A solidão do corredor de longa distância: o leitor de poesia contemporânea.


(Vocês estão prontas, crianças?)


Tem coisa muito óbvia a ser contada.

O que é ser um leitor, pra começar começando? É só ler, passar os zóio e guardar no coração? Não deixa de ser. Mas existe mais ou menos um ciclo, uma escadinha. O fim de todo contato entre alguém com algo é o de formular uma leitura e pôr sua leitura à leitura de outros. Aquele lance de discussão, trocar gostos, trocar farpas. Naturalmente que isso é muito amplo, e, na prática, é também muito difícil você ler algo e não discutir esse algo de algum modo, nem que seja sob a influência que aquilo gravou dentro de nós. Nem que seja da forma mais indireta do mundo... O ideal é que você formalize, formule, discuta. O que nem sempre é feito. Especialmente com literatura contemporânea. Por quê nos esforçamos tanto para o cânone e tão pouco para a literatura contemporânea? Por preceitos científicos? Por uma questão matemático-temporal simples?

Não estamos errados até aqui. Há também o argumento, que pipoca nessas horas, de que é muito difícil para um contemporâneo julgar uma obra que vive o que ele vive, uma obra passo-a-passo com sua realidade. O ideal é que os pósteros julguem, pois, de resto, eles possuem distanciamento e poderão enxergar o fenômeno de modo mais claro. Em verdade isso não é uma mentira. Mas advogo que a coisa não é só por aí.

Primeiro que a obra de arte não é simplesmente um relato, um artefato de seu tempo, mas também um objeto contra seu tempo. Um objeto de resistência. E encarado assim, podemos ampliar e muito o debate, retirando o cada-um-no-seu-quadrado que, útil e didático, deve ser superado no devido momento, e passando a justamente valorizar nossa posição de contemporâneos para o julgamento de determinada obra. Afinal de contas, e aqui já podemos acoplar a um segundo motivo, se os pósteros possuirão distanciamento crítico para com a obra de hoje, eles também possuirão distanciamento com os sentimentos e as reivindicações de hoje, o que é e sempre será não só uma vantagem, como uma urgência para que leiamos e busquemos entender o que é produzido hoje. Mais uma vez, claro que isso também pode ser chacoalhado, pois, sem espanto nenhum, problemas complexos de hoje não serão resolvidos num passe de mágica. Assim, as fórmulas de resistência da grande obra de arte são fórmulas reincidentes, não se limitam apenas a um momento pois o que elas combatem, ainda que resolvidos, possuem ranços. Por exemplo, observe-se como a poesia anti-escravocrata dum Castro Alves ou dum Heine infelizmente continua atual, seja por seu conteúdo humano ser preponderante, seja pelo simples fato de que a discriminação racial ainda persiste no pontapé, na pistola e na piada.

Nem sempre para o póstero é fácil julgar isto. Primeiro pois, repito, a obra de arte não é tão somente simulacro arqueológico. Se olho para a obra de Dante, não basta me aproveitar do distanciamento crítico, mas, pelo contrário, também ler meu tempo e, de preferência, entender a situação da época do autor não só pra ver como Dante colocou aquilo tudo na sua obra, mas como ele justamente batalhou contra aquilo tudo. Obra de arte pode até servir como máquina do tempo ou ponte iridescente rumo à imaginação. Que seja. Mas que principalmente seja pés no chão.

Desse modo, não me parece lá muito acertado dizer que o julgamento do leitor contemporâneo é apenas um estepe, um preparatório, um tudo que é sólido se desmancha no ar. Na prática, o leitor de amanhã não vai ficar procurando nas catacumbas de fichários e cadernos em ruínas por um poeta genial que a crítica malvada esqueceu. Ele terá a sua poesia contemporânea para avaliar. Na prática, o leitor de amanhã vai endossar e tocar o bonde com os artistas de qualidade que a crítica hoje apontará. Obviamente que isso não quer dizer um simples passar-o-bastão. Obviamente que isso não quer dizer que quem possui muitos leitores hoje também possuirá muitos leitores amanhã. Dependerá muito de que julgamentos positivos estamos falando (se é o julgamento acompanhado de um tapa nas costas ou o julgamento antes e depois de um soco na cara) e de que leitor estamos falando.

