Um poema satírico exemplar.

CONFIDÊNCIA DO BOTICÁRIO.
Pedro Mohallem, disponível aqui.
Papai me diz que a Vida é coisa amarga
que arde a garganta e nunca mata a fome,
mas que é pra eu não chorar e beber tudo.

Engulo-as, e, por mais que a Vida arda,
meu papai – porque sou o filho homem –
não quer jamais que eu beba de canudo.
06/2015.

§

A propaganda da empresa de perfumes O Boticário para o dia dos namorados deste ano rendeu uma discussão enorme. Quer dizer: se é que dá pra chamar de discussão quando um dos lados simplesmente embirra... A coisa foi um tanto quanto desnecessária, se quer saber. Na verdade, desnecessária é dizer pouco, mas eu prefiro manter a compostura e não descer do salto. O berreiro homofóbico quase ensurdeceu a internet, fazendo com que até mesmo um motim de não-curtidas tentasse retirar vídeo da campanha no ar. O negócio foi parar até na justiça... Se bem que "até" não é lá um bom termo pois hoje em dia muitas coisas de somenos importância vão parar na justiça.

De todo modo, aí esteve. Vivemos tempos sombrios, em que discursos de ódio não necessitam mais se dissimular para aparecer. (Na verdade, eu me pergunto se algum dia eles sequer tentaram se dissimular...) E o ódio é uma coisa transideológica, é dizer, ele não precisa se associar à direita ou à esquerda, ao conservadorismo ou ao liberalismo para surgir. No caso envolvendo a campanha de dia dos namorados, posso dizer que o clamor desconsolado partiu dos setores conservadores da sociedade, no sentido de que buscaram manter aquilo que alegam como sendo a moralidade, os bons-costumes, o conceito tradicional de família e toda aquela patacoada que nós sabemos bem. Mas isso não quer dizer que o discurso de ódio seja propriedade apenas dos conservadores.

Da produção artística que foi feita na época, e a qual confesso que não cheguei lá muito bem a acompanhar, um poema me chamou a atenção. É o que trago pra vocês. Pedro Mohallem já deve ser um conhecido seu, posto que ele já fez contribuições valiosas aqui no bloguinho. Então, caso o leitor queira saber quem é Pedro Mohallem, basta clicar na TAG. Acompanho a produção do Pedro há um bom tempo, é dizer, desde tempos de Recanto das Letras, quando ele se comprazia com uma produção virtuosística: por exemplo a criação de sonetos que, divididos ao meio, pudessem ser lidos de pelo menos três formas: ou lendo-se a primeira metade, ou a segunda ou a primeira e a segunda juntas. Os resultados só eram dignos de interesse no âmbito do lodaçal de mesmice da produção de então; mas posso dizer que o Pedro evoluiu e hoje conseguiu chegar a resultados interessantes, por exemplo o deste poema.

A meu ver, um poema satírico exemplar. Pois veja o leitor que o gume da sátira é um gume muito difícil de ser manejado. Acima de tudo pois é uma faca de dois legumes, ou, pra usar a expressão cabralina, é uma faca só lâmina, isto é, é uma faca que não possui a segurança do cabo, cortando tanto o objeto cortado quanto a pessoa que a maneja. A posição da maior parte daqueles que se enveredam na sátira é uma posição de ataque, e até aqui nada de mais; o problema é que essa posição de ataque é unilateral, os poetas achando que basta um discurso explosivo para que consigam dinamitar o objeto satirizado.

O que costuma sair é o de sempre: um poema canhestro, de baixa efetividade estética. Afinal de contas, a partir do momento em que eu escolho criticar determinada coisa num âmbito poético, eu estou, é óbvio, entrando nesse âmbito poético, e não basta que eu simplesmente veicule minha crítica com um verniz poético superficial para achar que estou explorando as potencialidades discursivas que a poesia permite. Noutras palavras, por mais que a crítica seja até válida, o poeta não a equaciona num instrumental poético, e, mesmo que ela seja procedente, num âmbito poético ela naufraga: num âmbito poético ela perde sua capacidade crítica e como que abaixa a cabeça. Afinal de contas, a poesia é um tipo de discurso que possui suas peculiaridades, e mesmo que o poeta opte por negá-las todas, elas ainda assim estarão por todos os cantos de seu texto, uma vez que o poeta optou por escrever justamente um poema.

