Um parêntesis.



Sobre minha pugna acerca das perguntas O que é arte?, O que é literatura? e O que é poesia?, reunidas sob a TAG "conceitos" (aqui), hei por bem dizer que tenho aos poucos dado o braço a torcer e retornado à posição exposta por Compagnon e Eagleton (discutida em especial aqui). A ideia por enquanto não é nem tanto a de dizer que um conceito de literatura é algo totalmente impossível, mas sim que todo conceito de literatura, por se tratar por conseguinte de um conceito que envolve matéria cultural (matéria em aberto), deve conviver com incertezas ou, em suma, uma inamovível zona penumbrosa, o que por conseguinte não quer dizer que a conceituação quede impossível. Por isso sigo e não sigo a opinião de autores como Compagnon e Eagleton de que literatura é o que uma sociedade chama de literatura e por isso compactuo e não compactuo em especial com Eagleton ao propugnar a dissolução (sublimação quem sabe termo melhor) dos estudos literários em estudos culturais ou, tal como posto de maneira curiosa, rediscussão à luz de fundamentos retóricos.

Tentando expôr de forma um pouco mais detida.

A aporia do texto O que é poesia? (aqui) é a de que o ser humano se manifesta, e de que algumas manifestações são emocionadas e outras não. Não mudo. Digo que uma manifestação emocionada é aquela pela qual transparece a individualidade de quem a faz. O raciocínio segue desenvolvendo o conceito de cultura, e esse conceito de cultura é como que um círculo desenhado entre as manifestações emocionadas ou não, de modo que existem parcelas de manifestações emocionadas  e não emocionadas que não são culturais. Podemos pensar, a esse respeito, que a mãe que chora no enterro de um filho estaria dentro do âmbito das manifestações culturais emocionadas, pois que, chorando, ela transparece sua individualidade, aquele conteúdo humano que é seu. Naturalmente que nesse caso o ato de chorar, isso da tristeza se apossar em nós é algo que é passível de acontecer a qualquer ser humano; mas, dentro daquela situação em específica, e entendendo que a individualidade envolve também toda uma questão afetiva específica, posto que emaranhada na trajetória de vida de cada um de nós. é considerando isso que digo que temos um conteúdo humano seu. Acerca do fato de ser cultural, disse, baseado na clássica definição de Edward B. Taylor, que cultura é um arcabouço de saberes compartilhado pelo indivíduo enquanto membro de uma coletividade. Tive o cuidado aqui de usar o termo "saberes", buscando ampliar o grau de saberes envolvidos e não implicando com isso que apenas aqueles saberes advindos de algumas formas de conhecimento estariam envolvidos, de usar o termo "compartilhado" relativo aos saberes, pois quebra a noção de posse, uma vez que temos um arcabouço que está ao acesso de todos, e de usar o termo "coletividade", afastando com isso a possibilidade de que apenas uma civilização ou uma sociedade possuam cultura: qualquer agrupamento humano, qualquer coletividade pode ter, se estivermos tratando de uma coletividade que forma um arcabouço de saberes que é acessível a seus membros, e não apenas acessível: que pode ser manuseado e modificado pelos mesmos, uma vez que o conceito de cultura é sempre um conceito aberto. (E aqui, claro, o uso do termo coletividade se dá no sentido de que é possível que dentro de um terreno cultural existam outros substratos culturais, compartilhados apenas por aquela coletividade em específico e não pelo restante, o que pode ser visto muito bem no caso de uma "cultura de escol", entre aspas pois o termo sempre terá seus ares de ridículo, em que, malgrado o fato de sempre pertencerem a uma cultura maior, fatalmente engendram a sua, compartilhável apenas entre eles. Isso, claro, em termos absolutos, embora, mesmo em termos absolutos, não implique em pureza da subcultura.)