E de resto, chega uma hora em que o leitor de poesia contemporânea deve romper um pouco com a glória ensurdecedora do "daqui a 100 anos". Não apenas porque julgo totalmente válido que nos perguntemos o que de fato dura 100 anos em nossa querida sociedade (se brincar, nem ela mesma), mas também porque o trabalho do leitor de poesia contemporânea é muito mais um trabalho para seu tempo do que um compromisso com quem vai nascer depois. Não digo com isso que o teste dos 100 anos seja inválido, pois afinal, uma das definições a meu ver mais válidas de cultura é aquela que diz que cultura é uma atividade humana capaz de nos legar aos pósteros. Digo que não devemos nos excruciar a ponto de negar a validade da leitura contemporânea ou de querer enxergar nela valores universais, um ouro que, visto dessa maneira, abstrato, transcendental, vai contra sua essência de (m)achado hodierno.



(Young girl eating a bird [The Pleasure]; Magritte, 1927.)


Vamos tentar ser um pouco específicos. Esbocemos quem seria esse leitor. Ele não pode ser um arauto do apocalipse. Atualmente, graças a Deus, esses pobres descabelados abaixaram a crista. Mas, até bem pouco, eram uma voz uníssona.

A principal qualidade do leitor de poesia contemporânea é a esperança. Esperança, elo poderoso de ligação entre as épocas, respeitando o que passou e semeando o que passará. Esperança de que amanhã a poesia seja mais do que hoje ela é. Esperança, querer o melhor dos poetas que hoje produzem, sem dizer que o leitor deverá ser condescendente. Que seja rígido, mão dura, certo. Mas que deixe bem claro que espera o melhor do poeta lido. Pois se hoje esse poeta não é bom, nada garante que amanhã ele não possa vir a ser. Não estamos lendo obras completas. Estamos lendo  um work in progress.

Ler esse work in progress nos leva a alguns cuidados específicos. Se é uma verdade que a comparação é ínsita ao trabalho avaliativo da crítica, que esse trabalho comparativo seja feito com suas devidas ressalvas. Entendo que a mão pesada muitas vezes nem é do crítico, mas da própria realidade graças a Deus riquíssima da literatura, com seus tubarões que comem e palitam os dentes com os restos do poeta estreante. Contudo, não nos estonteemos. Chega uma hora em que a comparação é nitidamente desigual.

O rosário de críticas em torno de um autor é talvez a principal fonte. Nem todos tiveram tempo ou favorecimento histórico-espacial para reunir um em torno de si. Ou um tão gordo, tão sobressalente. As razões podem ser várias e nem sempre fazem jus à real qualidade de um poeta. Pondo no contexto brasileiro, ainda hoje é notório que o rosário crítico em torno de um Sousândrade é defasado face a outros poetas injustamente mais favorecidos. Ou, num exemplo ainda mais instigante, mesmo dentro da obra de um poeta a disposição da crítica não é igual, uma vez que as partes mais interessantes dum Byron (Beppo, Don Juan) são postas em segundo plano frente à lenda da taça de crânio.

Isso significa: há que se tentar chegar ao cerne da questão e aparar um pouco as bordas do círculo crítico formado em torno de um autor caso queiramos colocá-lo como parâmetro qualitativo na avaliação contemporânea. Tarefa nem um pouco simples, posto que já não posso ler Baudelaire e não me lembrar de Benjamin e Friedrich, é óbvio que ela pode ser realizada até um nível minimamente satisfatório se conduzida com esforço e empenho. Mesmo porque, na prática, ela será um separar joio do trigo, ou seja, selecionar aquele aparato crítico que em verdade contribua para mostrar um poeta e não aquele que sirva para criar lendas. A visão lúcida e verdadeiramente crítica, abrangente, para com um poeta do passado é essencial para que afastemos de vez a égide descomunal e exagerada do Deus entre os mortais.

