter a mínima noção da existência dos vlogs, quanto do crítico que está a meio passo do ambiente virtual e usa sua página pessoal de internet como mero veículo de republicação de seus textos impressos.

Se existem acadêmicos que são contra, todavia, ou que veem com desprezo, aí eu confesso que nunca vi ao vivo e a cores e, portanto, não tenho como compartilhar com vocês minhas notações científicas a respeito desses espécimes. O que estava dizendo era, pra retomar o fio da meada, é que, naturalmente, qualquer pessoa tenha cacife pra falar de literatura desde que tenha lido o livro. Não é que um curso de Teoria Literária te revele alguns arcanos que irão te separar do comum dos mortais, de modo que obrigatoriamente quem queira fazer uma boa leitura tem que ter uma noção de Teoria Literária ou usar algum de seus grandes autores. Não é bem por aí. Nossa competência literária, pra me usar de um termo que se refere de modo mais amplo à nossa capacidade de ler obras literárias, está em muitos sentidos interseccionada com aspectos que partem não da literatura ou da teoria mas sim de nosso cotidiano. Narrar histórias, por exemplo, é algo que fazemos e ouvimos o tempo todo, e mensagens belas ou que possuam uma forte carga emocional ou mesmo uma sobressalência linguística não são coisa de outro planeta. Os instrumentos da literatura, aliás, e isso é a própria Teoria Literária quem nos diz, são os mesmos que usamos no cotidiano, sejam eles ferramentas como o clímax ou a metáfora.

A diferença entre o leigo e o estudioso não é a de que um sabe ler e o outro não. Os dois sabem, mas o arsenal de leituras do estudioso é mais amplo. A literatura é um fenômeno heterogêneo; ela é ampla demais, e teoria alguma consegue lidar com a literatura como um todo. Teorias e conceitos literários são sempre limitados e abarcam determinadas áreas do fenômeno, o que não quer dizer que sejam inúteis. Se eu disser que poesia é um texto emocionado, essa é uma definição que pode lidar muito bem com um poema de Casimiro de Abreu mas não com um de João Cabral, por exemplo, a não ser que eu resolva me valer das tortuosidades semânticas de afirmações como "de um jeito ou de outro". Mas o fato de que minha definição da poesia como um texto emocionado não abarque bem João Cabral não quer dizer que minha definição é inútil e que tenha sido refutada de maneira integral; partes dela sim o foram, mas partes não. Essa intersecção conceitual permite que um panorama muito amplo de teorias e conceitos sejam incutidos na literatura, mesmo porque, a partir do momento em que a literatura é um ramo da arte, e a arte um ramo da cultura, então, por conseguinte, mesmo supondo que eu conseguisse chegar a um conceito que definisse totalmente a literatura, bastaria um tempo pra que esse conceito já não conseguisse mais: a cultura é um arcabouço de saberes aberto. O estudioso é quem está de olho numa multiplicidade de instrumentos que o façam perceber a literatura com maior acuidade e maior profundidade. Como a literatura é tão heterogênea e mutável, é comum que o estudioso, por necessidades científicas, opere dentro de um pequenino recorte do fenômeno literário, o que constitui a famosa limitação temática da metodologia científica. Mas, de todo modo, sua aparelhagem crítica permite que ele acople visões ou, em suma, argumentos dos mais variados tipos para que ele possa precisamente ler melhor a literatura, o que implica ler a literatura de maneira mais vasta e profunda. Um núcleo de ferramentas de leitura é comum a todos, haja vista que todos passaram por uma escola e que todos, como eu disse, entram a todo instante em contato com tipos de discurso que a literatura se vale diretamente. Um leigo quando abre um livro busca por exemplo entender as razões que motivam certa personagem ou então sublinha nela um símbolo de todo adolescente que sofre por amor, ou mesmo enxerga na obra uma crítica social. São ferramentas de leitura comuns. O estudioso pode ampliá-las, no sentido de que ele pode enxergar na estruturação dos capítulos da obra uma referência cabalística ou coisa do tipo, e, também como eu disse antes, isto apenas comprova que o estudioso possui uma caixa de ferramentas mais bem equipada que  do leigo (embora o fato de que alguém conheça bem todas as correntes teórico-literárias não implica por conseguinte que esse alguém seja um bom crítico e nem mesmo um bom teórico).