É o caso da mãe que enterra um filho, uma manifestação intrinsecamente ligada a um saber compartilhado por ela enquanto membra de uma coletividade. Só que aqui chamo a atenção para o fato de que temos uma manifestação diretamente ligada à cultura, e em que o aspecto cultural é determinante para a formação de uma ação assim. Pois, com efeito, a partir do momento em que nos pomos numa coletividade, é muito difícil imaginar o que porventura faremos que não seja cultural. De minha parte julo ser possível, diferenciando o que seria uma manifestação cultural de uma manifestação com influxos culturais. A manifestação cultural se vale diretamente do arcabouço de saberes compartilhado, enquanto a manifestação com influxos culturais é como que trespassada por tais saberes. Seria o caso de diferenciarmos o caso de uma mãe que guarda um objeto de seu falecido filho daquela que de repente encontra algo que seu também falecido filho deixou para trás. Pois acerca deste exemplo o que me parece servir como fator diferenciador do ato ser cultural ou de possuir influxos culturais está no ato de guardar lembranças de outras pessoas, no caso, mortas. Creio que claro está que se trata de um saber compartilhado. Poderíamos imaginar que não na situação de uma família apartada da coletividade, mas aqui presumo que ela está inclusa numa coletividade qualquer, e isso para os dois exemplos. Afinal de contas, se é assim com o primeiro caso, no segundo, considerando que o ato de guardar objetos dos mortos não ocorra ou que venha até mesmo a ser de algum modo proibido, a mãe que encontra um objeto de seu filho pode porventura se emocionar. Só que da emoção que ela sentir não me parece certo que se venha a deduzir que estamos falando de uma manifestação cultural, quando, das possibilidades que listei, seria até o contrário. Foi pensando numa situação assim que circunscrevi a cultura entre as manifestações emocionadas ou não, e tentei ter o cuidado de não a fazer englobar as manifestações todas.

Meu texto segue com a definição de que arte é um ramo da cultura caracterizado pela expressividade humana da linguagem. Não creio que possamos falar de arte sem cultura, visto que num caso assim estaremos tratando apenas de uma espécie de atividade feita a bel prazer que estaria, além disso, fora do círculo cultural. É algo a meu ver francamente inconcebível. A arte sempre estará trabalhando com a cultura de alguma forma, por exemplo ao se valer da língua, que é um fenômeno claramente cultural, por exemplo ao retratar algo e, para tal, se valer de esquemas de representação ou mesmo de aceitação social que implicarão um arcabouço de saberes compartilhado. Minha definição de linguagem é a de que temos uma reunião de materiais compositivos, quaisquer que sejam, que, uma vez formados, geram uma estrutura capaz de gerar materiais semânticos até então inexistentes. Para tal, imagine que temos à nossa frente um monte de, sei lá, bolinhas de gude. Não existe um liame entre elas: elas estão apenas espalhadas. Todavia, transformá-las em linguagem é de algum modo uni-las que a união dessas bolinhas de gude criará um liame semântico que não só fará com que uma dependa da outra, como que, da dependência mútua de todas elas, gere-se significados que até então não existiam naquela situação de bolinhas espalhadas pelo chão.

Já sobre poesia, fui claramente influenciado por Jakobson. Pois a poesia, segundo a concebo, situa-se dentro da arte mas não necessariamente só dentro da literatura. Aqui a ideia é a da palavra em todas as suas acepções como material compositivo, o que envolve portanto forma e conteúdo, e num texto onde a função poética predomina, isto é, a mensagem voltada para a própria mensagem, de modo que temos um espectro julgo até grande de possibilidades, abarcando tanto o experimentalismo linguístico a que as concepções jakobsianas costumam se associar, quanto a preponderância metafórica, o imbricamento lírico, a simplicidade que parece partir de uma pequena dobra comparativa, à maneira do haicai, ou a simplicidade que advém de pequenos condensamentos em forma de dobra, à maneira do epigrama, etc. Pois a função poética pode surgir num texto e esse texto mesmo assim não ser poético. Para ser poético, é preciso também ser artístico e, portanto, conter a tal da expressividade humana da linguagem (é só assim, aliás, que a meu ver a função poética pode predominar) E se é poético, tal texto por conseguinte possui dentro de si outras funções num nível que jamais deve ser visto como insignificante e que jamais deve ser posto de lado em prol de uma análise somente da função poética, uma vez que o trabalho com as outras funções pode também ser de suma importância e, não raro, potencializa e algumas vezes ouso dizer possibilita a própria função poética, uma vez que a teoria de Jakobson é calcada na ideia de uma comunicação humana efetiva (o que, por si só, exclui a cogitação de qualquer uma das funções em estado puro). E digo o texto possuir dentro de si outras funções isso de tal maneira que, conforme apontei em textos passados, a noção de dominância da função poética recorre mesmo, e problema algum em fazê-lo, a critérios extraliterários que nos permitam compreender a expectativa do público que lê aquele texto. Assim o caso de um slogan que com frequência se vale da função poética. A função persuasiva dominar será também, porque não?, em decorrência da consideração da expectativa do leitor do slogan, ou seja, de encontrar ou não poesia naquele slogan (dependendo da marca é possível que ele espere encontrar), e desse slogan se caracterizar pela expressividade humana da linguagem ou não.