Quando chegamos a essa visão a mais próxima possível do que um poeta de fato foi, aí sim podemos trazê-lo à tona na avaliação de poesia contemporânea. Não se trata de uma questão de complacência. Mais uma vez repito que o poeta contemporâneo entra num trabalho extremamente árduo e instigante, esse de escrever após tudo ter sido dito (e de conseguir provar que tudo ainda não foi dito). Mas também repito que se o crítico não afastar de sua mão pesada a irresponsabilidade, ele tropeçará e se debaterá no poço da crise poética, ele urrará de dor e fará um desserviço evidente ao cenário poético.

Um livro de poemas nunca é algo uniforme. Nós geralmente não percebemos com a mesma intensidade a diferença de níveis dentro de um romance. O que é claro, visto que é, no todo, um texto, por mais decomponível que seja. Num livro de contos isso já é bem mais visível, mas não tanto como no caso da poesia, onde a diferença entre textos, de tão radicalmente únicos, de tão celularmente distintos, é colocada assim, na cara. Logo, é muito comum que um livro de poemas possua desníveis. Se com grandes livros é assim, com um livro de poemas estreante é claro que também será. Só mesmo a cegueira pelo esplendor de um nome como "Dante" poderá enxergar o castelo da Divina Comédia como uma unidade qualitativa, ignorando a evidente queda operada entre o Canto I e o II do Inferno, para citarmos um exemplo logo no pórtico.

Mais uma vez, é propriedade fundamental do leitor de poesia contemporânea a esperança. É processo comum que poemas menores sejam ressignificados e postos em preponderância em estágio posterior do work in progress. O caso drummondiano é mais que evidente: a pedra no meio do caminho está longe de ser um bom poema, mesmo dentro dos padrões internos de Drummond, e contudo, em livros posteriores o conceito da pedra, do obstáculo transponível e intransponível, se tornou tão forte em sua Obra, que aquele poema franzino e sem mais o que mostrar ganhou uma importância, ganhou uma posição estratégica dentro do universo poético do autor. Pois nesse sentido não creio ser nenhuma novidade que, além de escrever apenas bons poemas, o que de fato caracteriza o grande poeta é a construção de um universo poético, de uma Obra, um todo com força suficiente de se rivalizar com a linguagem do mundo. A questão qualitativa é óbvio que também entra na conta, se bem que, a bem da verdade, um poeta mediano pode, se insistir demais nessa coisa de escrever poesia, acabar construindo algo bom. A diferença é que um grande poeta não só possui bons poemas num nível muito maior que o poeta mediano, como possui também poemas ótimos, poemas que vão além e apresentam um grau de invenção tão singular que o poeta mediano desconhece, ou, antes, somente emula.

O desnível interno de um livro de poemas contemporâneos, é claro, não deve ser muito alto. Mas, se em níveis aceitáveis, pode até ser interessante no sentido de apresentar um percurso tortuoso que ainda assim, de algum modo, valha a pena ser acompanhado, o que certamente evidencia a força dos poemas realmente bons do livro, que, em todo e qualquer livro, sempre servem de guia. Para além do fato de que, é claro, só mesmo a desonestidade julga um poeta por seus piores momentos.

Falar em bons momentos é um caso à parte. O que seriam bons momentos? Nem sempre paramos para pensar em questões assim. É cômodo dizermos que Baudelaire foi um grande poeta pois foi Baudelaire, está estampado no livro didático. Mais uma vez, a pertinência de buscarmos a verdadeira face de um poeta se mostra como urgente. Pois para tal não bastam apenas critérios sólidos e bem fincados de avaliação artística, usados ou contra aquelas categorias abstratizantes ou usadas aquelas categorias abstratizantes de maneira sólida. Veja-se o caso da beleza. Ou não a usamos, se por usá-la entendermos uma expansão do gosto pessoal ou o evocamento de um estofo lá-atrás-era-assim, ou a usamos com toda a consciência do que ela é a essa altura do campeonato.