Mas isso não quer dizer que um vlogueiro, valendo-se dos instrumentos que eventualmente possua, não possa também criar uma leitura interessante e que funcione muito bem. Eu disse anteriormente que a maior parte dos vlogueiros não me pareceram ser bons leitores, e é uma opinião que reafirmo, mas isso não quer dizer que eu reconheça que alguns possuem um trabalho interessante e louvável. Sei que existem aqueles que, além de oferecem um conteúdo pobre, abusam de efeitos de edição de vídeo e transformam o que fazem numa colcha de retalhos, mas nem por isso eu condeno o todo. Na verdade, nem o todo das ferramentas de edição de vídeo ou, em suma, o "tudo o que você consegue fazer com um vídeo", pois creio que são um algo a mais na construção da sua leitura, e não creio que devam ser reputados como meros acessórios. Pode ser uma ferramente excelente de trabalho, embora eu reconheça que ainda não vi quase nenhum vlogueiro se valer dos instrumentos de edição de vídeos como um apoio real para suas leituras.

De todo modo, isso que disse seria enfocando a faceta crítica do vlogueiro. Eu repito que é preciso termos em mente o fato de que muitos ― na verdade, a imensa maioria não se preocupa e nem passa por sua cabeça se tornar um crítico literário. Eventualmente podem vir a ser, dentro do que expus como sendo crítica literária. Mas, no todo, pretendem o estabelecimento de laços para com um público, e muitos têm feito isso de maneira admirável. Até mais do que isso: graças a esse estabelecimento de laços numa comunidade globalizada e publicizada como é o caso do ambiente virtual, mesmo que não pretendam e mesmo que não exerçam de modo geral o que poderíamos chamar, razoavelmente, de crítica literária, ainda assim tomam postos que a crítica antes ocupava.

Marcadamente, o de uma posição privilegiada no circuito de vendagem de livros. As famigeradas parcerias. E aqui voltamos à questão da profissionalização do vlogueiro, que havia deixado em aberto. Por profissional eu entendo aquele que faz do vlog uma fonte de renda, ou até, pra ser ainda mais específico pois muitos tiram no máximo uns trocados por mês com essa coisa toda (e que talvez não dê nem pra comprar uma mísera brochura), por profissional eu me refiro àquele que passa a ocupar e fazer jus a uma posição mercadologicamente interessante. Equivale a dizer que, aos olhos do mercado, ele passa a ser uma espécie de confluência, ainda que mínima, de investimentos. As famigeradas parcerias.

A editora manda um livro pro vlogueiro, ele divulga como pode. Tem crescido o número de editoras que se atenta aos vlogs como pontos de investimento. Esses vlogs são acessados. De verdade. Eles influenciam a opinião das pessoas. A crítica de jornal tem perdido cada vez mais essa sua capacidade, e, posto que perder essa sua capacidade é parar de responder aos estímulos econômicos nela investidos, o playground da crítica nos grandes veículos de imprensa vai sendo reduzido. Claro que ainda falta a algumas editoras uma leitura um pouco mais acurada do que esses vlogs ― e blogs também ― representam no circuito de vendagem literária. Não se pode negar que um dos principais pontos de apoio do sucesso dessas plataformas virtuais é a proximidade franca com seu público. Se a editora passa a adotar uma pose de dominatrix com o vlogueiro ou o blogueiro, entupindo-o de livros e exigindo que ele resenhe todos ou pelo menos sufocando o pobre coitado, então a coisa vai ficando artificial e aí, meu amigo, pode crer que vai ser uma droga pra tudo quanto é lado. O cara que acompanha o vlog ou o blog em questão vai manjar o que tá acontecendo e vai cascar fora. Cadê aquela coisa genuína, ora essa, que eu tanto gostava? Virou vitrine de editora? Pois é.

Nesse sentido, portanto, eu digo que a profissionalização dos vlogs e dos blogs tem sido eficiente. Estão se tornando cada vez mais frequentes as grandes editoras abrirem pra que vlogs e blogs se inscrevam semestralmente a fim de que possam fechar uma parceria com as editoras. E o interessante desse método é que, assim, virtualmente elas abrangem um número muito mais amplo de pessoas, uma vez que, de novo virtualmente, qualquer um pode ser contemplado. Claro que é necessária uma contrapartida, o que significa que esse vlog ou blog precisa se demonstrar interessante para que a editora mande o livro pro cara e tudo mais. Mas isso não é muito difícil de ser feito. É preciso de um mínimo pra que seu vlog tenha pelo menos o que é necessário pra que decole. Entendo, é claro, que existe sempre um imponderável nessas coisas, mas, de modo geral, a estrada batida aí está:

  • crie uma logotipo e uma abertura decentes;
  • crie um nome engenhoso. Na falta de um, rogo aceite meu desafio de pelo menos não fazer uma referência a livros, leitor ou ler. Isso já deu nos nervos;
  • tenha uma frequência de postagens, pelo menos 2 vezes por semana. Nas férias, se esforce em fazer um especial seja lá de que diabos for;
  • comente o canal de outras pessoas, mas demonstre que você viu o vídeo e se dedicou ao trabalho daquela pessoa. No ambiente virtual, onde o que reina são as pseudovisitas e os pseudocomentários, qualquer coisa que demonstre um pouquinho que seja de atenção já é o suficiente pra, por conseguinte, chamar atenção pro que você mesmo está fazendo;
  • aprenda a editar seus vídeos mas sem excessos: só o suficiente pra que você consiga chegar a um resultado natural. E aqui voltamos ao que disse de muitos exagerarem na edição, talvez tentando alcançar efeitos cômicos que... Bem. Não é porque seus amigos riem de você que você é engraçado. A vida mais cedo ou mais tarde precisa te ensinar isso. Mesmo porque, a esse respeito, uma das coisas mais peculiares de assistir os vlogs-anões foi que, como muitos não sabem editar os vídeos, então muitos tiveram de encarar os horrores de falar qualquer coisa que dure mais de 30 segundos. O resultado no geral é horrível, mesmo porque nós não costumamos treinar muito falar, fora de uma conversa entre amigos, por mais de 30 segundos. Mas isso não quer dizer que aquela gagueira ou aquela facilidade incrível de perder o fio da meada (em muitos casos você quase consegue sentir a pessoa pensando seriamente em desligar a câmera e tentar outro dia) só sirvam pra explicitar um idiota. Imagino que a imensa maioria dos vlogueiros, por trás da couraça da edição, seja do mesmíssimo jeito. E aí... Bem, é aquilo, né. Se a ferramenta está lá pra te ajudar, use-a. Mas não dependa só dela. Se for preciso, se você se sentir bem, faça um textinho, uns tópicos, essas coisas (mas pelo amor de Deus, olhe pra câmera);
  • se você é uma pessoa trombuda, dê um jeito de parecer simpático;
  • mostre o livro pras pessoas tal como uma modelo expõe um fone de ouvido numa dessas feiras tecnológicas que parecem longas; longas e quentes. Uma boa parte de quem assistirá seu vídeo só está lá pra ver o maior número de detalhes físicos do livro possíveis. Portanto, não fique balançando-o de um lado pro outro como se se seu braço fosse mecânico e estivesse pifado;
  • de preferência tente criar uma TAG original. Não é muito difícil. As pessoas de uns tempos pra cá têm saído do cinema com ideias, pra se ter uma ideia do nível que a coisa está. Uma TAG poética, por exemplo. Veja só que ideia maravilhosa eu acabei de te dar...

Enfim. Quem segue pelo menos isso daí já tem meio caminho andado. Mas creio que já me excedi. Uma última dica seria a de tentar fazer com que seus vídeos não excedam os 10, 15 minutos. Mais do que isso é só pra quem tem bala na agulha. Um vídeo longo é tal qual um texto longo. Eu sei das coisas: se quase ninguém leu esse, quase ninguém verá o seu.

Os vlogs ocupam uma posição estratégica no cenário literário contemporâneo. É possível que estejam no seu auge. Não sei quando virá uma decadência, se é que virá uma decadência. Pode ser que haja simplesmente uma normalização, sem todo o inflamento de hoje mas nem por isso com o resultado de que esses vlogs todos sejam lançados às moscas. Estamos falando de um nicho em específico: o nicho de leitores. Mais especificamente, um nicho de leitores em torno de uma pessoa que está preocupada em mostrar sua intimidade enquanto leitora. Ainda que no futuro alguma outra forma de comunicação seja mais interessante, pro momento, que gravar vídeos, uma vez que essa nova forma pinte na área os leitores darão um jeito de se rearranjar. As perspectivas nacionais não nos permitem inferir que estamos lá muito próximos de sair do curralzinho dos 30%. O nicho dá seu jeito de sobreviver, de resistir. Leitores que abram sua intimidade e mostrem a importância da literatura em suas vidas, ainda que de maneiras chochas, como sugeri mais acima, não deve nos levar à conclusão de que estamos falando de um mal necessário. Pelo contrário.