Os questionamentos que levantei e que a meu ver minam o que fiz até então seriam o de perguntar se outras formas de expressão humana não poderiam se caracterizar pela expressividade humana e perguntar até que ponto toda arte requer a expressividade humana da linguagem.Afinal de contas, a universalidade do conceito de humano não foi feita de maneira menos problemática ao longo dos séculos, e a possibilidade de que tenhamos uma coletividade em que o indivíduo é menor que o coletivo não é nem um pouco implausível.

E agora?

Meu questionamento reside na correlação entre ser humano e indivíduo. Mas é bem possível que tenhamos uma coletividade que, mesmo fortemente atada, preze pelo ser humano, ela toda formando um único e coeso ser humano. Contudo, a possibilidade de que tenhamos uma coletividade, por mais impensável que possa parecer, em que o critério humano não seja valorizado, em prol de valores, suponhamos, religiosos ou naturais (mas um e outro de tal modo que o ser humano se oblitere), anímicos ou postos a serviço de um bem-maior (onde, neste último caso, a criação de um corpo humano seria tratada de forma meramente fisionômica); tal possibilidade segue válida. E não só isso: ela mina de perto o que havia definido por arte, pois aqui seria o caso de se perguntar se numa sociedade assim a arte não existiria. Na verdade não creio que "minar" seja o termo correto, pois, em apresentar uma espécie de antípoda à definição, o salto de raciocínio que parte desse questionamento para o fato de que toda a teoria ruiria é um salto mal feito. A teoria, pelo menos é o que quero acreditar, pois até então, novamente creio, ela não possui incoerências internas, foi confrontada com um aspecto externo que ela não abarca, e a conclusão é a de que tal aspecto externo não foi abarcado: apenas isso. Podemos dizer que, dentro dos critérios que minha teoria suscita, em sociedades assim não teremos arte, e isso, é claro, não será dito como uma espécie de demérito ou juízo de valor embutido.

É um ponto importante. Se disse que pretendo voltar a Compagnon e a Eagleton, não será no sentido de aceitar tout court o que disseram, pois continuo julgando que pensar um conceito para literatura e para arte é possível (ou satisfatório, caso queira). Sei que é uma regra do conceito a de que ele se pretenda universal, mas repito: daí não se segue que o conceito que não o seja seja, por isso mesmo e a partir deste instante, inválido. Há que se considerar também o conceito que consegue esmiuçar o funcionamento do que pensa a respeito e há o fato de que, uma vez que estamos falando de uma atividade cultural, aberta por natureza e dependente de compartilhamentos intra-humanos, pra não dizer nos influxos externos que podem afetar diretamente a constituição da cultura, um conceito que se queira universal é sempre uma impossibilidade, não deixando de ser por isso uma meta, claro. Pra me valer de Northrop Frye, é a concepção de que a definição terá de conviver com uma penumbra, quem sabe até mesmo de um verdadeiro pretume.

Para continuarmos em Frye, no final de Anatomia da Crítica (trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos, Cultrix, 1973, p. 336-337):

Quase toda obra de arte do passado teve uma função social em seu tempo, uma função que amiúde não foi absolutamente uma função estética. A concepção cabal de "obras de arte", como classificação para todas as pinturas, estátuas, poemas e composições musicais, é relativamente moderna. Podemos ver um impulso estético agindo nos tecidos peruanos, nos desenhos paleolíticos, nos ornamentos eqüinos dos citas ou nas máscaras kwakiutl, mas, com isso, fazemos uma refinada abstração que bem pode ter estado fora dos hábitos mentais da gente que os produziu. Assim, a questão de saber se um objeto "é" ou não uma obra de arte é das que não podem ser decididas apelando-se para algo na natureza do próprio objeto. A convenção, o acordo social e a obra da crítica no sentido mais lato é que determinam o seu caráter. Pode ter sido feito originalmente para utilização e não para deleite, e assim se exclui da concepção geral aristotélica de arte, mas, se existe agora para nosso deleite, é o que nós chamamos arte.

Novamente, a tal da penumbra que Frye indicava páginas atrás. Com a diferença de que o ato de se retirar a obra de sua função social pode indicar como que uma violência que uma definição de arte não pode furtar de se remeter. E não só isso: a fim de que o problema não seja mais grave, ela deve possuir dentro de seu escopo como que pontos cegos para que possamos preencher com dados relativos dentro de cada contexto social, o que, em minha tentativa, seriam pontos como o de que o que é e como se dá a expressividade humana, como seria a organização ou manutenção do arcabouço de saberes compartilhado etc.