Quando falo em bons momentos, destaco os critérios de 1) embate para com a contemporaneidade e 2) invenção. O primeiro critério não recai na poesia participativa e a cartilha que ridiculamente a ela se impõe, de uma criança pobre no meio do poema ou de um panfletarismo escancarado. Embate para com a contemporaneidade por evidenciar um desgosto com seu próprio tempo e por eleger uma concepção de indivíduo progressivamente maior que o umbiguismo lírico, ou seja, um indivíduo que encarne todas as facetas e não vista uma porque desnudou outra (pois, de resto, conforme venho repetindo no bloguinho, sabemos muito bem que algumas máscaras líricas são universal e comodamente postas, ao passo que outras, via de regra máscaras líricas de minorias sociais, não gozam dessa universalidade à priori, uma vez que o conceito de universalidade não deve ser confundido jamais com o de neutralidade). Já o critério de invenção, a meu ver inerente ao poético, que deve levantar a bandeira preta e buscar pelo novo, também não implica em matar X e colocar Y no lugar. Não implica na ojeriza do passado. Sabemos muito bem que a invenção é a forma mais ampla de afirmação desse próprio passado. Sabemos muito bem que a invenção pode existir mesmo sob as armaduras mais rígidas das regras poéticas, como em Baudelaire. Mas ela deve existir e ela, repito, me parece um critério bastante sólido de avaliação artística (mas, claro, devendo sempre ser evocado da forma mais ampla possível, não apenas numa questão de forma, mas de conteúdo, necessidade, humanidade).

Evidenciar porque um poema ou um livro é bom é sempre uma tarefa muito mais producente do que explicar porque um livro ou um poema é ruim. Lógico que às vezes você passa por uns apuros em que ambas são necessárias, e o leitor de poesia contemporânea deve estar armado tanto para um caso quanto para outro, posto que, não tendo necessidade de explicar porque Arnault Daniel é melhor que um provençal qualquer, ou porque esse provençal qualquer é qualquer, há sempre a necessidade de explicar porque um poeta é ruim — e nessas horas o leitor deve ser um verdadeiro atirador de elite para acertar na mosca o que deve ser atacado e não sair por aí todo destrambelhado e triunfal. A estes, fique, ao invés do ataque direto ou das indiretas patéticas, a contra-leitura que prove porque o poeta é bom. E que vença o debate. (Debate, suficiente pra passar umas vergonhas em expressões como "atirador de elite" ou "acertar na mosca" — debate, ouviram?, debate.) Pois, lógico, lidar com a crítica ruim ou com o conluio nefasto do eu-te-avalio-e-tu-me-avalias é uma realidade ainda persistente, o que costuma redundar numa crítica frankensteniana onde um punhado de nomes nos é citado signifying nothing. Mas o leitor de poesia contemporânea do pé-rachado não se assusta com isso. Ele tem um aparato crítico que benze e lhe permite ver quão desengonçado é esse apadrinhamento ou cegueira súbita: um monte de categorias genéricas usadas para aquele poeta em específico como para todo mundo. Evidenciar a individualidade, o único de um trabalho em específico, continua sendo a estrela-guia da boa atividade crítica, muito além das premissas estabelecidas e reiteradas como se o reiterá-las fosse a própria exposição (método de argumentação que, diga-se de passagem, muitos dos arautos do apocalipse se valem).

Pois, de resto, a boa leitura poética vai além da poesia, da estética. É um objeto transbordante que chega a dar a entender que se propôs a ler tudo. Que se propôs a ler, em suma, o tempo em que o poeta escreveu sua obra. E vai ainda além, pois entende a necessidade de ser um crítico de seu próprio tempo. O trabalho do leitor de poesia contemporânea é análogo. Primeiro pois a questão do conforto e do distanciamento é muito relativizada, se desentranhamos o porto seguro do só-falar-daquele-tempo e entendemos, como dito, que um bom leitor de poesia contemporânea é um crítico de seu tempo, à guisa de um Hugh Kenner, uma Susan Howe, um Northrop Frye, um Alfredo Bosi, um Antonio Candido, um Raymundo Faoro: estes não se limitaram a apenas, no caso de Faoro, falar da obra machadiana e emitir um julgamento positivo ou negativo, ou a entender as razões, correlacionar a obra internamente, ou mesmo de empreender uma ampla análise do tempo de Machado; entenderam que uma leitura do hoje era necessária, e por isso foi empreendida para provar que sim, inverno, estamos vivos. E segundo pois se o bom crítico sai do passado e aporta no presente, o método básico do leitor de poesia contemporânea deve ser o de partir do presente para aportar no passado; ou, melhor dizendo, o de ler seu tempo como um processo histórico, pontuar os porquês, esboçar linhas de contato ou de embate com a tradição. Tudo isso, não preciso nem dizer, com a necessidade premente de deixar bem claro que está falando do agora, pois, afinal, tanto o leitor de poesia contemporânea quanto o de poesia clássica assinalam a contemporaneidade do que fazem.