E quando digo em efetividade estética, veja o leitor que eu tenho em mente uma coisa ampla pra dedéu. Não falo só de criar algo agradável, com imagens bonitinhas ou essas florescências todas. Falo de algo que consiga mobilizar de maneira igualmente inteligente (pressupondo que a crítica já o seja) o instrumental poético para que esse uso do instrumental poético sirva de arma direcionada aos propósitos da crítica, e não que seja uma espécie de roupa larga ou de uma fileira de canhões enferrujados que o poeta não soube usar.

Isso só quanto ao instrumental poético. Pois a sátira ela inicia sua corrida ao rés do chão. Ela pode posteriormente empreender um grande salto, ela pode se veicular nos altos píncaros da expressividade, mas, de todo modo, ela sempre parte de algo ao rés do chão, algo da ordem do dia, mesmo que esse algo seja no fundo, sei lá, um assunto metafísico. No geral, é comum que a sátira possua uma linguagem prosaica, pois é normal, quando vamos criticar alguém, nós tendermos a usar as armas discursivas dessa pessoa contra ela mesma. É uma espécie de imitação e exagero que busca atacá-la de forma mais ampla. Mas o problema não é nem tanto esse.

Pois a sátira é uma simplificação agressiva. Não se pode muito bem pretender que ela seja um espelho fiel da realidade, pelo menos não num sentido realista. Ela possui fins de escarnecimento que transformam a pessoa satirizada numa espécie de espantalho chacoteado por um grupo maior. Mas não só isso: ela costuma pegar essa pessoa, ou esse objeto satirizado, e o transformar em algo maior pois assim a pessoa satirizada poderá contemplar, de certo modo, a imagem que os outros fazem dela e, de maneira mais ampla, o grupo a que essa pessoa ou objeto satirizado pertencem poderão fazer o mesmo. A sátira é uma espécie de espelho cruel. Só que o ato de compôr esse tal espelho cruel é um ato ambíguo, pois o satirista exagera, ele dá pinceladas mais fortes que as que seriam necessárias para a criação de um retrato realista. E isso tem muito a dizer sobre ele mesmo, pois digamos que dar uma pincelada forte é um ato que depende muito mais de nossa emotividade e de nossa subjetividade do que, por exemplo, desenhar um fino traço. A partir do momento em que nosso gesto é brusco e quer dar uma impressão mais exagerada e intensa do objeto satirizado, a partir desse instante nós também estamos nos aprisionando nesse espelho cruel. E é aqui que reside o grande perigo da sátira.

O satirista não pode achar que está apenas ridicularizando o outro, pois a sátira sempre tem muito a dizer sobre quem a escreve também. Afinal de contas, ela pressupõe uma percepção do objeto satirizado própria da pessoa e uma composição escarnecedora igualmente própria. Se o satirista acha que basta simplesmente adotar uma postura agressiva, ele está deixando de vigiar suas costas e preparando o espaço para que depois o apunhalem. A sátira, eu repito, precisa ser entendida como uma faca só lâmina. O satirista não pode ver na sátira um porto seguro. Quem satiriza está se expondo tanto quanto a coisa satirizada.

Um dos instrumentos mais inteligentes de se abrandar o ricochete da sátira é o uso da ironia. Essa postura de querer dizer algo mas na verdade estar dizendo o contrário, como que escondendo um risinho maledicente por trás das aparências, essa postura é quase que perfeita no âmbito da sátira pois quando o leitor começar a detectar os traços autorais na sátira, ele se vê diante de outro pequeno labirinto que é o labirinto da ironia. E a ironia ela dificulta, por assim dizer, a detecção da individualidade do compositor. Ela, por alguns instantes, até impessoaliza a composição, no sentido de que ela cria um dissimulamento, cria uma espécie de fachada que, quando o leitor finalmente consegue se adentrar, ele descobre que o aposento é falso, e fica sem saber onde exatamente o autor reside.