O texto de Frye é interessante pois se comunica, como também notei em textos passados, com o que fora exposto por Compagnon e Eagleton. Se voltarmos à questão da certa violência com que uma obra seria retirada de sua função social, é de observar que, se não aceitarmos a convivência de regiões penumbrosas dentro de um conceito que envolva tão diretamente quesitos culturais, então podemos estar correndo o perigo de de fato violentarmos as origens da obra em questão, lançando uma luz e um critério interpretativo totalmente alheio à sua configuração originária. Assim, enquanto a noção das regiões penumbrosas nos permite entender os limites implícitos na atividade da conceituação, sua negação incorre na imposição pura e simples. Fugir desta via é somente por um estudo contextual e efetivo da cultura de que estamos tratando. Não digo nem tanto no sentido de que o conceito de arte é historicamente um conceito europeu, pois, este sendo seu nascedouro, a essa altura do campeonato ele já se expandiu o suficiente (pelo menos eu gosto de acreditar nisso). E se se expandiu, foi a partir de um contato mútuo e de uma espécie de conscientização de culturas, ou, pra caracterizar de maneira a meu ver ainda mais precisa, foi de um compartilhamento de saberes entre culturas. A noção de arte que foi trazida para outras culturas, muitas vezes graças aos corsários da barbárie, é verdade, mas que, com o passar dos anos, foi como que sendo adotada e cultivada, visto que um dos corolários da cultura ser algo sempre em aberto é o fato de que, uma vez que um algo de outra cultura entra, ele é a todo instante incorporado, mantido, modificado, aprendido e apreendido para nunca mais ser largado. Pois às vezes é isto o que deve ser feito, muito mais do que a simples ânsia de lançar a luz do conceito, a qualquer custo, sobre a penumbra: um contato cuidadoso que saiba reconhecer e cultive seus limites.

Uma forma de, partindo da noção de que literatura é o que uma sociedade preza como literatura, chegarmos a uma noção certa forma imanentista do fenômeno literário seria a de, com Jonathan Culler (trad. Sandra G. T. Vasconcelos, Teoria Literária, Beca, 1999 [1997]), dizer que a literatura "é um ato de fala ou evento textual que suscita certos tipos de atenção." Se pode a priori parecer que Culler não muda muito a ordem dos fatores (e de fato será nas páginas seguintes que ele o fará de forma explícita), devemos, contudo, observar a forma habilidosa como Culler inverte os dados da questão: ao invés de partirmos da sociedade que chama um texto como literário ou não, é o texto que suscita certos tipos de atenção e, assim sendo, dá-se como literário. Pois, acerca do que foi exposto especialmente por Compagnon e Eagleton, será importante trazermos à baila novamente o vídeo de Paulo Henriques Britto expondo sua concepção sobre o que seria poesia, calcada em Wittgenstein (linkado aqui; aos 1:05:00, por aí).

O argumento de Britto é como que a gênese da ideia de Compagnon e Eagleton, com a diferença de se mostrar muito mais instigante. Pois o trabalho de reconhecimento e de comparação não é uniforme nem muito menos quantitativo. Ele envolve uma questão de expectativa. Podemos considerar os sermões de Donne e de Vieira como textos literários, podemos considerar o sermão na metade do Retrato de Joyce como um texto literário, mas não esperamos que qualquer sermão seja literário. A história de determinados tipos de texto se prova mais literário do que outros, e, existida a penumbra a que me referi antes, ela na maior parte das vezes se refere a casos isolados. E não só isso: ela é retrospectiva e não segue necessariamente uma linha reta. Não é bem a ideia de que a cada ano que passa nossa tolerância pro que é literatura passa a ser cada vez mais tudo.

Não pois ganhamos instrumentos mais capazes e entendemos de forma cada vez mais lúcida a constituição de outras culturas que se afastaram ou se afastam da nossa. Culturas em que o processo de compartilhamento parece perder aquela característica de naturalidade que vemos nos contatos historicamente repetidos. Assim, é possível que venhamos a redescobrir a real função de, vamos supôr, um texto X numa cultura Y. Se antes o considerávamos como sendo certamente literário, depois de uma descoberta qualquer poderemos estar aptos a entender que ele não era literário no fim das contas, o que poderá mudar de maneira sensível a ordem dos fatores. Para não dizer em nossa reconsideração retrospectiva de certos textos. Por exemplo, Aristóteles afirmava que nem todo texto escrito em metro poderia ser chamado de poético. Um livro de farmácia, por exemplo. Mas, após as investigações de Jakobson, é possível que venhamos a considerar um livro de farmácia em versos como poesia, ou trechos dele. A dinâmica, portanto, dos critérios de comparação para que possamos determinar se algo é ou não literatura é dinâmica e multifacetada. Multifacetada dado que não existe nunca um consenso do que é literatura em determinado tempo. A noção da penumbra é e sempre será também uma noção crítica.