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Walter Benjamin, oracular, elabora 13 teses para o crítico:

I. O crítico é estrategista na batalha da literatura.
II. Quem não é capaz de tomar partido tem que calar-se.
III. O crítico não tem nada que ver com o intérprete de épocas artísticas passadas.
IV. A crítica tem de falar na língua dos artistas. Pois os conceitos do cenáculo são senhas. E somente nas senhas soa o grito de batalha.
V. Sempre a “objetividade” tem que ser sacrificada ao espírito de partido, se é digna disso a causa em torno da qual se trava a batalha.
VI. A crítica é uma causa moral. Se Goethe não reconheceu Holderlin e Kleist, Beethoven e Jean Paul, isso não concerne seu discernimento artístico, mas sua moral.
VII. Para o crítico são seus colegas a instância superior. Não o público. Menos ainda a posteridade.
VIII. A posteridade esquece ou celebra. Só o crítico julga no rosto do autor.
IX. Polêmica significa aniquilar um livro em poucas de suas frases. Quanto menos se o estuda, melhor. Só quem é capaz de aniquilar é capaz de criticar.
X. A polêmica genuína põe um livro diante de si tão amorosamente quanto um canibal prepara para si um bebê.
XI. Entusiasmo artístico é alheio ao crítico. A obra de arte em suas mãos é arma branca na batalha dos espíritos.
XII. A arte do crítico in nuce:cunhar palavras de ordem sem trair as idéias. Palavras de ordem de uma crítica insatisfatória traficam os pensamentos com a moda.
XIII. O público deve ser constantemente injustiçado, e no entanto sentir-se sempre representado pelo crítico.

Retirado daqui, mas sem nomear o tradutor...

Muito além de afastar a obviedade de que a imparcialidade não existe, o convite de Benjamin a que tomemos um partido é um convite para que nos lambuzemos. Não concordo (ou acho que não entendi bem, pois Benjamin é muito sinuoso) com algumas teses, como a III ou a VII. Mas a pertinência do chamado de Benjamin continua muito válida.

O leitor de poesia contemporânea toma o partido da poesia contemporânea. Ele não nega o cânone, ele não para de ler o cânone. Ele só não é um escravo do cânone. Ele só não quer ver a tradição embalsamada; ele quer ver a tradição viva. Quer carregar dentro de si a esperança e, ao contrário dos resmungos, das presunções, do espaço amostral pequenino e retirado de dentro da cachola, ele arregaça as mangas.

Não teme o erro. Sabe que falar de poesia contemporânea é provavelmente um jogar papeis ao vento... Ou não. Sua atividade não é a atividade do cartomante. Não é uma aposta, por mais que tenha algo de aposta, por mais que tenha algo de tombo. É querer viver seu próprio tempo e entendê-lo, e seguir em frente rumo a todo aquele que também quer entendê-lo, chutando pra bem longe, de uma vez por todas, aquela letargia que faz por bem deixar a leitura do agora como presente de grego pro depois.

Se a obra de arte é uma manifestação das mais válidas e reveladoras de um tempo, ele quer entender o como ela é válida, o como ela é reveladora. Certamente que não um entendimento à guisa da análise silogística, mas certamente que não um tipo de análise menos válida para quem vive o que o poeta escreve, nem menos apreensível graças ao enjoo da canoa contemporânea. Nem, e creio que não seja nem preciso dizer, menos fascinante por sair dos rios da imaginação para colorir um pouquinho o asfalto (quer dizer; nem toda poesia colore o asfalto; a boa poesia nos mostra que o asfalto existe, e, pra isso, só mesmo pintando em cima). Como se o asfalto por si só, e tudo o que contivesse em si a concreção do asfalto, fosse a única forma de conhecer o quê lhe pisa.

O leitor de poesia contemporânea pisa esse asfalto. E sabe, como dissera Drummond, que, de tanto o pisarmos, ele talvez um dia se humanize.