Uma vez entendido isso, nós já podemos voltar ao poema do Pedro. É uma sátira, e se digo que é uma sátira exemplar, é em grande parte pois consegue efetuar uma crítica inteligente e, graças ao instrumento da ironia, dissimula e apaga os rastros.

O poema é feito de dois tercetos decassilábicos em esquema rímico ABC/ABC. Lemos a confidência do boticário. Só aqui nós já conseguimos captar muito bem a quem o autor se refere. Já é um meio de dissimulação. Já é uma forma de se referir de modo bem claro a determinada coisa sem que, todavia, se refira de maneira explícita. No caso, criando uma figura e pondo palavras na boca dessa figura, palavras essas que, aqui, são o poema.

Essa figura é uma figura infantil, o que pode ser lido graças ao termo "Papai" e ao fato de que esse pai manda o filho fazer alguma coisa, para além do fato de que esse eu lírico não possui experiência de vida. É um detalhe importante pois um dos argumentos que mais se foi usado para criticar a propaganda de dia dos namorados da empresa foi de que as crianças se influenciariam vendo um casal gay na televisão. Elas se tornariam gays também.

O pai dessa criança lhe disse que a vida é amarga, que ela arde a garganta mas não mata a fome. Se ela é tudo isso, por quê então teríamos que tomá-la? Por que o pai manda, é o que o último verso do primeiro terceto diz. De todo modo, a vida continua sendo algo insuficiente. Parece que falta alguma coisa que mate a fome. O que seria essa coisa? O primeiro verso do primeiro terceto diz "Engulo-as". Note: "as", no plural. Se referindo ao quê? Creio que tenha sido um deslize do poeta (ele não precisa desse plural pra manter a métrica), mas, de todo modo, podemos dizer que no caso o eu lírico engole as várias tragadas de vida que o pai ordena. De fato, a garganta vai arder, mas, uma vez que o eu lírico é o filho homem, ele jamais beberá de canudo. Ou seja, ele vai beber de uma vez, como se fosse um macho alfa.

Canudo é um símbolo fálico. Beber de canudo remete a algo como fazer sexo oral em outro homem: portanto, amor gay. Só que isso jamais, pois o filho é homem e a figura do pai é mandona e onipresente. O pai ordena, e, portanto, o filho tem que encarar a vida como ela é. O poema, dessarte, pode ser lido como uma espécie de afirmação da virilidade. A vida é um negócio difícil mas ainda assim eu vou beber tudo e de uma vez. Vejam como sou corajoso.

O negócio é que existem outros sentidos que dinamitam este. Se lêssemos o poema assim, nós o estaríamos lendo de maneira, por assim dizer, literal. Mas se trata de uma sátira, e a sátira se liga de maneira muito íntima a uma ocasião específica. Isso faz com que muitos argumentem que a sátira é um tipo de poema não duradouro, o que não deixa de ser uma verdade; o que esquecem é que o ato de se retirar um poema de suas contingências contextuais funciona para alguns, mas para outros, é uma verdadeira violência, de modo que é necessário entendermos o contexto para entendermos algumas das fontes semânticas do poema. Não se trata simplesmente de saber o contexto para entender ao que o poema se refere; é saber o contexto para literalmente poder ler o poema e explorá-lo de maneira melhor.

Tragar a vida como uma espécie de homenzarrão não matará nunca a fome. O eu lírico se reduzirá a um Tântalo. Mas ele parece não ter outra opção, pois o pai ordena que assim seja. Onde estaria, se as coisas realmente são assim, sua virilidade? Que virilidade é essa de ser um pau-mandado da figura paterna? Supondo realmente que o que importe seja beber a vida sem reclamar, e beber tudo, então a postura de se reclamar de um comercial de TV que retrata o que os outros andam fazendo de suas vidas... Ora essa: não seria uma maneira de justamente estar chorando e não querer beber tudo?