A noção da penumbra, sendo assim, pode ser vista como uma espécie de margem de manobra. Mais até do que margem de manobra, a penumbra fazendo parte desde sempre de todo e qualquer conceito que, como dito, envolva cultura. Pois do fato de que a cultura é aberta não decorre que todo conceito queda impossível, mas sim que todo conceito deve trazer consigo suas zonas de incerteza, e que, tão importante quanto buscar entendê-las é o simples fato de saber lidá-las. Descobertas e redescobertas e argumentos podem mudar nossa concepção de certas culturas, o que pode nos fazer incluir ou excluir um texto dentro da circunscrição literária, ou nos dar a ideia de que hoje ele é tido como literário, quando ontem não o fora. O que é perfeitamente possível, visto que a maciça utilização literária e mesmo a intensa discussão sob critérios literários de um texto pode trazê-lo para dentro de uma definição de literatura. No meu caso, a ideia de que, se muitos enxergaram nesse algo uma expressividade humana da linguagem, o que não se liga necessariamente a um autor específico (meu enfoque é muito mais textual do que emocional; é a expressividade humana suscitada pelo texto), então claro está que temos um texto literário. Ideia que, a bem da verdade, não se diferencia em nada do que Compagnon e Eagleton disseram, com a diferença já apontada de que não é o fato de existir uma penumbra que todo esforço de conceituação se torna por conseguinte vão. Por dentro da visão panorâmica e, verdade seja dita, simplista de Compagnon e Eagleton, existe o estabelecimento de um parâmetro crítico que se quer amplo e em constante reconstrução, o que só pode ser feito graças ao cuidado que for prestado tanto às estruturas intrínsecas do conceito como às raias nebulosas que lhe adejam.

Já sobre a primeira questão levantada, de saber se outras formas de texto também poderiam se caracterizar pela expressividade humana, creio tratar-se de uma objeção ainda mais séria, visto que, por exemplo, uma carta recebida por uma mãe pode conter dentro de si uma enorme expressividade humana e ainda assim não ser arte. É o caso de questionarmos se essa expressividade humana advém da linguagem da obra ou se de um quesito contextual, e os passos devem ser dados com muita cautela. Segundo o conceito que propus, a arte é um ramo da cultura caracterizado pela expressividade humana da linguagem. Há, portanto, uma questão de caracterização daquela linguagem como possuidora de uma expressividade humana. Daqui podemos retornar à questão de que literatura é apenas o que se considera como sendo literatura, tendo em vista o que o termo "caracterizado" dá a entender. Podemos tentar abrandar isso se dermos um enfoque à linguagem da obra em questão, e, como disse, se ela se caracterizar pela expressividade humana da linguagem, então será arte, de modo que a questão aqui é como que indagar ou enxergar a tal da expressividade humana em tal obra.

E esta é a grande questão, a meu ver o ponto mais frágil de minha definição. Disse que a resposta pode advir de um ponto de vista contextual, seguindo a noção de que a carta de um filho para sua mãe conteria uma forte expressividade humana graças a seu contexto e não a características internas. Aquela coisa de que tal carta revelaria a expressividade humana apenas à mãe e não a qualquer um de nós. Afinal de contas, se a cultura envolve um arcabouço de saberes compartilhado, a arte, tomada numa perspectiva de produção ou incremento de saberes, é sempre coletiva, de tal modo que a carta do filho para a mãe, embora se valha de um arcabouço cultural (a língua ou o simples ato de escrever cartas), ignora tal dimensão, digamos assim, ativa da cultura. Portanto, por mais que possa considerar enquanto expressividade humana a linguagem da carta, a definição que propus de arte ainda deve considerar a arte como ramo da cultura. Mas claro que se isto explica o exemplo da carta, não explica o exemplo de uma piada, evidentementemum artefato cultural ativo. E não me parece que negar a expressividade humana do humor, da ironia ou mesmo do escárnio seja justo...

A expressividade humana da linguagem faz parte do que entendo como cerne duro de um conceito de literatura: mudem os parâmetros literários, uma zona segue razoavelmente fixa. Aquilo que de algum modo rompe este conceito e mantém, também de algum modo, o estatuto de literário, rompe, por conseguinte, com o que conceituo. Assim, conceber uma forma artística advinda de uma sociedade em que a expressividade humana não seja a pauta principal da obra ou simplesmente conceber que outras formas de expressão humana podem se caracterizar precisamente por sua linguagem expressadamente humana, e ainda assim não serem literárias; tais casos são casos limite aos quais não tenho como responder. São a penumbra. Prostro-me.