Além disso, quem é exatamente o boticário do poema? O eu lírico é difícil de ser, pois ele ainda é criança. Seria o pai, portanto? É a meu ver a opção mais plausível, pois, de todo modo, nós podemos no mínimo pressupôr que o pai já tomou da Vida. O boticário é um farmacêutico. Mexe com remédios. A Vida, assim sendo, seria um remédio. Um remédio pra quê? Para um machucado, para uma doença, é claro. Que doença é nós não temos como saber a partir do poema (na verdade, ficamos entre a opção da homossexualidade concebida como doença e da própria homofobia como também sendo), mas, de todo modo, é preciso esse remédio, a Vida, pra que o machucado ou a doença sare. Não seria, no plano das reclamações homofóbicas sobre o comercial da empresa, o remédio perfeito a ser aplicado? Ou seja: a Vida. Essas pessoas que reclamaram e escancararam sua homofobia... Elas precisam tomar da Vida.

Talvez o leitor possa achar que, como a confidência é do boticário, e como o boticário é uma figura opressora no poema, então, por conseguinte, nós teríamos que na verdade o poema quer dizer que o poema está falando da empresa O Boticário que quis empurrar pela garganta das pessoas essa promiscuidade gay. Se o leitor realmente pensou numa leitura assim, olha... eu não acho que isso se sustente, haja vista a presença paterna constante ao longo do poema e o fato de que o eu lírico se caracteriza como o filho homem. A cena retratada se inscreve dentro dos preceitos da família tradicional: o filho que é orgulho do pai e o pai que teme, mas teme de verdade, que o filho vire gay.

Mas, como vimos, o poema sugere é precisamente o contrário. É preciso, pra curar a homofobia, Vida. Isso sim é um gesto de coragem, e não o de ficar se escondendo atrás de reclamações sobre o que os outros tem feito de sua vida privada. Quem realmente faz isto está bebendo a Vida de canudo, ou seja, está bebendo aos pouquinhos e de maneira patética: basta você pensar em como seria beber um remédio de canudo... Na verdade, beber qualquer coisa de canudo é uma maneira infantil de beber; como o eu lírico é criança, o que se estaria propondo a ele, impedindo-o de beber de canudo, seria o amadurecer-se mais rápido, o que, na dupla senda do poema, pode tanto representar se tornar um homem o mais cedo possível pra não se tornar gay ou então se remediar do preconceito o mais cedo possível. É um segundo sentido, esse de que beber a Vida de uma vez e não de canudo pressupõe coragem, que se contrapõe de maneira poderosa ao primeiro. Pois enquanto neste primeiro nós tínhamos uma figura opressora do boticário, que obrigava o filho a encarar a Vida como um homenzinho e escapar simbolicamente das perversões homossexuais, no segundo sentido nós temos o boticário como emancipador que dá Vida de remédio pro filho a fim de que o chorume, metaforicamente falando, acabe.

A forma do poema é também digna de nota. Os dois tercetos, eu disse, possuem esquema rímico ABC/ABC. No primeiro nós temos uma explicação do que a vida é e, no segundo, temos o ato efetivo de se engolir. O que separa um e outro é o espaço de uma estrofe, mas, simbolicamente falando, é muito mais, pois é o ato de coragem de se engolir a Vida de fato e de uma vez. Uma vez que o fazemos, então nós aportamos na outra estrofe e completamos o esquema rímico do poema, o que ritmicamente é dizer que nós completamos seu sentido. Mas, pra que assim seja feito, é necessário coragem e atitude. Não que se beba de canudo, ou seja, a partir de uma ponte artificial entre o conteúdo do remédio e nossa boca com fins de abrandar a ardência na garganta. A Vida não é o suficiente; ela não mata a fome; mas ela é pressuposto essencial pra que outras coisas, que possam sim matar a fome, um dia venham. Se nós nem mesmo bebermos a Vida, então nós perecemos.

Mas, como disse o tamoio no poema de Gonçalves Dias, "Viver é lutar". Quem se debate frente a questiúnculas, temendo que uma geração de garotos se torne homossexual por entrar em contato com a homossexualidade mesmo que na tela de uma TV (partindo realmente do princípio que as coisas sejam tão caricatas assim), nem de longe luta: se aparta. Bebe de canudo. Vive seu mundinho doente, morrendo de medo que sua garganta arda e o impeça de falar as besteiras que fala. Unindo um sentido e outro do poema graças ao mecanismo da ironia, que faz com que os dois lados da moeda tendam a se complementar anulando-se, a confidência do boticário passa a ser: apesar dessa postura machona, veja como sou um belo de um covarde, veja como não passo de um doente.